Gil António Ferreira, Universidade da Beira Interior
É uma ideia geralmente bem aceite: cada época organiza
as suas representações do mundo, com tudo o que isso implica
de expectativas, de sonhos ou de temores, em torno de uma ideia simples
mas elástica, que concentre em si não só poderes de
esconjuração como também de explicação.
Isso acontece hoje, de modo muito nítido, com a problemática
comunicacional, destinada a dar conta, enquanto quadro epistémico,
das diversas transformações que ocorreram nas últimas
décadas no domínio social. Desde a cultura à política
ou ensino, todas as actividades humanas procuram ser compreendidas sob
a noção de comunicação mediática, dado
se haver implantado uma autêntica mediasfera, segundo alguns estudiosos.
É pois neste contexto que a problemática comunicacional,
aqui associada aos media, emerge no pensamento científico como forma
de compreensão das estratégias discursivas, fluidas e plurais,
onde se joga a actualidade. O facto de a comunicação ser
um domínio fluido deve, contudo, impelir-nos a procurar até
que ponto, concretamente, as técnicas e os valores associados à
comunicação penetraram na nossa sociedade e nos nossos comportamentos
mais correntes. Numa reflexão de aspectos relacionados com a exigência
informativa moderna e com a actual cultura de liberdade e de transparência,
devemos pensar a incontornável configuração mediática
e qual a realidade que ela compõe, fruto de instâncias e combinatórias
inéditas.
Do debate sociável à mediação solitária
Para compreendermos uma questão particularmente visível
e relevante, a incontornabilidade dos media, não podemos deixar
de referir, ainda que com leveza e superficialidade, um momento chave da
nossa civilização. Trata-se do contexto em que a imprensa,
de veículo da opinião publicamente produzida nos espaços
de debate e de convívio, se tornou, a pouco e pouco, produção
de opinião em si mesma. Com raízes decerto mais profundas,
o advento deste século trouxe uma nova dimensão a este processo.
Também a importância e as consequências deste momento
são de um alcance que ultrapassa os desígnios deste trabalho;
salientaremos alguns aspectos aqui considerados a propósito.
Partindo dos conceitos de público e de espaço público
redefinidos por Jurgen Habermas e com a sua génese na instituição
da democracia grega, centremo-nos naquele momento em que o público
se arroga o direito e até o dever de informar e ser informado. A
opinião pública aparece então como instância
do 'saber' dos factos, em oposição à legitimidade
do 'querer', esta a modalidade atribuída ao soberano. A partir de
tal momento, o espaço público autonomiza-se e transforma-se
de modo a garantir a circulação generalizada de informação
e opinião. Baseada nos proprietários de bens ou de saber,
esta autonomização foi indispensável à instauração
de uma publicidade, entendida aqui no sentido de um tornar algo público,
numa lógica semelhante às leis modernas da mercadoria.
E é assim que a imprensa, até aí veículo
da opinião produzida em espaços públicos de debate,
de confronto e de convívio, passa a ser, pouco a pouco, produção
de opinião em si mesma. Todo o trabalho de elaboração
racional e colectiva, orientado pelos ideais iluministas, ficou reservado,
de então em diante, a uma nova classe especializada: a dos profissionais
da mediação. Atento observador e profundo conhecedor do jornalismo
que nos inícios do século se fazia em Viena, dizia nessa
época o austríaco Karl Kraus como ao ser tirada da contemplatividade
que não dá pão, a vida intelectual em que se debatia
publicamente cada questão pública era suplantada pelos interesses
mercantis e assim conduzida a uma profissão social. (2)
As consequências desta transformação são
diversas e de vária ordem. Entre elas, destaque-se que funções
antes atribuídas ao espaço público e à sociabilidade
foram daí transferidas para o domínio privado, sendo o debate
intersubjectivo como forma de compreensão substituído pela
leitura solitária - sem discussão intersubjectiva - da escrita
jornalística (o primeiro medium). É sob esta perspectiva
que os media se tornaram incontornáveis: passaram a ser eles o lugar
(o único, muitas vezes) onde estão as informações
que, de então em diante, permitirão descodificar os universos
em que evoluímos. Os media captaram, pouco a pouco, e absorveram
depois a maioria dos canais que tradicionalmente serviam para a produção
e difusão da informação. Sublinhe-se, no entanto,
que se trata aqui de um espaço abstracto, anónimo e de ninguém,
que substitui o anterior espaço concreto da partilha intersubjectiva,
próprio do debate. Por outras palavras, é o «fim dos
cenários interiores como redutos do imaginário, mas também
como legitimação dos comportamentos»(3);
o fim do homem iluminista orientado na sua formação e acção
a partir da interior reflexão racional, desde agora substituído
pelo sistema de orientação externa da acção
humana, a partir do que lhe é dado a consumir pelos media.
Esvaziada a sociabilidade concreta, é o seu lugar preenchido
pelas modalidades mediáticas abstractas, que passam a compor grande
parte do mundo a que se tem acesso. Karl Kraus, impiedoso crítico
deste fenómeno, dizia mesmo em 1921 como «no princípio
era a Imprensa / e depois apareceu o mundo»(4).
Anos antes, com a Primeira Grande Guerra no horizonte próximo, dissera
já no seu peculiar estilo que se o jornal «traz mentiras sobre
horrores, nascem horrores, porque existe uma imprensa que os inventou e
os deplora»(5) . Ao pensador austríaco era
clara a intuição de que a vida não passava de uma
cópia da imprensa. A imprensa é, acima de tudo, acontecimento,
afirmara então.(6) A redefinição
dos valores é tão só uma consequência deste
processo que aos poucos se estendeu pelos diversos domínios do social,
desde o político ao familiar ou ao religioso.
No mesmo sentido mas um pouco mais tarde, Theodor Adorno considerava
existir uma consciência da realidade produzida por um realismo artístico.
Num momento em que se referia à televisão, referia-se Adorno
a uma espécie de pseudorrealismo criado pela harmonização
e falseamento, introduzido furtivamente nos escondidos bastidores sem que
alguém notasse, ignorando assim os espectadores a subtileza de um
processo em que são objecto; o processo que lhes ia favorecendo
a mal entendida consciência da realidade.(7)
A natureza instrumental da linguagem mediática
Observámos que a imprensa surge a partir dos proprietários
de bens e de saber, isto é, dos detentores do capital económico
ou simbólico segundo a ordem social burguesa, de que a própria
imprensa depende. Gera-se aqui um espaço (abstracto, recorde-se)
cada vez mais autónomo, regido pelas leis modernas da mercadoria,
em que o espaço público se transforma no sentido de garantir
uma circulação generalizada, passando a funcionar como campo
privilegiado da publicidade dos produtos. Domínios antes regidos
pela lógica da reflexão, do confronto e da reprodução,
subordinam-se agora a uma lógica cada vez mais operante, a lógica
da produção e do correspondente consumo. E é assim
que uma forma abstracta de mercadoria, convertida em puro valor de troca,
se estende às restantes dimensões sociais. Embora concentrando-se
apenas na imprensa, Karl Kraus teve contudo percepção do
alcance mais abrangente deste processo. Retomemos uma sua intuição
atrás citada em que a imprensa precede o aparecimento do mundo:
aí vemos com ele como o mundo e a sua matéria são,
sob o ponto de vista industrial, um subproduto, ou dito de outro modo,
sob um ponto de vista neo-platónico, o mundo seria apenas uma emanação
da imprensa. (8)
Face a isto, projectos e jogos de interesses dos cidadãos por
um lado, estado organizador de regras formais por outro, determinam e impõem
formas definidas cada vez mais de maneira abstracta, de modo a garantirem
a articulação de campos diversos e contraditórios.
E entre estes estão poder e dinheiro, as duas instâncias que
segundo Jurgen Habermas substituem a linguagem como mecanismo de coordenação
da acção na modernidade. (9)
A posição de Kraus sobre esta questão, caracterizada
por traços indesmentíveis de conservadorismo, resulta numa
crítica feroz ao progresso e à produção capitalista
que transformaram a arte numa indústria e a linguagem numa mercadoria.
Num texto de 1909, «O Mundo dos Cartazes», Kraus tematiza precisamente
a prostituição da linguagem como instrumento de objectivos
mercantis, uma posição cuja actualidade importará
pensar em outros contextos. A escrita, a partir então entendida
como produto ou mercadoria a ser transaccionada, passou a eliminar cuidadosamente
tudo o que exigisse esforço, em plena obediência aos imperativos
da circulação alargada a uma massa indiferenciada, construindo-se
como que 'normalizada'.
A massa de receptores é mais um alvo do que um sujeito esclarecido
ou a esclarecer, mais uma média estatística do que alguém
interveniente ou activo. Neste sentido, repita-se como a escrita e a própria
linguagem se tornam estereotipadas, tentação que Kraus considerava
ser o pecado original da linguagem no caminho da auto-degradação.
É o estereótipo que passa a constituir a escrita e que a
torna- embalagem fácil para as ideias e niveladora das formas de
recepção, sendo assim responsável pela transformação
da humanidade numa massa de consumidores passivos.
Este fenómeno insere-se no que Adorno viria a classificar como
"neutralização da cultura". Os conteúdos mediáticos
são produzidos para a massa sob o menor e mais abrangente denominador
comum; o novo, o avançado ou o espiritual, passam a ser assunto
para especialistas, estes entendidos num sentido algo depreciado. Entre
qualidade espiritual e necessidades espirituais abre-se então um
abismo cada vez maior que resulta numa antinomia espiritual, em que se
destaca de um lado o grande público e do outro as qualificadas minorias.(10)
Este nivelamento da linguagem para mercantilização operado
pela imprensa, o primeiro dos modernos media, passa pela trivialização
e pelo lugar-comum, e é parte de um mais amplo processo de esteticização
da realidade. O corolário seria a transformação da
linguagem em geral e das formas de arte em particular em simples instrumentos,
em objectos de compra e venda. A linguagem é acusada de desrealizar
o real e dar realidade a fantasmas, e assim preparar o caminho para a agressão
e para a desumanização do homem - onde a guerra, como esteticização
da vida política, seria ponto culminante.(11)
Também neste sentido, muito embora referindo-se à televisão,
Theodor Adorno criticava no fim dos anos 50 o uso que se fazia deste medium.
Justamente pela moderna superficialidade com que os assuntos são
apresentados e recebidos, a televisão mostrava-se vocacionada para
difundir ideologias e orientar de modo falso a consciência das pessoas.
Uma ideologia difundia ela, para já: tornava o mundo homologado,
embora feliz pela manipulação dos seus desejos, um mundo
dominado a nível ideológico pelo «Grande Irmão»
de 1984, romance de George Orwell.(12)
Também a este propósito, não deixa de ser curiosa
uma referência à mediática questão do actual
presidente norte-americano: antes da sua intimidade ser assunto de discussão
mundial, em 1995, apontava já ele a Garcia Marquez, bruscamente,
quais os seus inimigos: "O meu único inimigo é o fundamentalismo
religioso de direita.(13)" Inimigo esse que, menos de
três anos volvidos, apresentando uma série de valores ideológicos,
arrogou de interesse público as deformações presidenciais
face à ideologia mediaticamente promovida.
Confusões e ilusões da comunicação
Mas detenhamo-nos para já num dos novos valores difundidos:
a comunicação como valor. O cidadão, de sujeito de
uma opinião esclarecida, converte-se em consumidor ávido
de produtos discursivos. É preciso comunicar, acima de tudo. Marca
evidente disso é a dependência que, na actualidade, as diversas
instâncias sociais sentem em relação à máquina
discursiva dos media. Nos media, «todos os restantes campos sociais
se reflectem como num espelho, não podendo as dimensões da
prática social prescindir do seu contributo.»(14)
Neste sentido, podemos afirmar que a mensagem principal veiculada pelos
media (e talvez a única verdadeira, como veremos noutro momento)
é a importância da comunicação como valor central
em torno do qual a sociedade deve organizar-se. E cada vez mais essa mensagem
assume a forma de incentivo a um desempenho: existem hoje poucas emissões
sem debates, sem trocas de opinião e variada participação
do público, num sistema de alargamento selectivo em que se prefere
toda a boa mensagem, a facilmente comunicável, com opinião
oferecida sobre qualquer que seja o conteúdo.(15)
A opinião pode falar de tudo, servindo-se para isso da frase
feita, uma superfície fluída em que constantemente nos movemos
com admirável facilidade. E assim a nossa opinião é
constantemente solicitada, embora sem pretensões de obter a verdade;
apenas são pretendidos pontos de vista em que cada um oferece a
sua contribuição, para em conjunto se «'compor a verdade'
a partir dos diferentes pontos de vista que lhes (aos media) compete pôr
em cena.» (16)Não existe pois nenhuma verdade,
mas pontos de vista - que é forçoso ter, sublinhe-se. Como
eloquentemente notara já Karl Kraus no início do século
nos seus Ditos e Contraditos, «uns acham isto lindo, outros, aquilo.
Mas têm que 'achar'. Procurar é que ninguém quer.»
(17)
É evidente que achamos a partir do que os media nos espelham
e nos expressam. Uma constatação que nos levanta questões
quanto à experiência que gerou cada pensamento individual
e a sua relação com o que os media nos revelam. A informação
atinge sempre um limiar em que se revela impotente para descrever o sentido
do acontecimento. «A visão de uma criança morrendo
de fome ou, simplesmente, a vida quotidiana numa cidade estranha reproduzida
numa reportagem não pode ganhar qualquer sentido sem uma experiência
vivida da situação em questão.»(18)
Isto é, por muito bem apresentada que esteja, a informação
não pode substituir a experiência. Ou dito de outro modo:«O
que é a Nona Sinfonia comparada com uma modinha tocada por um realejo
e uma recordação.»(19)
Ora uma das perturbações provocadas hoje pelos media
advém do facto do homem moderno julgar que tem acesso ao sentido
dos acontecimentos simplesmente porque está informado. Se a comunicação
mediática tende, por natureza, a suprimir todas as distâncias
(físicas, culturais ou temporais), essas mesmas distâncias
resistem muito mais do que se imagina quando pretendemos conhecer. Os bastidores
da situação política, cultural e social dos Estados
Unidos da América aquando do affaire presidencial permaneceram,
no essencial, incompreensíveis para o público português,
e assim continuarão. O conhecimento da especificidade norte-americana,
que em boa parte permite aceder ao sentido dos acontecimentos, é
complexo e distante e de análise factual problemática. Trata-se
aqui de uma questão passível de abordagem essencialmente
hermenêutica em que importaria mesmo compreender quais as condições
de possibilidade de tal compreensão; questão esta merecedora
de outro desenvolvimento em contexto diferente.
E assim os media, ao difundirem certas informações, aumentam
apesar de tudo a nossa confusão. Segundo Alain Touraine, se «vivíamos
no silêncio, agora vivemos no ruído; estávamos isolados,
agora estamos perdidos na multidão, recebíamos poucas mensagens,
agora somos bombardeados por elas.»(20) Este apego
à comunicação e à vontade de estar informado
aumenta, ainda assim, a nossa ignorância: «é assombroso,
quanto o mundo está mergulhado na obscuridade e na ignorância»(21).
Ignorância, porque desta não haverá melhor aliado que
a ilusão do saber. Apenas encontramos no indivíduo a sucessão
contínua das opiniões, num redemoinho de enunciados que pululam
do presente e do passado prefigurando uma imensa floresta especulativa.
Mas que o indivíduo ignora e onde se sente seguro a cada instante.
Uma opinião vale tanto como outra, e aqui se escancara o abismo:
a opinião pode aceitar qualquer sentido, pode falar de tudo, mas
não pode nunca dizer tudo(22).
Foi este um dos perigos que Adorno considerou específico sobretudo
da televisão, e radica nos conteúdos que fornece e também
na forma como são recebidos. Adorno referia-se a esses «produtos
televisivos» que aparentam debater, discutir e apresentar os problemas.
Problemas esses que são oferecidos como sendo as questões
essenciais para as pessoas e que depois são reflectidos por autoridades
qualificadas e reconhecidas, que com prestável bondade nos fornecem
sempre a melhor solução. E é esta uma das formas que
assume a manipulação ideológica associada aos media:
os media fornecem os modelos e os arquétipos de uma vida ideal,
generosamente acompanhados pelo conjunto das formas de resolução
das contradições que encerram (23).
Desejos informativos e curiosidades vãs
É em tal contexto que surge a reivindicação da
transparência dos actos de poder perante o julgamento da opinião
pública, agora instituída como tribunal de recurso. Transparência
por um lado e racionalidade dos comportamentos do homem pelo outro transformaram
progressivamente as condições da vida em sociedade, sobretudo
do ponto de vista da extensão do espaço público. Trata-se,
no entanto, de uma transparência ambivalente, na medida em que se
joga através da notoriedade pública a fama ou o prestígio.
A abundância, na televisão mas também nos outros media,
de emissões ou artigos geradores de desigualdades e de exclusões,
que colocam em destaque este ou aquele pormenor a vida privada das pessoas,
é disso um sinal tangível. O desejo de ser objecto de uma
mediatização impõe-se largamente à discrição
de um espaço privado: as vedetas desempenham também um importante
papel graças ao seu desejo de publicitar os aspectos mais privados
da sua vida. Consentem o aparecimento do «voyeurismo» pelos
media que, longe de ser defeito moral, antes é uma virtude necessária
à sobrevivência social(24).
Mas, se esta prática consentida e prestigiante constitui hoje
uma base de comércio cada vez mais importante para os media, dando
luz aos "produtos" que mais facilmente circulam, transparência equivale
também, pela sua dualidade, a uma possibilidade de desprestígio
ou mesmo de ignomínia. A grande dificuldade prática em criar
uma barreira em redor do espaço privado torna-o provável
e apetecível objecto de assalto por parte dos media. Um assalto
em que os media são movidos pelo que Touraine chama de antropologia
do desejo, onde justamente o novo homem, ser de desejo, procura reencontrar
a sua energia vital transpondo as barreiras erguidas pelas convenções
sociais e pelas chamadas «agências de moralização.»
(25)
O escritor peruano Mário Vargas Llosa reflectiu, há não
muito tempo, sobre o jornalismo tabloíde inglês e sobre as
revelações que a imprensa britânica tem feito acerca
da presumível sexualidade dos políticos. Referindo-se aos
pedidos de misericórdia do então ministro de Gales, Ron Davies,
vítima de devassa privada pelos tabloídes (e não só),
Llosa foi taxativo: «não há a menor hipótese
que o consiga (livrar-se dos media), amigo. Só a erupção
de um novo escândalo, mais efervescente, faria com que a imprensa
inquisidora se esquecesse de si.» (26)
Vargas Llosa adianta neste artigo uma explicação do processo
bem em acordo com as ideias antes aqui apresentadas: «é assim
porque a demanda por esse produto (insídia, malícia, escândalos)
é universal e irresistível. O órgão de informação
que se abstivesse de modo sistemático de o fornecer aos seus leitores,
estaria a condenar-se à bancarrota.» (27)
Quer isto dizer que, como noutro momento afirma Llosa, o vírus do
sensacionalismo atravessou todo o espectro mediático, e nem os chamados
media de referência lhe estiveram imunes. Popper, cuja posição
será ainda exposta adiante, mostrou também a dificuldade
que sustém este problema; a concorrência é indirectamente
proporcional à qualidade. Para manter as audiências, as empresas
televisivas viram-se na necessidade de recorrer ao sensacionalismo, que
raramente é bom - muito embora Popper se dê conta da dificuldade
de definir de forma objectiva o que é bom ou mau.(28)
Contudo, para o escritor peruano Vargas Llosa, a raiz do fenómeno
não está «nas maquinações tenebrosas
de uns proprietários de jornais ávidos de ganhar dinheiro,
que exploram as paixões baixas das pessoas com total irresponsabilidade.»(29)
Estas são antes a consequência e não a causa. Os media
actuais são fruto de uma cultura que, como vimos antes, «em
vez de repudiar as grosseiras intromissões na vida privada das pessoas,
exige-as.»(30) As pessoas abrem um jornal, vão
ao cinema, acendem a televisão, não para conhecerem ou aprenderem.
Mas antes para se «abandonarem num devaneio ligeiro, amável,
superficial, alegre e saudavelmente estúpido. E há alguma
coisa mais divertida do que espiar a intimidade do próximo, surpreender
o vizinho em cuecas, averiguar os desvios de fulana, comprovar o chapinhar
no lodo daqueles que passavam por respeitáveis e modelares?»
Os media, que têm como desígnio o fornecer conteúdos
que circulem, são assim vítimas do gosto pela «imundice
alheia». «O progresso, que também dispõe de uma
lógica, replica que a imprensa também não é
mais do que uma das associações de profissionais que vivem
de satisfazer uma necessidade real»(31), dissera
já Kraus sobre o mais poderoso medium da sua época. Que as
necessidades dos públicos determinam os conteúdos mediáticos,
é o que parecem dizer-nos os media da actualidade, olhos fixos nas
audiometrias.
Karl Popper, no seu último livro (um livro que dedicou à
televisão) lembrara a afirmação inaudita do responsável
por uma cadeia televisiva: «devemos oferecer às pessoas o
que elas esperam», dissera taxativo; é decerto possível
e bem fácil conhecer tais expectativas recorrendo às ditas
audiometrias, esse verdadeiro indicador de consulta popular. E assim, violência,
sexo e sensacionalismo são os meios a que se recorre mais facilmente:
a receita é segura, seduz sempre o público. Popper acrescentava
ainda que, se tal não funcionasse, bastaria infalivelmente aumentar
a dose. (32)
Porém, este gosto pela imundice que dá prazer observar
e até conhecer não será decerto, tal como referira
Llosa, produto exclusivo dos media; teve já em Santo Agostinho,
há mais de 1500 anos, um observador atento e preocupado. Nas suas
Confissões chamou a este gosto curiosidade e considerou-o das mais
perigosas tentações. Trata-se de «um desejo de conhecer
tudo, por meio da carne» e disfarça-se perante nós
sob o nome de 'conhecimento' e 'sabedoria'. Nas Divinas Escrituras é
chamado simplesmente por concupiscência dos olhos, por serem estes
os sentidos mais aptos para tal «perversão»(34).
Sendo um desejo curioso e vão, estende a sua actividade em dois
sentidos: é voluptuoso, se corre atrás do belo, do harmonioso,
do suave, do saboroso ou do brando; por outro lado, a curiosidade gosta
também às vezes de experimentar o contrário dessas
sensações, tão só para satisfazer a paixão
- condenada desde o Paraíso - de tudo examinar e conhecer, uma vez
que nada nos traz de proveito.
Santo Agostinho perguntava a este propósito: «Que gosto
há em ver um cadáver dilacerado, a que se tem horror?»(35)
Também hoje verificamos nós como, apesar disso, aonde quer
que tal esteja se formam aglomerados de pessoas, ainda que sintam sincero
horror e lamentem a vã experiência. «Depois, até
em sonhos temem vê-lo, como se alguém os tivesse obrigado
a ir examiná-lo, quando estavam acordados, ou como se qualquer anúncio
de beleza os tivesse persuadido a lá irem.» (36)
Por causa desta «doença» de tudo querer examinar,
Santo Agostinho referia que se exibiam no teatro cenas monstruosas, sementes
de outros desejos e perdições, insídias e perigos.
A dimensão do problema era já então preocupante, tantas
eram as insignificantes e desprezíveis misérias que todos
os dias tentavam a curiosidade, e também a quantidade de vezes em
que 'nelas se escorregava'. «Quantas e quantas vezes não ouvimos
contar banalidades!», referia Agostinho. «Ao princípio
toleramo-las, só para não ofender os fracos; mas depois ouvimo-las
com gosto sempre crescente.» (37)
Ontem como hoje: a reactualização desta perspectiva é
premente. É uma ideia também presente no conceito de desejo
curioso de Martin Heidegger e que parece impor-se na reflexão de
uma actualidade fortemente mercantilizada, onde os media, tão dependentes
de factores económicos, oscilam temerariamente entre ideias como
interesse público e interesse do público(38).
E é assim que questões essenciais circulam nos media lado
a lado com curiosidades, quando não mesmo remetidas para rodapé.
Recordemos que aqui veria Adorno o perigo gerador da falsa consciência,
em que os media fornecem e ocultam realidades.
Posições: da educação à emancipação
Face a esta - breve e fragmentária - abordagem à situação
dos media, algumas questões parecem assumir especial pertinência,
questionando-nos em várias direcções. As posições
que emergem podem alinhar-se em pelo menos dois paradigmas ou modos de
avaliar os media: por um lado parece ter-se instalado através deles
uma cultura da superficialidade ou da opacidade, em que do mundo passámos
apenas a ter abstracções pálidas e insuficientes;
por outro lado, os media são concebidos em termos de manipulação
ideológica e cultural dos homens, que de forma passiva recebem novos
mundos pela linguagem dos media. Em ambos os casos se aponta univocamente
numa só direcção: como lidar com os media, tidos como
responsáveis por uma nova e complexa forma do homem se relacionar
com o mundo? Contudo, se a avaliação dos factores se afigura
complexa, apontar respostas eficazes também não se afigura
tarefa fácil.
Como foi já referido, Karl Popper dedicou a esta questão,
mais concretamente à televisão, um dos seus últimos
textos.(39) A partir de um estudo do psicólogo
John Condry que mostrava a imensa influência exercida pela televisão
nas crianças e o tempo que elas passam a vê-la, Popper acusou
este meio de procurar não a qualidade ou a edificação
moral, mas visar antes apoderar-se dos telespectadores. Resumindo: no espírito
do que antes foi exposto, também Popper via na televisão
uma influência negativa no comportamento dos espectadores, uma concorrência
nociva à família e à escola, distorção
ao debate público e inflação do vedetismo mundano.
A terapêutica para este problema existia, e, depois de defender
uma censura à violência, Popper logo avançou uma proposta.
No essencial, conduz a uma maior exigência na formação
de quem trabalha em televisão e à constituição
de uma ordem que, como acontece na medicina, funcione como instância
de reconhecimento profissional e de punição disciplinar dos
seus membros.
No entanto, propostas como esta radicam frequentemente em conceitos
que as tornam de aplicação e formulação indeterminável.
Como tem sido apontado com frequência, a dificuldade destas propostas
não está em arranjar formas de limitar a violência
televisiva, mas antes em saber onde está a violência. Assim,
e salvo em casos extremos (mas que casos são extremos ?), são
inviáveis propostas que se baseiem em instâncias de difícil
determinação, tais como bom senso, bom gosto ou outros valores
que se queiram universais.
Diferente desta é a posição de Adorno sobre os
media, que aos poucos tem sido sugerida ao longo deste trabalho, nomeadamente
no que dela se refere à televisão. Para além de desviar
a atenção das pessoas do que realmente as afecta, acusava
Adorno tal medium de, sobretudo através das séries norte-americanas,
promover nas pessoas falsa consciência, deformações
e ocultações da realidade, apresentando-lhes uma série
de valores de validade dogmática.
A solução para este problema passaria pois, segundo Adorno,
por uma emancipação dos receptores após uma iniciação
ao uso dos media, que seria possível capacitando as pessoas para
ponderarem esta questão no sentido de formarem um juízo próprio
e autónomo a seu respeito. Por outras palavras, para além
de qualquer imposição arbitrária, trata-se antes do
que Adorno refere como «ensinar os telespectadores a ver televisão»,
ou antes, a como se converter num bom «televidente», em que
a questão de fundo mais não era que a pretensão de
ver televisão sem se deixar enganar, atendendo à intima ligação
deste medium com a ideologia dominante. (40)
É essencialmente a uma resistência que a posição
de Adorno se refere. Para além de capacitar os telespectadores a
elegerem o adequado, importaria desenvolver as suas capacidades críticas,
pondo-as em condições de desmascarar ideologias e se defenderem
de identificações falsas e problemáticas - como as
que decorrem da anteriormente referida errada consciência da realidade,
fruto do pseudorrealismo mediático que a técnica possibilita,
veneno suave e invisível a que Adorno considerava imperioso resistir.
Além de tudo, sublinha Adorno, importa uma educação
que protegesse as pessoas da propaganda imensa a favor do admirável
mundo pelos media prometido - pela sua própria natureza, antes mesmo
da transmissão de qualquer conteúdo.
Com Adorno, estamos longe da imposição de qualquer censura
de conteúdos ou da constituição de formalismos de
universalidade fugaz, propostas baseadas na pressuposição
de acefalia ou incapacidade emancipatória que nostálgica
e inutilmente prescrevia Popper. Ao invés, importará aqui
antes compreender a actual configuração mediática
e o modo como ela resulta de combinatórias individuais e comunitárias.
E também para os media há bons usos: há possibilidades
próprias em cada medium que devem ser exploradas positivamente,
na sua própria matéria - sobre a televisão Adorno
aponta, por exemplo, a importância do elemento informativo e documental.
Mas baseia também ele o seu pessimismo no facto dos media, por culpa
sobretudo do mercado, não se realizarem como poderiam, ou realizarem-se
de maneira perversa ou caricatural: nomeadamente através da construção
da falsa consciência da realidade. Convém ainda referir que
o temor de Adorno da geral homologação da sociedade não
se verificou. O que de facto sucedeu, não obstante os esforços
dos monopólios e das grandes centrais capitalistas, é que
os media se tornaram elementos de uma grande multiplicação
de visões do mundo, dando a palavra a minorias de todo o género.
A este propósito surgia há dez anos uma tese de Gianni
Vattimo, também ela idealizando a emancipação do homem
numa sociedade dos media.(41) Porém, em vez de
um ideal de emancipação modelado pela autoconsciência
completamente definida, com o perfeito conhecimento de quem sabe o estado
das coisas (seja ele o Espírito Absoluto de Hegel ou o homem liberto
da ideologia que vimos antes), Vattimo propõe um ideal de emancipação
que tem antes na base a oscilação, a pluralidade e por fim
o próprio desgaste do princípio de realidade - princípio
este tão difícil de sustentar de modo unívoco neste
mundo fluido dos mass media.
Emancipação significa aqui desenraizamento mas ao mesmo
tempo libertação das diferenças, dos elementos locais.
Com o mundo da comunicação generalizada «explode uma
multiplicidade de racionalidades locais que tomam a palavra»(42),
minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas.
Mas não se trata aqui de um abandono de todas as regras numa manifestação
bruta de imediato: há também nas racionalidades locais ou
minoritárias uma sintaxe e gramática próprias, que
se trata de 'pôr em forma', o que apenas sucede pela emancipação.
Viver este mundo múltiplo significa ainda fazer experiência
da liberdade, como oscilação contínua entre pertença
e desenraizamento. No entanto, também esta tese se mostra problemática.
Vale tão só como possibilidade a reconhecer ou a cultivar:
a nostalgia dos horizontes fechados, decerto ameaçadores mas também
tranquilizadores, recomenda prudência no uso de qualquer ideia de
liberdade como oscilação.
Em suma, se parecem impor-se a crítica e a compreensão
da actual configuração mediática como poderosa combinatória,
que resulta no pluralismo da realidade, pode (e deve) a sua reflexão
ser ponto de partida de tamanha tarefa. Uma tarefa destinada a indivíduos
que agem como 'sujeitos' e não apenas como passivos consumidores.
Uma tarefa que traduz, de forma significativa, o espírito que presidiu
à redacção do presente trabalho.
Notas:
1- Comunicação apresentada no I Congresso das Ciências da Comunicação, «As Ciências da Comunicação na Viragem do Século», organizado pela SOPCOM, em Lisboa, dia 24 de Março de 1998.
2-Cfr. Kraus, Karl, «O Mundo dos Cartazes», in Histórias com Tempo e Lugar, Prosa de autores austríacos, Publicações Europa América, Lisboa, s/d, pág.195.
3-Breton, Philippe, A Utopia da Comunicação, Piaget, Lisboa, 1994, pág. 123.
4-Kraus, Karl, «Literatur oder Man wird doch da sehn»(1921), in Dramen, Munique, 1967, pág.56.
5-Kraus, Karl, «Nesta Grande Época», in Histórias com Tempo e Lugar, prosa de autores austríacos, Publicações Europa América, Lisboa, s/d, orig.1914, pág. 207.
7-Cfr. Adorno, Theodor, «Televisón y formación cultural», in Educación para la emancipación, Edicionnes Morata, s/d, págs. 56-57.
8-Calasso, Roberto, «Da Opinião», in Os quarenta e nove degraus, Cotovia, Lisboa, 1998, págs. 28-29.
9-Habermas, Jurgen, Théorie de l'Agir Communicationnel, vol.1, Paris, Fayard, 1987, págs. 349-352.
10-Cfr. Adorno, Theodor, Op.cit., pág. 62.
11-Cfr. Benjamin, Walter, «A obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica», in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d'Água, 1992, orig. 1936-39, pps.111-113. Noutro momento («Nesta Grande Época», in op.cit. pág. 206.), Karl Kraus é mais conciso:«Através de uma prática de decénios, ele (repórter) levou a humanidade precisamente àquele estado de falta de fantasia que lhe torna possível uma guerra de extermínio contra si própria. Já que, com a rapidez desmedida das suas engrenagens, lhe poupou toda a capacidade de ter vivências e de as prolongar intelectualmente, tudo o que o repórter é capaz de fazer é instilar à humanidade a necessária coragem do desprezo pela vida que a leva a precipitar-se na guerra.»
12-Cfr. Adorno, Teodor, Op.cit., págs. 51,52 e 53.
13-In Revista "Pública" de 31 de Janeiro de 1999.
14-Rodrigues, Adriano Duarte, Estratégias de Comunicação, Presença, Lisboa, 1990, pág.42.
15-Cfr. Breton , Philippe, A Utopia da Comunicação, Piaget, Lisboa, 1994, págs. 124-125.
17-Kraus, Karl, «Ditos e Contraditos», in Op.cit., pág.126.
18-Breton, Philippe, Op. cit., pág. 131.
19-Kraus, Karl, «Ditos e Contraditos», in Op.cit., pág.226.
20-Touraine, Alain, Crítica da Modernidade, Piaget, Lisboa, 1994, orig.1992, pág.113.
22-Cfr. Calasso, «Da Opinião», in Op.cit., pps. 27-52.
23-Cfr. Adorno, Theodor, Op.cit., págs. 55-56.
24-Breton, Philippe, Op. cit., págs. 117, 127.
25-Cfr. Touraine, Allain, Op.cit., págs. 118-119.
26-Llosa, Mário Vargas, «Novas Inquisições», in Dna nº104, 21 de Novembro de 1998.
28-Popper, Karl, A televisão: um perigo para a democracia?, Gradiva, Lisboa, 1995, pág.17.
29-Llosa, Mário Vargas, Op. cit..
31-Kraus, Karl, «Nesta Grande Época», in Op.cit., pág. 205.
32-Popper, Karl, Op.cit. pág. 19.
33-Cfr. Popper, Karl, Op.cit., págs. 20-22.
34-Cfr. Santo Agostinho, Confissões, Livraria Apostolado da Imprensa, Braga, 1990, pág.278.
37-Santo Agostinho, Op.cit., págs. 278-279.
38-Cfr. Correia, Fernando, Os jornalistas e as notícias, Caminho, Lisboa, 1997, págs. 144 e segs.
40-Cfr. Adorno, Theodor, Op.cit, págs. 52-53.
41-Vattimo, Gianni, A Sociedade Transparente, Relógio d'Água, Lisboa, 1992.
Bibliografia:
Adorno, Theodor W., «Televisón y formación cultural»
in Educación para la emancipación, Edicionnes Morata, Madrid,
s/d.
Benjamin, Walter, Sobre arte técnica, linguagem e política,
Relógio d'Água, Lisboa, 1992.
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1994.
Calasso, Roberto, Os quarenta e nove degraus, Cotovia, Lisboa, 1998.
Correia, Fernando, Os jornalistas e as notícias, Caminho, Lisboa,
1997.
Habermas, Jurgen, Théorie de l'Agir Communicationnel, Vol.1,
Paris, Fayard, 1987.
Kraus, Karl,
«O Mundo dos cartazes»
«Nesta grande época»
«Ditos e contraditos»
in Histórias com tempo e lugar, prosa de autores austríacos,
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Llosa, Mário Vargas, «Novas Inquisições»,
in Dna nº104, de 21 de Novembro de 1998.
Popper, Karl, A televisão: um perigo para a democracia?, Gradiva,
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Rodrigues, Adriano Duarte, Estratégias de comunicação,
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Santo Agostinho, Confissões, Apostolado da Imprensa, Braga,
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Touraine, Alain, Crítica da modernidade, Piaget, Lisboa, 1994.
Vattimo, Gianni, A sociedade transparente, Relógio d'Água,
Lisboa, 1992.