PALAVRA: SIGNO IDEOLÓGICO

 

 

Antonio Francisco Ribeiro de Freitas, Universidade Federal de Alagoas

 

Maceió

1999

 

 

SUMÁRIO

 

1.      Prefácio: A Palavra: Perspectiva da Comunicação e Semiótica

2.      A palavra: signo ideológico puro

3.      2. A palavra: produto da práxis social

4.      Conclusão

5.      Referências bibliográficas

 

 

Prefácio por Pedro Nunes

(Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC/SP e Un. Autônoma de Barcelona),  Autor dos Livros: As Relações Estéticas no Cinema Eletrônico e Cinema & Poética)

 

           

A Palavra: Perspectiva da Comunicação e Semiótica

 

            Há, além da estrutura significante aparente da palavra, uma dimensão complexa de natureza semiótica. Essa complexidade espectral que ultrapassa a materialidade física dos sistemas verbais vem sendo analisada ao longo de décadas e décadas e até nos remete à Fedro onde Platão, de certa forma, objeta a palavra escrita e também nos conduz aos estudos sobre retórica persuasiva formulados pelo pensador Aristóteles.

            A produção e a transmissão do conhecimento, da cultura e as formas de comunicação entre os indivíduos na antigüidade tiveram como principal representante a palavra em sua dimensão oral. A história da humanidade foi edificada tendo por base a cultura oral. Dizemos que a cultura oral foi a principal representante porque é desnecessário enunciar a relevância das outras formas de expressão existentes antes da palavra escrita.

            A articulação da palavra (significante acústico), pode ser entendida enquanto fruto da ação pensamental de um dado sujeito produtor de signos estruturados com uma carga de intencionalidade e que interage com signos exteriores. A ação dos signos se complementa com o intérprete (receptor, decodificador/leitor) em um processo de circularidade e autogeração de novos signos.

            Já a palavra escrita, além de caracterizar-se enquanto expressão do pensamento que também opera com seleções e associações regidas por um código próprio é, em síntese, a versão do audível para o visual. A representação escrita, além do aspecto de produção de sentidos, mobilizaria um sentido específico, a visão, para o processo de decodificação das mensagens ou narrativas de cunho verbal escrito.

            Grosso modo podemos dizer que com a codificação por convenção da palavra escrita, temos uma profunda mudança nos aspectos da cultura de base essencialmente oral. A escrita no papiro e no pergaminho estimulou a leitura silenciosa, promoveu o enciclopedismo e a erudição seletiva e, de certa forma, dificultou o acesso dos usuários aos manuscritos. O acesso ao conhecimento verbal escrito gera exigências específicas como o domínio do código com suas regras de concordância (sintaxe) para cada língua ou dialeto.

            A mecanização da palavra escrita cria condições efetivas para produção em série de textos impressos a baixo custo. Todas essas transformações não lineares da palavra oral e escrita implicaram também em crises, desvios e, sobretudo, desencadearam profundas modificações na esfera da cultura e das relações sociais.

            A palavra escrita ampliou o âmbito da leitura, impulsionou os diversos campos do conhecimento e forçou os sujeitos sociais à adoção de novas regras de escolaridade: a alfabetização.

            Com seus traços de estruturação significante diferenciados, a escrita incorpora, de certa forma, elementos da oralidade. Ambos sistemas de significação não só estabelecem uma relação de complementaridade como também, individualmente, adquirem uma nova feição espacial. As artes em geral e em particular a poesia, o sermão e o drama, por exemplo, não perderam o fôlego inventivo da criação com ênfase no discurso oral.

            Com o mecanismo textual vemos acelerar o tempo. A palavra oral ganha uma nova perspectiva com o rádio e o cinema. A escrita é modernamente redimensionada na esfera da pintura (vanguardas históricas), dos suportes técnicos em geral e da própria computação gráfica. Os Chats, salas de discussão na Internet, resgatam a escrita; as transmissões ao vivo no universo digital (Real Player) evocam o som e a imagem. A palavra introjeta a velocidade, passa a materializar-se e transformar-se em espaços simultâneos denominados ubíquos.

            A era da Informática absorve e não elimina as representações discursivas da esfera da oralidade, da escrita e audiovisual. Os suportes sonoro-visuais interagem e até influenciam formas de representações anteriores. As contaminações são recíprocas na esfera das linguagens.

            Nesse sentido é que a reflexão do prof. Antonio de Freitas sobre o signo verbal apresenta subsídios para as áreas de Lingüística e, particularmente, para o estudo dos fenômenos da Comunicação.

            Trata-se do exame da palavra enquanto corpo material do discurso que veicula ideologia. Para essa fundamentação teórico-metodológica Antonio de Freitas argumenta o seu discurso com base em um tripé de autores: Bakhtin, Saussure e Vygotsky.

O objetivo central deste ensaio é então pensar a mobilidade do signo verbal norteado pelo trânsito do pensamento que também se constitui pela ação de signos. A partir das bases conceituais sobre o signo lingüístico formuladas por Saussure, Antonio de Freitas contesta a visão dicotômica de signo apresentada pelo referido autor e caminha ao encontro de Bakhtin para argumentar a não neutralidade do signo e da própria linguagem.

Com a presente obra sobre a palavra enquanto parte integrante do discurso, Antonio de Freitas avança ao propor uma contribuição efetiva para as áreas de Comunicação e Semiótica, destacando o processo de reversibilidade do signo e, consequentemente, a ação da linguagem.

Por isso mesmo é que o estudo apresenta-se como um substrato teórico-metodológico necessário para nossas práticas (aplicação da teoria) em sala de aula, para os estudos e pesquisas sobre a natureza das mensagens e linguagens da mídia. Trata-se de um a-porte intelectual de peso para a análise e a compreensão semiótica do signo verbal como produto social marcado em seus diversos níveis pela ideologia.

Por fim, devo dizer ao leitor também em palavras subjetivas: é um prazer partilhar deste banquete específico do conhecimento sob um céu denominado universidade.

 

 

 

 

1.      A palavra: signo verbal ideológico puro

 

 

Afirma-se inicialmente que a palavra, enquanto signo, é o ma-terial semiótico privilegiado veiculador da ideologia, devido à sua capacidade de refletir e refratar as condições de produção sócio-historicamente presentes no discurso. Afirma-se também que a palavra, compreendida mais amplamente como signo lingüístico e verbal, é constitutiva da consciência, da ideologia, do pensamento e, por conseguinte, dos sujeitos, por ela ser o resultado das interações sócio-histórico-verbo-ideológicas.

Devido à existência de diversos sentidos que a palavra interação possibilita, convém ressaltar que, neste trabalho, interação verbal abrange basicamente a teoria lingüística discursiva, de origem bakhtiniana, que tem dentre os seus pressupostos, os seguintes:

1) a interação acontece entre os sujeitos, no processo dialógico, no amplo sentido do termo diálogo, ou seja, na enunciação ou em enunciações reais, na relação entre o "eu" e o "outro", através da mediação do signo verbal ideológico;                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     2) os indivíduos são constituídos enquanto sujeitos, no processo interacional verbal social, dentro de níveis ou graus de sociabilidade; quanto maior for o grau de suas interações verbais sociais, maior será o grau de consciência dos indivíduos, o que, por sua vez, implicará um maior grau de constituição dos indivíduos em sujeitos sociais; com isso define-se que os sujeitos são socialmente orientados;

3) além de se considerar a linguagem como atividade constitutiva dos sujeitos e de suas consciências, na relação dialógica o signo verbal social – a palavra – é o elemento ideológico puro, pois transita dialeticamente tanto na infra-estrutura econômica quanto na superestrutura dos sistemas ideológicos constituídos.

Tendo-se em vista que, na ótica da interação verbal, os sujeitos, as consciências e as ideologias são socialmente determinados, e que são constituídos pelo mesmo material semiótico – o signo verbal –, entendido aqui como palavra, julga-se necessário, neste momento, ampliar a reflexão sobre tais questões com mais vagar.

A explicitação sobre a materialidade do signo marca a diferença desta linha teórica sobre as demais correntes lingüísticas. A partir do momento que se assume que o signo é um fenômeno material e social, amplia-se a importância da interação verbal como atividade constitutiva de consciências, ideologias e sujeitos.

Isso é decorrente do fato de que essas três categorias têm como elemento básico que as une o signo verbal social. O signo passa a ser entendido como o elemento material básico e pertencente ou ao meio social ou ao meio natural, que adquire um estatuto diferenciado quando realiza a função semiótica de representar algo, como um conceito ou um valor. Em outras palavras, é a partir do signo, material, verbal, social e ideológico, que se constroem sentidos e veiculam-se ideologias.

Ressalte-se que nenhuma outra teoria lingüística faz a abordagem da palavra considerando-a como elemento puro da ideologia. A natureza da palavra, estando estreitamente vinculada com a ideologia, produz uma diferença substancial nas análises decorrentes desse pressuposto fundamental, qual seja, da materialidade da palavra e de seu caráter específico de manifestação ideológica, calcada na sua materialidade social.

Como decorrência da abordagem do signo como elemento de realização material da ideologia, tem-se o desmascaramento da pseudoneutralidade da linguagem, pelo fato de que o objeto signo não é mais visto como possuidor de uma natureza arbitrária e neutralizante quanto ao meio exterior, como propõe a corrente saussuriana. A partir das reflexões bakhtinianas, chega-se ao entendimento de que o signo verbal, ou a palavra, é o meio material da veiculação ideológica.           

Devido à importância de entender a materialidade do signo e sua função de elemento ideológico e verbal, concretizado no discurso enquanto palavra, fazem-se necessárias as explicitações diferenciadoras que marcam a função social e semiótica do signo. Evidentemente, ao se admitir a natureza materialista e ideológica do signo lingüístico, de imediato está descartada a visão de signo compreendido por si mesmo e arbitrariamente constituído por um significante e por um significado.

É a teoria lingüística de base saussuriana, em sua visão tradicional, que concebe a palavra como um fenômeno interno, psicológico, ao indivíduo, não tendo assim vínculo algum com o meio exterior, ou com a realidade material. Faz-se de início tal distinção para que não seja mantida a aparência de neutralidade e naturalidade dada à linguagem.

Enquanto proposta materialista de análise, faz-se necessário elaborar a contraposição teórica e metodológica sobre a concepção de linguagem e da palavra entendida por si mesma, como é apresentada pela teoria lingüística de base saussuriana. Tal teoria propõe uma linguagem naturalizante e aceita o signo como um fenômeno neutro e arbitrário, segundo defende Saussure (1985, p. 81), ao dizer que "o laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer simplesmente: o signo lingüístico é arbitrário''.

Com tal posição teórica, a lingüística saussuriana relativiza os vínculos reais que o signo mantém com os objetos ou com o meio social. Entende-se que este seja um ponto de vista teórico redutor e até mesmo contraditório, pois a língua se materializa concretamente através dos signos verbais, pela fala e escrita. Em separando-se o plano da língua do da fala, os signos passam a ser entendidos como elementos separados da realidade material, e, assim, vistos como de origem acima do plano do ser. Dessa forma, o signo verbal é visto como algo que não possui vínculos nem com a sociedade real e nem com os indivíduos concretos, pois ou são frutos da subjetividade pura, sem objetivar-se em momento algum, ou foram dados por al-gum outro ser ahistórico.

Desvinculados do plano histórico-social, os signos passam a ser compreendidos como neutros e, por conseqüência, a palavra também deve ser vista como neutra, uma vez que os signos, em sua gênese, são compostos por uma relação interna ao sistema abstrato da língua; ou seja, na visão saussureana tradicional, o signo é a associação pura e simples de um significado a um significante. Tem-se que o signo é o resultado da mais neutra e natural relação entre o som vocal, ou imagem acústica (o significante), e o conteúdo ou conceito (o significado), que é psíquico, ou, mais precisamente, pu-ramente metafísico.

Em outras palavras, inexiste qualquer vínculo entre o fenômeno semiótico da realização do signo e o objeto que o signo representa no meio material. Inexiste o movimento dialético, e por isso contraditório, entre a subjetividade e a objetividade. Há um recorte positivista que se fixa em apenas um dos momentos do signo, aque-le em que ele é internalizado, deixando-se de lado a definição de sua natureza, que é material e exterior ao ser.

O signo é um produto social, que, devido à sua natureza semiótica, é internalizado pelos indivíduos, mas não perde, em momento algum, os seus vínculos com o exterior. Por isso se diz que o signo tem dois momentos específicos: inicialmente ele é externo ao indivíduo e, posteriormente, em razão de sua natureza semiótica, é interno, graças à sua capacidade de reversibilidade que possibilita a internalização. Portanto, se explica que o movimento que caracteriza o signo é objetividade-subjetividade-objetividade.

Na visão saussureana tradicional, ao contrário, o objeto signo pertence apenas ao campo da subjetividade; de acordo com o que segue: ''Vimos [...], a propósito do circuito da fala, que os termos implicados no signo lingüístico são ambos psíquicos e estão unidos, em nosso cérebro, por um vínculo de associação. Insistamos neste ponto'' (Saussure, 1985, p. 79-80).

Tem-se, em síntese, que 1) o signo é algo interno ao ser e não possui nenhum ponto de contato com o exterior; 2) a categoria do movimento do signo é substituída pela relação arbitrária, que se dá por associação interna ao sistema metafísico da língua, entre o significante e o significado; 3) existe um determinado tipo de movimento constante, que é do interior [cérebro] do indivíduo A, para o interior [cérebro] do indivíduo B, num circuito que se fecha em si mesmo. Privilegia-se nesse caso, na lingüística saussureana tradicional, a língua abstrata, uma lingüística sem sujeitos e sem história.                                        O signo é meramente uma hipótese interna, e sendo assim concebido, não poderá ter como referente o meio exterior, e assim objetivar-se; 4) a visão saussureana de signo ou da palavra, além de entender este como algo que somente tem existência no interior do indivíduo, enfatiza ainda que a linguagem se realiza de forma mecânica (Saussure, 1985, p. 19).

Nessa perspectiva teórica saussureana tradicional, a linguagem não possibilita a interação verbal entre os sujeitos, pois não é concebida como uma via de mão dupla entre os envolvidos no processo. Prioriza-se apenas o locutor ou o emissor, não permitindo a enunciação do outro, que se mantém como a parte passiva no diálogo. Privilegia-se a categoria do eu, ao mesmo tempo em que se exclui a categoria do outro no processo lingüístico ou discursivo.

Na concepção saussureana admite-se, ainda, que o circuito da língua seja lógico e sem problema algum. Pois o signo, mesmo sendo interno ao indivíduo, ao exteriorizar-se em forma de som, mantém a identidade dos elementos internos, mesmo no contato com o exterior. O processo da linguagem, pode-se afirmar, é a teoria da informação aplicada à língua, pois há um ''input'', um percurso lógico e um ''output'', sem a ocorrência de nenhum tipo de ruído pela ação do meio. Mudam-se o meio e a forma, sem que haja qualquer alteração na essência abstrata.

Conclui-se que a língua nem em sua forma de fonação, que é a fala, é afetada pelo mundo material, uma vez que a sua identidade se mantém em todos os percursos do circuito lingüístico lógico-ma-temático assim representado: AB. Vê-se com isso que, devido à concepção do signo como fenômeno meramente psíquico, tal como o concebe o sistema positivista de linguagem, decorre o fato de não se levarem em conta as condições externas, que, se consideradas, apontariam mudanças tanto quantitativas quanto qualitativas sobre o signo.

A linha saussureana, em sua vertente tradicional realiza, portanto, um corte teórico e epistêmico, que impossibilita a compreensão da especificidade material e dialética do signo. Já a linha de reflexão neomarxista, de origem bakhtiniana, concebe o signo como um produto social e verbal, além de ideológico, constituído fora das subjetividades. Concebe-se, quanto à sua natureza, que o signo não é um produto da consciência individual, pois sua origem é o exterior, e sua localização se dá em um determinado momento, na mente do indivíduo, justamente pelo seu caráter semiótico, como deixa explícito Bakhtin (1992b, p. 36):

 

''A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem''.

 

Tal afirmação aponta para uma abordagem dialógica, e totalmente diferenciada do signo lingüístico, que faz avançar a concepção de signo. A partir das reflexões bakhtinianas, o signo não será entendido como presente no plano do sistema puro e neutro da língua, referido como a relação em si mesmo, relação tida como arbitrária, e constituído pela associação mental de um significante e um significado, como habitualmente é veiculado pela linha saussureana.

Afirma-se que somente a visão total do objeto linguagem poderá permitir uma compreensão ativa, motivo pelo qual, nesta perspectiva, buscar-se-á uma posição de interação entre o elemento lingüístico (a língua, concebida como sistema interno e abstrato) e o que está localizado no campo do elemento extralingüístico (a fala), buscando-se a síntese dialética entre língua-fala como constitutiva do objeto da linguagem humana em sua totalidade. Tal processo compreensivo também deverá ser aplicado ao signo lingüístico, ou palavra, que, enquanto produto semiótico, tem duas características específicas: a de refletir uma dada realidade, no plano imediato, e, posteriormente, alterá-la ou modificá-la, no plano mediato, como enfatiza Bakhtin (1992b, p. 32):

 

"Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico''.

 

Ressalta-se que a capacidade de reversibilidade do signo social verbal ideológico é garantida por sua característica de mediação semiótica entre o objeto e o sujeito, produzindo com isso o movimento singular da consciência, de forma dialética, exterior-interior-exterior. Também quanto às questões da constituição da consciência e da ideologia, enfatiza-se, ainda, que somente através da teoria bakhtiniana poderão ser explicadas.

É Bakhtin quem afirma que, pelo fato de não haver o entendimento correto da função semiótica do signo verbal ideológico, aqui entendido por palavra, equivocamente, ainda hoje, diversos lingüistas e psicólogos localizam tanto a ideologia quanto a consciência no interior [na mente] do indivíduo, enquanto que, na sua perspectiva, tanto a consciência quanto a ideologia resultam do processo de interação verbal social, tendo os signos verbais como elementos materiais de produção de sentidos.

Por esse motivo, as palavras, ou os signos verbais, devem ser estudadas de forma objetiva no discurso, uma vez que são fenômenos sociais, conforme Bakhtin (1992b, p. 33) explica:

 

''Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor ou como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior. Este é um ponto de suma importância. No entanto, por mais elementar e evidente que ele possa parecer, o estudo das ideologias ainda não tirou as conseqüências que dele decorrem".

 

Devido à orientação social do fenômeno sígnico, assumida pela linha de análise bakhtiniana, o signo, em sua forma de palavra, é visto como o núcleo sensível e veículo material privilegiado da ideologia, ocupando ainda o espaço central também na formação da consciência.

A consciência e a ideologia, nesta perspectiva, não são aceitas como internas ao indivíduo. Nega-se que tais fenômenos dêem-se sem nexo causal baseado no terreno exterior, pelo fato de admitir-se que tanto a consciência quanto a ideologia são constituídas pelos mesmos materiais semióticos, quais sejam, os signos verbais, as pa-lavras. E, é graças ao caráter de reversibilidade do signo verbal ideológico, das palavras, que ao exercerem a função de signos verbais, medeiam o processo de tomada de consciência e do posicionamento ideológico do sujeito.

Com isso, tem-se que a palavra, na perspectiva enunciativa da interação verbal, será entendida sempre como elemento material e signo social ideológico. A categoria operacional da palavra, ou a linguagem num sentido amplo, é quem orientará a ação e constituirá a consciência dos sujeitos em suas interações sociais, como concluiu o psicólogo do desenvolvimento Vygotsky (1993, p.131-2), em suas pesquisas, ao estudar a formação social do pensamento e da palavra:

 

''Mostramos que a característica fundamental das pa-lavras é uma reflexão generalizada da realidade. Esse aspecto da palavra leva-nos ao limiar de um tema mais amplo e mais profundo – o problema geral da consciência. O pensamento e a linguagem, que refletem a realidade de uma forma diferente da percepção, são a chave para a compreensão da natureza da consciência humana. As palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento mas também na evolução histórica da consciência como um todo [grifos nossos]. Uma palavra é um microcosmo da consciência humana".

 

 

Prossegue Vygotsky:

 

''A relação entre o pensamento e a palavra é um processo; o pensamento nasce através das palavras [grifos nossos]. Uma palavra desprovida de pensamento é uma coisa morta, e um pensamento não expresso por palavras permanece uma sombra. A relação entre eles não é, no en-tanto, algo já formado e constante; surge ao longo do desenvolvimento e também se modifica".

 

 

Para confirmar a sua tese de que a palavra tem um valor diferencial enquanto produto elaborado pelo trabalho dos homens, Vygotsky exemplifica, citando um trecho de Fausto, de Goethe:

 

''À frase bíblica ''No princípio era o Verbo" Goethe faz Fausto responder: "No princípio era a Ação''. O objeti-vo dessa frase é diminuir o valor das palavras, mas podemos aceitar essa versão se a enfatizarmos de outra forma: No princípio era a Ação. A palavra não foi o princípio – a ação já existia antes dela; a palavra é o final do desenvolvimento, o coroamento da ação".

 

Assim, aceitar-se-á que a palavra realmente é constitutiva tanto da consciência quanto do desenvolvimento humano, admitindo-se, implicitamente, o fato de que a linguagem é constitutiva dos sujeitos sociais.

 

 

2.      A palavra: produto da práxis social

 

Até agora, fez-se questão de se enunciar o papel fundamental que a palavra, entendida enquanto signo verbal social, desempenha no processo de constituição do indivíduo em su-jeito, dotando-o progressivamente de níveis cada vez mais elevados de consciência, no decorrer do processo interacional verbal. Pretendeu-se, deixar evidente com isso, que é pela interação verbo-social – defendida aqui como processo lingüístico, mediado pela palavra – que o indivíduo eleva seu grau de individuação.

Afirma-se, então, que, quanto mais o homem desenvolve sua capacidade de operar com a linguagem, mais ele se distancia da sua condição de ser natural e evolui em direção a ser social. Atribui-se tal evolução ontológica do ser às suas interações sócio-históricas e à crescente capacidade de ele operar com os signos verbais. Tem-se com isso que, quanto maior for a sua capacidade de linguagem, maior será seu nível de desenvolvimento, pois trabalhar com signos implica atingir condições de realizar funções mentais superiores, o que permite ao homem operar teleologicamente.

Segundo Lukács (1978, p. 4), o que determina a elevação do homem – colocando-o em uma posição avançada em relação aos demais seres e superando, assim, o mero nível biológico do ser; em direção ao ser social, aceito como plano superior do ser – é justamente o momento em que, através do trabalho, ele adquire a consciência, através da linguagem, o que lhe permite a objetivação da prévia-ideação:

 

"A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica: o produto, diz Marx, é um resultado que no início do processo existia ''já na representação do trabalhador'', isto é, de modo ideal''.

 

 

A consciência faz com que o indivíduo eleve-se, no decorrer do processo de tornar-se sujeito, devido ao desenvolvimento das ca-pacidades mentais superiores do ser, que tem sua gênese a partir da produção da linguagem, pois é a fala, ou a capacidade de operar com as palavras em forma de signos, que ontologicamente produz a consciência.

Ao admitir-se tal fato, busca-se demonstrar:

a) Que toda prática lingüística visa à constituição de sujeitos cada vez mais críticos;

b) Somente com a elevação do grau de suas consciências, os sujeitos envolvidos no processo sócio-histórico-político-discursivo, elevar-se-ão no processo de individuação, ou de tornarem-se sujeitos;

c) Que é exatamente no momento da interação verbo-social, por meio da linguagem, que os interlocutores terão a possibilidade de elevarem-se enquanto seres sociais;

d) A importância da linguagem, tendo em vista que é graças a ela, compreendida aqui como interação com signos verbais sociais, e no acontecimento enunciativo da interação, ou no diálogo, visto nesta perspectiva teórica, que os indivíduos, no caso denominados de interlocutores, constituem-se enquanto sujeitos; e

e) Que a linguagem não é neutra, pois ela é o campo da polissemia, da polifonia, de encontros, de desencontros, de choques de interesses opostos, de conflitos diversos, enfim, de lutas, visando à conservação de determinados sentidos, excluindo-se, consequentemente, a veiculação de outros sentidos. Evita-se, porém inutilmente, a constituição de outros sentidos, que irão de encontro às formações discursivas, sociais e ideológicas dominantes num determinado mo-mento histórico, pois o poder joga o jogo da palavra.

Em razão do exposto, justifica-se que as palavras, na função de signos verbais, somente têm sentidos quando contextualizadas com o processo sócio-histórico da interação verbal, materializado nas enunciações discursivas, ou no diálogo concreto.

Ressalta, ainda, Lukács que o desenvolvimento do ser é unitário, porém, realizado de forma contraditória. Isso se dá em decorrência de que o homem é, ao mesmo tempo, produtor e produto da sociedade e o fator que permite ao homem alcançar a consciência, no decorrer do processo de sua humanização, é a fala:

 

''[...] o gênero – nesse nível ontológico, no nível do ser social desenvolvido – não é mais uma generalização à qual os vários exemplares se liguem ''mudamente'', (...) ao contrário, elevam-se até o ponto de adquirirem uma voz cada vez mais claramente articulada, até alcançarem a sín-tese ontológico-social de sua singularidade, convertida em individualidade, com o gênero humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si'' (Lukács, 1978, p. 14).

 

 

Observe-se, sob o ponto de vista ontológico, a importância da fala na produção da constituição dos sujeitos. Ainda sobre a importância da fala, ressalte-se que, inicialmente, o indivíduo, ao interagir com os que lhe estão próximos, penetra na corrente da comunicação verbal que o cerca, e não na corrente gramatical do sistema abstrato da língua. Sua experiência é material, social e histórica, e se dá atra-vés da interação verbal com os outros, ou da mediação sígnica.

Assim, entende-se que, ao se separar a língua da fala, como fez o objetivismo abstrato de linha saussuriana, perdeu-se uma parte do objeto linguagem, perdeu-se a fala. Com isso, o objeto linguagem não foi completamente apreendido, pois carecia de uma visão totalizadora, que possibilitasse a compreensão do todo; isto se baseia no fato de que, ontologicamente, não pode haver língua sem fa-la, e ainda: não é lógico definir-se o todo, a linguagem no caso, levando-se em conta apenas uma parte.

Uma parte significativa dos estudos lingüísticos contemporâneos adota o ponto de vista saussuriano antigo, que impõe categoricamente a divisão do objeto linguagem em duas partes estanques, como pode ser observado na seguinte colocação, que resume a opinião de Saussure (1985, p. 92) sobre o assunto: ''[...] Evitando estéreis definições de termos, distinguiremos primeiramente, no seio do fenômeno total que representa a linguagem, dois fatores: a língua e a fala. A língua é, para nós, a linguagem menos a fala". Mesmo re-conhecendo-se a linguagem como composta de um todo complexo, e por isso mesmo dialético, que engloba língua e fala, conforme o trecho citado, Saussure opta por considerar em seus estudos apenas uma parte do objeto, a língua.

O signo lingüístico, por sua vez, é taxativamente entendido como a realização de dois fenômenos meramente psicológicos, pois estes ocorrem apenas internamente, inexistindo ligações concretas com o meio exterior do indivíduo, ou seja, o meio social. Deduz-se daí que o significado e o significante fazem parte de uma estrutura abstrata, já que os signos são entidades psíquicas, sem ligação alguma com a vida cultural e sócio-econômica, objetiva, dos homens. Inexiste, a princípio, um ponto de contato objetivo, exterior, entre o signo e o objeto por ele representado.

Isso decorre do fato de que, para Saussure (1985, p. 80), o si-gno é algo que apenas existe na mente dos indivíduos; portanto, é abstrato:

 

''O caráter psíquico de nossas imagens acústicas [significante] aparece claramente quando observamos nossa própria linguagem.

 

E porque as palavras da língua são para nós imagens a-cústicas, cumpre evitar falar dos ''fonemas'' de que se compõem. Esse termo [fonemas], que implica uma idéia de ação vocal, não pode convir senão à palavra falada, à realização da imagem interior no discurso. [...] O signo lingüístico é, pois, uma entidade psíquica, que pode ser representada pela figura...".

 

 

No trecho mencionado, nota-se que há ênfase quanto ao caráter psíquico do signo; afirma-se com isso que, em momento algum, significante e significado têm alguma base objetiva, com a qual de-veriam interagir dialeticamente. Tanto no plano do significado, quanto no do significante ou da imagem acústica, inexiste nexo causal externo ao signo produzido pelo indivíduo.

Aceita-se a existência da palavra somente enquanto imagem acústica: ela é, assim, um epifenômeno vocal, que transmite imagens através do som, o que faz com que o signo somente tenha existência no psiquismo individual – ou na subjetividade, jamais al-cançando a objetividade. Entende-se, com isso, que o signo foi estudado, por essa linha teórica, levando-se em conta apenas um dos seus momentos enquanto elemento semiótico, o da internalização do signo, sem se considerar que sua origem ontológica é o exterior do ser.

Tem-se, com a teoria da materialidade e mobilidade dialética do signo, de origem bakhtiniana, um avanço nos estudos lingüísticos, pois Bakhtin (1992b, p. 31-8) aponta que é da própria característica do signo semiótico, tido como elemento ideológico e verbal concreto, permitir a internalização da palavra realizando posteriormente o seu retorno ao meio exterior, que é o seu ponto de partida e de sentido. O retorno do signo verbal ao meio social ocorrerá de uma forma qualitativamente superior, se comparado ao momento em que se manteve interno ao indivíduo, pois o signo, ao ser exteriorizado, sofrerá as ações das contrapalavras dos outros.

Atribui-se a esse retorno do signo internalizado, em forma de discurso interior, ao meio exterior, através das enunciações, importância fundamental para se compreender a significação. Deve-se a esse retorno, qualitativamente superior do signo, ao meio sócio-his-tórico-verbal o fato de explicitar-se que o discurso não comporta significação. No discurso têm-se sentidos. No processo da interação verbal social, o signo ideológico, ou a palavra, ganha vida e materialidade através das enunciações, sendo, então, possível estudar metodologicamente o signo verbal.

Diz-se que as palavras mudam de sentido, porém, isso somente ocorrerá se se levar em conta o processo da interação verbal concreto, que é o momento efetivo do acontecimento enunciativo, entre dois ou mais interlocutores; poder-se-ão compreender as razões objetivas que fazem com que as palavras, fixadas e normatizadas no léxico, com significados prévios ou preestabelecidos no sistema da língua, e por isso tidos como imutáveis, mudem de sentidos no processo internacional verbal. Para tanto, necessitar-se-á levar em conta os vários contextos sócio-históricos do acontecimento dia-lógico, pelo fato de que, na perspectiva discursiva, o sentido não existe a priori: ele é constituído no encontro entre individualidades e é, por isso, o resultado, sempre parcial, do trabalho lingüístico dos interlocutores.

Assim entendida, a significação atinge um novo estatuto, passando a ser vista como o produto material da própria interação verbal, em sua categoria de acontecimento único de enunciação. Enquanto realização única, o estudo da significação somente pode ser feito à luz do contexto social e histórico, que lhe deu origem e sentido. Portanto, para se compreender ativamente a significação, devem-se levar em conta as condições de produção da interação verbal.

Em razão desses condicionamentos sociais e históricos que perpassam tanto os sujeitos quanto as palavras, ou os signos verbais sócio-ideológicos, a teoria bakhtiniana do dialogismo afirma que somente o acontecimento enunciativo dará a significação da palavra, que em muitas vezes será diferente da significação registrada no léxico; a significação será construída durante o processo enunciativo da interação verbal social.

A significação, como enfatiza Bakhtin (1992b, p. 132), não se dá jamais de forma abstrata, pois ela é o produto da interação entre os interlocutores:

 

"...não tem sentido dizer que a significação [significado] pertence a uma palavra enquanto tal. Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o e-feito da interação do locutor e do receptor produzidos através do material de um determinado complexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos opostos".

 

 

Devido a isso, afirma-se, então, que a significação da palavra, ou do signo, localiza-se no nível inferior do processo de compreensão ativa e responsiva, sob o ponto de vista bakthiniano. Dir-se-á que a significação pertence ao plano da língua enquanto sistema abstrato, ou seja, ao nível da frase. Assim, o signo, na linha teórica bakhtiniana, deverá ser entendido como possível de ser estudado em dois planos:

a) no primeiro plano, o descritivo, compreende-se o estudo do signo dentro do sistema estrito da língua aceito como um sistema abstrato, composto de elementos sempre idênticos a si mesmos, mo-tivo pelo qual se mantém a estabilização significativa, de base estritamente lingüística. Tal estudo – o descritivo – é o que se faz habitualmente com a frase, no nível da norma, da gramática;

b) no segundo plano, o discursivo, no qual este trabalho se insere, o signo será compreendido em sua dinamicidade, por isso mutável, sem uma significação prévia; ou seja, o signo verbal social ideológico, materializado em palavra, não terá significação; terá sentido, resultante da negociação dialógica que acontece no processo da interação verbal entre os interlocutores.

Busca-se, assim, propor uma metodologia dialética para se realizar o trabalho de interpretação lingüística no sentido amplo, metodologia esta considerada sob o ponto de vista da interação verbo-social, pois tal análise pretende ultrapassar o terreno do elemento meramente gramatical, atingindo-se o campo do elemento extragramatical, que determina socialmente as enunciações e os seus produtos, os enunciados.

Espera-se, portanto, que a opção metodológica bakhtiniana de se assumir o signo como elemento verbal social e ideológico possa embasar teoricamente as condições de compreensão ativa. Em decorrência de tal abordagem do signo verbal, ou da palavra, como elemento sensível que reflete e altera as relações entre a infra-es-trutura e a superestrutura, buscar-se-á detalhar esta metodologia nas análises lingüísticas de caráter sócio-histórico.

Assim, espera-se que o diálogo ou discurso, no sentido amplo do termo, seja visto conforme recomenda Bakhtin (1992b, p. 123), ao explicar:

 

''O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra ''diálogo'' num sentido amplo, isto é, não  apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja''.

 

Por esse motivo, para efeito de realização de trabalho de interpretação lingüística com enfoque sócio-histórico ou sócio-cul-tural, sob a perspectiva bakhtiniana, toda e qualquer produção lingüística ou enunciativa, seja ela oral ou escrita, pode ser considerada como diálogo ou discurso.

 

 

3. Conclusão

 

Em resumo, tem-se que é devido à materialidade do signo verbal ideológico, em sua função de palavra, que os sentidos são constituídos no decorrer da interação verbal, e no processo das enunciações concretas, das quais resultam como produtos os enunciados. Estes trazem as marcas tanto dos elementos verbais quanto dos extraverbais que os determinam, pois não estão dissociados das condições sócio-históricas que os produziram. O signo, nessa visão dialética, alcança um estatuto de valor qualitativamente superior e diferenciado do ponto de vista da lingüística de base saussureana.

Diz-se isso pelo fato de que o signo verbal ideológico é capaz de refletir e modificar uma dada situação dialógica entre os interlocutores, devido às individualidades que estão em interação, cada qual com sua singularidade histórica e o pertencer concreto a uma determinada classe social, a um grupo político, cultural, econômico ou religioso específico. Cada um dos interlocutores se apresenta por inteiro, na interação verbal, com seus valores, crenças, preconceitos e interesses específicos.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                O signo verbal ideológico, materializado na função de palavra, capta e reflete tais alterações, no decorrer do processo interacional verbal social e histórico, quer seja através das entonações, quer das colorações ideológicas ou mesmo das relações de hierarquia e poder que estão em jogo no contexto discursivo.

Baseia-se nesses fatos a afirmação de que os signos não são neutros, nem arbitrários, mas socialmente marcados, ou seja, ideológicos e trazem em sua materialidade, no diálogo, concebido como acontecimento enunciativo, as marcas que os determinam socialmente. Tanto as relações de poder quanto as de pertencer a uma determinada classe social, ou de filiação a uma certa corrente política, filosófica ou religiosa, são refletidas e alteradas pelo signo verbal.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     Tais elementos sócio-históricos que constituem os indivíduos e suas consciências estão dialeticamente em contato no discurso, e tais marcas, lingüísticas e extralingüísticas, estão inscritas nas palavras ou nos signos verbais; porém, somente uma interpretação sob a ótica da linguagem compreendida como interação verbal sócio-his-tórica apontará tais condicionamentos objetivos.

Em decorrência disso, espera-se poder demonstrar a importância que a fala passa a ter nessa proposta enunciativa de interpretação lingüística, pelo fato de que ela, segundo Lukács (1979, p. 83), é um complexo dinâmico que deve ser considerado em sua totalidade constitutiva:

 

''A fala é, portanto, um autêntico complexo dinâmico. Ela, por um lado, tem um desenvolvimento autolegal, mas naturalmente a autolegalidade possui um caráter histórico-social variável, já que não somente os elementos (as palavras, etc.) surgem e desaparecem, mas mudam também as leis que lhe determinam a estrutura. Este tipo de autolegalidade caracteriza, como veremos, todos os verdadeiros complexos no interior do complexo do ser social. Na fala isto se realiza ainda mais porque, como vimos, a sua reprodução é substancialmente espontânea, mas ao mesmo tempo ela, dado ao lugar que ocupa na vi-da cotidiana dos homens, se encontra em ligação, não só contínua, como estreitíssima, tanto com as mínimas oscilações como com os mais potentes abalos do ser social, e a eles reage imediatamente, com atos explosivos imediatos. A fala, portanto, depende fortemente de todas as transformações da vida social, mas ao mesmo tempo, o seu desenvolvimento é determinado, de modo decisivo, pela sua própria autolegalidade.

Também esta contradição não implica um antinômico ou sim ou não, mas somente numa oposição interna, intimamente articulada, no interior de uma interação interna''.

 

 

Portanto, é sob esse ponto de vista, da existência dessa mobilidade da palavra ou da dialética do signo lingüístico entre a infra-estrutura econômica e a superestrutura social, que ocorre em toda interação verbo-social, que se insere este trabalho reflexivo de caráter lingüístico-filosófico.

 

Referências bibliográficas

1. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992a.

2._____. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo, Hucitec, 1992b.

3. LUKÁCS, George. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas, São Paulo, Ciências Humanas, - 1978.                                                                           

4. _____. A reprodução. Tradução de Sérgio Lessa, 1989, mimeo.

5. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral.  10 ed. São Paulo, Cultrix, 1985. 

6. VYGOTSKY, Lev Semenovictch. Pensamento e linguagem. Paulo, Martins Fontes, 1993. São Paulo.