Os Média escritos e a educação para a cidadania

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José Luís Lima Garcia, Instituto Politécnico da Guarda*



“Quanto mais alta é a consciência política do comum dos cidadãos tanto mais elevado é o nível social do país e tanto maiores as suas possibilidades de ser bem governado”

Armando Cortesão, Cartas de Londres-1941-1949, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1974, p.34.



Ao apresentarmos o resultado desta experiência profissional no âmbito da disciplina de Relações Públicas e Comunicação Social, do Curso de Comunicação e Relações Públicas, da Escola Superior de Educação da Guarda, tivemos como principal objectivo projectar para o exterior não só o produto de uma experiência pedagógica, mas sobretudo o papel que o professor, neste contexto de “Aldeia Global” de final de século, tem na educação cívica dos seus alunos. E esse papel não poderá ser encarado num sentido paternalista tradicional, mas pelo contrário de uma forma responsabilizada em que o professor deverá actuar como um tutor que, pela sua experiência de cidadania e com os recursos mediáticos actualmente existentes, poderá influir no processo de  politização dos alunos a seu cargo. Aliás, a Escola, cada vez mais se deverá responsabilizar pela formação dos cidadãos de amanhã, procurando com essa medida melhorar o sentido de integração e participação dos mesmos nas novas sociedades de informação. E essa formação para a mudança deverá incidir na criação de uma nova perspectiva de encarar a realidade, com muito mais rigor ético e crítico, mas também com um sentido criativo e lúdico permitindo, como referem Bitti e Zani no livro A Comunicação como Processo Social, uma atitude mais propiciatória para tornar mais fluente o circuito das mensagens comunicacionais.[i]

E hoje, mais do que nunca, os agentes pedagógicos e culturais da Comunidade, secundados pelos média poderão ter esse papel facilitador de educar para o pluralismo e para a tolerância face ao outro, procurando que a diversidade de culturas e de formas de vida não sejam encaradas de uma perspectiva etnocêntrica, como afirmava Lévi-Strauss[ii], mas de uma forma mais global que torne o padrão de cultura à imagem e semelhança do universo em que todos vivemos. A propósito desta educação para a cidadania, será importante referir o testemunho de uma personalidade muito esquecida que teve um papel fundamental em toda a organização da propaganda colonial republicana e que com o advento do Estado Novo procurou refúgio em Londres, onde viveu exilado durante alguns anos, especialmente no período mais conturbado da 2ª Guerra Mundial. Referimo-nos ao engenheiro Armando Cortesão, irmão do médico e historiador Jaime Cortesão, que a propósito de uma das democracias parlamentares mais antigas da Europa afirmava: “ Discussão livre, embate de ideias, constitui a essência mesmo da democracia. Nunca isso foi tão necessário como hoje, quando as vastas e complexas comunidades nacionais se encontram envolvidas nas mais terríveis contradições de sistemas económicos e políticos. Duas forças antagónicas se encontram em presença: a que deseja conservar e a que deseja modificar. A luta trava-se, aqui como em toda a parte, entre os que desejam manter a sociedade dividida em classes, algumas das quais com privilégios e direitos exclusivos, concedendo às outras o mínimo possível, e os que desejam os mesmos direitos para todos.” [iii]

A discussão livre e o embate de ideias poderá assim constituir o paradigma de metas que um professor de Comunicação pretenderá dos seus alunos, conjuntamente com outros objectivos cívicos. No caso da disciplina sobre Comunicação Social que leccionamos no curso de Relações Públicas, da acima referida Escola de Educação, de entre alguns objectivos que formulámos, destacaremos dois, pelo sentido de autonomia e de análise crítica das ideias que pretendemos que os alunos atinjam na abordagem das diversas instituições mediáticas: Desenvolver estruturas mentais nos estudantes para abordar a realidade humana numa perspectiva de comunicação; Criar condições operatórias para o conhecimento e interpretação dos organismos dos média na sociedade actual.[iv]

Desta forma, procurar-se-á que um profissional de Relações Públicas, para além da primeira imagem de uma instituição a ser oferecida aos seus utilizadores, seja também, dentro do complexo sistema comunicacional actual, um elemento importante na filtragem e tratamento de notícias e informações provenientes deste vasto espectro global que McLuhan  em boa hora intitulou de “Galáxia de Gutemberg”, embora hoje esta designação já se encontre desactualizada, pois esse epíteto aplicar-se-á com mais propriedade a Bill Gates e a outros inovadores do mundo da informação virtual comandada à distância. No caso do programa para esta disciplina de Comunicação procurámos, pois, integrar quatro pressupostos ligados à formação e compreensão dos Média e que passaremos a discriminar: Comunicação e Processos Sociais; Relações Públicas no contexto da Comunicação Social actual; As Relações Públicas, os Média e as técnicas de Propaganda num Estado Moderno; Metodologias para a elaboração de projectos de investigação Multimédia.

Foi no âmbito deste último ponto, nomeadamente no pressuposto “os Média e a Escola: da Imprensa aos Audiovisuais” que utilizando recursos locais de documentação periódica impressa integrados no Arquivo Distrital e na Biblioteca Municipal, as alunas Elsa Saraiva e Paula Monteiro[v], apresentaram no ano lectivo de 1993/94 um trabalho de investigação que intitularam “O Combate, a Primeira Guerra Mundial e a Propaganda”.

O Combate era um jornal republicano fundado e dirigido por um antigo emigrante brasileiro, José Augusto de Castro, que se publicou na cidade da Guarda, primeiramente entre os anos de 1904 e 1906, e numa 2ª série entre os anos de 1910 a 1919, e posteriormente até 1931 já num contexto mais literário do que político, após o final da experiência republicana e em plena fase final da transição da Ditadura Militar para o início do Estado Novo. Muitos foram os colaboradores locais e nacionais que escreveram para este jornal, destacando-se entre outros Alfredo Pimenta, Heliodoro Salgado e Teófilo Braga. Assim, o trabalho destas alunas integrava-se no âmbito da dimensão educativa dos Média, especialmente quando se pretendeu divulgar acções e experiências que ressaltassem as capacidades de imaginação, iniciativa e utilização dos meios de comunicação social escritos, locais e regionais, procurando com esta interpretação metodológica revelar toda uma série de valores e normas que presidiram à idiossincrasia dos jornais portugueses, num período conturbado da nossa história e da própria história mundial. Período esse em que toda a informação continuava a ser veículada por estes orgãos de comunicação escrita, muito embora a rádio já começasse a ser um Média influente na divulgação da propaganda política dos beligerantes em presença na 1ª Guerra Mundial.

Para esta investigação sobre o jornal O Combate no período que antecedeu a participação de Portugal neste conflito, ao lado das forças Aliadas, representadas pela Grã Bretanha, o corpo de análise e de investigação incidiu sobre as publicações deste semanário transcorridas entre o nº 461, de 15 de Agosto de 1914 e o nº 642, com data de 23 de Novembro de 1918. Ao partir assim de uma delimitação temporal circunscrita a um período de quatro anos e três meses que coincidia com a duração deste acontecimento belicista, as alunas iniciaram a investigação tendo por base uma planificação que estipulava os seguintes pontos: Abordagem histórica do jornal O Combate ; Introdução ao contexto histórico da 1ª Guerra Mundial; O fenómeno propagandístico e análise qualitativa e quantitativa dos diversos artigos de teor nacionalista no contexto deste conflito. Relativamente aos conteúdos inferidos desta última análise do periódico em questão, sobre os ideais republicanos, poderemos concluir da sua importância na projecção de estereótipos na consciência moral e cívica das novas gerações de estudantes nacionais a uma distância de 86 anos do início deste  evento internacional, que tantas consequências nefastas ocasionou na sociedade portuguesa. Interessante será a reprodução de algumas conclusões a que as alunas chegaram sobre este passado próximo, nomeadamente nos seguintes pontos: A nível qualitativo um discurso indirecto que pressupõe uma narrativa predominantemente informativa. Utilizava-se uma linguagem quase erudita que se destinava a um conjunto de leitores com uma conveniente instrução escolar, capaz  de descodificar palavras num contexto morfológico como as inseridas no nº 462, de 22 de Agosto de 1914, que passamos a reproduzir: Adjectivos: protelado; protervo; ignominioso. Verbos: recrudescer; arreigar; aniquilar. Substantivos: prelúdio; aniquilamento.

É de salientar a utilização no discurso de adjectivos com conexão positiva ou negativa, conforme os jornalistas se referissem às forças aliadas em que estavam integrados os portugueses ou às forças incorporadas pela Alemanha. No primeiro caso, tornaram-se comuns adjectivos como: insuperáveis; nobres; ardentes; patrióticos; humanitários; corajosos; dignos. No segundo exemplo, a antinomia dos qualificativos usados para  designar as forças inimigas: infames; vandálicos; brutais; sanguinários. No caso concreto da análise discursiva dos artigos será interessante referir o contexto de uma conferência, que o governador civil da Guarda Dr. Vasco Borges proferiu antes do início da 1ª Guerra, subordinada ao tema “Propaganda Patriótica” e transcrita pelo jornal O Combate no dia 29 de Abril de 1914, nomeadamente quando apelava para uma tomada de posição nacionalista dos seus concidadãos face ao deflagrar iminente deste conflito no centro da Europa: “ Vós, Beirões, que sois a guarda avançada contra o inimigo, haveis de saber cumprir o vosso dever... a glória do passado garante-vos a glória do futuro. Mostrareis que sois os verdadeiros possuidores da herança sagrada do patriotismo, essa que vem da alma de Viriato, o trágico e autêntico Cirano Português.” [vi]

Notaram, na sua investigação, as alunas Elsa Saraiva e Paula Monteiro que este discurso nacionalista de verve inflamada do magistrado discursante, para além de caracterizar as causas naturais e psicológicas desta guerra global, fazia apelos a um patriotismo exacerbado assente na história do passado heróico português, emitindo juízos de valor reducionistas do tipo “ Vós Beirões, sois os verdadeiros possuidores da herança sagrada do patriotismo”, juízos esses que pudessem influenciar o comportamento belicista da população desta região, sobretudo, num período tão crítico de afirmação do dever cívico e da identidade nacional face às ameaças que pairavam sobre a Europa. Aliás, o panfletarismo e a tomada de posição política deste orgão de comunicação social já vinha de trás, dos primeiros anos de vida, em plena fase decadente da monarquia, quando no nº 79, de 27 de Outubro de 1906, fizera publicar este aviso, a propósito da assinatura do jornal: “ As pessoas a quem enviamos pela primeira vez “O Combate” e que não queiram honrar-nos com a sua assinatura, ajudando-nos na propaganda a favor da República, único meio reconhecido de regeneração e salvação da Pátria, pedimos a especial fineza de no-lo devolverem na volta do correio.”[vii]

Em termos de análise quantitativa dos seus artigos, no período que decorreu entre o nº 461, de 15 de Agosto de 1914 e o nº 642, de 23 de Novembro de 1918, foram confrontados aleatoriamente vinte e duas edições deste jornal, que permitiu concluir que o tema da guerra foi uma presença constante nas páginas deste periódico regionalista republicano, ao ponto de dezasseis delas, fazerem o tratamento deste acontecimento na primeira página do jornal, remetendo para as páginas  interiores a mesma notícia em apenas seis edições.[viii] Ainda, em relação ao tratamento jornalístico dos títulos desses artigos sobre a guerra, as alunas puderam concluir que, para além dos enunciados mais objectivos como os que se referiam concretamente a este evento como uma “Grande Guerra”, “A Guerra”, “Pela Guerra”, “Pela Guerra - Os Alemães vencidos”, “O professorado primário na Guerra”, havia outros títulos menos objectivos, não só porque eram pouco explícitos e os seus autores tomavam posição e faziam juízos valorativos de carácter patriótico. A este respeito poderemos afirmar, para quem não conhecia o conteúdo dos artigos em causa, que títulos que se referiam apenas à “Conflagração”; “A Desforra”; “Na hora da Partida”; “Hora próxima”, que eram particularmente insuficientes para em breves palavras poderem levar o leitor a fazer uma conotação com este acontecimento bélico.

Já os artigos que subjacentemente vinham carregados de ardor patriótico, remetiam o leitor para uma caracterização mais fácil do seu conteúdo, incentivando-os para uma tomada de posição mais emotiva face a este confronto militar. A este respeito, poderemos enumerar uma sequência de títulos muito caros aos ideais republicanos do corpo redactorial deste jornal regional, no que se referia à participação de Portugal na 1ª Guerra Mundial. Deste modo, títulos como “Propaganda patriótica”; “Defenda-se a república para salvar a pátria”; “Sacrifício, justiça,  glória”; “Pela honra e vida da pátria”, seriam muito mais apelativos, permitindo que as alunas que fizeram este trabalho sobre o passado recente do seu País, através de um orgão de comunicação social da época que investigaram, pudessem concluir que “conseguimos apurar múltiplos indícios de propaganda neste semanário, relativamente ao primeiro conflito mundial... e que, desde sempre, as pessoas em geral tentaram convencer quem os rodeava dos seus pontos de vista e opiniões que elas próprias tinham como certas.”[ix]

Poderemos assim afirmar, à laia de remate, que a utilização dos média modificaram as múltiplas relações do comportamento humano em sociedade, nomeadamente na família e na escola, sobretudo, nesta última, na relação entre o Ensino e a Aprendizagem. Longe de se reduzir a uma mera função de repetidor de palavras num contexto literário, o professor deverá saber conciliar esse mesmo contexto verbalista, com um outro muito mais recente ligado ao campo audiovisual, procurando acompanhar com imagens o discurso da palavra e do gesto, de modo que o percurso escolar dos seus educandos se faça em autonomia, em múltiplos estádios, em que à prelecção oral se possa opor o trabalho de pesquisa individual e colectivo, tornando muito mais sugestiva a apreeensão de ideias e valores cívicos de outras épocas históricas.  Como salienta Raymond Ball “ a primazia da literatura, a recusa do verbalismo, a recusa da linguagem da vida, engendram os desafectos, as apatias, as incompreensões dos alunos relativamente a um ensino que deveria ser o mais profundamente desejado e amado.”[x]

E com um Sistema Educativo em que os professores engendrem nos alunos desafectos, apatias e incompreensões não poderemos formar cidadãos que no futuro se interessem e até apaixonem pela governação e pela acção política do seu País. E como salientava Armando Cortesão lá do seu exílio, em Londres, em plena ditadura do Estado Novo, “ quanto mais alta é a consciência política do comum dos cidadãos tanto mais elevado é o nível social do país e tanto maiores as suas possibilidades de ser bem governado.”[xi] Será por isso que a aposta, cada vez maior, numa educação de e para os média poderá ser a forma de cada povo escolher em liberdade o governo que melhor lhe ditar a sua consciência política colectiva.

 

* Professor - Coordenador da Escola Superior de Educação da Guarda



[i] Pio Bitti e Bruna Zani, A Comunicação como Processo Social, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p.237.

[ii] Claude Lévi-Strauss, Raça e História, Lisboa, Editorial Presença, 1973, pp.19 a 28.

[iii] Armando Cortesão, Cartas de Londres-1941-1949, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1974, p.344.

[iv] Programa da disciplina anual de Relações Públicas e Mass Media, Guarda, Escola Superior de Educação, 1993, p.1.

[v] Elsa Saraiva e Paula Monteiro, “O Combate”, A Primeira Guerra Mundial e a Propaganda, Guarda, Escola Superior de Educação, 1994.

[vi] Idem, p.22.

[vii] Vid. jornal O Combate, nº 79, de 27 de Outubro de 1906. Vid.,também. Elsa Saraiva e Paula Monteiro, Op. Cit., p.23.

[viii] Elsa Saraiva e Paula Monteiro, Idem, p.29.

[ix] Idem, p.35.

[x] Raymond Ball, Pedagogia da Comunicação, Mem Martins, Publicações Europa-América, Colecção Saber nº75, 1973, p.68.

[xi] Armando Cortesão, Op. Cit., p.343.