Questionamento à volta de três noções: grande cultura, cultura popular, e cultura de massas
Gisela Gonçalves

Setembro de 1998


INTRODUÇÃO
 

"Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, a cultura popular, a cultura de massas)" é o título de um ensaio que serviu de campo fecundo para a elaboração deste trabalho, sobre a tão problemática temática da Cultura.
O ensaio da socióloga Mª de Lourdes Lima dos Santos (1) está construído sobre três linhas principais: 1) superar uma concepção etnocêntrica e compartimentada da cultura; 2) analisar a relação entre as diversas culturas em determinados momentos históricos, com destaque para a reconfiguração dos jogos de distinção, exclusão e integração sócio-cultural, o impacto do surto e desenvolvimento dos mercados de bens culturais e as querelas entre a produção cultural de série e a obra única; e 3) apresentar alguns contributos para uma Teoria da Cultura.
Respeitando estes três objectivos principais, o próprio ensaio é apresentado numa estrutura tripartida. Na 1ª parte - "Um breve circuito teórico" - são apresentadas diferentes perspectivas teóricas sobre a "cultura", e é-nos descrito algumas disciplinas do campo de estudo sociológico sobre a cultura. A sociologia da cultura, que se dedica ao estudo das obras de produção nobre (domínio do saber constituído), a sociologia da vida quotidiana, que como o nome indica, estuda as práticas culturais no domínio da experiência existêncial e a sociologia da comunicação, concentrada nas manisfestações da cultura de massas. Na base desta segmentação estão, respectivamente, as ambíguas noções de alta cultura, cultura popular e cultura de massas.
"Relações entre a pequena e a grande tradição" é o capítulo central do ensaio e retrata a oposição entre teorias unidireccionais e bidireccionais e alguns dos momentos mais importantes da história da cultura. Por fim, em a "Mercantilização da produção cultural" tenta responder a algumas preocupações, como o que é que aconteceu à cultura popular, quais as novas formas ligadas à produção em série e qual o efeito da reprodutividade na avaliação das legitimidades culturais.
Ao longo do trabalho, que a seguir se apresenta, tenta-se reflectir sobre as ideias principais do ensaio em questão, sem deixar de realçar alguns dos elementos chave da problemática cultural. Para melhor realizar este objectivo, outros autores servirão de apoio à interpretação, especialmente Pierre Bourdieu, já que o cerne da sua sociologia se encontra na cultura e nas diferentes inter-relações culturais, e também, Umberto Eco, escolhido sobretudo, pela sua actualidade e frontalidade na dissecação do fenómeno cultura de massas.
 

A NOÇÃO DE CULTURA

- determinações histórico-sociais -

O fenómeno da cultura ocupa um espaço priviligiado em todas as teorias sociais. Apesar das diferentes perspectivas sobre o que ela é de facto, há o entendimento geral de que se trata de um domínio do sentido da actividade humana. Este é um domínio simbólico: não é acção pura mas sim, em função do que nos movemos e se estabelecem determinadas relações.
Iniciemos a nossa análise pelo próprio termo "Cultura". Palavra antiga, etimologicamente, do latim cultura, «cultura, em geral; a agricultura; fig., cultura (do espírito, da alma)». Esta utilização no sentido figurativo, de "cultura do espírito", surgiu no séc. XVI , com o Renascimento. A importância do conceito foi enfatizada ao se tornar um símbolo do Iluminismo e dos seus filósofos, como por exemplo Hobbes, que designa "cultura" como o trabalho de "educação do espírito".
Até à 1ª metade do séc. XIX imperou uma concepção tradicional e singular de cultura - sinónimo de civilização. Posteriormente, esta concepção moderniza-se graças ao importante contributo da Antropologia, dividido por duas fases: a concepção descritiva e a concepção simbólica da cultura.
Ao contrário do que aconteceu na concepção tradicional de cultura, surge com a Antropologia Descritiva (séc. XIX) uma acepção plural da cultura, ligada à descoberta da diversidade das culturas não europeias.
Enquadrada no Positivismo e no Evolucionismo dão-se as primeiras tentativas de cientifizar a cultura enquanto objecto de estudo. E é numa perspectiva evolucionista (o primitivo é considerado equivalente ao nível mais baixo da cultura) que Edward B. Tylor (1871) efectua a 1ª formulação do conceito antropológico de cultura, definindo-a através do desenvolvimento mental e organizacional das sociedades: "Cultura é o complexo unitário que inclui o conhecimento, a crença, a arte, a moral, as leis e todas as outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade".
No início do séc. XX o Evolucionismo é criticado e surgem novas correntes, como o Funcionalismo: defende que um traço cultural só pode ter significado na medida em que é função do equilíbrio do sistema ou da estrutura dada. Malinowsky, é um dos funcionalistas que procura a descrição da cultura mais o seu funcionamento; pretende perceber em que medida os diferentes elementos da cultura respondem a determinada necessidade humana. Para ele, a cultura organiza-se de uma forma funcional não deixando de ser evolutiva.
Os americanos foram os antropólogos que mais se aplicaram ao estudo do conceito de cultura, ao ponto de o tornar uma disciplina especializada denominada culturologia (2). A antropologia cultural americana insiste no desenvolvimento material e técnico e na transmissão do património social; coloca em relevo a noção de cultura material; todos os aspectos materiais da actividade humana - desde o trabalho do campo aos utensílios de cozinha - adquirem um valor que os torna parte integrante de um sistema cultural determinado; explicam a cultura como sistema de comportamentos aprendidos e transmitidos pela educação, pela imitação e pelo condicionamento num dado meio social.
O segundo contributo da antropologia no estudo da cultura - concepção de carácter simbólico (séc.xx) - realça os aspectos simbólicos da cultura e vem suplantar os aspectos negativos da concepção descritiva (fragilidade de suportes teóricos como o funcionalismo e o evolucionismo).
A concepção simbólica preocupa-se com os aspectos compreensivos da cultura, os elementos de análise já não são os objectos, artefactos em si, mas enquanto sistema de símbolos, de linguagem e sentido. A enfatização do aspecto simbólico retrata a actividade humana organizada em diferentes linguagens simbólicas (gestual, organização do espaço, linguagem das relações humanas, como a família), ou seja, uma organização da vida com sentido.
Na década de sessenta cresce o Estruturalismo (analogia consciente com a línguística estrutural) de C.Lévi-Strauss que enfatiza o aspecto simbólico da cultura ao identificá-la como expressão de sistemas do espírito: a cultura é uma manifestação do mundo das ideias abstractas do espírito; é um instrumento de comunicação. Na sua expressão mais simples, o estruturalismo fornecia um modo de análise dos aspectos simbólicos da sociedade (sobretudo o mito, mas também o totem e outros sistemas de classificação). Na sua expressão mais complexa fazia afirmações sobre a universalidade dos modos de estruturação do pensamento.
 
 

ALGUNS CONTRIBUTOS TEÓRICOS

Os contributos teóricos no estudo do fenómeno cultural têm sido muitos e variados. No ensaio em questão são realçados alguns nomes, como Lucien Goldmann, Marcel Rioux, Michel de Certeau, Pierre Bourdieu, E. Verón, exactamente porque as suas reflexões "têm em vista procurar vias para superar a aludida concepção etnocêntrica e compartimentada de cultura e possibilitar uma análise das relações entre as diversas culturas coexistentes numa sociedade" (3).
Lucien Goldmann divide a cultura em estrato material e estrato ideal. O primeiro é a esfera das práticas técnicas, das intervenções instrumentais, onde há confronto directo, físico com a natureza e por isso, uma experiência existencial. O estrato ideal é a esfera das possibilidades futuras, onde a função dos objectos vem traduzida em símbolos, existindo um saber constituído. A articulação entre os dois estratos é feita através da noção de "homologia", que seria posteriormente aproveitada pela teoria de Bourdieu.
Goldmann concebe a criação cultural como uma tomada de consciência colectiva catalisada pela consciência individual do criador. A obra cultural corresponde a uma "visão domundo" que exprime e estrutura as aspirações dos demais membros do grupo com que o criador se identifica, porque a sua actividade se desenvolve no interior do campo de subjectividade criado pela prática social do seu grupo de referência. Há assim, uma homologia entre a dimensão material (experiência existêncial) e a dimensão ideal (saber constituído), constata-se uma homologia entre estruturas mentais e estruturas de classe.
A noção de homologia é recuperada por Pierre Bourdieu, embora de uma forma menos linear, que juntamente com o conceito de "habitus", apresenta uma teoria com algumas características comuns à pespectiva de Goldmann.
Nosso contemporâneo, Pierre Bourdieu é autor de uma vasta obra, onde um dos aspectos mais interessantes e discutíveis é, sem sombra de dúvida, a forma como relaciona as artes com as restantes dimensões da vida social.
Este sociólogo francês, como é visível sobretudo em "La Distinction", ataca a noção de gosto cultural puro ou inato, sendo Kant o "alvejado" (não é ao acaso o subtítulo "Crítica Social do Juízo de gosto"). De facto, para Bourdieu, o olhar puro não pode ser incluído numa norma universal de prática estética porque está associado às condições de aquisição de cultura particulares (sociais e económicas, priviligiadas ou não).
A sua crítica social do juízo de gosto é um modelo de análises estruturais e relacionais baseada numa concepção original da noção de classe social (que consiste em superar as abordagens clássicas, tanto na vertente marxista como de estratificação social) onde outras espécies de capital (4) (além do económico), são tidas em conta. Com essa finalidade, elaborou os conceitos de capital cultural (conhecimentos legítimos), capital social ( diferentes tipos de relações valorizadas), e capital simbólico (prestígio e honra social), percepcionando que a simples "condição de classe" (propriedades intrínsecas de um grupo), ou a posição ocupada no interior das relações económicas, não são suficientes para designar as propriedades comuns, que fazem de um conjunto de indivíduos um grupo social relativamente homogéneo.
Todas as configurações sociais passíveis de se estabelecerem entre os quatro tipos de capital, desenvolvem-se sobre um espaço pré-configurado a que Bourdieu denomina «Campo social» : "Eu defino um campo como uma rede, ou uma configuração, de relações objectivas entre posições definidas objectivamente, na sua existência e nas determinações que impõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições, pela sua situação presente e potencial ... na estrutura de distribuição do poder (ou capital), cuja posse comanda o acesso aos benefícios específicos que estão em jogo no campo, assim como pelas suas relações objectivas com outras posições... " (5).
Como essas posições sociais são estruturadas em termos de relação de poder estabelecem-se relações de dominação, subordinação ou equivalência (homologia) com outras, em virtude do acesso que possuem aos bens ou fontes (capital) que estão em jogo no campo.
Em suma, é a noção de campo como "espaço social" de inter-relações que permite compreender as classes sociais. A própria noção de gosto em Bourdieu é utilizada como uma espécie de fenómeno que marca e mantém as fronteiras sociais, estando os sistemas de classificação cultural enraízados no sistema de classes.
No seu esquema teórico as pessoas incorporam em «habitus» a estrutura e a situação objectiva da sua classe e exteriorizam, tanto nas práticas mais objectivas como nas mais simbólicas, apenas aquilo que interiorizaram: "o tempo leva os agentes a ajustar as suas aspirações às suas hipóteses objectivas, conduzindo-os assim, a esposar a sua condição, a tornarem-se aquilo que são, a contentarem-se com aquilo que têm (...) "  (6) O habitus funciona como um princípio gerador, organizador e unificador das práticas, dos discursos, das representações, tanto ao nível do agente quanto ao nível do grupo ou da classe social.
Como refere a autora Mª de Lourdes Lima dos Santos, a teoria de Bourdieu é alvo de críticas que o acusam de apresentar um modelo de reprodução social e cultural cristalizado e circular. Porque se as estruturas se reproduzem, produzem agentes dotados de disposições que engendram práticas adaptadas às estruturas. Assim, se há reprodução onde fica a inovação? As culturas dominadas serão apenas reflexo das culturas dominantes? Pierre Bourdieu defende-se com "zonas de incerteza da estrutura social", onde o habitus surge como um sistema aberto que permite um futuro diferente do que já está inserido na ordem estabelecida.
Apesar desta crítica, a autora encontra nestes contributos teóricos dois aspectos fundamentais para a Sociologia da Cultura. O primeiro diz respeito ao relacionamento entre dois tipos de práticas culturais: as obras (produção cultural) e as artes dos dizeres e fazeres. O segundo aspecto refere-se à criação cultural como praxis, ou seja, como expressão de sujeitos colectivos em praxis quotidiana. Godmann e Bourdieu verificam a unidade de duas dimensões - da acção da vida quotidiana e da acção da produção de bens simbólicos - que permite entender "o papel do intelectual ou do artista na formação e expressão de uma consciência colectiva" (7).
 

RELAÇÕES ENTRE A PEQUENA E A GRANDE TRADIÇÃO

O estudo da relação entre a pequena e a grande tradição é marcado por duas vertentes teóricas opostas: as Teorias unidireccionais e as Teorias dinâmicas e assimétricas.
As Teorias unidireccionais (já ultrapassadas) tiveram duas variantes. As Teorias unidireccionais "de cima para baixo" (séc XVII-XVIII) defendiam que a cultura descia das gentes cultas para o vulgo; que existia um movimento descendente de propagação da grande cultura, com assimilação passiva pelas classes inferiores. As teorias unidireccionais "de baixo para cima" (séc. XVIII-XIX) eram apologistas de que a criatividade brotava do povo, havendo um movimento ascendente, com a revitalização da grande tradição na "absorção da seiva da pequena tradição" (8). Estas teorias referem um movimento unidireccional que não se dá conta da dinâmica reciprocamente gerada nos confrontos entre as duas tradições.
O caso das Teorias dinâmicas e assimétricasé diferente porque já se preocupam com a interdependência entre as duas tradições, e empenham-se em renovar o estudo das culturas populares. É o caso do modelo de Robert Redfield das duas tradições culturais com a chamada "Two-way flow theory", retomado por R. Burke, que também sublinha a necessidade de o tornar assimétrico (9).
De facto, estes e outros autores encontram diferentes assimetrias no intercâmbio entre as duas tradições, nas socidades pré-capitalistas: a cultura popular era aberta a todos e transmitida informalmente em vernáculo nos lugares públicos (tabernas, praças, mercados, igrejas); a cultura cultivada era transmitida formalmente em latim em locais específicos como escolas, universidades, bibliotecas (e neste caso, a assimetria funciona a favor da exclusividade desta cultura).
O estudo destas assimetrias leva a autora a uma chamada de atenção: "não incorrer na ingénua simplificação de falar da pequena tradição como se esta fosse um todo homogéneo" (10). Daí a insistência em discriminar as várias culturas populares: cultura rural, cultura urbana, diferenciação entre os diferentes modos de vida dos grupos analisados (artesãos, ferreiros, pastores, etc), e mesmo de grupos itenerantes (músicos, actores, saltimbancos,etc).
Para melhor compreender as assimetrias entre as duas tradições, devem-se apontar alguns dos seus condicionalismos (anteriores à centralização do poder político e religioso na Europa moderna):
    1) o intercâmbio cultural mais visível era desempenhado por grupos sociais determinados: artesãos, actores, músicos, baixo clero, serviçais.
    2) a reduzida instrução de grande parte da nobreza e clero conduzia ao intercâmbio cultural com a plebe;
    3) as produções culturais de alguns agentes mediadores como os frades praticados em locais de largo acesso, com audiências heterogéneas.
Tudo isto não indica que a coexistência das duas tradições fosse pacífica porque, na realidade, se havia troca bilateral, ela era desigual. Por exemplo, no caso da medicina, apesar de médicos, bruxas, charlatães, cirurgiões, recorrerem a recursos comuns, a medicina popular não é bem vista pela erudita. Muitas das práticas culturais populares indicam mesmo uma imitação subversiva, em que a paródia e o absurdo são a desforra dos dominados, ou formas de resistência e criação de alternativas frente à dominação simbólica - festas dos loucos, carnavais, etc.
Consequentemente, configuram-se diferentes níveis de relações culturais, que importa referir: relações entre as diversas culturas da pequena tradição; relações entre as diversas culturas da grande tradição (por exemplo, o saber de uma elite eclesiástica e de uma elite civil); relações entre a pequena e a grande cultura; relações entre os centros; relações entre o centro e a periferia. E, naturalmente, todas estas variações nas relações culturais suscitam dificuldades no estudo do fenómeno cultural.
Qualquer estudo teórico sobre as relações entre a pequena e a grande cultura não pode deixar de referir a importância dos momentos histórico-sociais, que ao longo do tempo, condicionaram a questão da interdependência das duas tradições: a génese do estado moderno, o desenvolvimento de uma "civilização de corte", as revoluções burguesas, o movimento romântico e a industrialização.
Na génese do estado moderno existiam relações políticas verticais - Deus/Rei/Povo - que provocaram repressões das culturas populares, através da violência física (caso da Inquisição, entre 1500 e 1650) e da violência simbólica (com o chamado Império da Razão e do bom gosto na cultura de corte e aristocrática, entre 1650 e 1800). Por conseguinte, o desenvolvimento da "civilização de corte" levou a um grande afastamento entre a grande e a pequena tradição, observando-se uma diferenciação de maneiras, de diversões, de lugares frequentados e até de linguagem (11).
Quanto à grande tradição, no séc. XVII, começa a ganhar novos espaços e surgem os públicos, "novo tipo de configurações sociais", na terminologia de Norberto Elias.
A constituição e o significado dos públicos passa pela reunião de pessoas privadas, pela afirmação da individualidade e a agregação espontânea de indivíduo. A noção de público é original sobretudo porque há partilha entre as diferentes classes e obedece a alguns critérios de funcionamento: 1) Igualdade de status e paridade de participação na cultura. Não se trata do acesso generalizado à cultura mas de algumas camadas sociais, como a burguesia, em conjunto com a nobreza urbana e o proletariado (no caso da Inglaterra). Há igualdade pelo uso da razão e não pelo berço (argumento algo ideal); 2) Laicização do universo da cultura. Só possível com a circulação da cultura como objecto mercantil (Gutemberg); 3) Não fechamento do público.
Ao surgirem novos espaços sociais de cultura, deslocam-se as actividades culturais da corte para a cidade. Esses novos espaços diferem de país para país, por exemplo na Inglaterra, o pub era o local priviligiado de encontros literários. Já na França surgem os salões burgueses com realce para a música (12).
A própria revolução francesa é o momento de reunificação das duas tradições num espaço especial que é a rua: equilíbrio entre a democratização da cultura e a mobilização da cultura popular. Desde aí, as oscilações na cotação da cultura popular são sintomáticas de lutas de classes.
Quanto ao movimento romântico, retrata-se pela inaceitação das regras e do racionalismo da civilização das luzes. A artificialidade da cultura de corte enfrenta o culto da espontaneidade e do sentido de uma cultura popular (expressão de um povo simples e ingénuo semelhante ao bom selvagem) anterior ao processo de centralização do poder.
Os autores românticos procuram legitimar a cultura popular com as armas da alta cultura. Assim, se na Grande Tradição há o criador original, na Pequena Tradição também, porque estão os Fazeres e Dizeres do Povo, uma "Almacolectiva ingénua". A Pequena e a Grande Tradição são ambas sinónimo de perenidade e autenticidade da obra. Pelo contrário, a cultura de massas é efémera e vive da cópia.
A campanha de restauração da cultura popular iniciada pelos românticos é o começo da valorização da cultura popular enquanto objecto digno de interesse e a sua mitificação como cultura pura e homogénea: "...expressão do que é simples e autêntico, e como tal deve ser preseravado - e o seu envolvimento nas tentativas de emancipar o povo ignorante através da conversão à cultura cultivada" (13).
 
 

A MERCANTILIZAÇÃO DA PRODUÇÃO CULTURAL

"Curiosamente, o livro, emblema por excelência da «grande cultura», seria dos primeiros objectos culturais a entrar no sistema alargado de produção e difusão e evoluiria num mercado expansionista, fortemente concorrencial e exigente em novidade: Enquanto tal, o livro está presente na génese da «cultura de massas», antecipando polémicas que à volta desta se viriam a desenrolar - expectativas de democratização da cultura e denúncias da sua mercantilização" (14).
Como bem ilustra este parágrafo, o livro e a leitura são o objecto essencial na sustentação dos ideais que favorecem a transformação cultural. Com o livro, o estatuto do escritor é alterado. Há um abandono progressivo do mecenato literário e cada vez mais se tem em vista a venda (editoras).
Enquanto no Mecenato o Livro é condicionado pelo mecenas e há por isso mesmo, um consumo sumptuoso, com a Edição, o Livro é destinado a um público, sendo a leitura um acto de experiência e questionamento do próprio leitor.
Estas transformações dão-se também nas outras artes tradicionais, surgindo novas formas ligadas à produção em série - percursoras da «cultura de massas»:
. teatro - a sala de espectáculos é o espaço de representação da cultura onde se cobra uma entrada, mas onde todos podem entrar; o público é diversificado e o dramaturgo cria em função desse mesmo público.
. música - deixa de estar a cargo dos músicos de corte e condicionada pelo mecenas; há instituições de aprendizagem musical e auditórios (antes era apenas um ornamento de outras actividades sociais);
. pintura - surgem a exposição e o museu;
. cópias de quadros - executadas para um mercado de arte: público relativamente largo, sem capital económico e simbólico suficiente para aceder aos originais.
. estampas - são impressas em tipografias menores, a pedido de livreiros ambulantes e jograis, para serem vendidas à arraia-miúda, nas feiras e praças; ao não imprimirem o local ou a data mostram que já possuem a primeira característica dos produtos da cultura de massas - são efémeras.
. espectáculos populares organizados em moldes empresariais (teatro, circo).
A literatura de cordel surge no séc. XVIII, com características comuns à produção cultural em série dos nossos dias: grandes tiragens, suporte material pouco dispendioso, preços acessíveis, difusão alargada, lucros consideráveis, conteúdos doseados para abranger um público variado e pouco cultivado. Para alguns autores, esta literatura de cordel representava um repositório de velhos temas da tradição oral (por exemplo, contos maravilhosos), mas também incluia novos temas: como regras de aritmética, conselhos de medicina ou boas maneiras.
Em suma, como a cultura passa a ser feita em função de públicos, há uma circulação mais intensa dos objectos culturais enfatizada pela criação de espaços de fruição cultural colectiva.
É caso para questionar, "O que aconteceu à cultura popular com a massificação da cultura?". Segundo a autora Mª de Lourdes Lima dos Santos há duas posições principais: ou sobreviveu amordaçada, reproduzindo-se até aos nossos dias; sobrevivendo adulterada sob o controlo e a tolerância das autoridades - caso do aproveitamento turístico do folclore; ou então, não ficou reduzida a esta concepção restrita de cultura - jogos, festas, tradições - mas alargou-se e actualizou-se.
Independentemente da posição adoptada a autora defende que o estudo das culturas populares terá de acompanhar a sua dinâmica nas novas situações históricas e analisá-las na sua variedade e conflitualidade entre velhas e novas formas. As velhas formas culturais não podem ser interpretadas como estruturas imobilizadas, mas sim sujeitas a modificações.
O avanço da industrialização e do capitalismo provocou o alargamento do público e a reprodutividade dos bens culturais causando efeitos contraditórios na reavaliação das legitimidades culturais (valores democratizantes e elitizantes). Se com a revolução cultural romântica, o alargamento do público representava a emancipação do autor-criador, livre da dependência para o patrono, agora, este público constitui uma nova sujeição, é uma massa anónima que alberga gente ignorante, social e culturalmente pouco qualificada.
É o caso dos folhetins muito em voga no séc. XIX, que são sujeições ao gosto fácil do grande público, com avultados ganhos para editores e autores, e depreciados pelos críticos como "literatura indústrial". A impressão dos primeiros jornais mostra bem as características dos produtos da cultura de massas: efémero, (lê-se e deita-se fora), produto indústrial que condiciona a liberdade criativa - "é obrigado a sair uma vez por dia, em que as coisas ditas já não são apenas determinadas pelas coisas a dizer mas pelo facto de que uma vez por dia será preciso dizer o suficiente para preencher determinadas páginas" . (15)
De facto, foi no contexto da discussão cultural nos espaços públicos (museus, salões, pub, etc), que se individualizaram determinados elementos no interior dos públicos - os críticos - a quem se reconhece competência para definir a legitimidade cultural das novas obras. O crítico conhecedor é a figura que sustenta o culto da raridade da obra d’arte, do mito carismático do criador singular - a legitimidade cultural. O crítico é também o mediador que assegura a boa conjugação entre poder, riqueza e saber, garante do gosto cultivado e regido por um conhecimento especializado.
A preocupação em distinguir autores prestigiados de autores desconhecidos ou anónimos, entre originais e cópias, desenvolveu-se sobretudo no romantismo. As publicações periódicas surgem nesta altura como forma de dar vazão aos especialistas - são ilustrativas de uma dinâmica dos públicos que é a actividade crítica. Nos nossos dias também há um espaço priviligiado de afirmação da própria crítica, principalmente ao nível da imprensa. Actualmente, o crítico continua a definir o valor da obra de arte, articulando mecanismos de mercado e produção de sentido social.
 

RECONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO E CONSUMISMO CULTURAL - Questões e dilemas sobre a cultura de massas -

Na transição do séc. XIX/XX, quando os sinais de massificação resultantes do processo de autotecnologização da sociedade, se vão dando a ver, a nível económico, indústrial e político, a cultura espelha também um consumismo cultural.
A lógica consumista separa um "Antes" e um "Depois" da cultura moderna: "Antes" existia uma dinâmica interna dos grupos, onde as trocas se efectuavam ao ritmo das necessidades desses públicos; "Depois" toda a dinâmica, desde a produção ao consumo é ordenada por leis comerciais e a circulação de bens culturais é determinada por uma lógica externa - critérios económicos e não culturais. "Antes" existiam "Públicos de Cultura", "Depois" há um"Mercado de Cultura", consumidores e espaços consumistas.
Com o consumismo cultural dá-se a decadência dos espaços de cultura (Pub, salon), porque, onde antes havia públicos, agora há actividades. A cultura dirigida para o consumo esgota-se no próprio consumo, e como qualquer objecto de consumo tem a vida efémera e acelerada.
Daí o elitismo da Escola de Frankfurt, com a crítica a uma cultura de consumo que segue uma estratégia de venda conformada aos desejos de distracção de um público pouco cultivado. Porque para a oferta cultural ser legível e lucrativa, baixa-se o nível da oferta em vez de se tentar elevar o nível da procura, satisfazendo as massas, mas provocando apatismo, empobrecimento racional e estético.
Todo este raciocínio conduz-nos à questão da cultura mediática. Este fenómeno pela sua polémica provocou questões e dilemas sobretudo ao nível da terminologia e dos três níveis culturais. Quanto à terminologia, ao longo do ensaio, Lima dos Santos, utiliza e trabalha algumas das variantes possíveis: culturas urbanas, cultura da massa, cultura de consumo, cultura mediática, indústrias culturais. Cultura urbana demarca-se mais facilmente das outras expressões porque têm audiências socialmente bastante diferenciadas e uma difusão restrita, se comparada com a cultura mediática nacional e internacional.
A cultura de massa, a cultura de consumo, a cultura mediática e indústrias de cultura são conceitos sinónimos, e que têm como referente o sector de produção, reprodução e difusão de bens e serviços culturais de série, regido por critérios prioritariamente económicos. Esta terminologia é utilizada contraposta ao conceito de grande cultura, cultura dominante, ou cultura de elite, que por sua vez se opõe a cultura popular, pequena tradição ou cultura tradicional.
Muitos autores se preocuparam com esta diferenciação terminológica. Umberto Eco, na obra "Apocalípticos e Integrados" disserta sobre a noção de "Cultura de massas", considerando-a ambígua e imprópria.
Do lado dos Apocalípticos uma perspectivapessimista da cultura de massas. No sentido tradicional, a cultura é um facto aristocrático, a cultivação ociosa, assídua e solitária de uma interioridade que se afina e se opõe à da multidão; só atingida pelas classes que dispunham de ócio para se dedicarem à cultivação. Daí o contrasenso de uma cultura partilhada por todos e produzida de modo a adaptar-se a todos - indústrias de cultura. Haverá algo de mais reprovável, questiona Eco, do que a aproximação da ideia de cultura (que implica um contacto espiritual particular) e a ideia de indústria (que evoca linhas de montagem, reprodução em série, comércio de objectos?). Nesta perspectiva, a amálgama das massas só é superada por quem tiver a capacidade de lhe fugir: os "super-homens".
Do lado dos Integrados a perspectiva já é optimista. Estes defendem que estamos a viver, com a cultura de massas, uma época de alargamento da área cultural - de democratizaçãocultural. A TV, o jornal, a rádio, o cinema, a banda desenhada, o Reader’s Digest, são meios de comunicação que colocam os bens culturais à disposição de todos.
Graças a estas duas perspectivas fundamentalistas surgiu um debate fecundo sobre as possíveis críticas e defesas à cultura de massa (16). Entre as muitas que se poderiam referir centremo-nos em três principais:
1) Crítica: Os mass media dirigem-se ao público em geral; difundem por todo o globo uma cultura de tipo homogéneo; destroem as características culturais de cada grupo étnico - perda da consciência própria de grupo cultural com características específicas. Por isso, o público não manifesta exigências perante a cultura de massa; apenas se sujeita às suas propostas sem saber;
Defesa: Ao contribuirem para a homogeneização do gosto e da cultura, os media servem para unificar as sensibilidades nacionais - conduzem ao nacionalismo.
2) Crítica: Os media estão inseridos num circuito comercial sendo submetidos à lei da oferta e da procura - defender a cultura de massas é rebaixar a cultura superior ao mesmo nível dos outros bens de consumo. E quando difundem a cultura superior difundem-na "condensada" na forma mais económica e mais facilmente assimilável (por exemplo, fascículos de grandes pintores, grandes maestros, etc). Esta crítica é bem ilustrada pela frase de Hannah Arendt, «A cultura de massas faz dos clássicos não obras a compreender mas produtos a consumir»;
Defesa: A cultura de massas não veio tomar o lugar de uma cultura superior. Apenas se difundiu junto das grandes massas populacionais que antes não tinham acesso aos bens de cultura. A indústria cultural permitiu a democratização da cultura.
3) Crítica: Os media encorajam a uma visão acrítica e passiva do mundo porque ao nível de conteúdo, dão grande informação sobre o presente, "entorpecendo" qualquer consciência histórica. Os media tendem a provocar emoções em vez de a representarem; em vez de sugerirem uma emoção entregam-na já confeccionada.
Defesa: A grande acumulação de informação não resulta em apatismo mas sim em formação, porque a variedade de informação sensibiliza o homem perante o mundo.
Segundo Umberto Eco, toda esta problemática seencontra mal formulada. A defesa dos mass media peca por um certo "liberalismo económico": a convicção de que a circulação livre e intensiva dos vários produtos culturais de massas seja naturalmente boa e não necessita de ser submetida a uma orientação. Esquecem o facto de que a partir do momento em que a cultura é produzida por grupos de poder económico com fins lucrativos, fica submetida a todas as leis económicas que regulam o fabrico, a venda e o consumo dos outros produtos industriais: o produto deve agradar ao cliente, não lhe deve causar problemas, o cliente deve desejar o produto e ser induzido à sua progressiva substituição. «O erro dos apocalípticos-aristocratas é o de pensarem que a cultura de massas seja radicalmente má precisamente porque é um produto industrial, e que hoje possa acontecer uma cultura que se subtraia ao condicionalismo indústrial». (17)
Para este autor o problema está em saber qual será a acção cultural possível para que os meios de massas possam veicular valores culturais democráticos. Verifica-se a necessidade de uma intervenção activa das comunidades culturais no campo das comunicações de massas.
Intimamente associado à questão da terminologia, problematiza-se, como já foi referido, o dilema entre três níveisculturais. Segundo Lima dos Santos não se pode equacionar e actualizar as três noções de cultura sem pensar no carácter de mercadoria dos produtos culturais, no desenvolvimento dos media, e na diversidade e flutuação dos públicos (democratização cultural)
Estes factores já não são compatíveis com o modelo das três esferas de legitimidade construído por Bourdieu (nos anos 60) para tentar dar conta da natureza móvel dessa mesma legitimidade. Este modelo inclui a Alta Cultura - "esfera do legítimo", ocupada pela música, pintura, escultura, literatura e teatro, onde os julgamentos dos consumidores são definidos por autoridades legítimas: museus, universidades, etc; a Média Cultura - "esfera do legetimável", ocupada pelo jazz, cinema e fotografia; e a Baixa Cultura - "esfera do arbitrário", onde o gosto individual é resultado de um livre arbítrio de escolha auto-consciente relativamente à moda, comida, decoração, etc.
Com a crescente complexidade e frequência das deslocações entre os vários níveis de legitimidade torna-se difícil classificar uma forma como cultura cultivada, cultura popular ou cultura de massas. Além disso, a subordinação da produção cultural às exigências de rentabilidade capitalista não se verifica hoje só, na esfera do arbitrário e legetimável mas também na esfera do legítimo. Por isso, este modelo não se consegue adequar a uma fluidez constante. Mas esta mobilidade não significa inexistência de tensão entre estratégias de distinção e de afirmação, entre dominantes e dominados. Acontece que os princípios hierarquizantes incorporados por herança cultural se têm de confrontar com novos sistema de organização e de distribuição cultural, alterando-se a lógica dos mecanismos valorativos.
Umberto Eco, que também se dá conta do mesmo fenómeno, defende a revisão dos três níveis culturais - high/middle/low - para prosseguir o ideal de uma cultura democrática (18):
a) Os níveis não correspondem a um nivelamento classicista - o nível alto não corresponde necessariamente ao das classes dominantes ( por exemplo, os professores deliciam-se com histórias aos quadradinhos); b) Os três níveis não representam três graus de complexidade -certas bandas desenhadas são consumidas pelo nível alto da cultura sem que isso signifique necessariamente uma classificação do produto como de alto nível; e c) Os três níveis não coincidem com três níveis de validade estética.
Pode-se concluir que há uma complexidade de circulação dos valores culturais. A diferença de nível entre os vários produtos não constitui "a priori" uma diferença de valor, mas sim uma diferença de relação fruitiva na qual cada um de nós se coloca alternadamente. Como ilustra Eco, entre o consumidor de um romance cultural e um de poesia de Pound não existe nenhuma diferença de classe social ou de nível intelectual. O homem de cultura que em determinados momentos houve Bach, a certa altura pode ligar o rádio para se entreter com qualquer som.
Só aceitando os vários níveis como complementares e todos fruíveis pela mesma comunidade de fruídores, se poderá abrir o caminho a uma bonificação cultural dos mass media - substituindo uma "cultura de entretenimento" por uma "cultura de proposta".
Seguindo outro raciocínio Mª de Lourdes Lima dos Santos (19) analisa os dilemas provocados pela cultura de consumo e chega a algumas conclusões. Primeiro, ao observar a antinomia inovação/standartização, constata que para lá da oferta de produtos standart, as indústrias culturais tendem a desenvolver uma oferta de produtos para públicos diferenciados, logo, a disputa pelos públicos consumidores pode abrir lugar à inovação. Da mesma forma, a natureza diferenciada das indústrias culturais constitui um factor de relativização dos efeitos massificadores que lhes podem ser imputados.
Um outro dilema importante, também referido por Lima dos Santos, é o dos interesses culturais versus interesses económicos. A inovação e a criação original é quase sempre uma ameaça financeira a evitar - caso dos produtores independentes e suas dificuldades financeiras. Por outro lado, há penetração do capital na produção, circulação e consumo cultural. Este processo organiza-se segundo um jogo com duas lógicas contrárias: reprodutibilidade capitalista e raridade da obra. O trabalho cultural ao ser inserido no processo da Indústria Cultural, transforma-se em trabalho colectivo. Por isso, continua a ser valorizado segundo o ideal do criador e princípio da raridade. É o exemplo do star-system.
Portanto, na perspectiva de Lima dos Santos, os mecanismos de valorização adoptados pela cultura de série, sendo transposições de valores da cultura superior estão a ser devolvidos às forma culturais tradicionalmente localizadas no campo da produção restrita.
 

CONCLUSÃO

«Hoje em dia, a grande cultura, cultura cultivada ou cultura dominante, parece ter deixado já, mesmo ao nível do senso comum, de ser expressão da cultura enquanto singular totalizante; afirma-se com frequência, nos meios de comunicação de massa, que cultura é tanto a cultura cultivada como a cultura popular.» Assim começa o ensaio de Mª de Lourdes Lima dos Santos. Como ela, muitos são os autores que se deram conta das grandes mutações do fenómeno cultural ao longo dos últimos anos.
Sociólogos, antropólogos, teóricos sociais, cientistas sociais das mais diversas especialidades, constataram a dificuldade em realizar uma análise separada dos conceitos - cultivada e popular - nas suas determinações histórico-sociais, graças à banalização associada à cultura de massas e indústria cultural e a sua crescente mediatização.
De facto, chegámos à situação singular de uma cultura de massas em cujo âmbito um proletário consome modelos culturais burgueses considerando-os uma sua expressão autónoma (cultura popular); e uma cultura burguesa - no sentido de que a cultura "superior" ainda é considerada a cultura da sociedade burguesa dos últimos três séculos - que identifica na cultura de massas uma "subcultura" que não lhe pertence, sem se aperceber qua as matrizes da cultura de massas são ainda as da cultura "superior". Além disso, o problema da cultura de massas é, sem dúvida, ser manobrado por grupos económicos com fins lucrativos, sem que se verifique uma intervenção maciça dos homens de cultura na produção.
O conflito está lançado, o entrelaçamento entre as três noções de cultura é profundo e irreversível. Resta-nos, como esta autora aqui citada, questionar estas noções e tematizar as muitas alterações que esta sociedade, cada vez mais mediatizada com novas formas de comunicação, virá ainda a produzir no fenómeno cultural.
 


NOTAS:

1 "Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, a cultura popular, a cultura de massas)" , de Mª de Lourdes de Lima dos Santos foi publicado na Análise Social, vol. XXIV - 101/102, de 1988 (pp. 889-702).

2 R. Linton, Ruth Benedict, Margaret Mead são alguns dos antropólogos culturais, que nos anos 30 assistiram à influência da psicologia através da escola dos "padrões de cultura".

3 Mª de Lourdes Lima dos Santos, "Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, a cultura popular, a cultura de massas)" in Análise Social, vol. XXIV - 101/102, de 1988 (p. 690).

4 A utilização da palavra "capital" alerta-nos para a apropriação, que Bourdieu faz, da metáfora económica, para compreender a vida social.

5 L.D. Wacquant, "Towards a Reflexive Sociology: a workshop with Pierre Bourdieu", Sociological Theory, vol. 7, 1989, p. 39.

6 Pierre Bourdieu, La Distinction - Critique Sociale du jugement, Minuit, Paris, 1979, pg. 123.

7 Mª de Lourdes Lima dos Santos, "Questionamento à volta de três noções", op. cit., p. 691.

8 Mª de Lourdes Lima dos Santos, "Questionamento à volta de três noções", op.cit. p.694.

9 Os autores Robert Redfield e Richard Burke são apresentados de uma forma concisa na página 694 do ensaio de Lima dos Santos, aqui trabalhado..

10 Mª de Lourdes Lima dos Santos, "Questionamento à volta de três noções", op. cit., p. 695.

11 Como foi o caso da Alemanha, onde no séc. XVII surgem as primeiras academias de aperfeiçoamento da língua.

12 Numa 1ª fase, final séc XVII, os salões franceses são hibrídos (a corte descia à cidade); na 2ª fase, séc.XVIII, os salões desenvolvem-se e assumem-se como uma alternativa à cultura de corte, chamando para o mundo da cultura, camadas sociais afastadas até então, como a burguesia

13 Mª de Lourdes Lima dos Santos "A elite intelectual e a difusão do livro nos meados do séc XIX", in Análise Social, vol. XXVII, 116/177, p.540.

14 Mª de Lourdes Lima dos Santos, "A elite intelectual e a difusão do livro nos meados do séc XIX",op. cit., p.540.

15 Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa, 1991, p. 31.

16 Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, op.cit., pp. 53-73.

17 Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, op.cit., pg. 69.

18 A revisão dos três níveis culturais é trabalhada por Umberto Eco, no capítulo "Alto, médio,baixo" de Apocalípticos e Integrados.

19 Mª de Lourdes Lima dos Santos analisa os dilemas da sociedade de consumo de uma forma bastante directa e sucinta no ensaio "Deambulação pelos novos mundos da arte e da cultura", Análise Social, nº 125/126.