SEMÂNTICA, ESTEREÓTIPO E MEMÓRIA DISCURSIVA

 

Maria Marta Furlanetto – Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

 

Fora da linguagem nada existe. [...] isto é uma condição cognitiva

constitutiva do humano, não uma limitação circunstancial sua.

(Humberto Maturana, Ontologia da realidade)

 

Resumo: Proponho, a partir de observações feitas sobre a noção de “memória discursiva” no contexto da Análise de Discurso, articular a noção de estereótipo aventada (mas não focalizada) por Pêcheux em “Papel da memória” (1999) e a noção de topos em Ducrot e Anscombre, no contexto da Semântica da Argumentação, tendo em vista sua implicação  na produção de sentido.

 

Introdução

Pêcheux (1999) afirma que “a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível” (p. 52).

A pergunta crucial para quem estuda o discurso pode ser assim formulada: onde estão esses ‘implícitos’? A proposta de Pierre Achard (1999) é a seguinte: tais implícitos nunca seriam encontrados de forma explícita, como formas reais e sedimentadas, visto que, sob a repetição que sofrem, ocorre a formação de um efeito de série que permitiria uma “regularização”, que funcionaria como um dispositivo de recolhimento de implícitos, “sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da construção dos estereótipos)” (Pêcheux, 1999, p. 52).

Por outro lado – e considero aqui a dinâmica da passagem língua-discurso-língua, tal como a apresento em Topoï: entre a língua e o discurso? (Furlanetto, 2000) –, Achard também observa que o que se constitui como regular pode ruir sob o peso de novos acontecimentos, constituindo-se uma nova série que pode dissimular ou apagar a antiga. Então o acontecimento consegue deslocar e desregular “os implícitos associados ao sistema da regularização anterior” (Pêcheux, 1999, p. 52). Tais implícitos podem configurar-se como enunciados e mesmo como itens lexicais (que, na teoria dos topoï, também possuem sua “memória” em termos de estereótipos).

Itens lexicais e enunciados completos, ainda que repetidos (lembremos Foucault), podem acabar perdendo sua identidade, mesmo conservando o material: é quando um jogo semântico se observa, o da metáfora. Ainda nesse caso teremos aí um rompimento da memória como dispositivo guardador de implícitos – o que significa que, necessária a memória como dispositivo de contextos de legibilidade de cada acontecimento discursivo, ela tem duas faces: a da tendência à estabilidade e a da tendência ao desarranjo e à instabilidade (segundo a lei já enunciada por Saussure, aliás: mutabilidade e imutabilidade do signo). Isso admitido, o que a análise busca, além do que “permanece” como memória (e como se dá essa memória?), são os pontos de fissão, de refundição, de esquecimento, de perda, de renovação... Isso abre também para uma interpretação mais nuançada, porque algo de novo está constantemente se criando, ainda que se faça com material antigo e aparentemente arruinado.

O que Pêcheux sugere tem a ver, na minha interpretação, com o deslocamento que se pode observar na teoria dos topoï, na abordagem da semântica da argumentação: Pêcheux acredita que, para estudar o sentido, não basta ficar no nível da proposição e estudar sua relação com os designata (o mundo real). Com efeito: sua proposta é que olhemos quais são os procedimentos de montagem do discurso e que imagem eles constroem do mundo. Nosso olhar para o mundo não se dá diretamente: nós o percebemos conforme os discursos que falam dele; vemos um mundo rotulado de alguma forma, pensado de certa maneira – ou seja, interpretado. A relação proposição/mundo constituiria significações, a busca de sentido através das construções discursivas seria agora o foco da análise. Então, significações estariam no nível semântico estrito. Entretanto, está pressuposto aí que o que se abandona é uma “imagem legível na transparência” das palavras, enquanto que o discurso que constitui essa imagem deixa-a “opaca e muda”, por ter-se perdido na memória um trajeto de leitura.

Nessa montagem, se perdidos estão certos trajetos, as palavras e as construções sintáticas, impregnadas de ressonâncias, estão disponíveis e com uso regulado. Um aspecto desse mundo linguageiro são os implícitos que chamamos de topoï, que associo aqui ao que, por hipótese, Pêcheux chamou de “estereótipos”.

A teoria dos topoi, no âmbito da Semântica Argumentativa (v. mais adiante), está sendo redefinida. Ducrot (cf. Moura, 1998) tende, hoje, a ver nos topoï  "conjuntos sem limites precisos" de relações complexas (entre palavras) que abrem possibilidades de encadeamentos discursivos, afastando a possibilidade de interpretá-los seja como crenças, seja como inferências; "fontes de discurso" é ainda uma expressão que ele usa. Fiz uma opção por "premissas", mas sem compromisso com o raciocínio dialético; pelo contrário, essa ótica se aproxima da concepção que Ducrot exprime atualmente. Por outro lado, certamente não se trata de estabelecer vínculos dedutivos sobre fatos do mundo.

 

A “transparência” da significação e a opacidade do sentido

A imagem de “legibilidade transparente” com referência à significação aparece, por exemplo, em um estudo relativo ao dicionário: haveria “um lugar em que as coisas são o que são e porque são, livrando-nos da deriva a que nos submetem as palavras: o dicionário” (Silva, 1996, p. 151). A autora assim o caracteriza:

Lá, o bom é distinto do ruim; as palavras são transparentes; o sentido é correto, preciso e objetivo; não há o que interpretar, nem do que duvidar. As palavras referem-se, sempre, a uma única e mesma coisa, todas as vezes que lá vamos buscar informações e tirar dúvidas: um mundo construído pela ciência da linguagem com a própria linguagem (ibidem, p. 151).

 

Apesar desse dizer – que é crítico, no contexto do trabalho –, a autora reconhece também que o dicionário é um instrumento de trabalho lingüístico necessário a qualquer cidadão. Entretanto, desliza sob a crítica uma crença por esse dizer: de que o dicionário aparece para todos como lugar da completude, da certeza e da exaustividade, pressupondo relação termo a termo entre a linguagem e o mundo, presumindo como natural a relação palavra/coisa. Mas quem diz isso, o lexicógrafo, ou aquele que interpreta o que se inscreve no dicionário? No dicionário não se conta, também, uma história de mudanças, de deslizes, de recobrimentos e de apagamentos? Consulte-se, por exemplo, as entradas do verbete massa ... Eu diria, antes, que o dicionário é um lugar exemplar para mostrar a deriva, e não para livrar-nos dela.

Voltemos à proposta de Pêcheux: marginalizar as significações, procurar sentidos em construção na opacidade do discurso. Fazer isto não deveria implicar que se re-significasse significação? Esta pergunta não diz respeito simplesmente a uma rejeição ao abandono do “semântico”, mas está sendo pensada no contexto teórico-metodológico da AD – que “traduz” a langue em seus termos, que traduz ideologia, que traduz discurso, e ainda inconsciente. Por que não traduzir significação?

Um dos postulados da teoria dos topoï é que as palavras remetem às palavras, e assim se vão construindo imagens do mundo (tal como acontece com as imagens icônicas, as da pintura, por exemplo). E aí, insiste Pêcheux, não vamos achar transparência, mas opacidade e um certo mutismo.  

Eu diria, contudo, que as “significações”, assim marginalizadas (como se marginaliza a noção de “sentido literal”), também constituem, por sua regularização em termos temporais e situacionais, parte da memória discursiva; elas não são eternas, inamovíveis, elas se esburacam, se rompem e mudam, por “fermentação”. Mas são necessárias como fundação; como memória, são condição de legibilidade.

Para tentar mostrar que esse tratamento da significação (“descentrá-la”, de certa forma) pode produzir uma fissura no aparato da AD (embora se saiba que todo “corpo” está sujeito a fissuras, a contradições), sintetizo a seguir passagens de textos sobre o discurso em que o foco é o sentido. Por outro lado, tento articular as questões implicadas na compreensão de ‘memória discursiva’.

 

Memória, significação, sentido

Memória discursiva se define, de modo genérico, como “interdiscurso”: um saber discursivo que possibilita que nossas palavras façam sentido. Algo fala antes, em outro lugar, independentemente. Esse saber corresponde a palavras já ditas e esquecidas, mas que continuam nos afetando em sua qualidade de “esquecimento”. Tratar-se-ia, para mim, dos implícitos em sua regularização como “estereótipos”. Só que esse esquecimento, já diziam Pêcheux e Authier-Revuz, é sujeito a equívoco, de onde a possibilidade de que o novo irrompa. Observo, entretanto, que esse modo de exposição permite interpretar que o novo irrompe quase que por acaso, independentemente do sujeito, já que este se encontra amarrado ao esquecimento... Por isso penso que, alternando a procura de Lacan, com referência a que o Outro irrompa na cadeia significante, deve interessar-nos também como emerge o novo numa cadeia de paráfrases, por resistência àquilo que vem à tona num jorro predominantemente inconsciente, por efeito também ideológico – já que ideologia se associa a inconsciente.

O que se enuncia a seguir subsume as concepções fundamentais do domínio:

1. Os sentidos são produzidos por relações parafrásticas e disponibilizados para discursos futuros. Assim, um discurso é sustentado por outros e aponta para o futuro.

2. Os sentidos são escolhidos e presumidos por antecipação de interpretação. Há um sujeito capaz de deslocar-se (de tornar-se, portanto, observador) – o que torna possível dizer de uma forma ou de outra, conforme o efeito que pensa que se produzirá no interlocutor. Tal mecanismo regula a argumentação.

3. Os sentidos são produzidos a partir de posições, presumindo-se a memória discursiva e um contexto sócio-histórico. Isto significa que um sujeito passa de uma situação empírica para uma posição discursiva.

4. Imagens constituem as diferentes posições – que determinam sentidos na relação discursiva.

5. Os sentidos não estão nas palavras; estão antes delas e depois delas – palavras remetem a palavras. Os sentidos não dependem de intenções, mas de relações com uma formação discursiva e uma memória.

6. Não há sentido em si; o sentido nasce de posições de caráter ideológico; as palavras mudam de sentido conforme as posições em que são enunciadas.

7. Sentidos são determinados ideologicamente, do exterior, e todo sentido é ideológico.

8. Na língua não há propriedades que determinem sentidos; sentidos se formam a partir do exterior, por relações constituídas nas e pelas formações discursivas.

Mas se não estão inerentemente na língua, por que estariam fundamentalmente no exterior?

9. Sentidos só aparecem por confronto de significantes, e não há sentidos próprios, literais. Pêcheux dirá que o sentido surge porque uma palavra, uma expressão, uma proposição aparece por outra palavra, outra expressão, outra proposição.

Retomemos a idéia de “metáfora”, como uma forma de romper com a regularidade que condiciona o aparecimento de estereótipos (conforme diz Pêcheux, com base em Achard). Aqui, a metáfora não seria tomada como figura de linguagem. Prefere-se partir de Lacan e tomá-la como “uma palavra por outra” – em outras palavras, transferência. Mas transferência de quê?

10. As “mesmas” palavras “significam” diferentemente, se as formações discursivas forem diferentes.

Vou apresentar um exemplo bem recente: na revista Istoé n. 1615, de 13/09/2000, há uma reportagem sobre organizações de extrema direita que se identificam com o nazismo da Alemanha do período da II Guerra Mundial. Trata-se dos herdeiros de Hitler que, em sua propaganda neonazista, formam uma corrente “cultural, política, social e economicamente” oposta ao que se chama hoje a Nova Ordem Mundial. Eles protestam contra a denominação usada para eles – neonazistas ou neofascistas –, autoclamando-se “nacional-socialistas”. A orientação política e econômica desses grupos é considerada por eles como a única alternativa contra o socialismo e o capitalismo. Eles se apegam, contudo, a duas categorias cujo extremismo já produziu desastres na face da Terra: o nacionalismo e o racismo exacerbados.

Como explicar essa recusa? Ora, embora nenhuma palavra tenha, inerentemente, um sentido próprio, na circulação o uso estabilizou nas palavras certos sentidos e não outros. Bakhtin, aliás, já salientara isso (v. Estética da criação verbal (1992). Se neonazista poderia ser admitida pelos que se proclamam nacional-socialistas, mas não o é, isso não adviria do tipo de interação estabelecida entre os grupos oponentes? Também se muda a palavra (ou melhor, o significante), em função das imagens formadas em formações ideológicas distintas.

De tudo isso, enfim, conclui-se que o trabalho do analista é remeter o dizer que estuda (ou o dito?) a uma formação discursiva (preexistente?) para compreender o sentido do que ali está dito. Para isso, deve observar as condições de produção e o funcionamento da memória discursiva correspondente. Mas onde estão esses dispositivos, a considerar, primeiramente, que uma FD não tem limites precisos, não é um bloco homogêneo, mas se reconfigura incessantemente?

11. Não há sentido sem interpretação. Interpreta-se ideologicamente.

Comparando essa última passagem com as que se encontram acima, notar-se-á que naquelas é assumido que o sentido nasce nas formações discursivas, e não a partir do intérprete. Como se daria essa relação complexa com pelo menos duas vertentes?

12. Interpreta-se ideologicamente, mas com a ilusão de que o sentido já está nas palavras. Assim, interpretar é negar uma interpretação (grau zero da interpretação).

De qualquer forma, não se nega que o sentido não esteja “lá”. Essa pretensa evidência traz com ela um fato: sentidos foram construídos, e esse resultado é, usando a mesma perspectiva, trabalho da ideologia... Creio que o óbice aqui é, como tenho procurado apontar, o não tratamento da questão do “sentido” em dois níveis: da significação e do sentido propriamente dito. Com esse desdobramento, ficaria fácil admitir que significações estão depositadas na língua por efeito do funcionamento da ideologia; e que as interpretações hic et nunc é que produzem sentido... abrindo-se a possibilidade para a polissemia.

13. O sentido aparece como evidência, ou seja, como remissão a uma coisa, mas é produzido a partir de formações discursivas, que têm no interdiscurso (a memória discursiva) sua fonte.

Pode-se perguntar, novamente, se é a FD que produz o sentido ou o intérprete... E se são os dois, como explicitar metodologicamente essa relação?

14. Para haver sentido a língua deve inscrever-se na história. Assim inscrita ela é sujeita a falhas, ao equívoco.

Certamente a língua está desde sempre inscrita em história. Nem a língua em sua sistematicidade, como se vê, está sendo negada aqui. Eu proporia um deslocamento: é por estar inscrita na história que a língua permite a formação de sentidos. E se é passível de jogo é porque se trabalha com ela.

15. A interpretação se faz com determinações de memória: arquivo e interdiscurso. Assim, não é livre, e é desigualmente distribuída na formação social. A memória se dá com dois aspectos: memória institucionalizada (o arquivo) e memória constitutiva (o interdiscurso). Dada essa divisão e a atuação conjunta, os sentidos se estabilizam ou se deslocam.

É preciso não esquecer que a interpretação (em suas determinações, que seja) tem como suporte um sujeito indivíduo, que interpreta também de uma posição (que pode ser bem diferente daquela do dito que é interpretado), e então o embate é bem mais complicado, porque este se ligaria a um arquivo e ao interdiscurso correspondente, devendo-se ver, nesse caso, qual o funcionamento (se não for zero) do arquivo, do interdiscurso e da FD a partir do qual se produziu o que foi dito ou escrito. O conflito maior está aí: como relacionar sentido a partir de uma FD, um arquivo, um interdiscurso, e interpretação (sem a qual, diz-se, não se produz sentido), que se dá também com vínculo a um arquivo, a um interdiscurso e a uma FD? Vamos achar o “bom” sentido? Não, mas vamos encontrar certamente os confrontos. É isso que se verifica no exemplo que apontei no item (10) acima.

16. Há sentidos diferentes para diferentes interlocutores; o dizer tem história.

Se se pode estudar sentidos a partir de FDs, de arquivos e de interdiscursos, por que não se pode responder o que leva o sujeito (outra posição) intérprete a fazer interpretações eventualmente divergentes (se comparadas também com o que foi “lido” e interpretado)? Essas duas faces podem ser mais bem focalizadas em suas relações, e constituem um pivô de ambigüidades teóricas para o analista – ou seja: afinal, como aparecem os sentidos no cruzamento de tantas relações de relações? A descrição dos sentidos possíveis por um analista (um observador) que também é agente de interpretação será diferente da descrição do analista que se coloca numa metaposição como super-observador para descrever  “coordenações consensuais de comportamento” em linguagem (que se tornam objeto nesse nível) na prática de interações recorrentes de dois organismos – o que produzirá, usando a terminologia de Maturana, “coordenações consensuais de coordenações consensuais de comportamento” (cf. Maturana, 1999, p. 220). Trata-se de distinções que vão aparecendo na medida do deslocamento do observador-analista.

17. O processo de significação se move entre a paráfrase e a polissemia. A paráfrase corresponde à estabilização, e a polissemia, à disseminação.

18. Sentidos e sujeitos sofrem deriva, produzindo-se, com as várias posições, o efeito metafórico.

Entretanto, não se diz o que provoca a deriva. Não seria isso um processo também biologicamente orientado? E um tal processo não incorporaria, com a linguagem, a consciência?

 

A crítica que por vezes é feita aos estudos pragmáticos e aos estudos de argumentação, no interior do campo da AD, está vinculada à consideração de que o sujeito, pragmaticamente falando, seria um ser consciente tal como se depreende do Cogito cartesiano, e como tal regido por intenções. Vale lembrar, a esse propósito, que M. Bréal (cf. 1992), no clássico Ensaio de semântica (publicado há mais de cem anos), percebe o quanto é difícil que raciocinemos sobre a própria faculdade mental que permite observar e produzir conhecimento a respeito de objetos exteriores. Para ele, a causa primeira da linguagem é a vontade humana, ainda que essa vontade seja algo obscuro. A seguinte especificação é importante: “Entre os atos de uma vontade consciente, refletida, e o puro fenômeno instintivo, há uma distância que deixa lugar para muitos estágios intermediários,...” (1992, p. 19). A que vem essa lembrança, no contexto da presente discussão?

Trata-se da percepção do elemento subjetivo na atividade com (em, pela) linguagem. Estava claro, para Bréal, que alguns empregos da linguagem tiveram prevalência sobre outros: expressar desejo, dar ordens, demonstrar posse sobre pessoas ou coisas (v. 1992, p. 161) – ou seja, manifestar interesses de caráter pragmático. E eu associo essas funções marcadas ao que Bakhtin chama acento apreciativo – sem negar, entretanto, que tais acentos tenham a ver com a vida comunitária – e estejam, mesmo, marcados no corpo físico.

Para articular o que discuti até aqui com a noção de estereótipo, que se associa também a topos, retomarei alguns pressupostos da filosofia da linguagem bakhtiniana relativos a significação e sentido (sentido, em sua obra, aparece como tema).

 

Significação, tema, compreensão

Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin (1979, cap. 7) associa significação, desde o seu fundamento, ao conceito de compreensão. Um efeito de sentido só é possível se pensarmos na enunciação completa e concreta, formando uma unidade temática. Esse tema é individual e não reiterável (é um acontecimento), e se apresenta como tal por estar inserido numa situação histórica concreta que originou a enunciação (incluindo elementos não-verbais). Assim, buscar um tema exige observar um sistema de signos dinâmico e complexo adequando-se às condições de um momento de sua evolução.

Nesse contexto, um estudo semântico implica distinguir tema (sentido) e significação, bem como entender de que modo se associam e formam rede. A significação, para Bakhtin, está no interior do tema, ela é também um atributo da enunciação, e portanto não tem independência: são seus elementos reiteráveis e idênticos a cada retorno das palavras, incluindo suas modalizações. Um tema, para Bakhtin, constitui o estágio superior real da capacidade lingüística de significar. A significação é potencial, ela é o estágio inferior da capacidade de significar; não quer dizer nada em si mesma. Assim, investigar a significação corresponde a investigar a palavra de dicionário. Note-se que a perspectiva, considerando-se o exemplo sobre o dicionário trazido acima, é bem outra. De qualquer forma, pode-se dizer que dicionário é registro interdiscursivo, é memória.

A associação de que se trata aqui só se explica e define quando nos voltamos para a compreensão. Em sentido estrito, compreender exige atitude ativa e implica a potencialidade de uma resposta. Compreensão da enunciação de outrem quer dizer orientação em relação a ela, busca de pistas para dar-lhe sentido; isso pressupõe a réplica. As pistas são preexistentes, o sentido só se dá no acontecimento discursivo.

A significação (por analogia, eu diria também o topos no que ele manifesta de institucionalizado) funciona, então, para os interlocutores, como traço de união, como possibilidade de interação: precisamos, pois, da compreensão ativa e responsiva do outro. Não é nesse outro que está a significação, nem na palavra como tal. Ela é base para a construção do vínculo. Não é absolutamente necessário pressupor que haja, na significação, uma relação termo a termo com uma realidade evocável. Com efeito, como seres de linguagem, só distinguimos a realidade através de distinções em linguagem.                                          

A esses dois tópicos, assim separados e correlacionados, Bakhtin acrescenta o terceiro elemento: o acento apreciativo. Qualquer conteúdo expresso tem acompanhamento de apreciação. O nível mais superficial desse valor é a entoação expressiva, que pode acompanhar poucas palavras ou apenas uma, como acontece em interjeições. Portanto, o tema se define pela significação e pela orientação apreciativa. A própria significação (que é potencialidade) não se forma sem o acento apreciativo, que não é, portanto, marginal na estrutura semântica. Mais: é a esse acento que cabe a transformação nas significações, o que corresponde a deslocamentos resultantes de reavaliação significativa (evolução). Por sua vez, a evolução semântica da língua se liga à evolução do horizonte apreciativo de um grupo social, no qual os valores entram em conflito. À significação só pode acontecer ser absorvida pelo tema, retomada, reinvestida, retornando sob a forma de nova significação, que, como a anterior, estará sempre em equilíbrio precário.

A esse esquema, que poderia ser visualizado como uma figura circular, produzindo e reproduzindo manifestações de sentido (língua-discurso à discurso-língua...) convém acrescentar uma especificação sobre as transformações produzidas por reinvestimentos. Tem-se falado a respeito do reiterável da língua que pode produzir um efeito de polissemia, instaurando uma novidade. Penso que seria relevante considerar a seguinte distinção: um processo circular pode ser recursivo ou repetitivo, dependendo do tipo de associação que é feita com outros processos. Estou utilizando essa distinção segundo os termos de Maturana (1999, p. 219): a recursão se dá quando uma operação se aplica sobre a conseqüência de sua aplicação prévia (cf. os algoritmos da gramática gerativa chomskyana); a repetição corresponde a uma operação que é realizada de novo, sem depender das conseqüências de sua realização prévia. Nesse sentido, presumo que seja mais adequado dizer que os reinvestimentos no processo enunciativo têm uma qualidade mais recursiva que repetitiva, visto que as significações não se mantêm intocadas, e a cada investimento se dá uma atuação sobre formas já transformadas. Assim, seria possível pensar, por simples analogia, o processo parafrástico articulado ao que se dá como repetição, e o polissêmico ao que se dá como recursão.

Configurado esse quadro, resta que nos perguntemos onde se situam os topoi (em sua característica de formas estereotipadas) como elementos lingüísticos (implícitos, presumidos). Eu os colocaria no nível do interdiscurso como algo já dado ou hipoteticamente aceito (ou seja, consensual), formado pela convivência social. Nos aprendizados cotidianos, esse algo é "interiorizado" (ou aprendido) junto com as informações e as argumentações. Os topoi, como premissas de caráter cultural, fariam parte do que se denomina "memória no acontecimento", participantes do interdiscurso. Nós dizemos com o dizer alheio (o que não significa mantê-lo). Tais premissas funcionariam também como máximas ou provérbios, geralmente não explicitados.

 

Natureza dos topoï

Anscombre (1995a) assim define o que chamei de “premissas”:

São princípios gerais, que servem de apoio ao raciocínio, mas não são o raciocínio. Não são jamais assertados no sentido de que o locutor jamais se apresenta como sendo o autor (mesmo que o seja efetivamente), mas eles são utilizados. São sempre apresentados como o objeto de um consenso no seio de uma comunidade mais ou menos vasta (inclusive reduzida a um indivíduo, por exemplo o locutor). Por isso eles podem muito bem ser criados de todo tipo de peças, sendo apresentados como tendo força de lei, como evidentes. (p. 39) [tradução minha]

 

Um exemplo: Para uma melhor justiça social, é preciso redistribuir as riquezas. Esse princípio é moralmente bom, mas não repousa sobre nada de lógico. Resulta, sim, de uma certa ideologia, e nada impediria que fosse substituído por um topos diferente de uma outra posição ideológica. Anscombre contrapõe a esse, por exemplo, um provérbio árabe: Quando o rico é pobre, o pobre tem fome. De que resulta que possam coexistir topoï divergentes numa mesma comunidade? Que, ao lado de Os extremos se atraem sobreviva a idéia de busca da “outra metade da laranja” ou da “alma gêmea”? Que se acredite que Em boca fechada não entra mosca, e também que Falando a gente se entende? É que as sociedades não são homogêneas, e portanto nem as ideologias.

Na primeira versão da teoria dos topoï esses princípios foram tratados como fundamento dos encadeamentos discursivos para produzir argumentação. Num segundo momento, passou-se a discutir a possibilidade da relação direta dos topoï  com o léxico, ou seja, considerar que valores lexicais eram tópicos. Dessa discussão, que faz parte dos estudos mais recentes, quero salientar o reconhecimento de que há outras palavras por trás das palavras (e não imediatamente objetos de mundo) – idéia central da polifonia. Essa hipótese, Anscombre a aproxima daquela que se encontra na teoria dos estereótipos de Putnam: por trás das palavras há enunciados. Isto coincide, em termos gerais, com a proposta de Pêcheux de focalizar, na análise, os “gestos de designação” e não propriamente aquilo que é designado “no mundo”. Farei restrição, aqui, ao segundo propósito dele, que seria focalizar “procedimentos de montagem”, marginalizando as “significações”, tal como já expus. No contexto da teoria dos topoï, aliás, seria contraditório abandonar as significações, entidades de língua.

Atentarei agora para a questão da natureza dos topoï, baseando-me no ensaio de Anscombre La nature des topoï (1995b). Nesse estudo, o autor se pergunta a que tipo de estrutura lingüística poderiam corresponder esses princípios. A representação feita deles, através de uma fórmula baseada em metapredicados (P, Q), é posta em discussão. Anscombre passa a examinar um conjunto de palavras, até chegar aos provérbios e formas sentenciosas em geral (máximas, ditados,... cujo nome genérico é “parêmias”), que ele identifica como enunciados pertencentes a um reservatório lingüístico, prontos para uso (arquivos, interdiscurso?). O primeiro objetivo é exatamente legitimá-los como estereótipos. Compara provérbios com frases genéricas (tais como: Gatos gostam de leite, Chimpanzés são macacos, Castores constroem barragens, Gatos são afetuosos). Tais frases genéricas não são necessariamente provérbios, mas provérbios são frases genéricas, com uma especificação: pertencem a um grupo de frases que Anscombre chama de “tipificadoras a priori”, ou seja, aquelas que apresentam uma propriedade como típica de uma classe, havendo consenso sobre isso. Assim, se provérbios representam topoï, a definição geral de topoï será que eles são frases tipificadoras a priori. Em outras palavras, representam uma relação semântica entre duas palavras. Para castor, por exemplo, reconhecer-se-á um a priori na frase genérica Castores constroem barragens.

Para sintetizar essa perspectiva, recorto as palavras finais de Anscombre (1995b, p. 82-83):

Se se define um estereótipo como uma seqüência aberta de enunciados presa a uma unidade lexical, e que lhe define o sentido [...], a natureza dos topoï aparece sob nova luz. O feixe de topoï que define o sentido de uma palavra é um feixe de frases tipificadoras, e esse feixe define um estereótipo.

 

Associando a essa perspectiva as seguintes assunções de Bakhtin em Estética da criação verbal (cf. 1992), penso estabelecer uma moldura pertinente com referência às relações discutidas.

 

Sentidos, topoï, complexidade

Bakhtin admite que "é difícil descartar a idéia de que a palavra da língua comporta (ou pode comportar) um "tom emocional", um "juízo de valor", uma "aura estilística"..." (op.cit., p. 310) Assim, é fácil acreditar que palavras isoladas estejam carregadas de tom emocional, e conseqüentemente tenham alguma espécie de poder intrínseco. O que acontece é que ao escolhermos as palavras partimos de um projeto enunciativo, em que as escolhas dizem respeito a um uso efetivo nas enunciações de outrem, e não a uma mera extração delas de um arquivo lexicográfico disponível, tal como um dicionário ou uma gramática. Temos então um todo que irradia expressividade para cada uma das palavras de opção, o que, como ação reversa, "inocula nessa palavra a expressividade do todo". O acento apreciativo marca o que é enunciado; uma seqüência lingüística absolutamente neutra é impossível. E só um locutor pode estabelecer uma relação emocional e valorativa utilizando-se da língua.

Isso significa que, numa espécie de supra-estrutura (o interdiscurso), preservam-se, para nosso uso, o tom e a ressonância de enunciados individuais (poderíamos pensar em traços, pegadas) no fluxo discursivo. Em suma, nossas palavras são constitutivamente heterogêneas: elas têm marcas histórico-culturais. Quanto custa admitir, nessas ressonâncias, a existência de topoï ?

Essas considerações trazem mais uma vez à nossa mente a assunção de que por trás das palavras há outras palavras. Com efeito, é essa a perspectiva que Bakhtin nos abre. Mas, como há um movimento circular contínuo, o que se põe como dado na significação é já uma meia-saturação resultante do uso. Por isso, não há como dizer que as fronteiras estão demarcadas; conseqüentemente, não se pode estabelecer senão relativamente o que é da língua e o que é do discurso; o que se dá como significação e o que se dá como sentido; o que é objetivo e o que é subjetivo em seus próprios termos. Por outro lado, torna-se menos difícil reconhecer que o lingüístico e o discursivo são duas faces de uma mesma unidade complexa língua-discurso. Eu diria, como Bakhtin: há sempre ressonâncias.

E aqui refaço a pergunta: onde estão os topoi, fonte de produção enunciativa? Como discursos padronizados (não necessariamente proferidos, mas antes virtuais) que se constituem e eventualmente se transformam ou se desintegram, estariam na língua(-discurso) – ou ainda: no interdiscurso. Constituindo-se como possibilidades relacionais entre palavras, atualizam-se em discurso como premissas implícitas, às vezes explicitadas. Mesmo as palavras – como se viu acima no desenvolvimento da teoria da argumentação – subentendem topoï, porque se preencheram de relações nas seqüências discursivas que constituíram enunciados. Elas já são recortes de seqüências mais vastas onde atuaram.

Tal como o compreendo, o fenômeno corresponde a um movimento constante que extrai (interpreta) e ao mesmo tempo deposita elementos de sentido. Intencionalidade do sujeito (produtor e intérprete) ou intencionalidade do texto, há de fato um contínuo direcionado que produz efeitos em todas as direções. E intencionalidade, em resumo, é entendida aqui como diretividade, e é também sentido. Significação e sentido aparecem como facetas de um mesmo fenômeno, interpenetrando-se no fluxo discursivo.

A interpretação, como a entendo, implica dois movimentos da parte do sujeito locutor: 1) detectar a relação entre ele e os enunciadores colocados em cena (coordenações consensuais de comportamento lingüístico); 2) desbravar um passado (próximo ou distante) e efetuar uma projeção. O encadeamento discursivo implica heterogeneidade e produz heterogeneidade. O dizer se dá em vários planos, utilizando e a iteração (sem o que qualquer intercâmbio seria impossível) e a produção de efeitos novos (possíveis). A iteração (repetição) corresponde, pois, à possibilidade do comunicável, na medida em que apelará para os mananciais de linguagem (onde se encontram também os topoï); a produção, por sua vez, corresponde a uma aposta, em que o acaso também tem o direito de entrar no jogo.

 

Conclusão

As possibilidades de interlocução teórica que avento – e, aqui, enfatizo a importância da reflexão de Pires de Oliveira sobre os últimos trinta anos de estudos semânticos no Brasil (Pires de Oliveira, 1999)[1][1] – se prefiguram em vários trabalhos, tais como os que discutem sobre como encarar a argumentação no discurso, mas de modo geral sobressaem as diferenças, que ajudam a delimitar os campos. Em Os limites do sentido, Guimarães (1995) aborda a argumentação na língua através do conceito de topoï, conforme a teoria exposta por Anscombre e Ducrot. Mas o sujeito, aí, é interpretado pelo autor como tendo um caráter psico-social, capaz de tomar posição em sua enunciação. A direção argumentativa se daria com base nos topoï, convocados e suportados por enunciadores (sabemos que enunciadores correspondem a perspectivas, e não a sujeitos físicos). Assim, na interpretação de Guimarães, o externo à língua – o topos – funciona na enunciação convocado pela língua. E isso levaria a pensar a língua como entidade autônoma em relação à exterioridade. Ele hipotetiza um movimento contrário: o interdiscurso (externo à língua) é que movimentaria a língua, pondo-a em funcionamento, constituindo o sentido da argumentação. Entretanto, as relações complexas (entre palavras) que constituem os topoï , “fontes de discurso” não obrigam a pensar a autonomia da língua. Se a língua é histórica da mesma forma que o discurso, também não se pode dizer que o começo (a origem?) está no interdiscurso. Como sugeri acima, os topoï  se configurariam como língua-discurso, participando de um movimento contínuo, o que corresponde, penso, a como Pêcheux concebe a memória discursiva: “um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos” (1999, p. 56).

Com efeito: saliento essa caracterização articulando-a ao que Ducrot (cf. Moura, 1998) diz sobre os topoï: eles abrem possibilidades de encadeamentos discursivos (através de suas formas tópicas), o que também explica que a argumentação não fornece uma direção única no encadeamento textual: os contra-discursos são sempre possíveis, e  seus fundamentos, portanto, também estão no interdiscurso, na memória.

Apesar de todos os (previsíveis) conflitos entre teorias, há algo que constitui tendência e interessa a todos os campos de saber. É interessante que, após fatiarmos o inteiro incompreensível (as línguas, a linguagem) para adaptá-lo à nossa capacidade de compreensão, estejamos na fase dos deslocamentos de marcos que nos serviram de guia, estudando as "margens" e capacitando-nos, aos poucos, ao ponto de vista do inteiro – ou melhor, da complexidade, ainda que assustadora.

Entretanto, dessa reflexão sobre deslocamentos não se pode concluir simplesmente por uma nova redução: as distinções se mantêm, o que muda é a compreensão delas, que inclui a visão de que não há um "intrínseco" absoluto (um "primeiro"), mas um movimento constante de uma face a outra da linguagem. Para mostrar melhor e a distinção e a indeterminação, eu diria que há a língua-discurso e o discurso-língua; que a significação se estabelece e muda por causa dos efeitos discursivos de sentido.

Penso que esta perspectiva está em concordância com o que Edgar Morin tem chamado “paradigma da complexidade”. O questionamento dos pilares da ciência clássica[2][2] não resulta em mero abandono das categorias reinantes. O pensamento da complexidade, para Morin,

...não é absolutamente um pensamento que expulsa a certeza para colocar a incerteza, que expulsa a separação para colocá-la no lugar da inseparabilidade, que expulsa a lógica para autorizar todas as transgressões.

A caminhada consiste, ao contrário, em fazer um ir e vir incessante entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o inseparável. Do mesmo modo, utilizamos a lógica clássica e os princípios de identidade, de não-contradição, de dedução, de indução, mas conhecemos seus limites, sabemos que em certos casos é preciso transgredi-los.

[...]

É preciso articular os princípios da ordem e da desordem, da separação e da junção, da autonomia e da dependência, que estão em dialógica (complementares, concorrentes e antagônicos), no seio do universo (2000, p. 205).

 

O paradigma da simplificação “impõe disjuntar e reduzir; o paradigma da complexidade ordena juntar tudo e distinguir” (idem, ibidem). A ênfase, na AD, para o  inconsciente e para a ideologia leva a neutralizar o sujeito como marco de ação e de consciência; leva a neutralizar a significação em proveito de efeitos de sentido, que podem reduzir-se a valores (super)estruturais, sobretudo se pensarmos no modo de percepção da dimensão do inconsciente que, em última análise, seria a que define a subjetividade no contexto da teoria. Deslocando-se, por outro lado, do contexto da psicanálise, vê-se a ideologia sobreposta ao inconsciente, o que remete à diluição da chamada “metáfora gramatical” (tal como em Este texto pretende...), estratégia do dizer da cultura científica, para um efeito de literalidade: o interdiscurso produz a argumentação, movimenta marcas da língua que se põem em funcionamento, a posição produz efeitos de sentido, a ideologia interpela o sujeito, a ideologia estrutura os processos de significação...

O sujeito discursivo não realiza apenas atos: ele se constitui em práticas de linguagem. Talvez pudéssemos aceitar ao mesmo tempo os sentidos que aí são possíveis: o sujeito é constituído, sim, mas também constitui-se a si mesmo, eventualmente reconhecendo essa complexidade.

Se o “psicologismo” parece temeridade para uma “teoria não-subjetiva da subjetividade” (que às vezes ameaça transformar-se em “teoria subjetiva da não-subjetividade”), talvez os aportes de uma nova biologia possam tornar menos preocupantes as conseqüências de uma atitude mais englobante:

A autoconsciência é uma operação relacional na linguagem e, como tal, não ocorre no cérebro, e não é um fenômeno neurofisiológico, nem um produto da operação do sistema nervoso, mesmo sendo a operação do sistema nervoso necessária para sua ocorrência. No entanto, em nossa experiência, quando nos distinguimos distinguindo a nós mesmos, a consciência surge como a propriedade ou habilidade do eu, que surge como uma entidade que requer uma localização. É a maneira de operar do sistema nervoso em nós, como um sistema nervoso que linguajeia [sic], e visto que ele se tornou assim em cada um de nós em nossas histórias particulares como seres linguajantes, o que nos permite viver a experiência da autoconsciência e da consciência no isolamento e, como uma conseqüência, experienciar o eu e a consciência localizados em nossa corporalidade (Maturana, 1999, p. 229).

 

Acrescente-se, para finalizar: “Afirmo que a autoconsciência e o viver na consciência não são nossa característica fundamental, mas sim o viver na linguagem, porque é através do viver na linguagem que nos tornamos seres autoconscientes e podemos ter uma consciência do viver” (ibidem, p. 232-233).

Certamente não se trata, aí, de um sujeito origem de si, fora da linguagem, soberano.

 

 

© 2000. Maria Marta Furlanetto

 

Referências bibliográficas:

ACHARD, Pierre. Memória e produção discursiva do sentido. In ACHARD, Pierre et alii. Papel da memória. Trad. e intr. José Horta Nunes. Campinas : Pontes, 1999. p. 11-21.

ANSCOMBRE, Jean-Claude. De l’argumentation aux topoï. In: _____ (dir.). Théorie des topoï. Paris : Éditions Kimé, 1995a. p. 11-47.

_____. La nature des topoï. In: ANSCOMBRE, Jean-Claude (dir.). Théorie des topoï. Paris : Éditions Kimé, 1995b. p. 49-84.

BAKHTIN, M. (Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1979.

_____ . Estética da criação verbal. Trad. do fr. Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira; rev. Maria Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FURLANETTO, Maria Marta. Topoï: entre a língua e o discurso? Disponível no cd-rom do II Congresso Nacional da ABRALIN. Florianópolis, 2000.

GUIMARÃES, E. Textualidade e argumentação. In: _____ Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes, 1995, p. 77-82.

MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Org. Cristina Magro, Miriam Graciano e Nelson Vaz. Belo Horizonte : Editora da UFMG, 1999.

MORIN, Edgar. O pensamento complexo, um pensamento que pensa. In: MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Trad. Nurimar Maria Falci. São Paulo : Peirópolis, 2000.

MOURA, H. M. de M. Semântica e argumentação: diálogo com Oswald Ducrot. DELTA. São Paulo, v. 14, n. 1, 1998, p. 169-183.

PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et alii. Papel da memória.  Trad. e intr. José Horta Nunes. Campinas : Pontes, 1999. p. 49-57.

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. Uma história de delimitações teóricas: trinta anos de semântica no Brasil. DELTA. São Paulo, v. 15, nº especial, 1999, p. 291-321.

SILVA, Mariza Vieira da. O dicionário e o processo de identificação do sujeito-analfabeto. In: GUIMARÃES, Eduardo; ORLANDI, Eni P. (orgs.). Língua e cidadania: o português no Brasil. Campinas : Pontes, 1996. p. 151-163.



[3][1] “Nossa rápida reconstrução da constituição de modelos na semântica nos dá a dica para entendermos a diversidade sem precisarmos afastá-la na homogeneidade do projeto final ou torná-la insuperável no isolamento de cada teoria: o conhecimento em si mesmo fragmentado e parcial se constrói na conversa propiciada pela diversidade de abordagens. [...] A melhor metáfora não é, portanto, a do projeto único, nem a dos caminhos isolados, mas de uma conversa na diferença; quanto mais conversamos, mais os conceitos circulam, mais revisões são necessárias, mais conhecimento comum é gerado” (p. 317).

[4][2] Ordem: existente por trás da desordem, que seria apenas aparente; separabilidade:  decomposição, fragmentação; disjunção entre observador e objeto observado; razão absoluta: repousando sobre os princípios da indução, da dedução e da identidade.