O método pragmatista em Charles Sanders Peirce
António Fidalgo, Universidade da Beira Interior



O pragmatismo, como Peirce o concebe, é um método lógico-semiótico de clarificação das ideias. No esquema peirceano da classificação das ciências1 a lógica (ou semiótica em sentido geral) divide-se em três subdisciplinas: a gramática especulativa (ou semiótica em sentido restrito) que nos dá uma fisiologia das formas, uma classificação das funções e das formas de todos os signos; a crítica que consiste no estudo da classificação e da validade dos argumentos; e a metodêutica que é o estudo dos métodos para chegar à verdade. O pragmatismo que assenta na ideia de que o sentido de um conceito ou proposição pode ser explicado pela consideração dos seus efeitos práticos é um teoria metodêutica2.
A questão que se coloca sobre qualquer signo é o que ele significa, qual o pensamento que se lhe encontra associado e a que objecto se refere. O pragmatismo é o método para responder a esta questão3.
No artigo "Como tornar as nossas ideias claras de 1876, Peirce começa por criticar a posição imanentista da filosofia cartesiana relativamente à apreensão das ideias. A crítica centra-se nas noções de clareza e distinção.
Contra a ideia de clareza, entendida esta como a capacidade de reconhecer uma ideia em qualquer circunstância que ela ocorra e nunca a confundir com nenhuma outra, levanta Peirce duas objecções. Em primeiro lugar, isso representaria uma capacidade sobre-humana. Com efeito, quem poderia reconhecer uma ideia em todos os contextos e em todas as formas em que ela surgisse, não duvidando nunca da sua identidade? Identificar uma ideia em circunstâncias diversas não é tarefa fácil, e identificá-la em todas as suas formas é com certeza tarefa que implicaria "uma força e uma clareza tão prodigiosas do intelecto como se encontram raramente neste mundo."4 Em segundo lugar, esse reconhecimento não seria mais do que uma familiaridade com a ideia em causa. Neste caso, porém, teríamos um sentimento subjectivo sem qualquer valor lógico. A clareza de uma ideia não pode resumir-se a uma impressão. Por seu lado, a noção de distinção, introduzida para colmatar as deficiências desta concepção de clareza, exige que todos os elementos de uma ideia sejam claros. A distinção de uma ideia significaria, portanto, a possibilidade de a definir em termos abstractos. A crítica capital de Peirce à noção cartesiana de clareza e distinção é a de que não permitem decidir entre uma ideia que parece clara e uma outra que o é. Há homens que parecendo estar esclarecidos e determinados defendem opiniões contrárias sobre princípios fundamentais. Alguém pode estar muito convencido da clareza de uma ideia que não o é.
Ao método intuitivo cartesiano contrapõe Peirce o seu método baseado na engenharia do pensamento moderno.5 Para saber qual o interpretante de um signo (o significado de uma ideia) o que há a fazer é "considerar quais os efeitos, que podem ter certos aspectos práticos, que concebemos que o objecto da nossa concepção tem. A nossa concepção dos seus efeitos constitui o conjunto da nossa concepção do objecto".6
Peirce apresenta o pensamento como um sistema de ideias cuja única função é a produção da crença.7 A unidade do sistema reside na sua função. A função do pensa-mento é unicamente a de produzir a crença. A crença, por seu lado, é o apaziguamento da dúvida. Mas, ao sossegar a irritação da dúvida, a crença "implica a determinação na nossa natureza de uma regra de acção, ou, numa palavra, de um hábito". Quer isto dizer que com a crença acaba a hesitação de como agirmos ou procedermos.
Um exemplo poderá esclarecer como é que a crença é uma regra de acção. Se encontro uma pessoa que não me é inteiramente desconhecida, mas que de momento não identifico, começo a interrogar-me sobre quem será, de onde a conheço. Essa pessoa cumprimenta-me e não consigo lembrar-me de quem se trata. Não sei que hei-de dizer-lhe, e isso perturba-me. De repente, consigo identificar a pessoa. Daí em diante todas as minhas acções, a maneira como me dirijo a essa pessoa e os assuntos que com ela pode-rei abordar são determinados por esse reconhecimento. Em termos peirceanos, é uma crença que sossegou a minha dúvida e que constitui agora a base das minhas acções e reacções.
"A essência da crença é a criação de um hábito; e diferentes crenças distinguem-se pelos diferentes modos de acção a que dão origem." É com estas palavras que Peirce inicia o parágrafo 398, um dos mais importantes do seu ensaio. Vejamos a primeira parte da afirmação de Peirce: "a essência da crença é a criação de um hábito". Se eu julgar que determinado objecto é um garfo, então servir-me-ei dele para levar à boca certos alimentos sólidos. A crença de que esse objecto é um garfo condiciona as acções que farei com ele. O hábito não é mais do que o conjunto de todas essas acções, tanto reais como possíveis. Porém, para um chinês de uma aldeia remota do interior da China, que se serve normalmente de pauzinhos para levar à boca os alimentos sólidos, e que encontra um garfo perdido por um viajante ocidental, a sua crença acerca desse objecto pode ser completamente diferente. Pode julgar, por exemplo, que se trata de um ancinho para pequenos vasos de flores. Nesse caso, a sua crença consistirá em servir-se dele para tratar a terra dos seus vasos. Vimos atrás que as crenças determinam a acção. Mas a mesma crença determina as mesmas acções. Se as crenças se alteram também as acções se alteram. É por isso que o hábito constitui a identidade da crença.
A segunda parte da afirmação de Peirce, isto é, de que "diferentes crenças se distinguem pelos diferentes modos de acção a que dão origem", decorre da primeira. Enquanto identidade da crença, o hábito de acção é o critério para ava-liar da diferença entre crenças. Não teria pois qualquer sen-tido afirmar uma diferença de crenças cujos resultados de acção - não só efectivamente, mas também possivelmente - fossem os mesmos. O que decide então da identidade ou da diversidade das crenças não são meras palavras, mas sim acções empiricamente verificáveis, já que os referidos resultados de acção são resultados sensíveis.8

1 - Peirce, Collected Papers, 1.180-283.
2 - Conf. Helmut Pape, "Peirce and his followers" in Posner, 1998, Vol. 2, pp. 2016-2040 e David Savan, An Introduction to C.S.Peirce's Full System of Semiotic, Toronto: University of Toronto, 1988
3 - David Savan, An Introduction to C.S.Peirce's Full System of Semiotic, Toronto: University of Toronto, 1988. "The theory of the interpretant is the most extensive and important of Peirce's theory of signs."
4 - Collected Papers, 5 389.
5 - As invectivas de Peirce contra a lógica tradicional são precisamente a de ter ignorado ao longo de mais de um século a revolução ocorrida no pensamento científico e, por conseguinte, não ter retirado daí as devidas lições.
6 - É a máxima pragmatista, enunciada no parágrafo 402, ibidem.
7 - Peirce compara o pensamento à audição de uma melodia, em que temos uma percepção directa dos sons que a compõem e uma percepção indirecta do seu todo. Cada som é uma nota e dele temos consciência (ouvimo-lo) num determinado momento, separadamente dos sons que ouvi-mos antes e dos sons que ouviremos depois. Em contrapartida, a melodia é um elemento mediato à consciência, mediado pelos sons que a compõem. Tal como a melodia, também o pensamento é uma acção que tem começo, meio e fim, e consiste na congruência da sucessão de sensações que passam pela mente. Nas palavras de Peirce, "o pensamento é a linha de uma melodia através da sucessão das nossas sensações." (ibidem)
8 - Sobre esta temática, veja-se a excelente exposição de John Murphy, O Pragmatismo. De Peirce a Davidson, Lisboa: Asa, 1993, pp.38-41.