SEMÂNTICA,
ESTEREÓTIPO E MEMÓRIA DISCURSIVA
Maria Marta Furlanetto – Universidade do Sul de
Santa Catarina (UNISUL)
Fora da linguagem nada existe. [...] isto é uma condição cognitiva
constitutiva do humano, não uma limitação circunstancial sua.
(Humberto Maturana, Ontologia da realidade)
Resumo: Proponho, a
partir de observações feitas sobre a noção de “memória discursiva” no contexto
da Análise de Discurso, articular a noção de estereótipo aventada (mas não
focalizada) por Pêcheux em “Papel da memória” (1999) e a noção de topos em
Ducrot e Anscombre, no contexto da Semântica da Argumentação, tendo em vista
sua implicação na produção de
sentido.
Introdução
Pêcheux (1999) afirma que “a memória discursiva seria aquilo que, face a
um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem restabelecer os
‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos
citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita:
a condição do legível em relação ao próprio legível” (p. 52).
A pergunta crucial para quem estuda o discurso pode ser assim formulada:
onde estão esses ‘implícitos’? A proposta de Pierre Achard (1999) é a seguinte:
tais implícitos nunca seriam encontrados de forma explícita, como formas reais
e sedimentadas, visto que, sob a repetição que sofrem, ocorre a formação de um
efeito de série que permitiria uma “regularização”, que funcionaria como um
dispositivo de recolhimento de implícitos, “sob a forma de remissões, de
retomadas e de efeitos de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da
construção dos estereótipos)” (Pêcheux, 1999, p. 52).
Por outro lado – e considero aqui a dinâmica da passagem
língua-discurso-língua, tal como a apresento em Topoï: entre a língua e o
discurso? (Furlanetto, 2000) –, Achard também observa que o que se
constitui como regular pode ruir sob o peso de novos acontecimentos,
constituindo-se uma nova série que pode dissimular ou apagar a antiga. Então o
acontecimento consegue deslocar e desregular “os implícitos associados ao
sistema da regularização anterior” (Pêcheux, 1999, p. 52). Tais implícitos
podem configurar-se como enunciados e mesmo como itens lexicais (que, na teoria
dos topoï, também possuem sua “memória” em termos de estereótipos).
Itens lexicais e enunciados completos, ainda que repetidos (lembremos
Foucault), podem acabar perdendo sua identidade, mesmo conservando o material:
é quando um jogo semântico se observa, o da metáfora. Ainda nesse caso teremos
aí um rompimento da memória como dispositivo guardador de implícitos – o que
significa que, necessária a memória como dispositivo de contextos de
legibilidade de cada acontecimento discursivo, ela tem duas faces: a da
tendência à estabilidade e a da tendência ao desarranjo e à instabilidade
(segundo a lei já enunciada por Saussure, aliás: mutabilidade e imutabilidade
do signo). Isso admitido, o que a análise busca, além do que “permanece” como
memória (e como se dá essa memória?), são os pontos de fissão, de refundição,
de esquecimento, de perda, de renovação... Isso abre também para uma
interpretação mais nuançada, porque algo de novo está constantemente se
criando, ainda que se faça com material antigo e aparentemente arruinado.
O que Pêcheux sugere tem a ver, na minha interpretação, com o
deslocamento que se pode observar na teoria dos topoï, na abordagem da
semântica da argumentação: Pêcheux acredita que, para estudar o sentido, não
basta ficar no nível da proposição e estudar sua relação com os designata
(o mundo real). Com efeito: sua proposta é que olhemos quais são os
procedimentos de montagem do discurso e que imagem eles constroem do mundo.
Nosso olhar para o mundo não se dá diretamente: nós o percebemos conforme os
discursos que falam dele; vemos um mundo rotulado de alguma forma, pensado de
certa maneira – ou seja, interpretado. A relação proposição/mundo constituiria significações,
a busca de sentido através das construções discursivas seria agora o
foco da análise. Então, significações estariam no nível semântico estrito.
Entretanto, está pressuposto aí que o que se abandona é uma “imagem legível na
transparência” das palavras, enquanto que o discurso que constitui essa imagem
deixa-a “opaca e muda”, por ter-se perdido na memória um trajeto de leitura.
Nessa montagem, se perdidos estão certos trajetos, as palavras e as
construções sintáticas, impregnadas de ressonâncias, estão disponíveis e com
uso regulado. Um aspecto desse mundo linguageiro são os implícitos que chamamos
de topoï, que associo aqui ao que, por hipótese, Pêcheux chamou de
“estereótipos”.
A teoria dos topoi, no
âmbito da Semântica Argumentativa (v. mais adiante), está sendo redefinida.
Ducrot (cf. Moura, 1998) tende, hoje, a ver nos topoï "conjuntos sem limites
precisos" de relações complexas (entre palavras) que abrem possibilidades
de encadeamentos discursivos, afastando a possibilidade de interpretá-los seja
como crenças, seja como inferências; "fontes de discurso" é ainda uma
expressão que ele usa. Fiz uma opção por "premissas", mas sem
compromisso com o raciocínio dialético; pelo contrário, essa ótica se aproxima
da concepção que Ducrot exprime atualmente. Por outro lado, certamente não se
trata de estabelecer vínculos dedutivos sobre fatos do mundo.
A “transparência” da significação e a opacidade do sentido
A imagem de “legibilidade transparente” com referência à significação
aparece, por exemplo, em um estudo relativo ao dicionário: haveria “um lugar em
que as coisas são o que são e porque são, livrando-nos da deriva a que nos
submetem as palavras: o dicionário” (Silva, 1996, p. 151). A autora
assim o caracteriza:
Lá, o bom é distinto do ruim; as palavras são transparentes; o sentido é
correto, preciso e objetivo; não há o que interpretar, nem do que duvidar. As
palavras referem-se, sempre, a uma única e mesma coisa, todas as vezes que lá
vamos buscar informações e tirar dúvidas: um mundo construído pela ciência da
linguagem com a própria linguagem (ibidem, p. 151).
Apesar desse dizer – que é crítico, no contexto do trabalho –, a autora
reconhece também que o dicionário é um instrumento de trabalho lingüístico
necessário a qualquer cidadão. Entretanto, desliza sob a crítica uma crença por
esse dizer: de que o dicionário aparece para todos como lugar da completude, da
certeza e da exaustividade, pressupondo relação termo a termo entre a linguagem
e o mundo, presumindo como natural a relação palavra/coisa. Mas quem diz isso,
o lexicógrafo, ou aquele que interpreta o que se inscreve no dicionário? No
dicionário não se conta, também, uma história de mudanças, de deslizes, de recobrimentos
e de apagamentos? Consulte-se, por exemplo, as entradas do verbete massa
... Eu diria, antes, que o dicionário é um lugar exemplar para mostrar a
deriva, e não para livrar-nos dela.
Voltemos à proposta de Pêcheux: marginalizar as significações, procurar
sentidos em construção na opacidade do discurso. Fazer isto não deveria
implicar que se re-significasse significação? Esta pergunta não diz
respeito simplesmente a uma rejeição ao abandono do “semântico”, mas está sendo
pensada no contexto teórico-metodológico da AD – que “traduz” a langue
em seus termos, que traduz ideologia, que traduz discurso, e
ainda inconsciente. Por que não traduzir significação?
Um dos postulados da teoria dos topoï é que as palavras remetem
às palavras, e assim se vão construindo imagens do mundo (tal como acontece com
as imagens icônicas, as da pintura, por exemplo). E aí, insiste Pêcheux, não
vamos achar transparência, mas opacidade e um certo mutismo.
Eu diria, contudo, que as “significações”,
assim marginalizadas (como se marginaliza a noção de “sentido literal”), também
constituem, por sua regularização em termos temporais e situacionais, parte da
memória discursiva; elas não são eternas, inamovíveis, elas se esburacam, se
rompem e mudam, por “fermentação”. Mas são necessárias como fundação; como
memória, são condição de legibilidade.
Para tentar mostrar que esse tratamento da significação (“descentrá-la”,
de certa forma) pode produzir uma fissura no aparato da AD (embora se saiba que
todo “corpo” está sujeito a fissuras, a contradições), sintetizo a seguir
passagens de textos sobre o discurso em que o foco é o sentido. Por
outro lado, tento articular as questões implicadas na compreensão de ‘memória
discursiva’.
Memória, significação, sentido
Memória discursiva se define, de modo genérico, como “interdiscurso”: um
saber discursivo que possibilita que nossas palavras façam sentido. Algo fala
antes, em outro lugar, independentemente. Esse saber corresponde a palavras já
ditas e esquecidas, mas que continuam nos afetando em sua qualidade de
“esquecimento”. Tratar-se-ia, para mim, dos implícitos em sua regularização
como “estereótipos”. Só que esse esquecimento, já diziam Pêcheux e
Authier-Revuz, é sujeito a equívoco, de onde a possibilidade de que o novo
irrompa. Observo, entretanto, que esse modo de exposição permite interpretar
que o novo irrompe quase que por acaso, independentemente do sujeito, já que
este se encontra amarrado ao esquecimento... Por isso penso que, alternando a
procura de Lacan, com referência a que o Outro irrompa na cadeia significante,
deve interessar-nos também como emerge o novo numa cadeia de paráfrases, por
resistência àquilo que vem à tona num jorro predominantemente inconsciente, por
efeito também ideológico – já que ideologia se associa a inconsciente.
O que se enuncia a seguir subsume as concepções fundamentais do domínio:
1. Os sentidos são produzidos por relações parafrásticas e
disponibilizados para discursos futuros. Assim, um discurso é sustentado por
outros e aponta para o futuro.
2. Os sentidos são escolhidos e presumidos por antecipação de
interpretação. Há um sujeito capaz de deslocar-se (de tornar-se, portanto,
observador) – o que torna possível dizer de uma forma ou de outra, conforme o
efeito que pensa que se produzirá no interlocutor. Tal mecanismo regula a
argumentação.
3. Os sentidos são produzidos a partir de posições, presumindo-se a
memória discursiva e um contexto sócio-histórico. Isto significa que um sujeito
passa de uma situação empírica para uma posição discursiva.
4. Imagens constituem as diferentes posições – que determinam sentidos
na relação discursiva.
5. Os sentidos não estão nas palavras; estão antes delas e depois delas
– palavras remetem a palavras. Os sentidos não dependem de intenções, mas de
relações com uma formação discursiva e uma memória.
6. Não há sentido em si; o sentido nasce de posições de caráter
ideológico; as palavras mudam de sentido conforme as posições em que são
enunciadas.
7. Sentidos são determinados ideologicamente, do exterior, e todo
sentido é ideológico.
8. Na língua não há propriedades que determinem sentidos; sentidos se
formam a partir do exterior, por relações constituídas nas e pelas formações
discursivas.
Mas se não estão inerentemente na língua, por que estariam
fundamentalmente no exterior?
9. Sentidos só aparecem por confronto de significantes, e não há
sentidos próprios, literais. Pêcheux dirá que o sentido surge porque uma
palavra, uma expressão, uma proposição aparece por outra palavra, outra
expressão, outra proposição.
Retomemos a idéia de “metáfora”, como uma forma de romper com a
regularidade que condiciona o aparecimento de estereótipos (conforme diz
Pêcheux, com base em Achard). Aqui, a metáfora não seria tomada como figura de
linguagem. Prefere-se partir de Lacan e tomá-la como “uma palavra por outra” –
em outras palavras, transferência. Mas transferência de quê?
10. As “mesmas” palavras “significam” diferentemente, se as formações
discursivas forem diferentes.
Vou apresentar um exemplo bem recente: na revista Istoé n. 1615, de
13/09/2000, há uma reportagem sobre organizações de extrema direita que se
identificam com o nazismo da Alemanha do período da II Guerra Mundial. Trata-se
dos herdeiros de Hitler que, em sua propaganda neonazista, formam uma corrente
“cultural, política, social e economicamente” oposta ao que se chama hoje a
Nova Ordem Mundial. Eles protestam contra a denominação usada para eles –
neonazistas ou neofascistas –, autoclamando-se “nacional-socialistas”. A
orientação política e econômica desses grupos é considerada por eles como a
única alternativa contra o socialismo e o capitalismo. Eles se apegam, contudo,
a duas categorias cujo extremismo já produziu desastres na face da Terra: o
nacionalismo e o racismo exacerbados.
Como explicar essa recusa? Ora, embora nenhuma palavra tenha,
inerentemente, um sentido próprio, na circulação o uso estabilizou nas
palavras certos sentidos e não outros. Bakhtin, aliás, já salientara isso (v. Estética
da criação verbal (1992). Se neonazista poderia ser admitida pelos
que se proclamam nacional-socialistas, mas não o é, isso não adviria do
tipo de interação estabelecida entre os grupos oponentes? Também se muda
a palavra (ou melhor, o significante), em função das imagens formadas em
formações ideológicas distintas.
De tudo isso, enfim, conclui-se que o trabalho do analista é remeter o
dizer que estuda (ou o dito?) a uma formação discursiva (preexistente?) para
compreender o sentido do que ali está dito. Para isso, deve observar as
condições de produção e o funcionamento da memória discursiva correspondente.
Mas onde estão esses dispositivos, a considerar, primeiramente, que uma FD não
tem limites precisos, não é um bloco homogêneo, mas se reconfigura
incessantemente?
11. Não há sentido sem interpretação. Interpreta-se ideologicamente.
Comparando essa última passagem com as que se encontram acima,
notar-se-á que naquelas é assumido que o sentido nasce nas formações
discursivas, e não a partir do intérprete. Como se daria
essa relação complexa com pelo menos duas vertentes?
12. Interpreta-se ideologicamente, mas com a ilusão de que o sentido já
está nas palavras. Assim, interpretar é negar uma interpretação (grau zero da
interpretação).
De qualquer forma, não se nega que o sentido não esteja “lá”. Essa
pretensa evidência traz com ela um fato: sentidos foram construídos, e esse
resultado é, usando a mesma perspectiva, trabalho da ideologia... Creio que o
óbice aqui é, como tenho procurado apontar, o não tratamento da questão do
“sentido” em dois níveis: da significação e do sentido
propriamente dito. Com esse desdobramento, ficaria fácil admitir que
significações estão depositadas na língua por efeito do funcionamento da
ideologia; e que as interpretações hic et nunc é que produzem sentido...
abrindo-se a possibilidade para a polissemia.
13. O sentido aparece como evidência, ou seja, como remissão a uma
coisa, mas é produzido a partir de formações discursivas, que têm no
interdiscurso (a memória discursiva) sua fonte.
Pode-se perguntar, novamente, se é a FD que produz o sentido ou o
intérprete... E se são os dois, como explicitar metodologicamente essa relação?
14. Para haver sentido a língua deve inscrever-se na história. Assim
inscrita ela é sujeita a falhas, ao equívoco.
Certamente a língua está desde sempre inscrita
em história. Nem a língua em sua sistematicidade, como se vê, está sendo negada
aqui. Eu proporia um deslocamento: é por estar inscrita na história que a
língua permite a formação de sentidos. E se é passível de jogo é porque se
trabalha com ela.
15. A interpretação se faz com determinações de memória: arquivo e
interdiscurso. Assim, não é livre, e é desigualmente distribuída na formação
social. A memória se dá com dois aspectos: memória institucionalizada (o
arquivo) e memória constitutiva (o interdiscurso). Dada essa divisão e a
atuação conjunta, os sentidos se estabilizam ou se deslocam.
É preciso não esquecer que a interpretação (em suas determinações, que
seja) tem como suporte um sujeito indivíduo, que interpreta também de uma
posição (que pode ser bem diferente daquela do dito que é interpretado), e
então o embate é bem mais complicado, porque este se ligaria a um arquivo e ao
interdiscurso correspondente, devendo-se ver, nesse caso, qual o funcionamento
(se não for zero) do arquivo, do interdiscurso e da FD a partir do qual se
produziu o que foi dito ou escrito. O conflito maior está aí: como relacionar
sentido a partir de uma FD, um arquivo, um interdiscurso, e interpretação (sem
a qual, diz-se, não se produz sentido), que se dá também com vínculo a um
arquivo, a um interdiscurso e a uma FD? Vamos achar o “bom” sentido? Não, mas
vamos encontrar certamente os confrontos. É isso que se verifica no exemplo que
apontei no item (10) acima.
16. Há sentidos diferentes para diferentes interlocutores; o dizer tem
história.
Se se pode estudar sentidos a partir de FDs, de arquivos e de
interdiscursos, por que não se pode responder o que leva o sujeito (outra
posição) intérprete a fazer interpretações eventualmente divergentes (se
comparadas também com o que foi “lido” e interpretado)? Essas duas faces podem
ser mais bem focalizadas em suas relações, e constituem um pivô de ambigüidades
teóricas para o analista – ou seja: afinal, como aparecem os sentidos no
cruzamento de tantas relações de relações? A descrição dos sentidos possíveis
por um analista (um observador) que também é agente de interpretação será
diferente da descrição do analista que se coloca numa metaposição como
super-observador para descrever
“coordenações consensuais de comportamento” em linguagem (que se tornam
objeto nesse nível) na prática de interações recorrentes de dois organismos – o
que produzirá, usando a terminologia de Maturana, “coordenações consensuais de
coordenações consensuais de comportamento” (cf. Maturana, 1999, p. 220).
Trata-se de distinções que vão aparecendo na medida do deslocamento do
observador-analista.
17. O processo de significação se move entre a paráfrase e a polissemia.
A paráfrase corresponde à estabilização, e a polissemia, à disseminação.
18. Sentidos e sujeitos sofrem deriva, produzindo-se, com as várias
posições, o efeito metafórico.
Entretanto, não se diz o que provoca a deriva. Não seria isso um
processo também biologicamente orientado? E um tal processo não incorporaria,
com a linguagem, a consciência?
A crítica que por vezes é feita aos estudos pragmáticos e aos estudos de
argumentação, no interior do campo da AD, está vinculada à consideração de que
o sujeito, pragmaticamente falando, seria um ser consciente tal como se depreende
do Cogito cartesiano, e como tal regido por intenções. Vale lembrar, a
esse propósito, que M. Bréal (cf. 1992), no clássico Ensaio de semântica
(publicado há mais de cem anos), percebe o quanto é difícil que raciocinemos
sobre a própria faculdade mental que permite observar e produzir conhecimento a
respeito de objetos exteriores. Para ele, a causa primeira da linguagem é a vontade
humana, ainda que essa vontade seja algo obscuro. A seguinte especificação
é importante: “Entre os atos de uma vontade consciente, refletida, e o puro
fenômeno instintivo, há uma distância que deixa lugar para muitos estágios
intermediários,...” (1992, p. 19). A que vem essa lembrança, no contexto da
presente discussão?
Trata-se da percepção do elemento subjetivo na atividade com (em, pela)
linguagem. Estava claro, para Bréal, que alguns empregos da linguagem tiveram
prevalência sobre outros: expressar desejo, dar ordens, demonstrar posse sobre
pessoas ou coisas (v. 1992, p. 161) – ou seja, manifestar interesses de caráter
pragmático. E eu associo essas funções marcadas ao que Bakhtin chama acento
apreciativo – sem negar, entretanto, que tais acentos tenham a ver com a
vida comunitária – e estejam, mesmo, marcados no corpo físico.
Para articular o que discuti até aqui com a noção
de estereótipo, que se associa também a topos, retomarei alguns
pressupostos da filosofia da linguagem bakhtiniana relativos a significação e
sentido (sentido, em sua obra, aparece como tema).
Significação, tema, compreensão
Em Marxismo e filosofia da linguagem,
Bakhtin (1979, cap. 7) associa significação, desde o seu fundamento, ao
conceito de compreensão. Um efeito de sentido só é possível se
pensarmos na enunciação completa e concreta, formando uma unidade temática.
Esse tema é individual e não reiterável (é um acontecimento), e se apresenta
como tal por estar inserido numa situação histórica concreta que originou a
enunciação (incluindo elementos não-verbais). Assim, buscar um tema exige
observar um sistema de signos dinâmico e complexo adequando-se às
condições de um momento de sua evolução.
Nesse contexto, um estudo semântico implica distinguir tema (sentido) e significação,
bem como entender de que modo se associam e formam rede. A significação, para
Bakhtin, está no interior do tema, ela é também um atributo da
enunciação, e portanto não tem independência: são seus elementos
reiteráveis e idênticos a cada retorno das palavras, incluindo suas
modalizações. Um tema, para Bakhtin, constitui o estágio superior real da
capacidade lingüística de significar. A significação é potencial,
ela é o estágio inferior da capacidade de significar; não quer dizer
nada em si mesma. Assim, investigar a significação corresponde a investigar a
palavra de dicionário. Note-se que a perspectiva, considerando-se o exemplo
sobre o dicionário trazido acima, é bem outra. De qualquer forma, pode-se dizer
que dicionário é registro interdiscursivo, é memória.
A associação de que se trata aqui só se explica e define quando nos
voltamos para a compreensão. Em sentido estrito, compreender exige
atitude ativa e implica a potencialidade de uma resposta. Compreensão da
enunciação de outrem quer dizer orientação em relação a ela, busca de pistas
para dar-lhe sentido; isso pressupõe a réplica. As pistas são preexistentes, o
sentido só se dá no acontecimento discursivo.
A significação (por analogia, eu diria também o topos no que ele
manifesta de institucionalizado) funciona, então, para os interlocutores, como
traço de união, como possibilidade de interação: precisamos, pois, da
compreensão ativa e responsiva do outro. Não é nesse outro que está a
significação, nem na palavra como tal. Ela é base para a construção do vínculo.
Não é absolutamente necessário pressupor que haja, na significação, uma relação
termo a termo com uma realidade evocável. Com efeito, como seres de linguagem,
só distinguimos a realidade através de distinções em linguagem.
A esses dois tópicos, assim separados e correlacionados, Bakhtin
acrescenta o terceiro elemento: o acento apreciativo. Qualquer conteúdo
expresso tem acompanhamento de apreciação. O nível mais superficial desse valor
é a entoação expressiva, que pode acompanhar poucas palavras ou apenas
uma, como acontece em interjeições. Portanto, o tema se define pela
significação e pela orientação apreciativa. A própria significação (que é
potencialidade) não se forma sem o acento apreciativo, que não é, portanto,
marginal na estrutura semântica. Mais: é a esse acento que cabe a transformação
nas significações, o que corresponde a deslocamentos resultantes de reavaliação
significativa (evolução). Por sua vez, a evolução semântica da língua se liga à
evolução do horizonte apreciativo de um grupo social, no qual os valores entram
em conflito. À significação só pode acontecer ser absorvida pelo tema,
retomada, reinvestida, retornando sob a forma de nova significação, que, como a
anterior, estará sempre em equilíbrio precário.
A esse esquema, que poderia ser visualizado como uma figura circular,
produzindo e reproduzindo manifestações de sentido (língua-discurso à discurso-língua...) convém acrescentar uma
especificação sobre as transformações produzidas por reinvestimentos. Tem-se
falado a respeito do reiterável da língua que pode produzir um efeito de
polissemia, instaurando uma novidade. Penso que seria relevante considerar a
seguinte distinção: um processo circular pode ser recursivo ou repetitivo,
dependendo do tipo de associação que é feita com outros processos. Estou
utilizando essa distinção segundo os termos de Maturana (1999, p. 219): a
recursão se dá quando uma operação se aplica sobre a conseqüência de sua
aplicação prévia (cf. os algoritmos da gramática gerativa chomskyana); a
repetição corresponde a uma operação que é realizada de novo, sem depender das
conseqüências de sua realização prévia. Nesse sentido, presumo que seja mais
adequado dizer que os reinvestimentos no processo enunciativo têm uma qualidade
mais recursiva que repetitiva, visto que as significações não se mantêm
intocadas, e a cada investimento se dá uma atuação sobre formas já
transformadas. Assim, seria possível pensar, por simples analogia, o processo
parafrástico articulado ao que se dá como repetição, e o polissêmico ao que se
dá como recursão.
Configurado esse quadro, resta que nos perguntemos onde se situam os topoi
(em sua característica de formas
estereotipadas) como elementos lingüísticos (implícitos, presumidos).
Eu os colocaria no nível do interdiscurso como algo já dado ou
hipoteticamente aceito (ou seja, consensual), formado pela convivência social.
Nos aprendizados cotidianos, esse algo é "interiorizado" (ou
aprendido) junto com as informações e as argumentações. Os topoi, como
premissas de caráter cultural, fariam parte do que se denomina "memória no
acontecimento", participantes do interdiscurso. Nós dizemos com o dizer
alheio (o que não significa
mantê-lo). Tais premissas funcionariam também como máximas ou
provérbios, geralmente não explicitados.
Natureza dos topoï
Anscombre (1995a) assim define o que chamei
de “premissas”:
São princípios gerais, que servem de apoio ao
raciocínio, mas não são o raciocínio. Não são jamais assertados no sentido de
que o locutor jamais se apresenta como sendo o autor (mesmo que o seja
efetivamente), mas eles são utilizados. São sempre apresentados como o objeto
de um consenso no seio de uma comunidade mais ou menos vasta (inclusive
reduzida a um indivíduo, por exemplo o locutor). Por isso eles podem muito bem
ser criados de todo tipo de peças, sendo apresentados como tendo força de lei,
como evidentes. (p. 39) [tradução minha]
Um exemplo: Para uma melhor justiça
social, é preciso redistribuir as riquezas. Esse princípio é moralmente
bom, mas não repousa sobre nada de lógico. Resulta, sim, de uma certa
ideologia, e nada impediria que fosse substituído por um topos diferente
de uma outra posição ideológica. Anscombre contrapõe a esse, por exemplo, um
provérbio árabe: Quando o rico é pobre, o pobre tem fome. De que resulta
que possam coexistir topoï divergentes numa mesma comunidade? Que, ao
lado de Os extremos se atraem sobreviva a idéia de busca da “outra
metade da laranja” ou da “alma gêmea”? Que se acredite que Em boca fechada
não entra mosca, e também que Falando a gente se entende? É que as
sociedades não são homogêneas, e portanto nem as ideologias.
Na primeira versão da teoria dos topoï
esses princípios foram tratados como fundamento dos encadeamentos discursivos
para produzir argumentação. Num segundo momento, passou-se a discutir a
possibilidade da relação direta dos topoï com o léxico, ou seja, considerar que valores lexicais eram
tópicos. Dessa discussão, que faz parte dos estudos mais recentes, quero
salientar o reconhecimento de que há outras palavras por trás das palavras (e
não imediatamente objetos de mundo) – idéia central da polifonia. Essa
hipótese, Anscombre a aproxima daquela que se encontra na teoria dos
estereótipos de Putnam: por trás das palavras há enunciados. Isto coincide,
em termos gerais, com a proposta de Pêcheux de focalizar, na análise, os
“gestos de designação” e não propriamente aquilo que é designado “no mundo”.
Farei restrição, aqui, ao segundo propósito dele, que seria focalizar
“procedimentos de montagem”, marginalizando as “significações”, tal como já
expus. No contexto da teoria dos topoï, aliás, seria contraditório
abandonar as significações, entidades de língua.
Atentarei agora para a questão da natureza
dos topoï, baseando-me no ensaio de Anscombre La nature des topoï (1995b).
Nesse estudo, o autor se pergunta a que tipo de estrutura lingüística poderiam
corresponder esses princípios. A representação feita deles, através de uma
fórmula baseada em metapredicados (P, Q), é posta em discussão. Anscombre passa
a examinar um conjunto de palavras, até chegar aos provérbios e formas
sentenciosas em geral (máximas, ditados,... cujo nome genérico é “parêmias”),
que ele identifica como enunciados pertencentes a um reservatório lingüístico,
prontos para uso (arquivos, interdiscurso?). O primeiro objetivo é exatamente
legitimá-los como estereótipos. Compara provérbios com frases genéricas (tais
como: Gatos gostam de leite, Chimpanzés são macacos, Castores constroem
barragens, Gatos são afetuosos). Tais frases genéricas não são
necessariamente provérbios, mas provérbios são frases genéricas, com uma
especificação: pertencem a um grupo de frases que Anscombre chama de
“tipificadoras a priori”, ou seja, aquelas que apresentam uma propriedade como
típica de uma classe, havendo consenso sobre isso. Assim, se provérbios
representam topoï, a definição geral de topoï será que eles são
frases tipificadoras a priori. Em outras palavras, representam uma relação
semântica entre duas palavras. Para castor, por exemplo, reconhecer-se-á
um a priori na frase genérica Castores constroem barragens.
Para sintetizar essa perspectiva, recorto as
palavras finais de Anscombre (1995b, p. 82-83):
Se se define um estereótipo como uma seqüência
aberta de enunciados presa a uma unidade lexical, e que lhe define o sentido
[...], a natureza dos topoï aparece sob nova luz. O feixe de topoï que define o
sentido de uma palavra é um feixe de frases tipificadoras, e esse feixe define
um estereótipo.
Associando a essa perspectiva as seguintes
assunções de Bakhtin em Estética da criação verbal (cf. 1992), penso
estabelecer uma moldura pertinente com referência às relações discutidas.
Sentidos, topoï, complexidade
Bakhtin admite que "é difícil descartar a idéia de que a palavra da
língua comporta (ou pode comportar) um "tom emocional", um
"juízo de valor", uma "aura estilística"..." (op.cit.,
p. 310) Assim, é fácil acreditar que palavras isoladas estejam carregadas de
tom emocional, e conseqüentemente tenham alguma espécie de poder intrínseco. O
que acontece é que ao escolhermos as palavras partimos de um projeto
enunciativo, em que as escolhas dizem respeito a um uso efetivo nas enunciações
de outrem, e não a uma mera extração delas de um arquivo lexicográfico
disponível, tal como um dicionário ou uma gramática. Temos então um todo que
irradia expressividade para cada uma das palavras de opção, o que, como ação
reversa, "inocula nessa palavra a expressividade do todo". O acento
apreciativo marca o que é enunciado; uma seqüência lingüística absolutamente
neutra é impossível. E só um locutor pode estabelecer uma relação emocional e
valorativa utilizando-se da língua.
Isso significa que, numa espécie de supra-estrutura (o
interdiscurso), preservam-se, para nosso uso, o tom e a ressonância de
enunciados individuais (poderíamos pensar em traços, pegadas) no fluxo
discursivo. Em suma, nossas palavras são constitutivamente heterogêneas: elas
têm marcas histórico-culturais. Quanto custa admitir, nessas ressonâncias, a
existência de topoï ?
Essas considerações trazem mais uma vez à nossa mente a assunção de que por
trás das palavras há outras palavras. Com efeito, é essa a perspectiva que
Bakhtin nos abre. Mas, como há um movimento circular contínuo, o que se põe
como dado na significação é já uma meia-saturação resultante do uso. Por
isso, não há como dizer que as fronteiras estão demarcadas; conseqüentemente,
não se pode estabelecer senão relativamente o que é da língua e o que é do
discurso; o que se dá como significação e o que se dá como sentido; o que é
objetivo e o que é subjetivo em seus próprios termos. Por outro lado, torna-se
menos difícil reconhecer que o lingüístico e o discursivo são duas faces de uma
mesma unidade complexa língua-discurso. Eu diria, como Bakhtin: há sempre ressonâncias.
E aqui refaço a pergunta: onde estão os topoi, fonte de produção enunciativa? Como
discursos padronizados (não necessariamente proferidos, mas antes virtuais) que
se constituem e eventualmente se transformam ou se desintegram, estariam na
língua(-discurso) – ou ainda: no interdiscurso. Constituindo-se como
possibilidades relacionais entre palavras, atualizam-se em discurso como
premissas implícitas, às vezes explicitadas. Mesmo as palavras – como se viu
acima no desenvolvimento da teoria da argumentação – subentendem topoï,
porque se preencheram de relações nas seqüências discursivas que constituíram
enunciados. Elas já são recortes de seqüências mais vastas onde atuaram.
Tal como o compreendo, o fenômeno corresponde a um movimento constante
que extrai (interpreta) e ao mesmo tempo deposita elementos de sentido.
Intencionalidade do sujeito (produtor e intérprete) ou intencionalidade do
texto, há de fato um contínuo direcionado que produz efeitos em todas as
direções. E intencionalidade, em resumo, é entendida aqui como diretividade, e
é também sentido. Significação e sentido aparecem como facetas de um mesmo
fenômeno, interpenetrando-se no fluxo discursivo.
A interpretação, como a entendo, implica dois movimentos da parte do
sujeito locutor: 1) detectar a relação entre ele e os enunciadores colocados em
cena (coordenações consensuais de comportamento lingüístico); 2) desbravar um
passado (próximo ou distante) e efetuar uma projeção. O encadeamento discursivo
implica heterogeneidade e produz heterogeneidade. O dizer se dá em vários
planos, utilizando e a iteração (sem o que qualquer intercâmbio seria
impossível) e a produção de efeitos novos (possíveis). A iteração
(repetição) corresponde, pois, à possibilidade do comunicável, na medida em que
apelará para os mananciais de linguagem (onde se encontram também os topoï);
a produção, por sua vez, corresponde a uma aposta, em que o acaso também tem o
direito de entrar no jogo.
Conclusão
As possibilidades de interlocução teórica que avento – e, aqui, enfatizo
a importância da reflexão de Pires de Oliveira sobre os últimos trinta anos de
estudos semânticos no Brasil (Pires de Oliveira, 1999)[1][1] – se prefiguram em vários trabalhos, tais
como os que discutem sobre como encarar a argumentação no discurso, mas de modo
geral sobressaem as diferenças, que ajudam a delimitar os campos. Em Os
limites do sentido, Guimarães (1995) aborda a argumentação na língua
através do conceito de topoï, conforme a teoria exposta por Anscombre e
Ducrot. Mas o sujeito, aí, é interpretado pelo autor como tendo um caráter
psico-social, capaz de tomar posição em sua enunciação. A direção argumentativa
se daria com base nos topoï, convocados e suportados por enunciadores
(sabemos que enunciadores correspondem a perspectivas, e não a sujeitos
físicos). Assim, na interpretação de Guimarães, o externo à língua – o topos
– funciona na enunciação convocado pela língua. E isso levaria a pensar a
língua como entidade autônoma em relação à exterioridade. Ele hipotetiza um
movimento contrário: o interdiscurso (externo à língua) é que movimentaria a
língua, pondo-a em funcionamento, constituindo o sentido da argumentação.
Entretanto, as relações complexas (entre palavras) que constituem os topoï
, “fontes de discurso” não obrigam a pensar a autonomia da língua. Se a língua
é histórica da mesma forma que o discurso, também não se pode dizer que o
começo (a origem?) está no interdiscurso. Como sugeri acima, os topoï se configurariam como língua-discurso,
participando de um movimento contínuo, o que corresponde, penso, a como Pêcheux
concebe a memória discursiva: “um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de
desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos” (1999, p. 56).
Com efeito: saliento essa caracterização articulando-a ao que Ducrot
(cf. Moura, 1998) diz sobre os topoï: eles abrem possibilidades de
encadeamentos discursivos (através de suas formas tópicas), o que também
explica que a argumentação não fornece uma direção única no encadeamento
textual: os contra-discursos são sempre possíveis, e seus fundamentos, portanto, também estão no interdiscurso,
na memória.
Apesar de todos os (previsíveis) conflitos entre teorias, há algo que
constitui tendência e interessa a todos os campos de saber. É interessante que,
após fatiarmos o inteiro incompreensível (as línguas, a linguagem) para adaptá-lo
à nossa capacidade de compreensão, estejamos na fase dos deslocamentos de
marcos que nos serviram de guia, estudando as "margens" e
capacitando-nos, aos poucos, ao ponto de vista do inteiro – ou melhor, da
complexidade, ainda que assustadora.
Entretanto, dessa reflexão sobre deslocamentos não se pode concluir
simplesmente por uma nova redução: as distinções se mantêm, o que muda é a
compreensão delas, que inclui a visão de que não há um "intrínseco"
absoluto (um "primeiro"), mas um movimento constante de uma face a
outra da linguagem. Para mostrar melhor e a distinção e a
indeterminação, eu diria que há a língua-discurso e o discurso-língua;
que a significação se estabelece e muda por causa dos efeitos discursivos de
sentido.
Penso que esta perspectiva está em concordância com o que Edgar Morin
tem chamado “paradigma da complexidade”. O questionamento dos pilares da
ciência clássica[2][2] não resulta em mero abandono das
categorias reinantes. O pensamento da complexidade, para Morin,
...não é absolutamente um pensamento que expulsa a
certeza para colocar a incerteza, que expulsa a separação para colocá-la no
lugar da inseparabilidade, que expulsa a lógica para autorizar todas as
transgressões.
A caminhada consiste, ao contrário, em fazer um ir e
vir incessante entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre
o separável e o inseparável. Do mesmo modo, utilizamos a lógica clássica e os
princípios de identidade, de não-contradição, de dedução, de indução, mas
conhecemos seus limites, sabemos que em certos casos é preciso transgredi-los.
[...]
É preciso articular os princípios da ordem e da
desordem, da separação e da junção, da autonomia e da dependência, que estão em
dialógica (complementares, concorrentes e antagônicos), no seio do universo
(2000, p. 205).
O paradigma da simplificação “impõe disjuntar
e reduzir; o paradigma da complexidade ordena juntar tudo e distinguir” (idem,
ibidem). A ênfase, na AD, para o
inconsciente e para a ideologia leva a neutralizar o sujeito como marco
de ação e de consciência; leva a neutralizar a significação em proveito de
efeitos de sentido, que podem reduzir-se a valores (super)estruturais,
sobretudo se pensarmos no modo de percepção da dimensão do inconsciente que, em
última análise, seria a que define a subjetividade no contexto da teoria.
Deslocando-se, por outro lado, do contexto da psicanálise, vê-se a ideologia
sobreposta ao inconsciente, o que remete à diluição da chamada “metáfora
gramatical” (tal como em Este texto pretende...), estratégia do dizer da
cultura científica, para um efeito de literalidade: o interdiscurso produz
a argumentação, movimenta marcas da língua que se põem em
funcionamento, a posição produz efeitos de sentido, a ideologia interpela
o sujeito, a ideologia estrutura os processos de significação...
O sujeito discursivo não realiza apenas atos:
ele se constitui em práticas de linguagem. Talvez pudéssemos aceitar ao
mesmo tempo os sentidos que aí são possíveis: o sujeito é constituído, sim, mas
também constitui-se a si mesmo, eventualmente reconhecendo essa complexidade.
Se o “psicologismo” parece temeridade para
uma “teoria não-subjetiva da subjetividade” (que às vezes ameaça transformar-se
em “teoria subjetiva da não-subjetividade”), talvez os aportes de uma nova
biologia possam tornar menos preocupantes as conseqüências de uma atitude mais
englobante:
A autoconsciência é uma operação relacional na
linguagem e, como tal, não ocorre no cérebro, e não é um fenômeno
neurofisiológico, nem um produto da operação do sistema nervoso, mesmo sendo a
operação do sistema nervoso necessária para sua ocorrência. No entanto, em
nossa experiência, quando nos distinguimos distinguindo a nós mesmos, a
consciência surge como a propriedade ou habilidade do eu, que surge como uma
entidade que requer uma localização. É a maneira de operar do sistema nervoso
em nós, como um sistema nervoso que linguajeia [sic], e visto que ele se
tornou assim em cada um de nós em nossas histórias particulares como seres
linguajantes, o que nos permite viver a experiência da autoconsciência e da
consciência no isolamento e, como uma conseqüência, experienciar o eu e a
consciência localizados em nossa corporalidade (Maturana, 1999, p. 229).
Acrescente-se, para finalizar: “Afirmo que a
autoconsciência e o viver na consciência não são nossa característica
fundamental, mas sim o viver na linguagem, porque é através do viver na
linguagem que nos tornamos seres autoconscientes e podemos ter uma consciência
do viver” (ibidem, p. 232-233).
Certamente não se trata, aí, de um sujeito
origem de si, fora da linguagem, soberano.
© 2000. Maria Marta Furlanetto
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des topoï. Paris : Éditions Kimé, 1995a. p. 11-47.
_____. La
nature des topoï. In: ANSCOMBRE, Jean-Claude (dir.). Théorie des topoï. Paris :
Éditions Kimé, 1995b. p. 49-84.
BAKHTIN, M.
(Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel
Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1979.
_____ . Estética
da criação verbal. Trad. do fr. Maria Ermantina Galvão Gomes
Pereira; rev. Maria Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FURLANETTO, Maria
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MATURANA,
Humberto. A ontologia da realidade. Org. Cristina Magro, Miriam Graciano
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MORIN, Edgar. O
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MOURA, H. M. de
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PIRES DE OLIVEIRA,
Roberta. Uma história de delimitações teóricas: trinta anos de semântica no
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In: GUIMARÃES, Eduardo; ORLANDI, Eni P. (orgs.). Língua e cidadania: o
português no Brasil. Campinas : Pontes, 1996. p. 151-163.
[3][1] “Nossa rápida reconstrução da
constituição de modelos na semântica nos dá a dica para entendermos a diversidade
sem precisarmos afastá-la na homogeneidade do projeto final ou torná-la
insuperável no isolamento de cada teoria: o conhecimento em si mesmo
fragmentado e parcial se constrói na conversa propiciada pela diversidade de
abordagens. [...] A melhor metáfora não é, portanto, a do projeto único, nem a
dos caminhos isolados, mas de uma conversa na diferença; quanto mais
conversamos, mais os conceitos circulam, mais revisões são necessárias, mais
conhecimento comum é gerado” (p. 317).
[4][2] Ordem: existente por
trás da desordem, que seria apenas aparente; separabilidade: decomposição, fragmentação; disjunção
entre observador e objeto observado; razão absoluta: repousando sobre os
princípios da indução, da dedução e da identidade.