SEMIÓTICA, A LÓGICA DA COMUNICAÇÃO

António Fidalgo, Universidade da Beira Interior

 

 Primeira parte

A ORIGEM LÓGICA DA SEMIÓTICA CONTEMPORÂNEA

 

 Introdução | Capítulo Primeiro - Bolzano, Frege e Husserl |

Capítulo Segundo - Peirce e o Pragmatismo como Lógica da Abdução

 

 INTRODUÇÃO

As fronteiras entre a semiótica, a lógica, a filosofia analítica, a filosofia da linguagem, a filosofia dos signos (Zeichenphilosophie) não são fáceis de traçar. Em todas estas disciplinas encontramos questões comuns e muitas vezes é mesmo difícil encontrar diferenças na maneira como as abordam. Questões de sintaxe e de semântica, por exemplo, são comuns a todas elas e não existem critérios definidos para atribuir esta ou aquela análise sintáctica ou semântica a determinada disciplina.
Contributos decisivos da filosofia do século XX, como sejam as filosofias de Wittgenstein, o positivismo lógico e a "ordinary language philosophy", as investigações lógicas de Tarski e Carnap, tanto no âmbito da sintaxe como da semântica, a teoria dos actos de fala de Austin e Searle, e outros, reflectem-se nas disciplinas citadas e nenhuma destas disciplinas pode reivindicar para si a exclusividade de tais contributos.
Mais do que campos bem delimitados defrontamo-nos aqui com acentos, perspectivas, estratégias, proveniências diferentes. É talvez um mesmo campo atravessado por pistas que se cruzam, que seguem por vezes o mesmo percurso e depois se separam, que caminham em paralelo, mas influenciando-se umas às outras.
Se quisermos encontrar uma identidade deste campo, e o mesmo é dizer, apurar o factor comum a todas as disciplinas enunciadas, poderíamos apontar a crença e a preocupação de clarificar o pensamento através dos meios em que esse pensamento se processa e se exprime.
Restritamente, quer isto dizer que o pensamento só pode ser analisado em termos de linguagem. Trata-se antes de mais da superação das filosofias da consciência (Descartes, Kant, Husserl) que buscavam na imanência do vivido a verdade das ideias. A intelecção geral das diferentes corren-tes do pensamento contemporâneo é a de que a objectividade científica tem de assentar na positividade da língua. A língua é o meio em que surge e se desenvolve todo o pensamento e fora do qual pura e simplesmente não há pensamento. Nisto reside o celebrado "linguistic turn" da filosofia recente. Mais precisamente ainda, diremos que a estrutura do pensamento só é acessível através da análise da estrutura da frase e da língua.
Em termos mais latos, o pensamento é entendido como um processo simbólico. Não se trata apenas de tematizar as línguas positivas em que o pensamento efectivamente se concretiza, mas também de analisar os elementos e os processos simbólicos reais e possíveis.
Estudar uma disciplina que radica na crença apontada, exige a clarificação desse enraizamento e ao mesmo tempo que se consi-derem as disciplinas adjacentes também radicadas nesse campo. No caso da semiótica, tal como se realiza em Charles Sanders Peirce, não há dúvida que a melhor via para a determinar o âmbito, o objecto, a intenção e o método, é averiguar as suas relações com a lógica.
 
 

CAPÍTULO PRIMEIRO

BOLZANO, FREGE E HUSSERL

Peirce é um lógico. Não obstante a diversidade dos seus escritos, Peirce compreendia-se a si mesmo como um lógico e o cerne do seu labor intelectual está indubitavelmente nas suas investigações lógicas. Apesar disso, na maior parte das apresen-tações do seu pensamento, toma-se Peirce como ponto de partida do pragmatismo americano e como um dos pais da semiótica contemporânea sem o relacionar com a tradição lógica em que se insere. Sabemos que efectivamente Peirce se considerava como pioneiro nos seus estudos e que a admitir precursores esses eram o Aristóteles lógico, não o metafísico ou o físico, e Leibniz.1 Mas quem olhar para a obra de Peirce de um ponto de vista histórico e não simplesmente imanente, verificará que ela tem pontos comuns com correntes filosóficas europeias da época, nomeadamente com as correntes iniciadas por Frege e Husserl. Aliás, convém lembrar que Peirce dominava o alemão e se correspondia com cientistas alemães, nomeada-mente com o lógico Gerhard Schröder.
Gottlob Frege é geralmente considerado o pai da filosofia analítica e Edmund Husserl é o grande iniciador do movimento fenomenológico. Um e outro desenvolveram a sua obra partindo de considerações lógicas. A proximidade temática entre eles e Peirce é inquestionável. A introdução do nome de Bolzano justifica-se pelo seu importante papel na lógica do século XIX e pela influência exercida sobre a semiótica de Husserl. Contudo, a razão principal para citar os nomes de Bolzano, Frege e Husserl, reside na tese comum a todos eles de que as ideias não são nada de psicológico e de que, portanto, a análise do pensamento só é possível mediante uma análise da linguagem.2

1- Bolzano e a importância dos signos para a lógica
Por três vezes aborda Bolzano na Wissenschaftslehre a temática dos signos. A primeira vez é logo no primeiro volume (§52) e incide sobre a questão se as representações são ou não signos dos objectos representados. Aí Bolzano esclarece que o termo signo tem dois significados e que nenhum deles permite afirmar que uma representação seja o signo do objecto representado. Por signo pode i) entender-se qualquer objecto de que nos servimos para através da sua representação despertar uma outra representação associada à primeira ou então ii) uma característica ou qualidade que, ao darmo-nos conta dela, nos leva a inferir uma outra quali-dade ou uma outra coisa. No primeiro caso signo significa um objecto, no segundo uma qualidade ou característica de um objecto.
Mas é no terceiro volume da Wissenschaftslehre que Bolzano analisa mais profundamente o conceito de signo e salienta o papel dos signos no pensamento lógico. Aí Bolzano trata dos signos uma vez a propósito da "assinalação das nossas representações"3 e outra vez relativamente à associação das nossas representações feita propositadamente com signos e aos benefícios de uma tal associação 4 e às características desses signos 5 .
Quanto à assinalação das representações, Bolzano funda-menta na unidade do espírito a possibilidade de suscitar certas representações, em si difíceis de representar, mediante outras representações mais fáceis de ter que estão associadas às primeiras. É neste contexto que Bolzano volta a definir signo como um "objecto de que nos servimos com o objectivo de mediante a sua representação despertarmos num ser pensante uma outra representação associada a ela" 6 . O significado do signo é a representação assinalada ou o objecto dessa representação 7 . Bolzano faz a distinção entre significado e sentido do signo. O significado de um signo distingue-se do sentido, na medida em que o significado do signo é apenas aquela representação que ele se propunha despertar e normalmente desperta e nenhuma outra. O sentido do signo, pelo contrário, é representação que visamos num caso particular. É por esta razão que alguém pode usar um signo num sentido oposto ao seu significado real.
Bolzano apresenta aqui já uma classificação dos signos: i) signos gerais se determinados objectos são utilizados por todos os homens para assinalar as mesmas representações; ii) signos naturais se a sua assinalação de certas representações reside na natureza do homem; iii) signos ocasionais se essa assinalação reside numa circunstância particular; iv) signos arbitrários se essa assinalação não tem outro fundamento além da vontade de ser pensante; v) signos simples aqueles que não são compostos por outros com assinalações próprias; vi) signos compostos quando se compõem de signos com significados próprios; vii) signos unívocos e signos equívocos; viii) signos com significados próprios e signos com significados impróprios; ix) signos directos e signos indirectos.
Quanto à concatenação das representações mediante signos, Bolzano considera que tal se trata de um método extremamente importante na obtenção de ideias claras e na construção de um pensamento rigoroso 8 . As vantagens desse método são várias. Primeiro, através da simples atribuição de um signo adequado a uma representação acontece frequentemente que sendo ela uma representação obscura se transforma numa representação clara. Segundo, nos casos em que por comodidade nos servimos dos signos em vez das representações podemos sempre passar do signo para a representação assinalada e obtermos desse modo a desejada clareza. Terceiro, só através da associação das nossas representações a signos é possível conseguir um domínio completo sobre elas, nomeadamente suscitá-las sempre que quisermos. É que é muito mais fácil ter uma representação do signo enquanto objecto sensível do que a respectiva representação assinalada. Os signos permitem um acesso mais fácil e cómodo às representações. Quarto, ao produzirmos os signos (sons, figuras, etc.), ganhamos uma destreza tal nos processos fisiológicos da sua produção que sempre que repetimos estes processos a representação do signo surge de novo. Quinto, sobretudo a fixação de representações complexas é extremamente facilitada com a utilização de signos simples. Caso não existisse o signo como factor de ligação, facilmente nos escapariam este ou aquele componente da representação. Sexto, se os signos forem objectos duradoiros do mundo exterior, por exemplo figuras, caracteres, e os produzirmos realmente – não nos quedando pela sua representação, como quando escrevemos os nossos pensamentos, então ficamos em condição de reproduzir estes pensamentos sempre que quisermos, sujeitá-los a novo exame, e retirar deles novas inferências. É deste modo que asseguramos os juízos feitos, possibilitamos a reflexão sobre eles e prosseguimos na descoberta de novas verdades. Tornando-se as cadeias de inferência cada vez mais extensas e ficando as novas conclusões cada vez mais distantes das premissas iniciais, seria impossível retê-las na memória. Só com a ajuda da fixação por escrito dessas cadeias podemos prolongá-las mais e mais. Sétimo, mediante a escrita podemos obter uma visão de conjunto das verdades já obtidas sobre determinado objecto e desse modo apurar novas verdades. Oitavo, mesmo uma associação arbitrária e contingente de signos pode originar novas representações e assim levar-nos a novas verdades. Nono, ao fixarmos os nossos pensamentos através de signos compreensíveis a outros, ficamos em condições de sujeitar os nossos juízos e as suas razões ao exame de outras pessoas.
A estas vantagens, que se cingem à utilização dos signos pela pessoa e para si própria, e apenas em vista à descoberta de novas verdades, haveria a juntar as inúmeras vantagens decorrentes da comunicação das ideias entre as pessoas.
As características que os signos devem possuir de modo a servirem de instrumento à reflexão própria são segundo Brentano as seguintes 9 : i) os signos têm de ser objectos sensíveis; ii) fáceis de representar em qualquer lado; iii) tem de haver uma relação estreita entre a representação do signo e a representação assinalada; iv) não provocarem a confusão com outras representações próximas. Quanto às propriedades que os signos devem ter de modo a preservar os nossos pensamentos elas são 10 : i) os signos têm de ter uma duração suficiente; ii) serem facilmente reconhecidos em toda a parte; iii) nunca possuírem vários significados fáceis de confundir; iv) e não serem semelhantes a outros signos que exprimem representações diferentes.
Os contributos de Bolzano para a semiótica não residem, como se vê, numa tematização própria da problemática semiótica. Bolzano não desenvolve strictu sensu uma lógica dos signos. Para ele o estudo dos signos mais do que um capítulo da doutrina da ciência, constitui uma propedêutica dessa disciplina 11. Os méritos de Bolzano estão, primeiro, no facto de salientar de um modo muito claro a importância dos signos para a lógica e de, desse modo, associar intimamente o estudo da lógica ao estudo dos signos, e em segundo lugar, no rigor das análises dos signos acima referidas. Esse rigor tornou-se modelar para os pensadores que neste campo se lhe seguiram.

2- Frege e a distinção entre significado e referência
O lugar de destaque que Gottlob Frege ocupa na história da lógica é hoje incontestável. A sua teoria dedutiva ou cálculo é considerada a "maior realização alguma vez alcançada na história da lógica" 12. Além disso, não só apresentou a ideia de que a matemática se inclui na lógica, como mostrou em pormenor como é que a lógica se desenvolve na aritmética. Mas a importância de Frege não se limita à lógica, ela estende-se a toda a filosofia. A filosofia que hoje se apelida, não muito correctamente, de anglo-saxónica, a filosofia analítica e a filosofia da linguagem, considera Frege como um dos seus fundadores 13. Frege poderia ser, com efeito, um grande lógico, sem ser um grande filósofo. Porém, as consequências que os seus trabalhos lógicos tiveram na filosofia em geral foram tão vastas e profundas e o seu método de análise e de exposição foi de tal modo exemplar para as outras disciplinas filosóficas que é considerado justamente um dos maiores filósofos contemporâneos.
De capital importância para a lógica e para toda a filo-sofia do século XX é sem dúvida o artigo de Frege de 1892 sobre o significado e a referência. Günther Patzig considera este artigo como uma das fontes principais da semântica moderna 14. Nele distingue Frege com extrema clareza as dimensões referencial e significativa dos signos 15.
O ponto de partida de Frege está na questão sobre a igualdade. É a igualdade uma relação de objectos ou uma relação de nomes ou signos de objectos? Frege defende que a igualdade é uma relação de signos. Ele argumenta do seguinte modo: as proposições "a = a" e "a = b" possuem valores cognitivos diferentes; enquanto a primeira é, em linguagem kantiana, um juízo analítico que nada de novo nos ensina, a segunda representa bastas vezes uma importante ampli-ação do conhecimento. A descoberta de que é o mesmo sol, e não um novo, que cada manhã nasce constitui um dos conhecimentos de maior alcance na astronomia. Ora se a igualdade fosse uma relação entre objectos – isto é, entre aquilo que "a" e "b" se referem – então "a = a" e "a = b" não seriam proposições diferentes. É que nesse caso, apenas se afirmaria a relação de igualdade de um objecto consigo mesmo. Mas isso não nos traria um novo conhecimento. Aqui há que introduzir um novo elemento. Para além da referência deve-se considerar o significado do nome ou do signo. O significado consiste na forma como o objecto é dado. A mais valia cognitiva da proposição "a = b" relativamente a "a = a" reside justamente em "a" e "b" se referirem de modo diferente ao mesmo objecto. Têm significados diferentes e uma mesma referência. "A estrela da manhã" não significa o mesmo que "a estrela da noite" mas ambas as expressões referem o mesmo objecto. Por estrela da manhã entende-se (significa-se) o último astro a desaparecer do céu com a aurora, ao passo que por estrela da noite entende-se o primeiro astro a aparecer no firmamento ao entardecer. Num e noutro caso designa-se o planeta Vénus.
O significado de um nome ou signo é apreendido por quem conhece a língua ou o conjunto dos signos em que esse signo se enquadra. Normalmente um signo tem um significado e a esse significado corresponde uma referência. O mesmo significado e a correspondente referência têm em diferentes línguas diferentes expressões.
Nem sempre a um significado corresponde uma referência. A expressão "o corpo mais afastado da Terra" tem certamente um significado, mas é questionável se ela refere algum objecto.
Frege sublinha enfaticamente que o significado não é uma representação subjectiva. O significado é objectivo. A representação que uma pessoa faz de um objecto é a representação dessa pessoa e é diferente das representações que outras pessoas têm do mesmo objecto. A representação de uma árvore, por exemplo, varia de pessoa para pessoa, e isso torna-se bem patente quando lhes pedimos para desenhar uma árvore. Cada uma fará um desenho diferente. O significado de árvore, em contrapartida, é comum a todos aqueles que o apreendem.
Mas a distinção entre significado e referência não se restringe aos nomes próprios, entendendo-se aqui por nomes próprios quaisquer designações como sejam "Aristóteles", "o professor de Alexandre o Grande", "4", "2+2". Segundo Frege, também as proposições têm um significado e uma referência. O significado de uma proposição é o pensamento ou a ideia que ela exprime. Admitindo que uma proposição tem uma referência, a substituição de um seu elemento por um outro com a mesma referência, não alterará a referência da proposição. No entanto, o sentido poderá ser muito diferente. As proposições "a estrela da manhã é um planeta iluminado pelo sol" e "a estrela da noite é um planeta iluminado pelo sol" exprimem ideias diferentes de tal modo que alguém pode aceitar uma e negar a outra. Em termos de referência nada, porém, se modificou. Se a ideia expressa pela proposição constitui o seu significado, então qual é a sua referência? A questão é importante na medida em que em muitas frases com significado o sujeito não tem referência. A frase "Ulisses aportou a Ítaca enquanto estava a dormir" é certamente uma proposição com significado, embora não se possa garantir que Ulisses tenha uma referência. Aliás, tenha ou não tenha "Ulisses" uma referência, o significado da proposição não se altera. A questão é ainda mais evidente na frase "Um círculo quadrado é uma impossibilidade geométrica". "Círculo quadrado" não designa manifestamente nada, mas a frase é cheia de significado. Tem aqui cabimento perguntar se uma proposição não terá apenas significado. Frege responde que se assim fosse, isto é, que se uma proposição tivesse apenas significado, então não faria sentido investigar a referência de um dos seus elementos, pois que bastaria o significado desse elemento. Ora o que efectivamente se passa, é que em regra preocupamo-nos com saber se um elemento da frase tem ou não referência. Sendo assim, então teremos de admitir que também as proposições têm referência. Ademais o valor do pensamento expresso na proposição depende da referência dos seus elementos. Esse valor é justamente o valor de verdade da proposição.
Quando se trata de ficção mitológica ou literária o nosso interesse prende-se exclusivamente ao significado das proposições. É irrelevante se os nomes próprios integrantes nas proposições têm ou não referência. Porém, quando não se trata de ficção, então a questão referencial dos elementos da proposição é fundamental para aquilatar da verdade da proposição. É justamente no respectivo valor de verdade que Frege vê a referência de uma proposição. Valor de verdade de uma proposição significa tão somente o facto dessa proposição ser verdadeira ou falsa. Não havendo outros valores de verdade que a verdade e a falsidade, conclui-se que toda e qualquer proposição tem como referência ou o verdadeiro ou o falso. Todas as proposições verdadeiras têm a mesma referência, o verdadeiro, e todas as falsas o falso.
O que ficou dito aplica-se às proposições principais, que podem ser consideradas também como nomes próprios, como designações da verdade ou da falsidade. Quanto às proposições acessórias o caso é diferente. Considerem-se as proposições integrantes começadas por "que". Nestes casos há que distinguir entre referência directa e indirecta. Quando alguém se quer referir ao significado das palavras e não aos objectos por estas designados, então essa referência é indirecta. Assim, quando uma pessoa cita em discurso directo as palavras de uma outra pessoa, as próprias palavras referem-se às palavras do outro e só estas últimas é que têm a referência habitual. A referência directa consiste, portanto, nos objectos designados, a indirecta no significado habitual das palavras ou dos signos. As frases integrantes têm uma referência indirecta, isto é, a sua referência coincide com o seu sentido habitual e não com o respectivo valor de verdade. É assim que o diferente valor de verdade das proposições acessórias não modifica o valor de verdade da proposição principal no exemplos seguintes: "Copérnico julgava que as órbitas dos planetas eram circulares" e "Copérnico julgava que a ilusão do movimento solar era provocada pelo movimento real da terra". Ambas as proposições citadas são verdadeiras, embora no primeiro caso a referência directa da proposição acessória seja falsa. Só que não se trata aqui de avaliar se o juízo de Copérnico estava correcto ou errado, mas sim se efectivamente ele julgava isso. A questão não se prende, portanto com a referência, mas com o sentido da frase. Por isso mesmo, a primeira proposição é tão verdadeira como a segunda.
A importância das investigações de Frege sobre o significado e a referência para a semântica em particular e para a semiótica em geral reside em pela primeira vez se associar a questão da verdade à questão do significado. As teorias clássicas da verdade como correspondência partiam do significado como algo dado à partida. Não questionavam o significado da proposição cuja verdade cabia investigar, ou melhor, julgavam que era possível inquirir o significado de uma proposição independentemente de saber o que é que a tornava verdadeira ou falsa. Ora o mérito de Frege consiste justamente em ter mostrado que é impossível apreender o significado de uma frase sem reconhecer as condições da sua verdade. Só em conjunto é possível explicar as noções de verdade e significado, justamente enquanto elementos de uma mesma teoria 16.

3- Husserl ou da aritmética à fenomenologia
i) O pequeno tratado de Husserl sobre semiótica, a lógica dos sinais, data de 1890 e insere-se no conjunto de estudos de Husserl sobre a fundamentação da aritmética, em que sobressai a obra Filosofia da Aritmética. Investigações Lógicas e Psicológicas 17 de 1891. Daí que fosse publicado na obra completa de Husserl como um complemento à Filosofia da Aritmética: Husserliana XII, pp. 340-373. A citada Filosofia da Aritmética de 1891 retoma e desenvolve a tese da habilitação académica "Sobre o conceito do número. Análises psicológicas" 18 de 1887. A intenção declarada de Husserl, neste período, é a de, por um lado, levar a cabo "uma análise dos conceitos fundamentais da aritmética" e, por outro, proceder a "uma explicação lógica dos seus métodos simbólicos"19.

ii) Husserl declara numa nota de rodapé da Filosofia da Aritmética dever ao seu mestre Franz Brentano a intelecção da suma importância das representações impróprias ou simbólicas para a vida psíquica 20. Também aqui como em outros aspectos a influência de Brentano sobre Husserl é decisiva. Não foi sem razão que Husserl lhe dedicou "com profundo agradecimento" a Filosofia da Aritmética. Será bom, por conseguinte, apresentar, ainda que em traços algo largos, alguns tópicos do labor filosófico de Brentano que mais tocam a questão das representações simbólicas.
Brentano distinguiu-se na História da Filosofia sobretudo pela distinção entre a psicologia genética e a psicologia descritiva. Enquanto a psicologia genética se ocupa da génese dos fenómenos psíquicos, averiguando as suas causas e estudando os seus efeitos, a psicologia descritiva procura dar-se conta antes de mais da natureza e estrutura desses mesmos fenómenos. A primeira visa explicar causalmente, a partir de hipóteses, a vida psíquica, mas essa explicação só é possível após uma exacta descrição, pela segunda, dos fenómenos a explicar. A psicologia descritiva tem como tarefa clarificar intuitivamente os conceitos utilizados na explicação psicológica, daí que assuma uma função fundante relativamente à psicologia genética. Brentano introduz na psicologia a máxima que Gustav Robert Kirchhoff e Ernst Mach aplicaram na mecânica, a saber, eliminar todos os conceitos não obtidos descritivamente numa experiência directa.
A distinção de Brentano vai sobretudo contra a psicologia associativa, a corrente psicológica dominante no século XIX. Na esteira de Johann Friedrich Herbart, a psicologia associativa concebia a vida psíquica como um mecanismo cego das representações 21. O que se passava ao nível do consciente era explicado por processos psíquicos inconscientes. Ora o recurso sistemático, feito pela psicologia associativa, ao inconsciente abria a porta à arbitrariedade total na medida em que se tratavam de processos inverificáveis, de puras hipóteses congeminadas sem o menor fundamento objectivo. Ou seja, como as explicações psíquicas eram remetidas para o inconsciente, não havia qualquer forma de apurar a sua objectividade. Brentano põe fim aos desmandos da psicologia associativa que, na ânsia de aplicar o modelo mecanicista à alma tal como a física newtoniana o aplicava ao universo 22, não se coibia de compreender as representações como peças de um mecanismo que se empurravam, condicionavam e obstruíam no mesmo espaço psíquico.
O método descritivo de Brentano possibilitava quebrar o monismo típico da psicologia associativa. Consistia esse monismo em admitir unicamente conteúdos da consciência. As sensações, as representações, os sentimentos, não seriam mais que o seu conteúdo. Assim, por exemplo, na audição de um som, o som ouvido seria o único dado da consciência. Da audição propriamente dita, isto é, do acto psíquico, não haveria qualquer experiência. Os dados directos da consciência reduzir-se-iam aos conteúdos psíquicos. As actividades da consciência, o sentir, percepcionar, etc., seriam tão só produtos segundos da reflexão causal sobre os dados imediatos 23. Brentano mostra que há uma consciência indirecta das actividades psíquicas. Na sua obra capital, Psicologia do Ponto de Vista Empírico, de 1874, considera impossível uma observação directa dos fenómenos psíquicos: "quem quisesse observar a ira que nele arde, depararia com ela já fria e o objecto da observação teria desaparecido"24 , mas defende que a percepção interna se exerce "em oblíquo". Não é por uma dedução hipotética que chegamos às actividades psíquicas, como afirmavam os herbartianos, mas sim pela experiência. Nas lições de Brentano de 1888 a 1890 25 , surge uma passagem sobre as representações que fazem as vezes de outras (stellvertretende Vorstellungen). Brentano chama a atenção para o facto de certas representações assinalarem outras apesar de serem diferentes. É assim que, ao vermos de cima o tampo de uma mesa redonda, dizemos que a mesa é redonda e de não mudarmos de juízo quando a vemos de lado. A relação entre as duas representações, pela qual uma assinala a outra, designa-a Brentano de convertibilidade. O que cabe a uma representação cabe à outra e o que se associa a uma associa-se frequentemente à outra. Em suma, Brentano abre com o método descritivo todo um novo campo à análise psicológica. Há muito mais fenómenos psíquicos para ver e descrever do que a psicologia associativa alguma vez julgou.
Os discípulos de Brentano aplicaram, com êxito assinalável, o novo método a campos muito diversos de investigação. Refiram-se os trabalhos de Anton Marty na filosofia da lingua-gem, os de Carl Stump na psicologia empírica, os de Alexius Meinong na ontologia, os de Christian von Ehrenfels na morfologia, os de Kasimir Twardowski na lógica e os de Husserl na fenomenologia.

iii) Do mesmo ano do tratado de Husserl sobre semiótica data o estudo pioneiro de Christian von Ehrenfels sobre a morfologia (teoria da Gestalt)26 . Ora é possível traçar um certo paralelismo entre as qualidades morfológicas de Ehrenfels e as representações simbólicas de Husserl e, desse modo, situar melhor o tratado de Husserl sobre semiótica na escola brentanista. Aliás num estudo de 1893 "Intuição e Representação" 27, Husserl aborda a mesma problemática do artigo de Ehrenfels: como é possível perceber a unidade de um conteúdo complexo como é o caso da melodia, se o que é dado imediatamente à consciência são intuições de diferentes sons. Tanto em Ehrenfels como em Husserl a questão é, no fundo, acerca das representações indirectas.
Com as qualidades morfológicas, Ehrenfels tenta responder à pergunta sobre se a "melodia" consiste numa simples associação de elementos ou se em algo novo face a estes, que acompanha efectivamente essa associação, mas, no entanto, dela distinta. Dito de outra maneira, uma melodia composta de n sons, ouvida por um indivíduo, representa algo mais que os mesmos sons n ouvidos singularmente por n indivíduos? Ou então, o todo é igual à soma das suas partes ou é mais que essa soma? Ehrenfels nega o atomismo psíquico que apenas admite a existência de elementos. As qualidades morfológicas são o elemento novo que se junta aos elementos singulares para que um todo seja possível. Ehrenfels utiliza como argumento o facto da transposição melódica ou figural para demonstrar que o todo não pode reduzir-se à soma das suas partes. Uma melodia, cantada numa tonalidade, pode conter sons (notas) completamente diferentes quando cantada numa outra tonalidade. No entanto, permanece a mesma melodia, e todos os ouvintes reconhecerão a sua identidade. Os elementos alteraram-se, mas o todo melódico permaneceu o mesmo. A conclusão irrefutável é que a melodia é algo diferente da soma dos sons singulares em que se baseia 28. Mas Ehrenfels não limita o âmbito das qualidades morfológicas aos elementos discretos de um complexo, como é o caso dos sons da melodia, ele estende-o também aos elementos contínuos, como é o caso dos pontos de uma linha ou de um plano ou ainda dos momentos de um período temporal. A apreensão de um todo não ocorre sem a apreensão das partes, mas não se reduz a ela. Daqui se extrai a seguinte definição: "Por qualidades morfológicas entendem-se os conteúdos representativos positivos que estão ligados à existência de complexos representativos na consciência, que, por seu lado consistem em elementos separáveis" 29.
Partindo das investigações de Ehrenfels sobre as qualidades morfológicas, Meinong introduz a noção de conteúdos fundados 30. Estes são conteúdos psíquicos que têm outros conteúdos, os conteúdos fundantes, por base. Os conteúdos fundados estão dependentes dos fundantes, ao passo que estes são independentes. Deste modo, representações fundadas e representações independentes constituem uma disjunção completa, isto é, todas as representações ou são fundadas ou fundantes. Todas as complexões e todas as relações são representações fundadas. Fundadas nomeadamente nos seus elementos ou relata, mas - e é isto que importa acentuar! - representações conscientes e distintas, e não processos inconscientes como defendia a psicologia associativa. Assim, por exemplo, representar as relações de diferença ou de analogia entre um x e um y, ou qualquer outra relação entre eles, significa justamente representar algo para além de x e y. Algo que não se infere, mas que se constata.
São estas investigações sobre conteúdos fundados que estarão na origem da ontologia meinonguiana, da célebre teoria dos objectos ou objectologia (Gegenstandstheorie). A noção crucial de objectos de ordem superior, por exemplo, radica na de conteúdos fundados 31.

iv) Também Husserl se ocupa à altura das representações que são mediadas por outras. As representações simbólicas ou impróprias, tal como as define logo no início da segunda parte da Filosofia da Aritmética, são representações através de signos 32. Quer isto dizer que toda a representação cujo conteúdo não for directamente dado à consciência é uma representação indirecta e como tal simbólica 33. Às representações simbólicas ou impróprias opõem-se as próprias, a saber, aquelas em que o conteúdo é dado imediatamente, como aquilo que ele é. Da fachada exterior de uma casa, por exemplo, temos uma representação própria quando realmente a vemos. Mas já se trata de uma representação simbólica se alguém nos der a característica indirecta da casa ao indicá-la como a casa da esquina de tal e tal rua. Neste caso o conteúdo é dado claramente por uma característica que o marca e o distingue de todos os outros conteúdos.
Husserl afirma que na descrição de um objecto há sempre a tendência para substituir a representação própria, que por vezes também designa por representação real (wirklich), pela representação simbólica 34. É que as características da representação simbólica permitem o reconhecimento posterior do objecto, podendo, desse modo, os juízos feitos na base das representações simbólicas ser aplicados ao próprio objecto. Por exemplo, afirmar que um edifício está muito bem situado é um juízo que assenta na caracterização simbólica do edifício.
Mas não só os objectos da intuição sensível podem ser representados simbolicamente; a simbolização estende-se também a conceitos abstractos e gerais. Uma determinada cor, por exemplo o vermelho, pode ser impropriamente representada como a cor a que correspondem tantas e tantas milhões de vibrações do éter por segundo. Do mesmo modo, um triângulo, entendido propriamente como a figura geométrica fechada, delimitada por três rectas, pode ser representada impropriamente por qualquer outra determinação que lhe seja exclusiva, por exemplo, como a figura cujos ângulos somados perfazem a soma de dois ângulos rectos.
A aritmética não opera com conceitos próprios de números, isto é, as operações aritméticas não se realizam com os números realmente próprios ou sobre eles. Na primeira parte da Filo-sofia da Aritmética Husserl mostra como é falsa a doutrina que reduz toda a aritmética a operações reais com os próprios números, portanto à adição e à divisão enquanto únicas acções reais com e sobre os números, doutrina que entende as operações aritméticas superiores como simples especializações: a multiplicação como uma adição especial e a potenciação como uma multiplicação especial.
Tal doutrina ignora "o facto fundamental de que todas as representações de números que possuímos para além dos primeiros da série numérica são simbólicos e que só podem ser simbólicos; um facto que determina por completo o carácter, o sentido e a finalidade da aritmética"35. Só um intelecto divino poderia ter uma representação própria de todos os números e bem assim das operações que com eles se pudessem realizar. Deus não necessita da matemática. É o homem, ser finito, que precisa da aritmética para representar qualquer conjunto que ultrapasse uma dúzia de elementos. Por essa razão, Husserl contrapõe à expressão "o Deus matemático" de Gauß a de "o homem matemático" 36.
Porém, aqui coloca-se a questão com que Husserl encerra o capítulo X da Filosofia da Aritmética e com que inicia ipsis verbis o tratado "Sobre a Lógica dos Signos": "Mas como é possível falar de conceitos que propriamente não temos, e como é que não é absurdo que sobre esses conceitos se funde a mais segura de todas as ciências, a aritmética?" 37. A resposta que Husserl começa por dar é sucinta: "Se bem que os conceitos não nos sejam dados de modo próprio, são-no de modo simbólico"38.  Pelos vistos Husserl não ficou satisfeito com a brevidade desta resposta dada na Filosofia da Aritmética. No seu jeito muito próprio de aclarar qualquer questão menos clara mediante análises mais aprofundadas, Husserl retoma no estudo de 1890 sobre semiótica a mesma questão em busca de uma resposta mais cabal.
De notar, desde logo, na análise com que Husserl procura a responder à questão é a afirmação inicial de que se trata de uma reflexão do âmbito da lógica. O objectivo é assim responder logicamente e não psicologicamente à questão. Para isso Husserl tenta esclarecer primeiro o conceito de signo. Efectivamente se representações impróprias ou simbólicas apenas significam representações mediadas por signos, então o primeiro passo a dar é clarificar o termo "signo".

v) Apesar de Husserl declarar que a palavra signo, como aqui a define, deve ser tomada no sentido mais amplo que é possível conceber, isso não o isenta de determinar esse sentido. A extensão do significado do termo não deve equivaler a um significado impreciso. Assim, Husserl ao dizer que signo de uma coisa é tudo aquilo que a distingue, que é adequada a diferenciá-la de outras, e pelo qual somos capazes de a reconhecer de novo, começa por salientar o carácter relacional de signo. "O conceito de signo é justamente um conceito de relação: ele aponta para um assinalado" 39. Ora é precisamente a partir da natureza relacional de signo que Husserl procede a uma distinção dos signos que grosso modo segue a de Bolzano. Aqui importa chamar a atenção para as distinções mais importantes, nomeadamente para as distinções entre signos que assinalam, mas não caracterizam, e outros que caracterizam, mas não assinalam, e para a distinção entre signos formais e materiais. Husserl começa por dividir os signos em signos exteriores e signos conceptuais. Os primeiros nada têm a ver com o conceito especial do assinalado, com o seu conteúdo ou com as suas qualidades específicas. Neste caso, os signos limitam-se a assinalar o objecto, sem darem qualquer informação acerca da natureza do assinalado. Exemplo desta classe de signos são os nomes próprios. Em contrapartida, os signos conceptuais caracterizam o assinalado, na medida em que dependem do conceito especial deste. Os signos conceptuais tanto podem ser características interiores como exteriores. As características interiores são determinações que estão incluídas como conteúdos parciais na representação do conteúdo assinalado; as exteriores são determinações relativas que caracterizam o conteúdo como o fundamento de certas relações nele baseadas.
Uma distinção crucial entre os signos feita por Husserl e com consequências importantíssimas na teoria do juízo é a distinção entre signos formais e signos materiais. Esta distinção vem clarificar a natureza relacional do juízo. Muitas vezes confundem-se no juízo duas distinções completamente diferentes: a distinção entre conteúdo do juízo e acto do juízo, por um lado, e a entre fundamentos da relação e relação, por outro. Confundia-se a forma do acto judicativo com a forma da relação. Na velha explicação do juízo como uma relação ou conexão de representações subjaz indubitavelmente esta confusão. A razão de ser principal desta confusão está no facto de a larguíssima maioria dos nossos juízos incidir sobre relações, e daí se identificar o ajuizar com o relacionar. Entretanto não se procedia com a necessária consequência e atribuíam-se elementos da relação ora à forma ora ao conteúdo. No juízo "Deus é justo" atribuía-se "Deus" e "justo" à matéria; no juízo "Todos os homens são mortais" o "todos" (como em geral os sinais de quantidade) à forma, na opinião de que a quantidade respeitava ao modo de ajuizar.
Husserl, seguindo a doutrina de Brentano, considera que o juízo não é uma relação entre um sujeito e um predicado, isto é, a predicação de um sujeito, mas sim uma afirmação ou negação de um estado de coisas. Esta concepção de juízo permite demarcar muito claramente o âmbito do conteúdo do juízo e nele distinguir a matéria e a forma. A matéria é representada por nomes, e a forma por expressões sincategoremáticas, sejam elas simples ou compostas. Os nomes servem, e essa é a sua especial função, para designar os conteúdos absolutos, os fundamentos da relação. Em contrapartida, as expressões sincategoremáticas têm a função de exprimir a relação entre os elementos absolutos do pensamento. Do ponto de vista do juízo singular, pertence à forma, por exemplo na frase, tudo aquilo que exprime a relação judicada, e ao conteúdo tudo aquilo que é aqui fundamento da relação. Se um destes for composto, então pertence à matéria, relativamente a esta composição, o elemento da ligação, e à forma o modo da ligação. No raciocínio, as premissas e a conclusão constituem a matéria e a sua disposição, na medida em que for característica da relação das frases, a forma. Só em segunda linha é que a forma das frases singulares e em terceira linha a forma das suas matérias pertence à forma do raciocínio, na medida em que processo e conteúdo da actividade inferencial são também condicionados por elas.

vi) Husserl concebe os signos como um instrumento imprescindível ao pensamento e à ciência. São os signos que tornam possível o desenvolvimento psíquico. Eles são autênticas ferramentas necessárias às operações superiores lógicas. "Sem a possibilidade de signos característicos exteriores e permanentes enquanto apoios da nossa memória, sem a possibilidade de representações simbólicas substitutas de representações próprias, mais abstractas, e mais difíceis de distinguir e de manejar, ou mesmo de representações que nos são de todo interditas enquanto próprias, não haveria qualquer vida espiritual superior, para já não falar de ciência. Os símbolos são o maior meio de ajuda natural com que ultrapassamos os limites estreitos da nossa vida psíquica, com que podemos tornar inofensivas, pelo menos até um certo grau, estas imperfeições essenciais do nosso intelecto. Por desvios peculiares, poupando actos superiores do pensamento, capacitam o espírito humano a realizações que directamente, com um trabalho gnosiológico próprio, nunca poderia alcançar. Os símbolos servem a economia do trabalho intelectual tal como as ferramentas e as máquinas servem o trabalho mecânico. Com a simples mão, o melhor desenhador não traçará tão bem um círculo como um rapaz de escola com o compasso. O homem mais inexperiente e mais fraco produzirá com uma máquina (desde que a saiba manejar) incomparavelmente mais que o mais experiente e mais forte sem ela. E o mesmo se passa no campo intelectual. Tirem-se ao maior génio as ferramentas dos símbolos e ele tornar-se-á menos capaz que a pessoa mais limitada. Hoje em dia uma criança que aprendeu a fazer contas está mais capacitada que na antiguidade os maiores matemáticos. Problemas que para eles eram de difícil compreensão e de todo insolúveis resolve-os hoje um principiante sem grande dificuldade e sem qualquer mérito especial. E assim como as ferramentas, em crescente complexificação até às máquinas mais maravilhosas, constituem uma série gradativa que reflecte o progresso da humanidade no trabalho mecânico, assim também acontece com os símbolos relativamente ao trabalho intelectual. Com a aplicação consciente dos símbolos o intelecto humano eleva-se a um novo nível, a um nível verdadeiramente humano. E o progresso do desenvolvimento intelectual corre paralelo a um progresso na ciência dos símbolos. O fantástico desenvolvimento das ciências da natureza e a técnica nelas fundada constituem sobretudo a glória e o orgulho dos últimos séculos. Mas não menor título de glória parece merecer, com efeito, esse notável sistema de símbolos, ainda não esclarecido, a que aquelas devem imenso, e sem o qual tanto teoria como prática ficariam completamente desamparadas: o sistema da aritmética geral, a mais admirável das máquinas espirituais que já alguma vez apareceram." 40.
 


CAPÍTULO SEGUNDO
 
PEIRCE E O PRAGMATISMO

COMO LÓGICA DA ABDUÇÃO

a) A máxima pragmatista e a clareza de ideias
1– Não há dúvida que pragmatismo se tornou um termo bastante equívoco. O próprio Peirce deu-se conta da equivocidade que o termo assumira desde que o criara, e em 1905 abandonou-o em troca do termo pragmaticismo, um termo "suficientemente feio para o livrar dos ladrões de crianças". Mas se nessa altura, o termo se havia tornado um equívoco, hoje quase que se pode falar de um abastardamento do seu significado.
É sobretudo no âmbito da política que hoje se emprega o termo pragmático ou pragmatista. Um político pragmático é aquele que age de um modo prático, movido pelas exigências do momento, sem quaisquer preocupações de ordem ideológica. Não há dúvida que este significado comporta um elemento positivo. A um político pragmático atribui-se capacidade de iniciativa e de acção. Ele interessa-se mais pela resolução concreta dos problemas do que pela investigação das suas causas ou da análise teórica dos mesmos. A validade de uma teoria consiste, então, apenas numa adequação à prática. Pragmatismo significa positivamente, neste sentido, a percepção lúcida dos problemas e a capacidade prática de os resolver sem preocupações de ordem teórica. O significado negativo de pragmatismo está no imediatismo e na falta de referências teóricas. O político pragmático opta por soluções práticas que serão, na maioria das vezes, soluções imediatistas, a curto prazo. Não se preocupa com os custos que tais soluções possam acarretar. Falta-lhe uma cuidadosa ponderação dos efeitos secundários, mas inevitáveis, do seu agir. Por outro lado, pragmatismo neste sentido também significa por vezes a completa ausência de princípios de acção e, simultaneamente, a cegueira ética no agir.
2– Mas qual o significado originário que C. S. Peirce atribuiu ao termo "pragmatismo"? Esse significado pode encontrar-se no artigo de Peirce "Como tornar as nossas ideias claras" de 1878 41. O pragmatismo tal como transparece da máxima pragmatista formulada aí por Peirce é sobretudo um método lógico de clarificação das ideias. O significado originário de pragmatismo é de natureza lógica.
Peirce começa por pôr em causa as noções cartesianas de clareza e distinção. Segundo Peirce, na tradição lógica, iniciada por Descartes, clareza significa a capacidade de reconhecer uma ideia em qualquer circunstância que ela ocorra e nunca a confundir com nenhuma outra. Contra tal ideia de clareza levanta Peirce duas objecções. Em primeiro lugar, isso representaria uma capacidade sobre-humana. Com efeito, quem poderia reconhecer uma ideia em todos os contextos e em todas as formas em que ela surgisse, não duvidando nunca da sua identidade? Identificar uma ideia em circunstâncias diversas não é tarefa fácil, e identificá-la em todas as suas formas é com certeza tarefa que implicaria "uma força e uma clareza tão prodigiosas do intelecto como se encontram raramente neste mundo". Em segundo lugar, esse reconhecimento não seria mais do que uma familiaridade com a ideia em causa. Neste caso, porém, teríamos um sentimento subjectivo sem qualquer valor lógico. A clareza de uma ideia não pode resumir-se a uma impressão. Por seu lado, a noção de distinção, introduzida para colmatar as deficiências desta concepção de clareza, exige que todos os elementos de uma ideia sejam claros. A distinção de uma ideia significaria, portanto, a possibilidade de a definir em termos abstractos. A crítica capital de Peirce à noção cartesiana de clareza e distinção é a de que não permitem decidir entre uma ideia que parece clara e uma outra que o é. Há homens que parecendo estar esclarecidos e determinados defendem opiniões contrárias sobre princípios fundamentais. Alguém pode estar muito convencido da clareza de uma ideia que não o é.
Como assegurarmo-nos então objectivamente da clareza de uma ideia? É aqui que Peirce introduz a engenharia do pensamento moderno. Aliás, as invectivas de Peirce contra a lógica tradicional são precisamente a de ter ignorado ao longo de mais um século a revolução ocorrida no pensamento científico e, por conseguinte, não ter retirado daí as devidas lições.
Peirce apresenta o pensamento como um sistema de ideias cuja única função é a produção da crença. Que devemos entender aqui por sistema de ideias? Antes de mais, há que distinguir entre dois tipos de elementos da consciência: aqueles de que temos imediatamente consciência e aqueles de que temos mediatamente consciência. Uma melodia é um bom exemplo destes dois tipos de elementos. Os sons que a compõem são ouvidos directamente. Cada som é uma nota e dele temos consciência (ouvimo-lo) num determinado momento, separadamente dos sons que ouvi-mos antes e dos sons que ouviremos depois. Em contrapartida, a melodia é um elemento mediato à consciência, mediado pelos sons que a compõem. Tal como a melodia, também o pensamento é uma acção que tem começo, meio e fim, e consiste na congruência da sucessão de sensações que passam pela mente. Nas palavras de Peirce, "o pensamento é a linha de uma melodia através da sucessão das nossas sensações". Dizer, portanto, que o pensamento é um sistema de ideias significa dizer que o pensamento é uma sucessão ordenada de ideias. A ordem da sucessão ou a unidade do sistema reside na sua função. A função do pensamento é unicamente a de produzir a crença. A crença, por seu lado, é o apaziguamento da dúvida. Mas, ao sossegar a irritação da dúvida, a crença "implica a determinação na nossa natureza de uma regra de acção, ou, numa palavra, de um hábito". Quer isto dizer que com a crença acaba a hesitação de como agirmos ou procedermos. Um exemplo poderá esclarecer como é que a crença é uma regra de acção. Se encontro uma pessoa que não me é inteiramente desconhecida, mas que de momento não identifico, começo a interrogar-me sobre quem será, de onde a conheço. Essa pessoa cumprimenta-me e não consigo lembrar-me de quem se trata. Não sei que hei-de dizer-lhe, e isso perturba-me. De repente, consigo identificar a pessoa. Daí em diante todas as minhas acções, a maneira como me dirijo a essa pessoa e os assuntos que com ela poderei abordar são determinados por esse reconhecimento. Em termos peirceanos, é uma crença que sossegou a minha dúvida e que constitui agora a base das minhas.
“A essência da crença é a criação de um hábito; e diferentes crenças distinguem-se pelos diferentes modos de acção a que dão origem”. É com estas palavras que Peirce inicia o parágrafo 398, um dos mais importantes do seu ensaio. Vejamos a primeira parte da afirmação de Peirce: "a essência da crença é a criação de um hábito". Se eu julgar que determinado objecto é um garfo, então servir-me-ei dele para levar à boca certos alimentos sólidos. A crença de que esse objecto é um garfo condiciona as acções que farei com ele. O hábito não é mais do que o conjunto de todas essas acções, tanto reais como possíveis. Porém, para um chinês de uma aldeia remota do interior da China, que se serve normalmente de pauzinhos para levar à boca os alimentos sólidos, e que encontra um "garfo" perdido por um viajante ocidental, a sua crença acerca desse objecto pode ser completamente diferente. Pode julgar, por exemplo, que se trata de um ancinho para pequenos vasos de flores. Nesse caso, a sua crença consistirá em servir-se dele para tratar a terra dos seus vasos. Vimos atrás que as crenças determinam a acção. Mas a mesma crença determina as mesmas acções. Se as crenças se alteram também as acções se alteram. É por isso que o hábito constitui a identidade da crença.
A segunda parte da afirmação de Peirce, isto é, de que "diferentes crenças se distinguem pelos diferentes modos de acção a que dão origem", decorre da primeira. Enquanto identidade da crença, o hábito de acção é o critério para avaliar da diferença entre crenças. Não teria pois qualquer sentido afirmar uma diferença de crenças cujos resultados de acção – não só efectivamente, mas também possivelmente – fossem os mesmos. O que decide então da identidade ou da diversidade das crenças não são meras palavras, mas sim acções empiricamente verificáveis, já que os referidos resultados de acção são resultados sensíveis 42.
Para ilustrar o seu método de tornar as ideias claras, Peirce faz no parágrafo 401 uma incursão pelos domínios da fé católica relativamente ao mistério da Eucaristia. Os católicos acreditam que na celebração eucarística tem lugar a transubstanciação do pão e do vinho no corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. A sua fé diz-lhes que, a partir do acto da consagração pelo sacerdote, o pão deixa de ser pão, o vinho deixa de ser vinho, e passam a ser realmente o corpo e sangue de Cristo. Em contrapartida, "as igrejas protestantes defendem em geral que os elementos da eucaristia são carne e sangue apenas em sentido figurado".
Ora, pela teoria de Peirce, não tem sentido dizer que não é pão ou vinho aquilo que tem as qualidades de pão e vinho. O pão e o vinho consagrados na eucaristia, e segundo a fé católica tornados realmente corpo e sangue de Cristo, mantêm as propriedades que caracterizam o pão e o vinho; as mesmas propriedades físicas, químicas e nutritivas. Isso nenhum católico enquanto pessoa de bom senso pode negar. E, portanto, segundo Peirce, "é palavreado oco, falar de algo como tendo todas as características do vinho, mas que na realidade é sangue".
A doutrina católica da transubstanciação funda-se na filosofia aristotélica, nomeadamente na distinção entre substância e acidentes. Na Eucaristia, tem lugar uma mudança de substância do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo, mas mantendo-se nessa mudança substancial os acidentes de pão e vinho. A meu ver, a crítica de Peirce dirige-se não tanto ao mistério eucarístico, mas sobretudo à explicação filosófica adoptada pelo magistério católico. A teoria aristotélica da substância e dos acidentes é hoje cientificamente inaceitável, obrigando pois a uma revisão do conceito de "transubstanciação" aplicado ao mistério eucarístico. Contudo, permanece a questão da "realidade" do corpo e sangue de Cristo nos elementos do pão e do vinho. Empiricamente, o pão e o vinho continuam a ser pão e vinho, justamente na medida em que mantêm as propriedades de pão e vinho. Aos olhos da fé, porém, o pão deixa de ser realmente pão e o vinho deixa de ser realmente vinho, para se tornarem no corpo e sangue de Cristo. O hino eucarístico de S. Tomás de Aquino "Pange lingua" diz isso mesmo: "Praestet fides supplementum sensuum defectui". É aliás de acordo com a realidade dos olhos da fé que o crente católico determina as suas concepções e os seus actos relativamente à Eucaristia.
Aliás aqui pode aplicar-se o método de Peirce. A crença na realidade eucarística estabelece uma regra de acção nos católicos. Quando vai à comunhão, a intenção do católico não é alimentar-se corporalmente, embora efectivamente também o faça – se comungasse meio quilo de hóstias consagradas, obviamente que ficaria saciado –, mas sim alimentar-se espiritualmente. Quando vai visitar o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, então fá-lo pela fé na presença real de Cristo. O martírio de S. Tarcísio, morto por defender as espécies sagradas, é o melhor exemplo dos comportamentos práticos que a crença determina. Se "a essência da crença é a criação de um hábito" e se "diferentes crenças se distinguem pelos diferentes modos de acção a que dão origem", então a realidade eucarística deverá espelhar-se nas acções e comportamentos dos católicos. Ora é justamente isso que acontece. A crença na realidade eucarística, o mesmo é dizer, na presença real de Cristo na eucaristia, consiste na crença nos efeitos práticos que os católicos concebem que essa presença divina tem nas suas vidas.
No parágrafo 402, Peirce formula então a máxima pragmatista: "considera quais os efeitos, que podem ter certos aspectos práticos, que concebemos que o objecto da nossa concepção tem. A nossa concepção dos seus efeitos constitui o conjunto da nossa concepção do objecto". Quer isto dizer, que a nossa ideia do objecto é tão simplesmente a ideia dos efeitos sensíveis que concebemos que o objecto tem ou pode ter.

b) O pragmatismo como lógica da abdução
A máxima pragmatista é uma máxima lógica e não um sublime princípio de filosofia especulativa. É isto que Peirce afirma logo na primeira 43 das sete conferências sobre pragmatismo que em 1903 fez em Harvard a convite de William James e que, de certo modo, tornou essas conferências ininteligíveis para os ouvintes 44. Com estas conferências Peirce tenta fundamentalmente dar uma resposta lógica – e não psicológica! – à seguinte questão: "Qual é a prova de que os efeitos práticos de um conceito constituem a soma total do conceito?"45 É que na primeira formulação da máxima pragmatista, o argumento, de que a crença consistia em estar deliberadamente preparado para adoptar a fórmula criada como guia da acção, assentava num princípio psicológico, nomeadamente o de a concepção de verdade se desenvolver a partir de um impulso original para agir consistentemente ou ter uma intenção definida. Mas, além de tal princípio não ser claro, ele também não respondia à objecção de que embora não existisse diferença prática entre duas concepções, alguém poderia reconhecer uma concepção como sua e não a outra. O critério pragmático não seria nesse caso suficiente para decidir sobre a identidade ou diferença de duas concepções. A prova lógica de que os efeitos práticos de um conceito constituem efectivamente a soma total do conceito obtém-a Peirce apresentando o pragmatismo como a lógica da abdução. Efectivamente o ciclo de conferências em Harvard termina por apurar que a questão do pragmatismo mais não é que a questão da abdução 46.
Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu. Este princípio aristotélico é a primeira das três proposições com que Peirce tenta "afiar" a máxima pragmatista 47. Por in intellectu deve entender-se toda a ideia ou representação de qualquer tipo de conhecimento, seja este virtual ou simbólico. Por ter estado in sensu entende expressamente Peirce ter passado por um juízo perceptivo. Quer esta primeira proposição cotária dizer, portanto, o seguinte: nenhuma ideia, seja de que tipo for, se encontra na mente que não tenha passado primeiro por um juízo perceptivo. Os juízos preceptivos surgem assim como a verdadeira fonte do conhecimento.
O problema que aqui se levanta, e que é o problema principal de qualquer teoria do conhecimento ou lógica, é o seguinte: como é possível obter de juízos particulares, como são os juízos perceptivos, conceitos e juízos universais? Dito de outra maneira: Se tudo vem da sensibilidade, e sendo a sensibilidade sempre uma apreensão do singular, como é que podemos chegar a conceitos universais?
Logo no início da sexta conferência "Três tipos de raciocínio" 48, Peirce define geral e singular. Seguindo Aristóteles, Peirce define o geral como aquilo quod aptum natum est praedicari de pluribus. Trata-se de uma definição de cariz eminentemente lógico. É geral o que se predica de vários. O singular, por seu lado é definido como aquilo que reage. Reacção deve ser entendida aqui como resistência à arbitrariedade representativa de quem formula o juízo. O singular é o existente que está completamente determinado e, portanto, não dá azo a uma determinação ulterior por parte de quem o apreende. É justamente o singular que traduz o carácter impositivo ou reactivo de todo o objecto da percepção. Dito de outro modo: o sujeito de um juízo perceptivo – de um juízo baseado numa percepção! – é sempre um existente e, sendo esse existente completamente determinado na sua existência, ele impõe-se como tal ao cognoscente 49.
Mas embora os juízos perceptivos sejam juízos singulares, eles não deixam de envolver a generalidade – o seu predicado é geral –, de tal forma que a partir deles se podem deduzir proposições universais. É esta a segunda proposição cotária. A questão que muito pertinentemente se levanta aqui é como é que a generalidade entra nos juízos perceptivos. Se é com estes juízos que todo o conhecimento começa, de acordo com a primeira posição cotária, então importa saber como é que a generalidade aparece neles. A resposta de Peirce é que a introdução da generalidade nos juízos perceptivos se faz abdutivamente.
O que é a abdução? Peirce apresenta-a como um dos três tipos de raciocínio, sendo os outros dois a dedução e a indução 50. Enquanto a dedução prova que algo deve ser (inferência necessária) e a indução prova que algo realmente é (inferência experimental), a abdução prova que algo pode ser (inferência hipotética). A dedução parte de certas hipóteses (premissas) e retira delas de modo necessário o que nelas se encontra implicitamente suposto, a saber, a conclusão. Mas a dedução deixa em aberto a verdade das premissas 51. A indução, por seu lado, consiste em verificar uma teoria mediante a experimentação. Ela não constitui certamente o método de adquirir novos conhecimentos, como pretenderam os pensadores modernos. Por mais experimentos que se fizessem, eles nunca nos levariam a uma nova doutrina. O que a indução faz é apenas comprovar uma teoria avançada de antemão para explicar certos fenómenos. "A indução consiste em partir de uma teoria, dela deduzir predições de fenómenos e observar esses fenómenos a fim de ver quão de perto concordam com a teoria." 52. A abdução, por fim, é o método de formação de novas hipóteses explicativas. Trata-se do único tipo de raciocínio capaz de engendrar novos conhecimentos. As premissas da dedução e as teorias supostas pela indução são de natureza hipotético-explicativa, a sua criação deve-se à abdução.
A forma de inferência abdutiva é a seguinte: "Um facto surpreendente, C, é observado; Mas se A fosse verdadeiro, C seria natural. Donde há razão para suspeitar que A é verdadeiro" 53. Mas como chegamos a A? Como surge essa hipótese explicativa? Peirce associa a abdução ao instinto. O homem tem uma faculdade especial de elaborar hipóteses explicativas. É uma espécie de introvisão (Insight) da natureza 54. Sebeok utiliza aqui o velho topos da lumen naturale para classificar a capacidade abdutiva do homem 55.
Exposto o tipo de raciocínio abdutivo, vejamos agora como é que a generalidade entra abdutivamente nos juízos perceptivos.
A terceira proposição cotária apresenta os juízos perceptivos como casos extremos de inferências abdutivas 56. "A terceira proposição cotária é que a inferência abdutiva se transforma no juízo perceptivo sem que haja uma linha clara de demarcação entre eles: ou, por outras palavras, as nossas primeiras premissas, os juízos perceptivos, devem ser encarados como um caso extremo das inferências abdutivas, das quais diferem por estar absolutamente além de toda a crítica" 57. Peirce fundamenta a terceira proposição cotária no carácter interpretativo dos juízos perceptivos. Em muitos casos o objecto da percepção pode ser classificado de maneira diferente. O exemplo apontado por Peirce são as ilusões ópticas, nomeadamente a ilusão da figura esboçada de alguns degraus vistos em perspectiva – por vezes temos a impressão de olhar os degraus de cima, e de repente parece que vemos de baixo os degraus. Nestes casos, uma teoria da interpretação da figura dá sempre a impressão de ser dada na percepção: "Da primeira vez em que nos é apresentada, ela parece estar sempre tão completamente além da do controle da crítica racional quanto o está qualquer objecto da percepção; mas, após muitas repetições da experiência agora familiar, a ilusão desgasta-se, tornando-se inicialmente menos definida e acabando, ao fim, por desaparecer por completo. Isto demonstra que estes fenómenos são verdadeiros elos conectivos entre abduções e percepções."58. Estas variações da percepção do objecto e consequentemente dos juízos perceptivos mostram que existe uma dependência destes juízos relativamente à abdução. O objecto da percepção não é dado como um facto bruto, absolutamente inquestionável, mas é sempre percepcionado à luz de determinada teoria. De certo modo, ele é sempre interpretado. Portanto, os juízos perceptivos são casos ainda que extremos de inferências abdutivas 59.
A linha de demarcação entre juízos perceptivos e inferências abdutivas propriamente ditas reside na incapacidade de conceber a negação dos juízos perceptivos. Trata-se da prova da inconceptibilidade. Esta é o único meio de distinguir entre uma abdução e um juízo perceptivo. Enquanto podemos conceber sem mais a negação de uma inferência abdutiva e imaginar uma outra hipótese explicativa, "não podemos formar a menor concepção do que seria negar o juízo perceptivo" 60.
A máxima pragmatista constitui o critério de admissibilidade das hipóteses explicativas. É precisamente por isso que a questão do pragmatismo se identifica com a questão da abdução. "O pragmatismo propõe uma certa máxima que, se sólida, deve tornar desnecessária qualquer norma ulterior quanto à admissibilidade das hipóteses se colocarem como hipóteses, isto é, como explicações dos fenómenos consideradas como sugestões auspiciosas; e, mais ainda, isto é tudo o que a máxima do pragmatismo pretende realmente fazer, pelo menos na medida em que está restrita à lógica e em que não é compreendida como uma proposição em psicologia." 61. Quer isto dizer o seguinte: o universo das hipóteses explicativas é infinito. Sendo a forma canónica da abdução o raciocínio "Um facto surpreendente, C, é observado; Mas se A fosse verdadeiro, C seria natural. Donde há razão para suspeitar que A é verdadeiro" , então todo e qualquer alvitre que de alguma forma pudesse explicar um fenómeno teria razão de ser 62. É aqui que se impõe estabelecer um limite e esse limite é a máxima pragmatista. A abdução feita, mais exactamente, a hipótese abduzida tem de criar o hábito de como lidar com o fenómeno explicado. Essa hipótese vai guiar a conduta prática de quem a formulou.
Entendida a máxima pragmatista como critério da admissibilidade de hipóteses, isto é, entendida como princípio lógico, ela formula-se da seguinte forma: "A máxima do pragmatismo é que uma concepção não pode ter efeito lógico algum, ou importância a diferir do efeito de uma segunda concepção salvo na medida em que, tomada em conexão com outras concepções e intenções, poderia concebivelmente modificar a nossa conduta prática de um modo diverso do da segunda concepção" 63.

1-Ver Brent, ibidem. p. 326.
 2-"Ist der von Bolzano und anschliessend von Frege, Meinong und Husserl vollzogene Anfangsschritt, durch den die Gedanken aus der Innenwelt der Bewusstseinserlebnisse verstossen werden, erst einmal getan, ist der zweite Schritt – die Auffassung, wonach die Gedanken durch die Sprache nicht nur übertragen, sondern erzeugt werden – praktisch kaum zu vermeiden." Micahel Dummet, Ursprünge der analytischen Philosophie, Frankfurt: Suhrkamp, p. 37.
 3-"§ 285. Bezeichnung unserer Vorstellungen", pp.67-78.
4-"§ 334. Verknüpfung unserer Vorstellungen mit zweckmässigen Zeichen. Vorteile dieser Verknüpfung", pp. 355-358.
5-Cf §§ 335-344, pp. 358-377.
6-"Ein Gegenstand, dessen wir uns zu einem solchen Zwecke bedienen, d.h. durch dessen Vorstellung wir eine andere in einem denkenden Wesen mit ihr verknüpfte Vorstellung erneuert wissen wollen, heisst uns ein Zeichen." p. 67.
7-Bolzano não faz a diferença entre representação assinalada e o objecto da representação assinalada. Aos dois chama significado do signo. Mas é óbvio que se tratam de coisas diferentes. A confusão surge dada a definição de signo se basear no conceito de representação.
8-Cifrar § 334.
9-Cifrar §§ 335-338.
10-Cifrar §§ 339-342.
11-"jene Regeln, nach denen wir bei der Bezeichnung unserer Vorstellungen für den Zweck des eigenen Nachdenkens vorzugehen haben, in der Lehre vom wissenschaftlichen Vortrage schon als bekannt vorausgesetzt werden müssen." § 334.
12-Ver William Kneale e Martha Kneale, O Desenvolvimento da Lógica, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, p. 441.
13-Sobre este item cifrar Michael Dummet, Ursprünge der analytischen Philosophie, Frankfurt: Suhrkamp, pp. 11-39.
 14-"In diesem Aufsatz [Sinn und Bedeutung] darf man eine der wichtigsten historischen Quellen der modernen Semantik sehen." Günther Patzig na introdução a Gottlob Frege, Funktion, Begriff, Bedeutung. Fünf logische Studien, (org. G.Patzig), Goettingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1980, (p.4).
15-Utiliza-se aqui a edição referida na nota anterior deste artigo de Frege.
 16-Sobre este tema cifrar o cap. 3 "Wahrheit und Bedeutung" da obra referida de Michael Dummet.
 17-Philosophie der Arithmetik. Logische und Psychologische Unter-suchungen. Husserliana (Hua) XII, pp. 1-283.
 18-"Über den Begriff der Zahl. Psychologische Analysen", também publicada como complemento em Hua XII, pp. 289-339
19-Hua XII, p.287.
20-"Auf den Unterschied zwischen "eigentlichen" und "uneigent-lichen" oder "symbolischen" Vorstellungen hat Fr. Brentano in seinen Universitätsvorlesungen von jeher den größten Nachdruck gelegt. Ihm verdanke ich das tiefere Verständnis der eminenten Bedeutung des uneingentlichen Vorstellens für unser ganzes psychisches Leben, welche vor ihm, soweit ich sehen kann, niemand voll erfaßt hat." Hua XII, p. 193.
21-Sobre este assunto, ver em António Fidalgo, O Realismo da Fenomenologia de Munique, Braga, 1991, o cap. "O Mecanismo Associativo da Alma", pp. 47-63.
22-"Neben die Mechanik der äußeren Natur tritt die Mechanik der Seele. Von Herbart rühmten seine Schüler, er habe mehr ge-leistet als Newton mit seiner Mechanik des Himmels, da die Seele soviel höher stehe und komplizierter sei als die Körperwelt." Michael Landmann, Philosophische Anthro-pologie, Berlim: Gruyter, 19825, p.105.
23-Cf. Fidalgo, "Pfänders Weg vom Monismus zur Phänomenologie" in Karl Schuhmann, Categories of Counsciousness. The Descri-pti-ve Psychology of Alexander Pfänder, Dordrecht, Nijhoff.
24-Brentano, Psychologie vom empirischen Standpunkt, Hamburgo: Meiner, p.41.
25-Brentano, Deskriptive Psychologie, Hamburgo: Meiner, 1982, pp. 67-69.
26-Ehrenfels, "Über Gestaltqualitäten" in Vierteljahrschrift für wissenschaftliche Philosophie 14, pp. 249-292.
27-Publicados em Hua XXII, Aufsätze und Rezensionen (1890-1910)
28-"Hieraus geht unwiderleglich hervor, daß die Melodie oder Tongestalt etwas Anderes ist, als die Summe der einzelnen Töne, auf welchen sie sich aufbaut." Ehrenfels, ibidem, p. 259.
29-"Unter Gestaltqualitäten verstehen wir solche positive Vorstellungsinhalte, welche an das Vorhanden-sein von Vorstel-lungs-komplexen im Bewußtsein gebunden sind, die ihrerseits aus von einander trennbaren (d.h. ohne einander vorstellbaren) Elementen bestehen." ibidem, p. 262.
30-Meinong, "Zur Psychologie der Komplexionen und Relationen" em Zeitschrift für Psychologie und Physiologie der Sinnesorgane 2, 1891, pp. 245-265.
31-Cf. Meinong, "Über Gegenstände höherer Ordnung un deren Ver-hältnis zur inneren Wahrnehmung" em Zeitschrift für Psycho-logie und Physiologie der Sinnesorgane 21, 1899, pp. 182-272, e Über Gegenstandstheorie. Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie, Leipzig: Barth, 1904.
32-"Eine symbolische oder uneigentliche Vorstellung ist, wie schon der Name besagt, eine Vorstellung durch Zeichen." Hua XII, p. 193
 33-"Ist uns ein Inhalt nicht direkt gegeben als das, was er ist, sondern nur indirekt durch Zeichen, die ihm eindeutig charakterisieren, dann haben wir von ihm statt einer eigen-tlichen eine symbolische Vorstellung." ibidem. 34-"Jede Beschreibung eines anschaulichen Objekts hat die Tendenz, die wirkliche Vorstellung desselben durch eine stell-vertretende Zeichen-vorstellung zu ersetzen." ibidem, p. 194. 
35-Hua XII, p. 190.
36-Hua XII, p. 192.
37-Hua XII, p. 192 e Hua XII, p. 340.
38-HUA XII, p. 192.
39-Cf. [341].
40-Hua XII, p. 349.
41-O termo pragmatismo ainda não aparece neste artigo. Aliás ele não se encontra nos primeiros escritos de Peirce. Trata-se pois do seu significado avant la lettre.
42-Sobre esta temática, veja-se a excelente exposição de John Murphy, O Pragmatismo. De Peirce a Davidson, Lisboa: Asa, 1993, pp.38-41.
43-"uma das faltas que me podem atribuir é ter feito do pragmatismo uma máxima lógica em vez de um sublime princípio de filosofia especulativa" Col. Papers, 5.18, traduzido em Peirce, Frege. Os Pensadores, São Paulo: Editor Victor Civita, 1983, p. 11.
44-"Most of his hearers, including James..., found the lectures obscure, if not unintelligible." Joseph Brent, Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington: Indiana University Press, p. 291. O próprio Peirce, numa carta a Christine Ladd-Franklin, queixa-se da incompreensão encontrada e acusa o psicologismo de Wundt disso: "In the Spring of 1903 I was invited, by the influence of James, Royce and Münstenberg, to give a course of lectures in Harvard University on Pragmatism. I had intended to print them; but James said he could not understand them himself and could not recommend their being printed. I do myself think there is any difficulty in understanding them, but all modern psychologists are so soaked with sensatinalism that they can not understand anything that does not mean that, and mistranslate into the ideas of Wundt whatever one says about logic." ibidem.
45- ibidem.
46- "Se os senhores examinarem com atenção a questão do pragmatismo, verão que ela nada mais é excepto a questão da lógica da abdução." Charles S.Peirce, Semiótica, São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 232).
47-Cf. 1. cap. "As Três Proposições Cotárias" da última conferência "Pragmatismo e Abdução" ibidem, pp. 225-239).
48- ibidem, pp. 211-224.
49-"Reacção é existência e o juízo perceptivo é o produto cognitivo de uma reacção." ibidem, p. 213.
50- Também aqui Peirce se reporta a Aristóteles, nomeadamente aos Primeiros Analíticos; ibidem, p. 207.
51-"Na dedução, ou raciocínio necessário, partimos de um estado de coisas hipotético que definimos sob certos aspectos abstractos. Entre os caracteres aos quais não prestamos nenhuma atenção neste modo de argumento está o seguinte: se a hipótese das nossas premissas se adequa ou não, mais ou menos, ao estado de coisas no mundo exterior." ibidem, p. 215.
52-ibidem, p. 219.
53- ibidem, p. 229
54-"Seja como for que o homem tenha adquirido a sua faculdade de adivinhar os caminhos da Natureza, certamente não o foi através de uma lógica crítica e autocontrolada. Mesmo agora ele não consegue dar uma razão precisa para as suas melhores conjecturas. Parece-me que a formulação mais clara que podemos fazer a respeito da situação lógica – a mais livre de toda a mescla questionável de elementos – consiste em dizer que o homem tem uma certa Introvisão (Insight), suficientemente forte para que esteja, na esmagadora maioria das vezes, com mais frequência certo do que errado, uma Introvisão da Terceiridade, os elementos gerais, da Natureza." ibidem, 221.
55-"As Peirce characterizes abduction, it is based on instinct in particular, on a natural insight into the laws of nature captured by the frase il lume naturale 'the natural light'. In spite of its instinctive base, abduction is clearly classified by Peirce as a method of reasoning." Sebeok, Enciclopedic Dictionary of Semiotics,
56- "Abductive inference is also linked to perceptual judgement by Peirce; perceptual judgements are extreme instances of abductive inference, from which they differ in being absolutely beyond criticism." ibidem.
57- Peirce, ibidem, p. 226.
58- Peirce, ibidem, p. 227.
59- "184. Se o percepto ou o juízo perceptivo fosse de uma tal natureza que estivesse de todo desligada da abdução, seria de esperar que o percepto fosse inteiramente livre dos caracteres que são próprios às interpretações, enquanto que dificilmente pode deixar de apresentar tais caracteres se for meramente uma série contínua daquilo que, discreta e conscientemente realizadas, seriam as abduções. Temos aqui, desta forma, quase uma verificação crucial da minha terceira proposição cotária. Neste caso, qual é o facto? O facto é que não há necessidade de ir além das observações comuns da vida comum para encontrar uma variedade de modos amplamente diferentes pelos quais a percepção é interpretativa." ibidem, p. 227.
60-ibidem, p. 228.
61-ibidem, p. 232.
62- "Um físico depara-se com um novo fenómeno em seu laboratório. Como é que ele sabe se as conjunções dos planetas têm algo a ver com isso, ou se isso é assim porque, talvez, a imperatriz viúva da China, no mesmo momento há um ano atrás, pronunciou alguma palavra com um poder místico, ou se o facto se deve à presença de algum espírito invisível? Pense-se nos trilhões e trilhões de hipóteses que se poderiam formular e das quais apenas uma é verdadeira; todavia, após duas ou três, no máximo uma dúzia de conjecturas, o físico dá, bastante aproximadamente, com a hipótese correcta.". ibidem, p. 220.
63- ibidem, p. 232.