Media e sociedade: a aprendizagem como solução (1)

Gil António Ferreira, Universidade da Beira Interior

É uma ideia geralmente bem aceite: cada época organiza as suas representações do mundo, com tudo o que isso implica de expectativas, de sonhos ou de temores, em torno de uma ideia simples mas elástica, que concentre em si não só poderes de esconjuração como também de explicação. Isso acontece hoje, de modo muito nítido, com a problemática comunicacional, destinada a dar conta, enquanto quadro epistémico, das diversas transformações que ocorreram nas últimas décadas no domínio social. Desde a cultura à política ou ensino, todas as actividades humanas procuram ser compreendidas sob a noção de comunicação mediática, dado se haver implantado uma autêntica mediasfera, segundo alguns estudiosos.
É pois neste contexto que a problemática comunicacional, aqui associada aos media, emerge no pensamento científico como forma de compreensão das estratégias discursivas, fluidas e plurais, onde se joga a actualidade. O facto de a comunicação ser um domínio fluido deve, contudo, impelir-nos a procurar até que ponto, concretamente, as técnicas e os valores associados à comunicação penetraram na nossa sociedade e nos nossos comportamentos mais correntes. Numa reflexão de aspectos relacionados com a exigência informativa moderna e com a actual cultura de liberdade e de transparência, devemos pensar a incontornável configuração mediática e qual a realidade que ela compõe, fruto de instâncias e combinatórias inéditas.

Do debate sociável à mediação solitária
Para compreendermos uma questão particularmente visível e relevante, a incontornabilidade dos media, não podemos deixar de referir, ainda que com leveza e superficialidade, um momento chave da nossa civilização. Trata-se do contexto em que a imprensa, de veículo da opinião publicamente produzida nos espaços de debate e de convívio, se tornou, a pouco e pouco, produção de opinião em si mesma. Com raízes decerto mais profundas, o advento deste século trouxe uma nova dimensão a este processo. Também a importância e as consequências deste momento são de um alcance que ultrapassa os desígnios deste trabalho; salientaremos alguns aspectos aqui considerados a propósito.
Partindo dos conceitos de público e de espaço público redefinidos por Jurgen Habermas e com a sua génese na instituição da democracia grega, centremo-nos naquele momento em que o público se arroga o direito e até o dever de informar e ser informado. A opinião pública aparece então como instância do 'saber' dos factos, em oposição à legitimidade do 'querer', esta a modalidade atribuída ao soberano. A partir de tal momento, o espaço público autonomiza-se e transforma-se de modo a garantir a circulação generalizada de informação e opinião. Baseada nos proprietários de bens ou de saber, esta autonomização foi indispensável à instauração de uma publicidade, entendida aqui no sentido de um tornar algo público, numa lógica semelhante às leis modernas da mercadoria.
E é assim que a imprensa, até aí veículo da opinião produzida em espaços públicos de debate, de confronto e de convívio, passa a ser, pouco a pouco, produção de opinião em si mesma. Todo o trabalho de elaboração racional e colectiva, orientado pelos ideais iluministas, ficou reservado, de então em diante, a uma nova classe especializada: a dos profissionais da mediação. Atento observador e profundo conhecedor do jornalismo que nos inícios do século se fazia em Viena, dizia nessa época o austríaco Karl Kraus como ao ser tirada da contemplatividade que não dá pão, a vida intelectual em que se debatia publicamente cada questão pública era suplantada pelos interesses mercantis e assim conduzida a uma profissão social. (2)
As consequências desta transformação são diversas e de vária ordem. Entre elas, destaque-se que funções antes atribuídas ao espaço público e à sociabilidade foram daí transferidas para o domínio privado, sendo o debate intersubjectivo como forma de compreensão substituído pela leitura solitária - sem discussão intersubjectiva - da escrita jornalística (o primeiro medium). É sob esta perspectiva que os media se tornaram incontornáveis: passaram a ser eles o lugar (o único, muitas vezes) onde estão as informações que, de então em diante, permitirão descodificar os universos em que evoluímos. Os media captaram, pouco a pouco, e absorveram depois a maioria dos canais que tradicionalmente serviam para a produção e difusão da informação. Sublinhe-se, no entanto, que se trata aqui de um espaço abstracto, anónimo e de ninguém, que substitui o anterior espaço concreto da partilha intersubjectiva, próprio do debate. Por outras palavras, é o «fim dos cenários interiores como redutos do imaginário, mas também como legitimação dos comportamentos»(3); o fim do homem iluminista orientado na sua formação e acção a partir da interior reflexão racional, desde agora substituído pelo sistema de orientação externa da acção humana, a partir do que lhe é dado a consumir pelos media.
Esvaziada a sociabilidade concreta, é o seu lugar preenchido pelas modalidades mediáticas abstractas, que passam a compor grande parte do mundo a que se tem acesso. Karl Kraus, impiedoso crítico deste fenómeno, dizia mesmo em 1921 como «no princípio era a Imprensa / e depois apareceu o mundo»(4). Anos antes, com a Primeira Grande Guerra no horizonte próximo, dissera já no seu peculiar estilo que se o jornal «traz mentiras sobre horrores, nascem horrores, porque existe uma imprensa que os inventou e os deplora»(5) . Ao pensador austríaco era clara a intuição de que a vida não passava de uma cópia da imprensa. A imprensa é, acima de tudo, acontecimento, afirmara então.(6) A redefinição dos valores é tão só uma consequência deste processo que aos poucos se estendeu pelos diversos domínios do social, desde o político ao familiar ou ao religioso.
No mesmo sentido mas um pouco mais tarde, Theodor Adorno considerava existir uma consciência da realidade produzida por um realismo artístico. Num momento em que se referia à televisão, referia-se Adorno a uma espécie de pseudorrealismo criado pela harmonização e falseamento, introduzido furtivamente nos escondidos bastidores sem que alguém notasse, ignorando assim os espectadores a subtileza de um processo em que são objecto; o processo que lhes ia favorecendo a mal entendida consciência da realidade.(7)

A natureza instrumental da linguagem mediática
Observámos que a imprensa surge a partir dos proprietários de bens e de saber, isto é, dos detentores do capital económico ou simbólico segundo a ordem social burguesa, de que a própria imprensa depende. Gera-se aqui um espaço (abstracto, recorde-se) cada vez mais autónomo, regido pelas leis modernas da mercadoria, em que o espaço público se transforma no sentido de garantir uma circulação generalizada, passando a funcionar como campo privilegiado da publicidade dos produtos. Domínios antes regidos pela lógica da reflexão, do confronto e da reprodução, subordinam-se agora a uma lógica cada vez mais operante, a lógica da produção e do correspondente consumo. E é assim que uma forma abstracta de mercadoria, convertida em puro valor de troca, se estende às restantes dimensões sociais. Embora concentrando-se apenas na imprensa, Karl Kraus teve contudo percepção do alcance mais abrangente deste processo. Retomemos uma sua intuição atrás citada em que a imprensa precede o aparecimento do mundo: aí vemos com ele como o mundo e a sua matéria são, sob o ponto de vista industrial, um subproduto, ou dito de outro modo, sob um ponto de vista neo-platónico, o mundo seria apenas uma emanação da imprensa. (8)
Face a isto, projectos e jogos de interesses dos cidadãos por um lado, estado organizador de regras formais por outro, determinam e impõem formas definidas cada vez mais de maneira abstracta, de modo a garantirem a articulação de campos diversos e contraditórios. E entre estes estão poder e dinheiro, as duas instâncias que segundo Jurgen Habermas substituem a linguagem como mecanismo de coordenação da acção na modernidade. (9)
A posição de Kraus sobre esta questão, caracterizada por traços indesmentíveis de conservadorismo, resulta numa crítica feroz ao progresso e à produção capitalista que transformaram a arte numa indústria e a linguagem numa mercadoria. Num texto de 1909, «O Mundo dos Cartazes», Kraus tematiza precisamente a prostituição da linguagem como instrumento de objectivos mercantis, uma posição cuja actualidade importará pensar em outros contextos. A escrita, a partir então entendida como produto ou mercadoria a ser transaccionada, passou a eliminar cuidadosamente tudo o que exigisse esforço, em plena obediência aos imperativos da circulação alargada a uma massa indiferenciada, construindo-se como que 'normalizada'.
A massa de receptores é mais um alvo do que um sujeito esclarecido ou a esclarecer, mais uma média estatística do que alguém interveniente ou activo. Neste sentido, repita-se como a escrita e a própria linguagem se tornam estereotipadas, tentação que Kraus considerava ser o pecado original da linguagem no caminho da auto-degradação. É o estereótipo que passa a constituir a escrita e que a torna- embalagem fácil para as ideias e niveladora das formas de recepção, sendo assim responsável pela transformação da humanidade numa massa de consumidores passivos.
Este fenómeno insere-se no que Adorno viria a classificar como "neutralização da cultura". Os conteúdos mediáticos são produzidos para a massa sob o menor e mais abrangente denominador comum; o novo, o avançado ou o espiritual, passam a ser assunto para especialistas, estes entendidos num sentido algo depreciado. Entre qualidade espiritual e necessidades espirituais abre-se então um abismo cada vez maior que resulta numa antinomia espiritual, em que se destaca de um lado o grande público e do outro as qualificadas minorias.(10)
Este nivelamento da linguagem para mercantilização operado pela imprensa, o primeiro dos modernos media, passa pela trivialização e pelo lugar-comum, e é parte de um mais amplo processo de esteticização da realidade. O corolário seria a transformação da linguagem em geral e das formas de arte em particular em simples instrumentos, em objectos de compra e venda. A linguagem é acusada de desrealizar o real e dar realidade a fantasmas, e assim preparar o caminho para a agressão e para a desumanização do homem - onde a guerra, como esteticização da vida política, seria ponto culminante.(11)
Também neste sentido, muito embora referindo-se à televisão, Theodor Adorno criticava no fim dos anos 50 o uso que se fazia deste medium. Justamente pela moderna superficialidade com que os assuntos são apresentados e recebidos, a televisão mostrava-se vocacionada para difundir ideologias e orientar de modo falso a consciência das pessoas. Uma ideologia difundia ela, para já: tornava o mundo homologado, embora feliz pela manipulação dos seus desejos, um mundo dominado a nível ideológico pelo «Grande Irmão» de 1984, romance de George Orwell.(12)
Também a este propósito, não deixa de ser curiosa uma referência à mediática questão do actual presidente norte-americano: antes da sua intimidade ser assunto de discussão mundial, em 1995, apontava já ele a Garcia Marquez, bruscamente, quais os seus inimigos: "O meu único inimigo é o fundamentalismo religioso de direita.(13)" Inimigo esse que, menos de três anos volvidos, apresentando uma série de valores ideológicos, arrogou de interesse público as deformações presidenciais face à ideologia mediaticamente promovida.

Confusões e ilusões da comunicação
Mas detenhamo-nos para já num dos novos valores difundidos: a comunicação como valor. O cidadão, de sujeito de uma opinião esclarecida, converte-se em consumidor ávido de produtos discursivos. É preciso comunicar, acima de tudo. Marca evidente disso é a dependência que, na actualidade, as diversas instâncias sociais sentem em relação à máquina discursiva dos media. Nos media, «todos os restantes campos sociais se reflectem como num espelho, não podendo as dimensões da prática social prescindir do seu contributo.»(14) Neste sentido, podemos afirmar que a mensagem principal veiculada pelos media (e talvez a única verdadeira, como veremos noutro momento) é a importância da comunicação como valor central em torno do qual a sociedade deve organizar-se. E cada vez mais essa mensagem assume a forma de incentivo a um desempenho: existem hoje poucas emissões sem debates, sem trocas de opinião e variada participação do público, num sistema de alargamento selectivo em que se prefere toda a boa mensagem, a facilmente comunicável, com opinião oferecida sobre qualquer que seja o conteúdo.(15)
A opinião pode falar de tudo, servindo-se para isso da frase feita, uma superfície fluída em que constantemente nos movemos com admirável facilidade. E assim a nossa opinião é constantemente solicitada, embora sem pretensões de obter a verdade; apenas são pretendidos pontos de vista em que cada um oferece a sua contribuição, para em conjunto se «'compor a verdade' a partir dos diferentes pontos de vista que lhes (aos media) compete pôr em cena.» (16)Não existe pois nenhuma verdade, mas pontos de vista - que é forçoso ter, sublinhe-se. Como eloquentemente notara já Karl Kraus no início do século nos seus Ditos e Contraditos, «uns acham isto lindo, outros, aquilo. Mas têm que 'achar'. Procurar é que ninguém quer.» (17)
É evidente que achamos a partir do que os media nos espelham e nos expressam. Uma constatação que nos levanta questões quanto à experiência que gerou cada pensamento individual e a sua relação com o que os media nos revelam. A informação atinge sempre um limiar em que se revela impotente para descrever o sentido do acontecimento. «A visão de uma criança morrendo de fome ou, simplesmente, a vida quotidiana numa cidade estranha reproduzida numa reportagem não pode ganhar qualquer sentido sem uma experiência vivida da situação em questão.»(18) Isto é, por muito bem apresentada que esteja, a informação não pode substituir a experiência. Ou dito de outro modo:«O que é a Nona Sinfonia comparada com uma modinha tocada por um realejo e uma recordação.»(19)
Ora uma das perturbações provocadas hoje pelos media advém do facto do homem moderno julgar que tem acesso ao sentido dos acontecimentos simplesmente porque está informado. Se a comunicação mediática tende, por natureza, a suprimir todas as distâncias (físicas, culturais ou temporais), essas mesmas distâncias resistem muito mais do que se imagina quando pretendemos conhecer. Os bastidores da situação política, cultural e social dos Estados Unidos da América aquando do affaire presidencial permaneceram, no essencial, incompreensíveis para o público português, e assim continuarão. O conhecimento da especificidade norte-americana, que em boa parte permite aceder ao sentido dos acontecimentos, é complexo e distante e de análise factual problemática. Trata-se aqui de uma questão passível de abordagem essencialmente hermenêutica em que importaria mesmo compreender quais as condições de possibilidade de tal compreensão; questão esta merecedora de outro desenvolvimento em contexto diferente.
E assim os media, ao difundirem certas informações, aumentam apesar de tudo a nossa confusão. Segundo Alain Touraine, se «vivíamos no silêncio, agora vivemos no ruído; estávamos isolados, agora estamos perdidos na multidão, recebíamos poucas mensagens, agora somos bombardeados por elas.»(20) Este apego à comunicação e à vontade de estar informado aumenta, ainda assim, a nossa ignorância: «é assombroso, quanto o mundo está mergulhado na obscuridade e na ignorância»(21). Ignorância, porque desta não haverá melhor aliado que a ilusão do saber. Apenas encontramos no indivíduo a sucessão contínua das opiniões, num redemoinho de enunciados que pululam do presente e do passado prefigurando uma imensa floresta especulativa. Mas que o indivíduo ignora e onde se sente seguro a cada instante. Uma opinião vale tanto como outra, e aqui se escancara o abismo: a opinião pode aceitar qualquer sentido, pode falar de tudo, mas não pode nunca dizer tudo(22).
Foi este um dos perigos que Adorno considerou específico sobretudo da televisão, e radica nos conteúdos que fornece e também na forma como são recebidos. Adorno referia-se a esses «produtos televisivos» que aparentam debater, discutir e apresentar os problemas. Problemas esses que são oferecidos como sendo as questões essenciais para as pessoas e que depois são reflectidos por autoridades qualificadas e reconhecidas, que com prestável bondade nos fornecem sempre a melhor solução. E é esta uma das formas que assume a manipulação ideológica associada aos media: os media fornecem os modelos e os arquétipos de uma vida ideal, generosamente acompanhados pelo conjunto das formas de resolução das contradições que encerram (23).

Desejos informativos e curiosidades vãs
É em tal contexto que surge a reivindicação da transparência dos actos de poder perante o julgamento da opinião pública, agora instituída como tribunal de recurso. Transparência por um lado e racionalidade dos comportamentos do homem pelo outro transformaram progressivamente as condições da vida em sociedade, sobretudo do ponto de vista da extensão do espaço público. Trata-se, no entanto, de uma transparência ambivalente, na medida em que se joga através da notoriedade pública a fama ou o prestígio. A abundância, na televisão mas também nos outros media, de emissões ou artigos geradores de desigualdades e de exclusões, que colocam em destaque este ou aquele pormenor a vida privada das pessoas, é disso um sinal tangível. O desejo de ser objecto de uma mediatização impõe-se largamente à discrição de um espaço privado: as vedetas desempenham também um importante papel graças ao seu desejo de publicitar os aspectos mais privados da sua vida. Consentem o aparecimento do «voyeurismo» pelos media que, longe de ser defeito moral, antes é uma virtude necessária à sobrevivência social(24).
Mas, se esta prática consentida e prestigiante constitui hoje uma base de comércio cada vez mais importante para os media, dando luz aos "produtos" que mais facilmente circulam, transparência equivale também, pela sua dualidade, a uma possibilidade de desprestígio ou mesmo de ignomínia. A grande dificuldade prática em criar uma barreira em redor do espaço privado torna-o provável e apetecível objecto de assalto por parte dos media. Um assalto em que os media são movidos pelo que Touraine chama de antropologia do desejo, onde justamente o novo homem, ser de desejo, procura reencontrar a sua energia vital transpondo as barreiras erguidas pelas convenções sociais e pelas chamadas «agências de moralização.» (25)
O escritor peruano Mário Vargas Llosa reflectiu, há não muito tempo, sobre o jornalismo tabloíde inglês e sobre as revelações que a imprensa britânica tem feito acerca da presumível sexualidade dos políticos. Referindo-se aos pedidos de misericórdia do então ministro de Gales, Ron Davies, vítima de devassa privada pelos tabloídes (e não só), Llosa foi taxativo: «não há a menor hipótese que o consiga (livrar-se dos media), amigo. Só a erupção de um novo escândalo, mais efervescente, faria com que a imprensa inquisidora se esquecesse de si.» (26)
Vargas Llosa adianta neste artigo uma explicação do processo bem em acordo com as ideias antes aqui apresentadas: «é assim porque a demanda por esse produto (insídia, malícia, escândalos) é universal e irresistível. O órgão de informação que se abstivesse de modo sistemático de o fornecer aos seus leitores, estaria a condenar-se à bancarrota.» (27) Quer isto dizer que, como noutro momento afirma Llosa, o vírus do sensacionalismo atravessou todo o espectro mediático, e nem os chamados media de referência lhe estiveram imunes. Popper, cuja posição será ainda exposta adiante, mostrou também a dificuldade que sustém este problema; a concorrência é indirectamente proporcional à qualidade. Para manter as audiências, as empresas televisivas viram-se na necessidade de recorrer ao sensacionalismo, que raramente é bom - muito embora Popper se dê conta da dificuldade de definir de forma objectiva o que é bom ou mau.(28)
Contudo, para o escritor peruano Vargas Llosa, a raiz do fenómeno não está «nas maquinações tenebrosas de uns proprietários de jornais ávidos de ganhar dinheiro, que exploram as paixões baixas das pessoas com total irresponsabilidade.»(29) Estas são antes a consequência e não a causa. Os media actuais são fruto de uma cultura que, como vimos antes, «em vez de repudiar as grosseiras intromissões na vida privada das pessoas, exige-as.»(30) As pessoas abrem um jornal, vão ao cinema, acendem a televisão, não para conhecerem ou aprenderem. Mas antes para se «abandonarem num devaneio ligeiro, amável, superficial, alegre e saudavelmente estúpido. E há alguma coisa mais divertida do que espiar a intimidade do próximo, surpreender o vizinho em cuecas, averiguar os desvios de fulana, comprovar o chapinhar no lodo daqueles que passavam por respeitáveis e modelares?»
Os media, que têm como desígnio o fornecer conteúdos que circulem, são assim vítimas do gosto pela «imundice alheia». «O progresso, que também dispõe de uma lógica, replica que a imprensa também não é mais do que uma das associações de profissionais que vivem de satisfazer uma necessidade real»(31), dissera já Kraus sobre o mais poderoso medium da sua época. Que as necessidades dos públicos determinam os conteúdos mediáticos, é o que parecem dizer-nos os media da actualidade, olhos fixos nas audiometrias.
Karl Popper, no seu último livro (um livro que dedicou à televisão) lembrara a afirmação inaudita do responsável por uma cadeia televisiva: «devemos oferecer às pessoas o que elas esperam», dissera taxativo; é decerto possível e bem fácil conhecer tais expectativas recorrendo às ditas audiometrias, esse verdadeiro indicador de consulta popular. E assim, violência, sexo e sensacionalismo são os meios a que se recorre mais facilmente: a receita é segura, seduz sempre o público. Popper acrescentava ainda que, se tal não funcionasse, bastaria infalivelmente aumentar a dose. (32)
Porém, este gosto pela imundice que dá prazer observar e até conhecer não será decerto, tal como referira Llosa, produto exclusivo dos media; teve já em Santo Agostinho, há mais de 1500 anos, um observador atento e preocupado. Nas suas Confissões chamou a este gosto curiosidade e considerou-o das mais perigosas tentações. Trata-se de «um desejo de conhecer tudo, por meio da carne» e disfarça-se perante nós sob o nome de 'conhecimento' e 'sabedoria'. Nas Divinas Escrituras é chamado simplesmente por concupiscência dos olhos, por serem estes os sentidos mais aptos para tal «perversão»(34). Sendo um desejo curioso e vão, estende a sua actividade em dois sentidos: é voluptuoso, se corre atrás do belo, do harmonioso, do suave, do saboroso ou do brando; por outro lado, a curiosidade gosta também às vezes de experimentar o contrário dessas sensações, tão só para satisfazer a paixão - condenada desde o Paraíso - de tudo examinar e conhecer, uma vez que nada nos traz de proveito.
Santo Agostinho perguntava a este propósito: «Que gosto há em ver um cadáver dilacerado, a que se tem horror?»(35) Também hoje verificamos nós como, apesar disso, aonde quer que tal esteja se formam aglomerados de pessoas, ainda que sintam sincero horror e lamentem a vã experiência. «Depois, até em sonhos temem vê-lo, como se alguém os tivesse obrigado a ir examiná-lo, quando estavam acordados, ou como se qualquer anúncio de beleza os tivesse persuadido a lá irem.» (36)
Por causa desta «doença» de tudo querer examinar, Santo Agostinho referia que se exibiam no teatro cenas monstruosas, sementes de outros desejos e perdições, insídias e perigos. A dimensão do problema era já então preocupante, tantas eram as insignificantes e desprezíveis misérias que todos os dias tentavam a curiosidade, e também a quantidade de vezes em que 'nelas se escorregava'. «Quantas e quantas vezes não ouvimos contar banalidades!», referia Agostinho. «Ao princípio toleramo-las, só para não ofender os fracos; mas depois ouvimo-las com gosto sempre crescente.» (37)
Ontem como hoje: a reactualização desta perspectiva é premente. É uma ideia também presente no conceito de desejo curioso de Martin Heidegger e que parece impor-se na reflexão de uma actualidade fortemente mercantilizada, onde os media, tão dependentes de factores económicos, oscilam temerariamente entre ideias como interesse público e interesse do público(38). E é assim que questões essenciais circulam nos media lado a lado com curiosidades, quando não mesmo remetidas para rodapé. Recordemos que aqui veria Adorno o perigo gerador da falsa consciência, em que os media fornecem e ocultam realidades.

Posições: da educação à emancipação
Face a esta - breve e fragmentária - abordagem à situação dos media, algumas questões parecem assumir especial pertinência, questionando-nos em várias direcções. As posições que emergem podem alinhar-se em pelo menos dois paradigmas ou modos de avaliar os media: por um lado parece ter-se instalado através deles uma cultura da superficialidade ou da opacidade, em que do mundo passámos apenas a ter abstracções pálidas e insuficientes; por outro lado, os media são concebidos em termos de manipulação ideológica e cultural dos homens, que de forma passiva recebem novos mundos pela linguagem dos media. Em ambos os casos se aponta univocamente numa só direcção: como lidar com os media, tidos como responsáveis por uma nova e complexa forma do homem se relacionar com o mundo? Contudo, se a avaliação dos factores se afigura complexa, apontar respostas eficazes também não se afigura tarefa fácil.
Como foi já referido, Karl Popper dedicou a esta questão, mais concretamente à televisão, um dos seus últimos textos.(39) A partir de um estudo do psicólogo John Condry que mostrava a imensa influência exercida pela televisão nas crianças e o tempo que elas passam a vê-la, Popper acusou este meio de procurar não a qualidade ou a edificação moral, mas visar antes apoderar-se dos telespectadores. Resumindo: no espírito do que antes foi exposto, também Popper via na televisão uma influência negativa no comportamento dos espectadores, uma concorrência nociva à família e à escola, distorção ao debate público e inflação do vedetismo mundano.
A terapêutica para este problema existia, e, depois de defender uma censura à violência, Popper logo avançou uma proposta. No essencial, conduz a uma maior exigência na formação de quem trabalha em televisão e à constituição de uma ordem que, como acontece na medicina, funcione como instância de reconhecimento profissional e de punição disciplinar dos seus membros.
No entanto, propostas como esta radicam frequentemente em conceitos que as tornam de aplicação e formulação indeterminável. Como tem sido apontado com frequência, a dificuldade destas propostas não está em arranjar formas de limitar a violência televisiva, mas antes em saber onde está a violência. Assim, e salvo em casos extremos (mas que casos são extremos ?), são inviáveis propostas que se baseiem em instâncias de difícil determinação, tais como bom senso, bom gosto ou outros valores que se queiram universais.
Diferente desta é a posição de Adorno sobre os media, que aos poucos tem sido sugerida ao longo deste trabalho, nomeadamente no que dela se refere à televisão. Para além de desviar a atenção das pessoas do que realmente as afecta, acusava Adorno tal medium de, sobretudo através das séries norte-americanas, promover nas pessoas falsa consciência, deformações e ocultações da realidade, apresentando-lhes uma série de valores de validade dogmática.
A solução para este problema passaria pois, segundo Adorno, por uma emancipação dos receptores após uma iniciação ao uso dos media, que seria possível capacitando as pessoas para ponderarem esta questão no sentido de formarem um juízo próprio e autónomo a seu respeito. Por outras palavras, para além de qualquer imposição arbitrária, trata-se antes do que Adorno refere como «ensinar os telespectadores a ver televisão», ou antes, a como se converter num bom «televidente», em que a questão de fundo mais não era que a pretensão de ver televisão sem se deixar enganar, atendendo à intima ligação deste medium com a ideologia dominante. (40)
É essencialmente a uma resistência que a posição de Adorno se refere. Para além de capacitar os telespectadores a elegerem o adequado, importaria desenvolver as suas capacidades críticas, pondo-as em condições de desmascarar ideologias e se defenderem de identificações falsas e problemáticas - como as que decorrem da anteriormente referida errada consciência da realidade, fruto do pseudorrealismo mediático que a técnica possibilita, veneno suave e invisível a que Adorno considerava imperioso resistir. Além de tudo, sublinha Adorno, importa uma educação que protegesse as pessoas da propaganda imensa a favor do admirável mundo pelos media prometido - pela sua própria natureza, antes mesmo da transmissão de qualquer conteúdo.
Com Adorno, estamos longe da imposição de qualquer censura de conteúdos ou da constituição de formalismos de universalidade fugaz, propostas baseadas na pressuposição de acefalia ou incapacidade emancipatória que nostálgica e inutilmente prescrevia Popper. Ao invés, importará aqui antes compreender a actual configuração mediática e o modo como ela resulta de combinatórias individuais e comunitárias. E também para os media há bons usos: há possibilidades próprias em cada medium que devem ser exploradas positivamente, na sua própria matéria - sobre a televisão Adorno aponta, por exemplo, a importância do elemento informativo e documental. Mas baseia também ele o seu pessimismo no facto dos media, por culpa sobretudo do mercado, não se realizarem como poderiam, ou realizarem-se de maneira perversa ou caricatural: nomeadamente através da construção da falsa consciência da realidade. Convém ainda referir que o temor de Adorno da geral homologação da sociedade não se verificou. O que de facto sucedeu, não obstante os esforços dos monopólios e das grandes centrais capitalistas, é que os media se tornaram elementos de uma grande multiplicação de visões do mundo, dando a palavra a minorias de todo o género.
A este propósito surgia há dez anos uma tese de Gianni Vattimo, também ela idealizando a emancipação do homem numa sociedade dos media.(41) Porém, em vez de um ideal de emancipação modelado pela autoconsciência completamente definida, com o perfeito conhecimento de quem sabe o estado das coisas (seja ele o Espírito Absoluto de Hegel ou o homem liberto da ideologia que vimos antes), Vattimo propõe um ideal de emancipação que tem antes na base a oscilação, a pluralidade e por fim o próprio desgaste do princípio de realidade - princípio este tão difícil de sustentar de modo unívoco neste mundo fluido dos mass media.
Emancipação significa aqui desenraizamento mas ao mesmo tempo libertação das diferenças, dos elementos locais. Com o mundo da comunicação generalizada «explode uma multiplicidade de racionalidades locais que tomam a palavra»(42), minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas. Mas não se trata aqui de um abandono de todas as regras numa manifestação bruta de imediato: há também nas racionalidades locais ou minoritárias uma sintaxe e gramática próprias, que se trata de 'pôr em forma', o que apenas sucede pela emancipação. Viver este mundo múltiplo significa ainda fazer experiência da liberdade, como oscilação contínua entre pertença e desenraizamento. No entanto, também esta tese se mostra problemática. Vale tão só como possibilidade a reconhecer ou a cultivar: a nostalgia dos horizontes fechados, decerto ameaçadores mas também tranquilizadores, recomenda prudência no uso de qualquer ideia de liberdade como oscilação.
Em suma, se parecem impor-se a crítica e a compreensão da actual configuração mediática como poderosa combinatória, que resulta no pluralismo da realidade, pode (e deve) a sua reflexão ser ponto de partida de tamanha tarefa. Uma tarefa destinada a indivíduos que agem como 'sujeitos' e não apenas como passivos consumidores. Uma tarefa que traduz, de forma significativa, o espírito que presidiu à redacção do presente trabalho.

Notas:

1- Comunicação apresentada no I Congresso das Ciências da Comunicação, «As Ciências da Comunicação na Viragem do Século», organizado pela SOPCOM, em Lisboa, dia 24 de Março de 1998.

2-Cfr. Kraus, Karl, «O Mundo dos Cartazes», in Histórias com Tempo e Lugar, Prosa de autores austríacos, Publicações Europa América, Lisboa, s/d, pág.195.

3-Breton, Philippe, A Utopia da Comunicação, Piaget, Lisboa, 1994, pág. 123.

4-Kraus, Karl, «Literatur oder Man wird doch da sehn»(1921), in Dramen, Munique, 1967, pág.56.

5-Kraus, Karl, «Nesta Grande Época», in Histórias com Tempo e Lugar, prosa de autores austríacos, Publicações Europa América, Lisboa, s/d, orig.1914, pág. 207.

6-Cfr. Idem, págs. 206-207.

7-Cfr. Adorno, Theodor, «Televisón y formación cultural», in Educación para la emancipación, Edicionnes Morata, s/d, págs. 56-57.

8-Calasso, Roberto, «Da Opinião», in Os quarenta e nove degraus, Cotovia, Lisboa, 1998, págs. 28-29.

9-Habermas, Jurgen, Théorie de l'Agir Communicationnel, vol.1, Paris, Fayard, 1987, págs. 349-352.

10-Cfr. Adorno, Theodor, Op.cit., pág. 62.

11-Cfr. Benjamin, Walter, «A obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica», in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d'Água, 1992, orig. 1936-39, pps.111-113. Noutro momento («Nesta Grande Época», in op.cit. pág. 206.), Karl Kraus é mais conciso:«Através de uma prática de decénios, ele (repórter) levou a humanidade precisamente àquele estado de falta de fantasia que lhe torna possível uma guerra de extermínio contra si própria. Já que, com a rapidez desmedida das suas engrenagens, lhe poupou toda a capacidade de ter vivências e de as prolongar intelectualmente, tudo o que o repórter é capaz de fazer é instilar à humanidade a necessária coragem do desprezo pela vida que a leva a precipitar-se na guerra.»

12-Cfr. Adorno, Teodor, Op.cit., págs. 51,52 e 53.

13-In Revista "Pública" de 31 de Janeiro de 1999.

14-Rodrigues, Adriano Duarte, Estratégias de Comunicação, Presença, Lisboa, 1990, pág.42.

15-Cfr. Breton , Philippe, A Utopia da Comunicação, Piaget, Lisboa, 1994, págs. 124-125.

16-Idem, pág.124.

17-Kraus, Karl, «Ditos e Contraditos», in Op.cit., pág.126.

18-Breton, Philippe, Op. cit., pág. 131.

19-Kraus, Karl, «Ditos e Contraditos», in Op.cit., pág.226.

20-Touraine, Alain, Crítica da Modernidade, Piaget, Lisboa, 1994, orig.1992, pág.113.

21-Idem.

22-Cfr. Calasso, «Da Opinião», in Op.cit., pps. 27-52.

23-Cfr. Adorno, Theodor, Op.cit., págs. 55-56.

24-Breton, Philippe, Op. cit., págs. 117, 127.

25-Cfr. Touraine, Allain, Op.cit., págs. 118-119.

26-Llosa, Mário Vargas, «Novas Inquisições», in Dna nº104, 21 de Novembro de 1998.

27-Idem.

28-Popper, Karl, A televisão: um perigo para a democracia?, Gradiva, Lisboa, 1995, pág.17.

29-Llosa, Mário Vargas, Op. cit..

30-Idem.

31-Kraus, Karl, «Nesta Grande Época», in Op.cit., pág. 205.

32-Popper, Karl, Op.cit. pág. 19.

33-Cfr. Popper, Karl, Op.cit., págs. 20-22.

34-Cfr. Santo Agostinho, Confissões, Livraria Apostolado da Imprensa, Braga, 1990, pág.278.

35-Idem.

36-Idem.

37-Santo Agostinho, Op.cit., págs. 278-279.

38-Cfr. Correia, Fernando, Os jornalistas e as notícias, Caminho, Lisboa, 1997, págs. 144 e segs.

39-Popper, Karl, Op.cit..

40-Cfr. Adorno, Theodor, Op.cit, págs. 52-53.

41-Vattimo, Gianni, A Sociedade Transparente, Relógio d'Água, Lisboa, 1992.

42-Idem, pág.15.
 
 
 
 

Bibliografia:

Adorno, Theodor W., «Televisón y formación cultural» in Educación para la emancipación, Edicionnes Morata, Madrid, s/d.
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Habermas, Jurgen, Théorie de l'Agir Communicationnel, Vol.1, Paris, Fayard, 1987.
Kraus, Karl,
«O Mundo dos cartazes»
«Nesta grande época»
«Ditos e contraditos»
in Histórias com tempo e lugar, prosa de autores austríacos, Publicações Europa América, Lisboa, s/d.
Llosa, Mário Vargas, «Novas Inquisições», in Dna nº104, de 21 de Novembro de 1998.
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Vattimo, Gianni, A sociedade transparente, Relógio d'Água, Lisboa, 1992.