SEMIÓTICA, A LÓGICA DA COMUNICAÇÃO

António Fidalgo, Universidade da Beira Interior

 

Terceira parte

A LÓGICA DA COMUNICAÇÃO

 Os Campos da Semiótica: Sintaxe, Semântica e Pragmática | Os Actos da Fala. A Linguagem como Acção | A Pragmática Universal de Jürgen Habermas

 
CAPÍTULO PRIMEIRO

OS CAMPOS DA SEMIÓTICA

SINTAXE, SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA

1. A semiose em Morris e o princípio da divisão da semiótica.
Cabe a Charles Morris o mérito de ter estabelecido a divisão da semiótica em sintaxe, semântica e pragmática. Essa divisão decorre da análise feita por Morris do processo semiósico 1.
A semiose é o processo em que algo funciona como um signo. A análise deste processo apura quatro factores: o veículo sígnico – aquilo que actua como um signo, o designatum – aquilo a que o signo se refere, o interpretante – o efeito sobre alguém em virtude do qual a coisa em questão é um signo para esse alguém, o intérprete – o alguém. Formalmente teremos: S é um signo de D para I na medida em que I se dá conta de D em virtude da presença de S. Assim, a semiose é o processo em que alguém se dá conta de uma coisa mediante uma terceira. Trata-se de um dar-se-conta-de mediato. Os mediadores são os veículos sígnicos, os dar-se-conta-de são os interpretantes, os agentes do processo são os intérpretes.
Antes de mais convém salientar que esta análise é puramente formal, ela não tem minimamente em conta a natureza do veículo sígnico, do designatum ou do intérprete. Os factores da semiose são factores relacionais, de tal ordem que só subsistem enquanto se implicam uns aos outros. Só existe veículo sígnico se houver um designatum e um interpretante correspondentes; e o mesmo vale para estes dois últimos factores: a existência de um deles implica a existência dos outros. Isto tem o seguinte corolário, que é da maior importância: a semiótica não estuda quaisquer objectos específicos, mas todos os objectos desde que participem num processo de semiose.
Estas considerações são sobretudo pertinentes relativamente aos designata. Os designata não se confundem com os objectos do mundo real. Pode haver e há signos que se referem a um mesmo objecto, mas que têm designata diferentes. Isso ocorre quando há interpretantes diferentes, ou seja, quando aquilo de que é dado conta no objecto difere para vários intérpretes. Os designata podem ser produtos da fantasia, objectos irreais ou até contraditórios. Os objectos reais quando referidos constituem apenas uma classe específica de designata, são os denotata. Todo o signo tem, portanto, um designatum, mas nem todo o signo tem um denotatum.
A semiose é tridimensional; ela contempla sempre um veículo sígnico, um designatum e um intérprete (o interpretante é dar-se conta de um intérprete, pelo que por vezes se pode omitir). Ora desta relação triádica da semiose podemos extrair diferentes tipos de relações diádicas, nomeadamente as relações dos signos aos objectos a que se aplicam e as relações entre os signos e os seus intérpretes. As primeiras relações cabem na dimensão semântica da semiose e as últimas na dimensão pragmática. A estas duas dimensões acrescenta-se necessariamente a dimensão sintáctica da semiose que contempla as relações dos signos entre si.
Cada uma destas dimensões possui termos especiais para designar as respectivas relações. Assim, por exemplo, "implica" é um termo sintáctico, "designa" e "denota" termos semânticos e "expressa" um termo pragmático. É deste modo que a palavra 'mesa' implica (mas não designa) a sua definição 'mobília com um tampo horizontal em que podem ser colocadas coisas', denota os objectos a que se aplica e expressa o pensamento do seu utilizador. As dimensões de um signo não têm todas o mesmo realce. Há signos que se reduzem à função de implicação e, por conseguinte, a sua dimensão semântica é nula – vejam-se os signos matemáticos! –, há signos que se centram totalmente na denotação e, portanto, não têm uma dimensão sintáctica e há signos que não têm intérpretes efectivos, como é o caso das línguas mortas, e, por conseguinte, não têm dimensão pragmática.
Em suma, a divisão da semiótica em sintaxe, semântica e pragmática, decorre da análise do processo semiósico em que uma coisa se torna para alguém signo de uma outra coisa.

1- A sintaxe e a ideia de gramática
Indiscutivelmente a sintaxe, enquanto estudo das relações sintácticas dos signos entre si, constitui a parte mais desenvolvida da semiótica. Esse desenvolvimento começou o mais tardar com as ideias leibnizianas da ars characteristica, da ciência a que incumbiria formar os signos de modo a obter, através da mera consideração dos signos, todas as consequências das ideias correspondentes, e da ars combinatoria, do cálculo geral para determinar as combinações possíveis dos signos. Depois de Leibniz, muitos lógicos contribuíram para o progresso da estrutura logico-gramatical da linguagem. Além dos já citados neste relatório, há ainda mencionar Boole, Peano, Russel e Whitehead.
Os signos formam-se e agrupam-se segundo regras bem definidas. Num primeiro momento, há a considerar as regras de formação que determinam a construção de proposições; num segundo momento, temos as regras de transformação que determinam as proposições a inferir de outras proposições. As primeiras regras indicam-nos se uma proposição é ou não bem formada, as segundas estipulam as inferências entre proposições, isto é, determinam o cálculo proposicional.
i) Sintaxe e língua.
Os elementos de uma língua organizam-se, não se amontoam. Os signos linguísticos são-no enquanto, e só enquanto, se inserem em todos de significação (sintagmas, sistemas). Fazer a análise gramatical de uma proposição ou enunciado "é indicar as funções desempenhadas pelas palavras ou grupos de palavras nessa proposição" 2. Conhecemos essa análise da escola primária: qual termo é o sujeito da proposição, qual o predicado, o complemento directo, etc. Isto significa que os elementos da frase possuem funções sintácticas diferentes. Não basta chamar a atenção para o termo funções sintácticas, há que reparar também na palavra diferentes. As funções sintácticas dos diversos elementos da frase são diferentes. Segundo Ducrot 3, impõem-se a este respeito as seguintes considerações: 1. A sintaxe define certas relações entre os elementos da frase e a totalidade da frase, relações em que dois elementos distintos têm, muitas vezes, uma relação diferente com a frase total. 2. A relação particular que liga um constituinte à frase total pode ser descrita em termos finalistas como um papel: admite-se que a frase, tomada globalmente, tem uma finalidade, e que cada constituinte se distingue dos outros pelo papel que desempenha no cumprimento dessa finalidade. 3. A função de um elemento não é directamente determinada pela sua natureza: dois elementos de natureza diferente podem ter a mesma função e inversamente constituintes da mesma natureza podem ter funções diferentes. 4. As funções sintácticas são independentes da capacidade combinatória dos falantes, elas residem na própria língua.
Das funções sintácticas de uma língua destacam-se as de sujeito e predicado. A função de sujeito é a de indicar o objecto sobre o qual se fala e que é determinado pelos predicados. A função de predicado consiste em determinar esse objecto ou afirmar algo sobre ele.
Esta estrutura sintáctica é de tal modo fundamental que se podem compreender as lógicas de Aristóteles e de Kant respectivamente como lógicas de sujeito e de predicado. Assim, a lógica aristotélica privilegia o sujeito enquanto substrato de todas as determinações. É que esta visão decorre da noção ontológica de substância que subjaz a todos os acidentes, acidentes estes que, gramaticalmente, não são mais que predicados. Por seu lado, a lógica kantiana coloca o acento tónico no predicado. O sujeito em si é apenas um indeterminado que irá ser construído pela determinação operada pelos predicados. Se em Aristóteles a lógica precede a ontologia, em Kant é a lógica que determina a ontologia possível ou cognoscível, ou seja, a ontologia da realidade fenoménica.
ii) sintaxe e ciência
Foi enorme a importância que o Círculo de Viena concedeu à sintaxe na reflexão epistemológica. Sobretudo os estudos de Rudolf Carnap, em que se destacam A Construção Lógica do Mundo e A Sintaxe Lógica da Linguagem, focaram a dimensão sintáctica da ciência 4. A ciência – melhor, toda e qualquer ciência particular – é composta por conceitos e proposições. Uns e outros sistematizam-se de forma axio-mática, podendo ser inferidos de alguns poucos conceitos e proposições fundamentais. Quer isto dizer que a ciência se organiza sistematicamente e, portanto, possui, enquanto discurso, uma estrutura sintáctica. Isto é tanto válido para as ciências formais, lógica e matemática, como para as ciências empíricas.
Quanto às ciências formais a intelecção que lhes está subjacente é que a verdade das suas asserções se baseia apenas na sua estrutura e no significado dos termos que as compõem. Estas asserções são verdadeiras em todas as circunstâncias e, portanto, a sua verdade é independente dos factos mundanos. Isto implica, por seu lado, que essas asserções nada digam sobre a realidade.
Relativamente às ciências empíricas a sistematização incide sobre o apuramento dos elementos e relações fundamentais a partir dos quais se inferem os restantes conceitos e se constrói axiomaticamente o edifício da ciência. Trata-se de um sistema de constituição dos conceitos empíricos. Constituir um determinado conceito a partir de outros conceitos significa enunciar uma regra geral pela qual todas as proposições em que aparece esse conceito podem ser traduzidas em proposições em que apenas aparecem os conceitos de que esse conceito é derivado.
Dado à ambiguidade e à imprecisão da linguagem quotidiana, uma das tarefas da ciência consiste justamente, segundo Carnap, em construir linguagens formalizadas, unívocas e exactas. São linguagens artificiais que, cumprindo os requisitos científicos de rigor, devem substituir as linguagens naturais. Para além da eliminação de mal entendidos, ambiguidades e confusões, um dos objectivos mais importantes do emprego de linguagens formalizadas reside na clara separação entre linguagem e metalinguagem. Enquanto a linguagem contém apenas proposições-coisa, isto é, proposições cujos designata não incluem signos, a metalinguagem tem na própria linguagem o seu objecto. Essa distinção possibilita a destrinça entre proposições-coisa e pseudo-proposições, isto é, proposições que parecendo ser proposições-coisa efectivamente o não são.

2- A semântica
Normalmente entendida como a ciência do significado, a semântica, vista da perspectiva da semiose, ocupa-se da relação dos signos (veículos sígnicos) aos seus designata. É no âmbito desta relação que habitualmente se discute a questão da verdade.
A questão central da semântica reside no estabelecimento da regra semântica a qual determina sob que condições um signo é aplicável a um objecto ou a uma situação. "Um signo denota o quer que se conforma às condições estabelecidas na regra semântica, enquanto a própria regra estabelece as condições de designação e, desse modo, determina o designatum" 5. Quer isto dizer que a dimensão semântica de um signo só existe na medida em que há regras semânticas que determinam a sua aplicabilidade a certas situações sob certas condições.
A diferenciação e classificação dos signos em índices, ícones, símbolos e outros, explica-se pelas diferentes espécies de regras semânticas. Assim, a regra semântica de um signo indexical como o apontar estipula que o signo designa a qualquer momento aquilo que é apontado. Neste caso, o signo não caracteriza o que denota. Em contrapartida, ícones e símbolos caracterizam aquilo que designam. Se o signo caracterizar o objecto denotado por mostrar nele mesmo as propriedades que um objecto tem, como acontece com as fotografias, os mapas ou os diagramas químicos, então o signo é um ícone; se não for esse o caso, então trata-se de um símbolo.
A regra semântica também se estende às proposições. Aqui a regra que estipula as condições de aplicabilidade da proposição a um determinado estado de coisas envolve necessariamente a referência às regras semânticas dos signos que a compõem.
Entendendo a semântica como a ciência do significado, cabe dizer que há diversos significados de significado 6. É célebre a inventariação dos significados de significado feita por Ogden e Richards, onde se contam dezasseis significações diferentes do termo 7. Hoje em dia distinguem-se usualmente duas grandes correntes na definição de significado: uma analítica e outra operacional. A primeira tenta apreender a essência do significado, a segunda investiga sobretudo o modo como opera. Na primeira corrente incluem-se tanto a teoria referencial como a teoria ideacional do significado. A teoria referencial considera que o significado de um signo é a coisa pelo qual o signo está. Por seu lado, a teoria ideacional defende que o significado de um termo ou de um signo não é a coisa pela qual o signo está ou que o signo representa, mas sim a ideia que exprime. A concepção saussureana do signo é claramente ideacional, o significado é o conceito. Na corrente operacional temos a teoria behaviorista e a teoria pragmática. A primeira, que é a preconizada por Bloomfield, encara o significado de uma forma linguística como a situação em que o elocutor a emite e a resposta que provoca no ouvinte. Quer isto dizer que o significado de uma palavra é definido pela situação da enunciação da mesma, nomeadamente pelos estímulos que a provocam e pelas reacções que ela provoca. A teoria pragmática, por sua vez, considera que o verdadeiro significado de uma palavra não está tanto no que se diz acerca dela como no que se faz com ela. Dito de uma forma sucinta, o significado de uma palavra é o seu uso na língua. Enquanto a teoria behaviorista explica o significado a partir do actividade humana entendida como comportamento, a teoria pragmática entende essa actividade como acção. A explicação behaviorista é de ordem causal, ao passo que a explicação pragmática é teleológica.

3- A pragmática
A dimensão pragmática do processo semiósico foi realçada pelo pragmatismo. Com efeito, foi esta corrente filosófica iniciada por Peirce que prestou especial atenção à relação entre os signos e os seus utilizadores. O pragmatismo compreendeu que para além das dimensões sintáctica e semântica na análise do processo sígnico há uma dimensão contextual. Isto é, o signo não é indepen-dente da sua utilização. A novidade da abordagem pragmatista da semiose está em não remeter a utilização dos signos para uma esfera exclusivamente empírica, socio-psicológica, mas encarar essa utilização de um ponto de vista lógico-analítico. A dimensão pragmática é tal como as dimensões sintáctica e semântica da semiose uma dimensão lógica.
De certo modo a pragmática surge como um desenvolvimento imanente do processo semiótico. Com isto quer-se dizer que tal como a análise das formas sígnicas (sintaxe) leva necessariamente à consideração dos valores semânticos como critério para definir as unidades sintácticas, assim também a análise do significado induz à consideração das condições e situações da sua utilização. Bobes Naves traça muito bem o desenvolvimento da análise semiótica conducente à pragmática: "Ao estudar as formas e as relações dos signos, (...) somos levados necessariamente a ter em conta os valores semânticos como critério para definir as unidades, mesmo no plano estritamente formal. E ao analisar o significado, e sobretudo o sentido, dessas unidades e dos processos sémicos em geral, surgem problemas acerca dos diferentes modos de significar e sobre a forma em que os usos adoptam as relações de tipo referencial, ou as de iconicidade, ou os valores simbólicos, etc.; torna-se necessário determinar os marcos lógicos, ideológicos ou culturais em que se dão os processos semiósicos; as situações em que colhem sentido os diferentes signos; os indícios textuais que orientam os sujeitos que intervêm no processo de comunicação (deícticos, apreciações subjectivas, usos éticos e étimos do signos codificados, etc.) etc., de modo que qualquer estudo semântico ou sintáctico conduz inexoravelmente à investigação pragmática. Tanto as unidades sintácticas como o sentido do texto estão vinculados à situação de uso, às circunstâncias em que se produz o processo de expressão, de comunicação, de interpretação dos signos objectivados num tempo, num espaço e numa cultura.
Por outro lado, a relação dos sujeitos que usam os signos num processo semiósico em que partilham o enquadramento situacional e todas as circunstâncias pragmáticas, pode estabelecer-se num tom irónico, sarcástico, metafórico, simbólico, etc., que condiciona o valor das referências próprias dos signos. As relações dos sujeitos com o próprio texto constitui uma clara fonte de sentido. Os signos, incluindo os codificados, mas sempre circunstanciais, adquirem um valor semiótico concreto em cada uso, um sentido (...) para além do que possam precisar nos limites convencionais do mesmo texto.
O desenvolvimento interno da investigação semiológica conduz, por conseguinte, de um modo progressivo, da sintaxe à semântica e desta à pragmática enquanto consideração totalizadora de todos os aspectos do uso do signo nos processos semiósicos." 8.
Assim como as regras sintácticas determinam as relações sígnicas entre veículos sígnicos e as regras semânticas correlacionam os veículos sígnicos com outros objectos, assim as regras pragmáticas estabelecem as condições nos intérpretes em que algo se torna um signo. Isto é, o estabelecimento das condições em que os termos são utilizados, na medida em que não podem ser formuladas em termos de regras sintácticas e semânticas, constituem as regras pragmáticas para os termos em questão 9. Efectivamente, o emprego, por exemplo, da interjeição 'Oh!', da ordem 'Vem cá?, do termo valorativo 'Felizmente', é regido por regras pragmáticas.
O estabelecimento da regra pragmática permite traçar a fronteira entre o uso e o abuso dos signos. Qualquer signo produzido e usado por um intérprete pode também servir para obter informações sobre esse intérprete. Tanto a psicanálise, como o pragmatismo ou a sociologia do conhecimento interessam-se pelos signos devido ao valor de diagnose individual e social que a produção e a utilização dos signos permite. O psicanalista interessa-se pelos sonhos devido à luz que estes lançam sobre a alma do sonhador. Ele não se preocupa com a questão semântica dos sonhos, a sua possível verdade ou correspondência com a realidade. Aqui o signo exprime – mas não denota! – o seu próprio interpretante.
Graças ao carácter diagnóstico da utilização dos signos, é possível e é "perfeitamente legítimo para certos fins utilizar signos simplesmente em ordem a produzir certos processos de interpretação, independentemente de haver ou não objectos denotados pelos signos ou mesmo de as combinações de signos serem ou não formalmente possíveis relativamente às regras de formação e transformação da língua em que os veículos sígnicos em questão são normalmente utilizados" 10. Os signos podem ser usados para condicionar comportamentos e acções tanto próprios como alheios. Ordens, petições, exortações, etc., constituem casos em que os signos são usados sobretudo numa função pragmática. "Para fins estéticos e práticos o uso efectivo dos signos pode requerer vastas alterações ao uso mais efectivo dos mesmos veículos sígnicos para fins científicos. (...) o uso do veículo sígnico varia com o fim a que se presta"11.
O abuso dos signos verifica-se quando são usados de modo a darem uma aparência que efectivamente não têm. O abuso toma usualmente a forma de mascaramento dos verdadeiros objectivos visados com a utilização dos signos. Um exemplo de abuso dos signos é o caso em que para obter certo objectivo se dão aos signos usados as características de proposições com dimensão sintáctica e semântica, de modo a parecerem ter sido demonstrados racionalmente ou verificados empiricamente, quando efectivamente o não foram.
Morris considera que se trata de um abuso da doutrina pragmatista identificar verdade com utilidade. "Uma justificação peculiarmente intelectualista de desonestidade no uso dos signos consiste em negar que a verdade tenha outro componente para além do pragmático, de jeito que qualquer signo que se preste aos interesses do utilizador é considerado verdadeiro" 12. Trata-se de um abuso pois que a verdade é um termo semiótico e não pode ser encarado na perspectiva de uma única dimensão. "Aqueles que gostariam de acreditar que 'verdade' é um termo estritamente pragmático remetem frequentemente para os pragmatistas em apoio da sua opinião, e naturalmente não reparam (ou não percebem) que o pragmatismo enquanto uma continuação do empirismo é uma generalização do método científico para fins filosóficos e que não poderia afirmar que os factores no uso comum do termo 'verdade', para os quais se tem vindo a chamar a atenção, aniquilariam factores reconhecidos anteriormente" 13.
 
 

CAPÍTULO SEGUNDO

OS ACTOS DE FALA.
A LINGUAGEM COMO ACÇÃO

Com as palavras não se dizem apenas coisas, também se fazem coisas. Fazem-se promessas, afirmações, avisos. É nisso que reside a força ilocucional da língua, na terminologia de J. L. Austin. "I do things, in saying something. (...) the locutionary act has a meaning – the illocutionary act has a certain force in saying something." 14.
Que é a força ilocucional, isto é, a capacidade de fazer coisas com a língua? Para se dar uma resposta, há que fazer a distinção austiniana entre constatativos e performativos. Constatativos são todas aquelas afirmações que verificam, apuram, constatam algo: "A mesa é verde", "sinto-me cansado", "O João é mais alto que o Pedro", "Deus está nos céus". São afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. Por sua vez, os performativos não descrevem, não relatam, não constatam nada, não são verdadeiros nem falsos, eles fazem algo ou então são parte de uma acção. O noivo que diz: "Eu, fulano tal, aceito-te, fulana tal, como minha legítima esposa" na cerimónia do casamento, não narra coisa alguma, ele está pura e simplesmente a fazer uma coisa: a casar-se com a fulana tal. E não se casa, se não disser (fizer) isso.
O acto de fala, o fazer falando, tem assim uma determinada força: a força ilocucional. Mas uma acto de fala, enquanto acção, pode resultar ou não resultar. Um acto de fala resulta quando entre o elocutor e o ouvinte se estabelece uma relação, justamente a visada pelo elocutor, e o ouvinte entende e aceita o que o elocutor lhe diz.
Para que os performativos tenham lugar há que satisfazer certas condições. Austin enumera justamente seis regras que têm de ser seguidas por quem pretenda realizar actos de fala. Em primeiro lugar, tem de haver um procedimento convencional, geralmente aceite, com um certo efeito convencional, em que esse procedimento inclui o uso de certas palavras por determinadas pessoas em determinadas circunstâncias. Segundo, as pessoas e as circunstâncias específicas num dado caso têm de ser apropriadas para invocar o procedimento específico invocado. Terceiro, todos os intervenientes têm de cumprir o procedimento correctamente. Quarto, têm de o cumprir completamente. Quinto, nos procedimentos para cujo cumprimento as pessoas têm de ter determinados pensamentos ou sentimentos, então as pessoas envolvidas têm de ter efectivamente esses pensamentos ou sentimentos e agir de acordo com eles 15. Sexto, os intervenientes têm de agir também posteriormente de acordo com eles. Se uma das condições não for satisfeita, então o acto de fala não se realiza.
Austin chama ao insucesso dos actos de fala infelicidades. As infelicidades, porém, não são todas idênticas. Quando resultam do incumprimento às primeiras quatro condições ou regras, chamam-se falhas (misfires), quando são infracções às duas últimas regras são designadas por abusos.
Exemplos de infracções a estas regras ajudam a compreendê-las 16. Uma infracção relativa à primeira regra ocorre quando, por exemplo, alguém desafia para um duelo um habitante de um país onde a instituição do duelo é totalmente desconhecida. Uma infracção à segunda regra ocorre quando uma pessoa dá uma ordem a outra, sem contudo estar investido (em geral ou numa determinada situação) de autoridade para o fazer. Infracções à terceira e quarta regras ocorrem principalmente no direito, porque aí se exigem determinados rituais ou formas rigorosas. Na vida do dia a dia estes casos são habitualmente ignorados, na medida do possível. Porém, pode-se dizer que há uma infracção à regra três quando, por exemplo, alguém "desmarca a actividade desportiva marcada para amanhã" sem indicar de que actividade desportiva se trata; ou se alguém "deixar em testamento a alguém uma casa", possuindo, no entanto, oito casas, e não indicando de que casa se trata. Uma infracção à quarta regra ocorre quando fulano diz a sicrano: "aposto contigo que...", mas sicrano não aceita a aposta. Vista de uma perspectiva jurídica, uma aposta é um contrato entre dois lados. O que aqui existe é apenas a proposta para se fazer um contrato, mas que não teve seguimento. O que é comum a todos estes tipos de infracções é o facto de o acto de fala intendido não chegar a ter lugar. Se qualquer uma das quatro primeiras regras não for cumprida, o acto de fala pura e simplesmente não chega a ter lugar.
As infracções das últimas duas regras são de tipo bem diferente. O não cumprimento destas regras não implica só por si a não realização do acto de fala. Um exemplo típico de infracção a estas regras é uma promessa não cumprida. Se a pessoa A quando disse: "prometo-te que vou ter contigo ainda hoje" não tiver a intenção de ir lá, então existe uma infracção à quinta regra. Se A tinha de facto a intenção de cumprir a promessa, mas mais tarde ter reconsiderado em contrário, então trata-se de uma infracção à última regra. Mas aqui importa salientar o seguinte: apesar das infracções a promessa foi feita. Mesmo que o promitente não tenha à partida a intenção de cumprir a promessa, ele faz na mesma a promessa, unicamente a promessa não foi leal; se não cumprir o prometido, a promessa não deixa de ter sido feita, só que há um rompimento da promessa.
 

 
 

CAPÍTULO TERCEIRO

A PRAGMÁTICA UNIVERSAL
DE JÜRGEN HABERMAS 17

1) A lógica dos enunciados
A linguística de Saussure assenta na distinção entre língua e fala. Aliás, essa distinção é fundamental para toda a linguística estruturalista. Com efeito, esta ao demarcar a língua da fala, concebe a língua como um sistema de regras para a produção de frases, de tal modo que todos as frases bem formadas podem considerar-se elementos da língua. A língua é um sistema, com regras definidas, que compete à linguística apurar. A língua é o elemento social e essencial da linguagem. A fala, por seu lado, é o individual e acidental, onde é difícil, ou mesmo impossível, apurar regras ou descortinar um sistema. Desse modo, o estudo da língua terá uma unidade própria no âmbito lógico. A fala seria relegada para estudos empíricos, sobretudo de cariz psicológico.
Habermas, todavia, considera tratar-se de um sofisma a ideia de que o sucesso da delimitação da análise linguística à língua signifique a impossibilidade de uma análise lógica da fala. A distinção língua/fala não deve relegar a dimensão pragmática da língua para as ciências empí-ricas, por exemplo, para a psicolinguística ou para a sociolinguística. A tese de Habermas é de que não só a língua, mas também a fala, portanto a utilização de frases em enunciados, é passível de uma análise lógica.
Enquanto a linguística faz uma distinção entre língua e utilização da língua, procurando somente tematizar as unidades da língua, isto é, as frases, a teoria dos actos de fala procura tema-tizar as unidades da fala, isto é, os enunciados. Encontramos aqui a distinção entre frases e enunciados. Esta distinção ficará clara através de alguns exemplos: o mesmo enunciado pode ser feito com frases diferentes: posso enunciar o facto de João estar gordo com diferentes frases: "O João está mesmo gordo", "Que gordo está o João!", "Está gordo o João!"; por seu lado, a mesma frase pode servir para diferentes enunciados. Com a frase "É uma bela menina" tanto podemos fazer numa enunciação descritiva, como laudatória, ou até irónica. A mesma frase pode ser usada com sentidos completamente diferentes, dependendo isso do contexto em que é dita, ou seja, o uso que dela se faz.
Ora o objectivo da análise linguística é a descrição explícita das regras que há que dominar para se poder produzir frases gramaticalmente correctas. A teoria dos actos de fala, por sua vez, procura descrever o sistema fundamental de regras de uma competência enunciativa, isto é, já não de construção de frases, mas sim da sua aplicação correcta em enunciados. Não basta saber construir frases correctas à luz da gramática, há que também saber enunciá-las e isso é algo de diferente. O que está em causa, portanto, são as condições de enunciação.
Que condições são essas? Isto é, quais são as condições gerais de comunicação?
Vamos ver que não basta a gramaticalidade de uma frase como condição da sua enunciação. Se L for uma língua natural e GL o sistema de regras gramaticais dessa língua, então qualquer cadeia de símbolos é considerada uma frase de L se tiver sido construída de acordo com as regras de GL. A gramaticalidade de uma frase significa, em termos pragmáticos, que a frase quando enunciada é compreensível a todos os ouvintes que dominam GL. Mas não basta uma frase ser compreensível, para ser um enunciado. Um enunciado tem também de ser verdadeiro, na medida em que diz algo acerca do mundo que percepcionamos, tem de ser sincero na medida em que traduz o pensamento de quem o enuncia, e tem de estar correcto na medida em que se situa num contexto de expectativas sociais e culturais.
A frase para o linguista apenas tem de obedecer às condições de compreensibilidade, ou seja, de gramaticalidade. No entanto, uma vez pronunciada, tem de ser vista pragmaticamente sob outros aspectos. Além da gramaticalidade, o falante tem ainda de ter em conta o seguinte:
i) escolher a expressão de modo a descrever uma experiência ou um facto (satisfazendo determinadas condições de verdade) e para que o ouvinte possa partilhar o seu saber;
ii) exprimir as suas intenções de modo a que a expressão reflicta o seu pensamento e para que o ouvinte possa confiar nele;
iii) levar a cabo o acto de fala de modo que satisfaça normas aceites e para que o ouvinte possa estar de acordo com esses valores.
Estas três funções pragmáticas, isto é, de com a ajuda de uma frase descrever algo, exprimir uma intenção e estabelecer uma relação entre o elocutor e o ouvinte, estão na base de todas as funções que um enunciado pode tomar em contextos particulares. A satisfação dessas funções tem como bitola as condições universais de verdade, sinceridade e correcção. Todo acto de fala pode, assim, ser analisado sob cada uma destas funções: i) uma teoria da frase elementar investiga o conteúdo proposicional do enunciado na perspectiva de uma análise lógico-semântica; ii) uma teoria da expressão intencional investiga o conteúdo intencional na perspectiva da relação entre subjectividade intersubjectividade linguística; e a teoria dos actos de fala investiga a força ilocucional na perspectiva de uma análise inter-activa do estabelecimento de relações inter-pessoais.
Podemos assim, distinguir teorias e respectivos âmbitos:
 

Teoria Âmbito
Linguística frases
Gramática Frases de uma língua
Teoria gramatical Regras de generação de frases em qualquer língua
Aspectos da análise Linguística
Fonética sons da linguagem
Sintaxe regras sintácticas
Semântica unidades lexicais
Pragmática actos de fala
Pragmática empírica actos de fala típicos de certas situações
Pragmática universal regras da colocação de frases em quaisquer actos de fala quaisquer actos de fala
Aspectos da análise/Pragmática universal
Teoria da frase elementar actos da identificação e da predicação
Teoria da expressão intencional expressão linguística de intenções
Teoria dos actos ilocucionais estabelecimento de relações interpessoais

2) A dupla estrutura da fala
Há muitos tipos de actos de fala: gritar "fogo!", celebrar um contrato, fazer um juramento, baptizar, etc. Mas a forma padrão de um acto de fala é aquela em que encontramos no enunciado duas partes: uma ilocucional e outra proposicional. Tomem-se alguns exemplos para clarificar esta distinção:
Peço-te que feches a porta / Peço-te que abras a porta
Ordeno-te que feches a porta / Ordeno-te que abras a porta
Pedir ou ordenar são a parte ilocucional – aliás essas são expressões tipicamente ilocucionais; o abrir a porta e o fechar a porta são a parte proposicional.
Há uma certa independência entre estas duas partes: podem variar independentemente uma da outra. Tal independência permite uma combinatória de tipos de acção e conteúdos. Tome-se outro exemplo: "Afirmo que Pedro fuma cachimbo", "Peço-te Pedro para fumares cachimbo", Pergunto-te, Pedro, se fumas cachimbo?", "Aconselho-te, Pedro, a não fumares cachimbo". Ora como a afirmação, a petição, a pergunta e o conselho, podiam ter outros conteúdos proposicionais, há no acto de fala dois níveis comunicativos em que elocutor e ouvinte têm de se entender simultaneamente, caso queiram comunicar as suas intenções. Por um lado, o nível da subjectividade em que quem fala e quem ouve estabelecem relações mediante actos ilocucionais, relações que lhes permite entenderem-se; por outro lado, o nível das experiências e estados de coisas sobre os quais querem entender-se no nível intersubjectivo. Todo o enunciado pode ser analisado sob estes dois aspectos: o aspecto relacional, intersubjectivo, e o aspecto de conteúdo, sobre o qual se faz a comunicação.
Correspondentemente, distinguimos dois tipos de compreensão: uma compreensão ilocucional e outra predicativa. A primeira tem a ver com o nível intersubjectivo do enunciado, a segunda com o nível proposicional, o nível das experiências. Ilocucionalmente compreendemos a tentativa de estabelecer uma relação interpessoal, predicativamente compreendemos o conteúdo proposicional de um enunciado.
Exemplos destes dois tipos de compreensão são fáceis de encontrar: Alguém faz uma pergunta, mas não compreendemos o que é que pergunta. Isto é, entendemos que está a fazer uma pergunta, mas não deciframos o que está a perguntar. Um aluno apanhado distraído pela pergunta que o professor lhe faz oferece um caso comum de compreensão ilocucional em que não se compreende o conteúdo proposicional. Outras vezes é ao contrário, alguém fala-nos sobre determinado assunto, por exemplo: das suas dificuldades económicas, e ao fim perguntamo-nos: está a dar-me uma notícia, ou a pedir-me dinheiro? estes dois níveis de compreensão são, assim, não só distintos , como de certo modo independentes.

3) As consequências dos actos de fala para a semântica.
A distinção entre actos locucionais (constativos) e actos ilocucionais (performativos) traz importantes consequências à semântica (teoria do significado). Austin reservou o conceito de "meaning" para as frases de conteúdo proposicional e empregava para os actos ilocucionais a expressão "força". Assim, temos:
meaning – sense and reference – locutionary act
force  – attempt to reach an uptake – illocutionary act
É bom de ver que também as proposições ilocucionais têm um significado lexical. Há um significado comum a "pedir", seja em emprego proposicional "Ontem o João pediu ao António para fechar a porta", seja em emprego ilocucional "Peço-te que feches a porta". Mas não podemos reduzir a força de um enunciado ao seu significado linguís-tico, como se a força fosse apenas o significado lexical inserido em determinado contexto, isto é, como se a força fosse o conteúdo significativo que ganharia o conteúdo lexical ao ser utilizado nas estruturas enunciativas (de fala). Porém, é possível distinguir entre o significado de uma frase e o significado que a utilização dessa frase tem num enunciado. Podemos falar, em sentido pragmático, do significado de um enunciado, tal como em sentido linguístico do significado de uma frase. Assim, por exemplo, o que é um pedido em termos linguísticos pode ser uma ordem em sentido pragmático. Se o chefe disser à secretária: "Poderia fazer-me um café, se fizer o favor?", o significado linguístico é diferente do significado pragmático. Linguisticamente é um pedido, mas pragmaticamente trata-se de uma ordem.

4) Modos de comunicação
Austin julgava poder fazer uma clara divisão entre consta-tativos e performativos. Os primeiros diriam alguma coisa e seriam verdadeiros ou falsos; os segundos fariam alguma coisa e teriam ou não sucesso. Porém, as investigações subsequentes a Austin mostraram que também os constata-tivos têm uma parte ilocucional. Os actos locucionais de Austin foram substituídos a) por uma parte proposicional, que todo o enunciado explicitamente perfor-mativo tem, e b) por uma classe especial de actos ilocucionais, que implicam a exigência de verdade – os actos de fala constatativos.
A inclusão dos constatativos nos actos de fala revela que a verdade é apenas uma de entre outros critérios de validade que o elocutor coloca ao ouvinte e que se propõe satisfazer. Um acto de fala implica sempre certas condições, isto é, faz sempre exigências de validade. As afirmações (os constatativos), tal como outros actos de fala (avisos, conselhos, ordens, promessas) só resultam quando estão satisfeitas duas condições: a) estar em ordem (to be in order); b) estar certas (to be right).
Actos de fala podem estar em ordem relativamente a contextos delimitados (a), mas só em relação a uma exigência fundamental que o elocutor faz com o acto ilocucional é que podem ser válidos (estar certos, to be right) (b).
Em que se distinguem as afirmações dos outros actos de fala? Não na sua dupla estrutura performativa e proposicional, também não pelas condições de contexto geral, que variam de modo típico em todos os actos de fala; distinguem-se por implicarem antes de mais um critério de validade: a pretensão de verdade.
Outras classes de actos de fala também têm critérios de validade, mas é por vezes difícil dizer quais os critérios específicos. A razão é a seguinte: a verdade, enquanto critério de validade dos actos de fala constatativos, é de certo modo pressuposta por actos de fala de qualquer tipo. A parte proposicional de qualquer performativo pode ser explicitada numa frase de conteúdo proposicional e, assim, tornar-se-á clara a pretensão de verdade que coloca. Conclusão: a verdade é um critério universal de verdade; essa universalidade reflecte-se na dupla estrutura da fala.
Quanto aos dois níveis em que a comunicação se desenrola, a saber, o nível da intersubjectividade e o nível das experiências e estados de coisas, pode-se na fala acentuar mais um que o outro; dependendo dessa acentuação o uso interactivo ou o uso cognitivo da língua. No uso interactivo da língua tematizamos as relações que elocutor e ouvinte assumem, seja enquanto aviso, promessa, exigência, ao passo que apenas se menciona o conteúdo proposicional de enunciado; no uso cognitivo tematizamos o conteúdo do enunciado enquanto proposição sobre algo que ocorre no mundo, ao passo que a relação interpessoal é apenas mencionada. É assim que no uso cognitivo omitimos geralmente o "afirmo que...", "constato que...", "digo-te que...", etc.
Pois que no uso cognitivo da linguagem tematiza-se o conteúdo, só se admitem nele actos de fala em que os conteúdos proposicionais podem tomar a forma de frases enunciativas. Com esses actos reivindica-se para a proposição afirmada a satisfação do critério de verdade. Por sua vez, no uso interactivo, que acentua a relação interpessoal, reportamo-nos de modos vários à validade da base normativa do acto de fala. Quer isto dizer que tal como no uso cognitivo da linguagem temos como critério de validade a verdade do que afirmamos, no uso interactivo temos também critérios de validade, só que doutro tipo. A força ilocucional do acto de fala, que cria entre os participantes uma relação interpessoal, é retirada da força vinculativa de reconhecidas normas de acção (ou de valoração); na medida em que o acto de fala é uma acção, actualiza um esquema já estabelecido de relações. É sempre pressuposto um conjunto normativo de instituições, papéis sociais, formas de vida socio-culturais já habituais, isto é, convenções.
Um acto de fala realiza-se sempre na base de um conjunto de instituições, normas, convenções. Por exemplo, uma ordem, uma aposta, etc., implicam um certo número de condições para que se possam realizar. Para apostar, por exemplo, pressupõe-se que se aposta a alguma coisa acerca de algo sobre o qual os dois apostantes têm pontos de vista diferentes. Mas não só os actos de fala institucionais (cumprimentar, apostar, baptizar, etc.) pressupõem uma determinada norma (regras) de acção. Também em promessas, proibições, e prescrições, que não se encontram reguladas à partida por instituições, o elocutor coloca uma pretensão de validade que, caso queira que o acto de fala resulte, deverá ser legitimada por normas existentes, e isso quer dizer: pelo menos, pelo reconhecimento fáctico da pretensão, de que essas normas têm razão de ser. Ora tal como no uso cognitivo da linguagem a pretensão de verdade é posta, assim também este conjunto de normas é pres-suposto como condição de validade no uso interactivo da linguagem. Ainda outro paralelismo: Tal como no uso cognitivo apenas são admitidos actos de fala constatativos, assim também no uso interactivo apenas são aceites os actos de fala que caracterizam uma determinada relação que elocutor e ouvinte podem assumir relativamente a normas de acção ou de valoração. Habermas. chama a estes actos de fala "regulativos". Com a força ilocucional dos actos de fala, o critério de validade normativa – correcção ou adequação – encontra-se alicerçada tão universalmente nas estruturas da fala como a pretensão de verdade.
Contudo, só em actos de fala regulativos é que essa exigência de um fundo normativo é invocada explicitamente. A pretensão de verdade do conteúdo proposicional desses actos fica apenas implícita. Nos actos constatativos é exactamente o inverso: a pretensão de verdade é explícita e a pretensão de normatividade é implícita.
Daqui segue-se: no uso cognitivo da linguagem tematizamos mediante constatativos o conteúdo proposicional de um enunciado; no uso interactivo da linguagem tematizamos mediante actos de fala regulativos o tipo de relação interpessoal estabelecida; a diferente tematização resulta da escolha de uma das pretensões colocadas pela fala, no uso cognitivo a reivindicação de verdade, no uso regulativo a reivindicação de um fundo normativo.
Uma terceira reivindicação que a fala faz e que marca o uso expressivo da linguagem é a da veracidade. A veracidade é a reivindicação que o elocutor faz ao exprimir as suas intenções. A veracidade garante a transparência de uma subjectividade que se expõe linguisticamente.
Paradigmas do uso expressivo da linguagem são frases como: "tenho saudades tuas", "gostaria...", "tenho a dizer-te que..." etc.
Também a exigência de veracidade é uma implicação universal da fala.
Obtemos, assim, o seguinte esquema:

Modos de comunicação Tipos de actos de fala Tema Pretensões de validade
cognitivo constatativo conteúdo proposicional verdade
interactivo regulativo relação interpessoal Adequação, correcção
expressivo representativo intenção veracidade do elocutor
 

5) O fundamento racional da força ilocucional
Em que consiste a força ilocucional de um enunciado? Antes de mais, sabemos quais os seus resultados: o estabelecimento de uma relação interpessoal. Com o acto ilocucional, o elocutor faz uma proposta que pode ser aceite ou rejeitada. Em que casos é essa proposta inaceitável (não por motivos contingentes) ? Aqui interessa examinar os casos em que é o elocutor o culpado do insucesso dos seus actos, da inaceitabilidade das suas propostas. Portanto, quais são os critérios de aceitabilidade de qualquer proposta ilocucional?
Austin estudou as infelicities e misfires, quando há infracções às regras vigentes que regem as instituições (casamento, aposta, etc.). Contudo, a força específica dos actos ilocucionais não se pode explicar através dos contextos delimitados dos actos de fala. A regra essencial, a condição essencial, para o sucesso de um acto ilocucional consiste em o elocutor assumir um determinado empenho de modo a que o ouvinte possa confiar nele. Este empenho significa: que na sequência da proposta feita ao ouvinte, o elocutor se dispõe a cumprir os compromissos daí resultantes.
Diferente do empenhamento é a sinceridade do empenhamento. O vínculo que o elocutor se dispõe a assumir ao realizar um acto ilocucional, constitui uma garantia de que ele, na sequência do seu enunciado, cumprirá determinadas condições, por exemplo: considerar que uma questão foi resolvida, ao receber uma resposta satisfatória, abandonar uma afirmação quando se descobre a sua não-verdade; aceitar um conselho se se encontrar na mesma situação do ouvinte. Portanto, pode-se dizer que a força ilocucional de um acto de fala aceitável consiste em poder levar o ouvinte a confiar nos deveres que o elocutor assume ao realizá-lo, isto é, nos deveres decorrentes do acto de fala. Elocutor e ouvinte colocam, com os seus actos ilocucionais, pretensões de validade e exigem o seu reconhecimento.
Em última instância o elocutor pode agir ilocucional-mente sobre o ouvinte e este, por sua vez, sobre o primeiro, justamente porque os deveres decorrentes dos actos de fala encontram-se vinculados a exigências de validade verificáveis cognitivamente, isto é, porque os laços recíprocos têm uma base racional.
O elocutor empenhado associa o sentido específico, em que desejaria estabelecer uma relação interpessoal, normalmente com uma exigência de validade, realçada tematicamente, e escolhe então um determinado modo de comunicação. Daí que o conteúdo do empenhamento do elocutor seja determinado pelos dois factores seguintes:
– pelo sentido específico da relação interpessoal a estabelecer (pedido, ordem, promessa, etc.).
– pela exigência de validade universal, realçada tematicamente.
Em diferentes actos de fala, o conteúdo do empe-nhamento do elocutor é determinado por uma referência específica a uma exigência universal de validade, realçada tematicamente.
Para os três usos da linguagem: cognitivo, interactivo e expressivo, temos três tipos específicos de deveres décorrentes da referência a uma exigência universal de validade:
– um dever de fundamentação no uso cognitivo. Os constatativos contêm a proposta de, se necessário, recorrer às fontes da experiência que estão na base da certeza do elocutor.
– um dever de justificação no uso interactivo. Os actos regulativos contêm a proposta de recorrer ao contexto normativo que está na base da convicção do elocutor.
– Um dever de fiabilidade no uso expressivo, isto é, mostrar nas consequências ao nível do agir que o elocutor exprimiu exactamente a intenção que tinha efectivamente em mente.
Resumindo:
1) Um acto de fala resulta, isto é, estabelece uma relação interpessoal que o elocutor pretende, se:
– é compreensível e aceitável e
– é aceite pelo ouvinte
2) a aceitabilidade de um acto de fala depende, entre o mais, da satisfação de duas condições pragmáticas:
– a existência de um contexto delimitado típico ao acto de fala (preparatory rules).
– um reconhecível empenhamento do elocutor ao assumir deveres típicos aos actos de fala (sincerety rule).
3) A força ilocucional de um acto de fala consiste em poder levar um ouvinte a agir sob a premissa de que o empenhamento do elocutor é sério; essa força pode o elocutor
– obtê-la, no caso do acto de fala institucionalmente vinculados, à força obrigatória de normas vigentes
– no caso de actos de fala não institucionalmente vinculados, criá-la ao induzir ao reconhecimento de exigências de validade.
4) elocutor e ouvinte podem influenciar-se reciprocamente no reconhecimento de exigências de validade, visto que o conteúdo do empenhamento do elocutor é determinado por uma referência específica a uma exigência de validade, realçada tematicamente, e em que o elocutor
– com a pretensão de verdade aceita o dever de fundamentação;
– com a pretensão de correcção (adequação, justeza) o dever de justificação;
– com a pretensão de veracidade, o dever de fiabilidade.

6) Um modelo de comunicação linguística
A língua é o meio pelo qual o elocutor e o ouvinte se demarcam do que os envolve. Antes de mais o sujeito demarca-se: a) de um meio ambiente, que pode ser objectivado da perspectiva proposicional de um observador, b) de um meio ambiente de que se dá conta na perspectiva de um participante, c) da sua própria subjectividade e, finalmente, d) do próprio meio que é a linguagem. Estes campos de realidade dos quais o sujeito se demarca são: a natureza exterior, a sociedade, a natureza interior e a língua.
Natureza exterior é tudo o que pode ser afirmado explicitamente como conteúdo proposicional, isto é, como conteúdo de enunciados. "Objectividade" designa o modo como a realidade objectivada surge na fala. "Verdade" é a pretensão que fazemos valer para uma proposição respectiva.
A realidade social das normas de acção e de valores aparece na fala, através dos elementos ilocucionais dos actos de fala, como uma parte de realidade não objectivável.
A natureza interior dos sujeitos participantes manifesta-se na fala, através das intenções do elocutor, como uma outra parte não objectivável da realidade. "Normatividade" e "subjectividade" designam o modo como respectivamente a sociedade não objectivável e a natureza interior aparecem na fala. Correcção é a pretensão que fazemos valer face à normatividade de um enunciado, veracidade é a pretensão que fazemos valer face à intenção expressa. Intersubjectividade designa a comunidade estabelecida, graças à compreensão de significados idênticos e ao reconhecimento de exigências universais, entre sujeitos capazes de falar e de agir.
É possível, assim, traçar o seguinte quadro de modelo comunicacional que a seguir se apresenta:

QUADRO DE MODELO COMUNICACIONAL
Domínios da realidade modos de referência à realidade pretensões implícitas funções dos actos de fala
Natureza exterior objectividade verdade apresentação
Sociedade normatividade Correcção, justeza comunicação
Natureza interior subjectividade Veracidade expressão
Língua Inter-subjectividade Compreensão
 

1- Charles Morris, 1959, Foundations of the Theory of Signs, Chicago: University of Chicago Press..
2- Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionário das Ciências da Linguagem, Lisboa: Publicações D. Quixote, 1991, p. 257.
3- ibidem.
 4- Como introdução à obra de Carnap veja-se Alberto Pasquinelli, Carnap e o Positivismo Lógico, Lisboa: Edições 70, 1983.
5- Cf. Morris, ibidem, p. 16.
6- Sobre esta questão veja-se Stephen Ullmann, Semântica. Uma Introdução à Ciência do Significado, Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1987, cap. III e José Pinto de Lima, Linguagem e Acção. Da filosofia analítica à linguística pragmática, Lisboa: apáginastantas, 1989.
7- C.K.Odgen e I.A.Richards, The Meaning of Meaning, London: Routledge & Kegan, 1923.
8- Naves Maria del Carmen Bobes, La Semiología, Madrid: Síntesis, p. 97.
9- Cf. Morris, ibidem, p. 25.
10- ibidem, p. 27.
11- ibidem, p. 28.
12- ibidem.
13- ibidem.
14- Austin, How to do things with words, Oxford University Press, 1986, p. 121
 15- ibidem, p. 14-15.
16- Os exemplos que se seguem são extraídos da exposição que Wolfgang Stegmüller faz da teoria dos actos de fala de Austin; Hauptströmungen der Gegenwartsphilosophie II, Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 19878, pp. 64 e ss.
17- Para esta exposição da pragmática universal servi-me do artigo de Habermas "Was heißt Universalpragmatik?" in Karl-Otto Apel, org., Sprachpragmatik und Philosophie, Frankfurt, Suhrkamp, 1982, pp. 174-272, limitando-me, por vezes, a uma simples paráfrase literal do texto habermasiano. Daí que não recorra a aspas para assinalar as citações do original.