As propriedades pragmáticas do signo

António Fidalgo, Universidade da Beira Interior



 

Foi o pragmatismo, a corrente filosófica iniciada por Peirce, que prestou especial atenção à relação entre os signos e os seus utilizadores. O pragmatismo compreendeu que para além das dimensões sintáctica e semântica na análise do processo sígnico há uma dimensão contextual. Isto é, o signo não é independente da sua utilização. A novidade da abordagem pragmatista da semiose está em não remeter a utilização dos signos para uma esfera exclusivamente empírica, socio-psicológica, mas encarar essa utilização de um ponto de vista lógico-analítico. A dimensão pragmática é, tal como as dimensões sintáctica e semântica da semiose, uma dimensão lógico-semiótica.

De certo modo a pragmática surge como um desenvolvimento imanente do processo semiótico. Com isto quer-se dizer que tal como a análise das formas sígnicas (sintáctica) leva necessariamente à consideração dos valores semânticos como critério para definir as unidades sintácticas, assim também a análise do significado induz à consideração das condições e situações da sua utilização. Bobes Naves traça muito bem o desenvolvimento da análise semiótica conducente à pragmática: "Ao estudar as formas e as relações dos signos, (...) somos levados necessariamente a ter em conta os valores semânticos como critério para definir as unidades, mesmo no plano estritamente formal. E ao analisar o significado, e sobretudo o sentido, dessas unidades e dos processos sémicos em geral, surgem problemas acerca dos diferentes modos de significar e sobre a forma em que os usos adoptam as relações de tipo referencial, ou as de iconicidade, ou os valores simbólicos, etc.; torna-se necessário determinar os marcos lógicos, ideológicos ou culturais em que se dão os processos semiósicos; as situações em que colhem sentido os diferentes signos; os indícios textuais que orientam os sujeitos que intervêm no processo de comunicação (deícticos, apreciações subjectivas, usos éticos e étimos do signos codificados, etc.), de modo que qualquer estudo semântico ou sintáctico conduz inexoravelmente à investigação pragmática. Tanto as unidades sintácticas como o sentido do texto estão vinculados à situação de uso, às circunstâncias em que se produz o processo de expressão, de comunicação, de interpretação dos signos objectivados num tempo, num espaço e numa cultura.

Por outro lado, a relação dos sujeitos que usam os signos num processo semiósico em que partilham o enquadramento situacional e todas as circunstâncias pragmáticas, pode estabelecer-se num tom irónico, sarcástico, metafórico, simbólico, etc., que condiciona o valor das referências próprias dos signos. As relações dos sujeitos com o próprio texto constituem uma clara fonte de sentido. Os signos, incluindo os codificados, mas sempre circunstanciais, adquirem um valor semiótico concreto em cada uso, um sentido (...) para além do que possam precisar nos limites convencionais do mesmo texto.

O desenvolvimento interno da investigação semiológica conduz, por conseguinte, de um modo progressivo, da sintaxe à semântica e desta à pragmática enquanto consideração totalizadora de todos os aspectos do uso do signo nos processos semiósicos."1

Assim como as regras sintácticas determinam as relações sígnicas entre veículos sígnicos e as regras semânticas correlacionam os veículos sígnicos com outros objectos, assim as regras pragmáticas estabelecem as condições em que algo se torna um signo para os intérpretes. Isto é, o estabelecimento das condições em que os termos são utilizados, na medida em que não podem ser formuladas em termos de regras sintácticas e semânticas, constituem as regras pragmáticas para os termos em questão.2 Efectivamente, o emprego, por exemplo, da interjeição 'Oh!', da ordem 'Vem cá', do termo valorativo 'Felizmente', é regido por regras pragmáticas.

O estabelecimento da regra pragmática permite traçar a fronteira entre o uso e o abuso dos signos. Qualquer signo produzido e usado por um intérprete pode também servir para obter informações sobre esse intérprete. Tanto a psicanálise, como o pragmatismo ou a sociologia do conhecimento interessam-se pelos signos devido ao valor de diagnose individual e social que a produção e a utilização dos signos permite. O psicanalista interessa-se pelos sonhos devido à luz que estes lançam sobre a alma do sonhador. Ele não se preocupa com a questão semântica dos sonhos, a sua possível verdade ou correspondência com a realidade. Aqui o signo exprime – mas não denota! – o seu próprio interpretante.

Graças ao carácter diagnóstico da utilização dos signos, é possível e é "perfeitamente legítimo para certos fins utilizar signos simplesmente em ordem a produzir certos processos de interpretação, independentemente de haver ou não objectos denotados pelos signos ou mesmo de as combinações de signos serem ou não formalmente possíveis relativamente às regras de formação e transformação da língua em que os veículos sígnicos em questão são normalmente utilizados."3 Os signos podem ser usados para condicionar comportamentos e acções tanto próprios como alheios. Ordens, petições, exortações, etc., constituem casos em que os signos são usados sobretudo numa função pragmática. "Para fins estéticos e práticos o uso efectivo dos signos pode requerer vastas alterações ao uso mais efectivo dos mesmos veículos sígnicos para fins científicos. (...) o uso do veículo sígnico varia com o fim a que se presta".4

O abuso dos signos verifica-se quando são usados de modo a darem uma aparência que efectivamente não têm. O abuso toma usualmente a forma de mascaramento dos verdadeiros objectivos visados com a utilização dos signos. Um exemplo de abuso dos signos é o caso em que para obter certo objectivo se dão aos signos usados as características de proposições com dimensão sintáctica e semântica, de modo a parecerem ter sido demonstrados racionalmente ou verificados empiricamente, quando efectivamente o não foram.

Morris considera que se trata de um abuso da doutrina pragmatista identificar verdade com utilidade. "Uma justificação peculiarmente intelectualista de desonestidade no uso dos signos consiste em negar que a verdade tenha outro componente para além do pragmático, de jeito que qualquer signo que se preste aos interesses do utilizador é considerado verdadeiro."5 Trata-se de um abuso pois que a verdade é um termo semiótico e não pode ser encarado na perspectiva de uma única dimensão. "Aqueles que gostariam de acreditar que 'verdade' é um termo estritamente pragmático remetem frequentemente para os pragmatistas em apoio da sua opinião, e naturalmente não reparam (ou não percebem) que o pragmatismo enquanto uma continuação do empirismo é uma generalização do método científico para fins filosóficos e que não poderia afirmar que os factores no uso comum do termo 'verdade', para os quais se tem vindo a chamar a atenção, aniquilariam factores reconhecidos anteriormente."6
 
 

Os signos são elementos de um sistema e os signos têm um uso. Esta é uma distinção capital para a semiótica e fundamental para uma compreensão correcta da pragmática. O sistema de que o signo faz parte está aquém do uso que se faz dos signos. O sistema, como bem viu Hjelmslev,7 é uma realidade puramente formal, o conjunto das relações abstractas existindo entre os seus elementos. Do ponto de vista sistemático não há diferenças entre uma língua viva e uma língua morta. É do sistema que decorre a natureza vinculativa e a uniformidade do signo. O uso, por seu lado, constitui a particularidade e a irrepetibilidade do signo na sua realização concreta.

O primeiro grande tour de force de Saussure foi justamente o de fixar o sistema da língua como sistema semiótico, de, a partir da tremenda multiplicidade de elementos diversos, ter abstraído (extraído) a estrutura formal da língua. Saussure começa por, analisando o famoso esquema comunicacional entre um emissor e um receptor, distinguir entre elementos físicos, fisiológicos e psíquicos e por centrar o seu estudo exclusivamente nestes últimos. Num segundo passo, separa o que ele chama o facto social da língua, o facto de que "todos os indivíduos reproduzirão – não exacta, mas aproximadamente – os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos"8 dos actos individuais da fala.

Saussure demarca a língua tanto da linguagem, como da fala. Face à linguagem a língua caracteriza-se por ser uma parte determinada, essencial, da linguagem. Enquanto a linguagem é multiforme e heteróclita, estendendo-se sobre vários domínios, físicos, fisiológicos e psíquicos, individuais e sociais, sem uma unidade própria, a língua enquanto sistema de sinais para exprimir ideias é uma instituição social entre outras instituições sociais. A língua é um todo em si e compete-lhe a ela servir de princípio de classificação à linguagem.

Relativamente à fala que é individual e acidental, a língua distingue-se por ser social e essencial. "A língua não é uma função do sujeito falante, é o produto que o indivíduo regista passivamente; ela nunca supõe premeditação. Ela é um objecto bem definido no conjunto heteróclito dos factos da linguagem. Podemos localizá-la no momento determinado do circuito em que uma imagem auditiva se vem associar a um conceito. É a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, e este, por si só, não pode criá-la nem modificá-la; ela só existe em virtude de um contrato firmado entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para lhe conhecer as regras; a criança só pouco a pouco a assimila.".9 Relativamente à caracterização saussureana da língua escreve Roland Barthes a paráfrase: "Como instituição social, ela não é um acto, escapa a qualquer premeditação; é a parte social da linguagem; o indivíduo, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; é essencialmente um contracto colectivo, ao qual nos temos de submeter em bloco, se quisermos comunicar; além disso este produto social é autónomo, à maneira de um jogo que tem as suas regras, pois só o podemos manejar depois de uma aprendizagem."10

À distinção saussureana entre língua e fala corresponde a distinção entre competência e performance na linguística de Noam Chomski. A competência significa o domínio que um falante de uma língua tem sobre ela como sistema, podendo com isso entender frases que nunca ouviu, construir frases nunca antes construídas. A performance está na realização pontual dessa competência linguística.

O que a pragmática vem acrescentar à semiótica é a descrição das regras de uso dos signos. Sintaxe e semântica estudam exclusivamente o sistema, a pragmática estuda o uso dos elementos do sistema. A esta cabe definir as regras do uso dos signos, que são diferentes das regras do sistema. Segundo as regras do sistema é possível formar uma cadeia de signos gramaticalmente correcta que, no entanto, se revela de uso impossível.

Em termos linguísticos, a dimensão pragmática é exposta principalmente na questão de enunciação. Tarefa da pragmática é estudar as condições de enunciação. Não basta que uma frase esteja correcta do ponto de vista gramatical, é preciso também que ela se adeque ao contexto para que possa ter o sentido pretendido e possa ser entendida nesse sentido.

Todo o signo é usado dentro de um contexto e há diversos tipos de contexto.11 Contexto pode ser desde logo o con-texto das unidades mais vastas que as proposições estudadas pela sintáctica. A linguística desenvolveu técnicas de análise do discurso capazes de tratar largas unidades de texto, conversação e argumentação. O signo é determinado não só pelas relações próximas, de tipo sintagmático, mas também por relações longínquas de narração e argumentação. Sem atenção a estas vastas unidades con-textuais do signo, este não poderia muitas vezes ser descodificado tanto no seu significado (denotação), como sobretudo no seu sentido (conotação).

Em segundo lugar há um contexto existencial em que o signo é determinado pela relação com o seu referente. Pode-se falar de um contexto referencial, do mundo dos objectos e das ocorrências, em que referentes, mas também emissores e receptores, pela sua posição existencial condicionam e determinam o signo. As expressões indexicais ou deícticas como "eu", "tu", "este", "hoje" constituem casos bem visíveis de uma contextualização existencial.

Os contextos situacionais são contextos consistindo de uma vasta classe de determinantes de ordem social. Esses determinantes podem ser instituições, como hospitais, recintos desportivos, palácios de justiça, restaurantes, etc. Dentro de cada um destes ambientes há regras próprias de comunicação a que os signos empregues se submetem tanto na sua relação com outros signos, como no seu significado. Por outro lado, as posições sociais que os intervenientes da comunicação assumem, posições hierárquicas, etc., também determinam os signos utilizados.

Em quarto lugar, os próprios actos de uso dos signos são contextos que podem ser designados por contextos de acção. A teoria dos actos de fala proposta por Austin considera os signos linguísticos como acções de determinada força com aplicações diversas. O que o signo é ou não é depende da acção que ele cumpre e, segundo ponto a ter em consideração, da intenção com que é realizado. Os actos de fala são acções intencionais.

Da intencionalidade dos contextos de acção surge um quinto contexto que se pode designar de psicológico, na medida em que categorias mentais e psicológicas entram na teoria pragmática da linguagem. É que acções e interacções são atribuídas a intenções, crenças e desejos.

Com as palavras não se dizem apenas coisas, também se fazem coisas. Fazem-se promessas, afirmações, avisos. É nisso que reside a força ilocucional da língua, na terminologia de Austin. "Faço coisas ao dizer algo (…) O acto locucional tem um sentido, o acto ilocucional tem uma certa força no dizer-se algo."12

Que é a força ilocucional, isto é, a capacidade de fazer coisas com a língua? Para se dar uma resposta, há que fazer a distinção austiniana entre constatativos e performativos. Constatativos são todas aquelas afirmações que verificam, apuram, constatam algo: "A mesa é verde", "sinto-me cansado", "O João é mais alto que o Pedro", "Deus está nos céus". São afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. Por sua vez, os performativos não descrevem, não relatam, não constatam nada, não são verdadeiros nem falsos, eles fazem algo ou então são parte de uma acção. O noivo que diz: "Eu, fulano tal, aceito-te, fulana tal, como minha legítima esposa" na cerimónia do casamento, não narra coisa alguma, ele está pura e simplesmente a fazer uma coisa: a casar-se com a fulana tal. E não se casa, se não disser (fizer) isso.

O acto de fala, o fazer falando, tem assim uma determinada força: a força ilocucional. Mas uma acto de fala, enquanto acção, pode resultar ou não resultar. Um acto de fala resulta quando entre o elocutor e o ouvinte se estabelece uma relação, justamente a visada pelo elocutor, e o ouvinte entende e aceita o que o elocutor lhe diz.

Para que os performativos tenham lugar há que satisfazer certas condições. Austin enumera justamente seis regras que têm de ser seguidas por quem pretenda realizar actos de fala. Em primeiro lugar, tem de haver um procedimento convencional, geralmente aceite, com um certo efeito convencional, em que esse procedimento inclui o uso de certas palavras por determinadas pessoas em determinadas circunstâncias. Segundo, as pessoas e as circunstâncias específicas num dado caso têm de ser apropriadas para invocar o procedimento específico apropriado. Terceiro, todos os intervenientes têm de cumprir o procedimento correctamente. Quarto, têm de o cumprir completamente. Quinto, nos procedimentos para cujo cumprimento as pessoas têm de ter determinados pensamentos ou sentimentos, então as pessoas envolvidas têm de ter efectivamente esses pensamentos ou sentimentos e agir de acordo com eles. Sexto, os intervenientes têm de agir também posteriormente de acordo com eles.13 Se uma das condições não for satisfeita, então o acto de fala não se realiza.

Austin chama ao insucesso dos actos de fala infelicidades. As infelicidades, porém, não são todas idênticas. Quando resultam do incumprimento às primeiras quatro condições ou regras, chamam-se falhas, quando são infracções às duas últimas regras são designadas por abusos.

Exemplos de infracções a estas regras ajudam a compreendê-las.14 Uma infracção relativa à primeira regra ocorre quando, por exemplo, alguém desafia para um duelo um habitante de um país onde a instituição do duelo é totalmente desconhecida. Uma infracção à segunda regra ocorre quando uma pessoa dá uma ordem a outra, sem contudo estar investido (em geral ou numa determinada situação) de autoridade para o fazer. Infracções à terceira e quarta regras ocorrem principalmente no direito, porque aí se exigem determinados rituais ou formas rigorosas. Na vida do dia a dia estes casos são habitualmente ignorados, na medida do possível. Porém, pode-se dizer que há uma infracção à regra três quando, por exemplo, alguém "desmarca a actividade desportiva marcada para amanhã" sem indicar de que actividade desportiva se trata; ou se alguém "deixar em testamento a alguém uma casa", possuindo, no entanto, oito casas, e não indicando de que casa se trata. Uma infracção à quarta regra ocorre quando fulano diz a sicrano: "aposto contigo que...", mas sicrano não aceita a aposta. Vista de uma perspectiva jurídica, uma aposta é um contrato entre dois lados. O que aqui existe é apenas a proposta para se fazer um contrato, mas que não teve seguimento. O que é comum a todos estes tipos de infracções é o facto de o acto de fala intendido não chegar a ter lugar. Se qualquer uma das quatro primeiras regras não for cumprida, o acto de fala pura e simplesmente não chega a ter lugar.

As infracções às últimas duas regras são de tipo bem diferente. O não cumprimento destas regras não implica só por si a não realização do acto de fala. Um exemplo típico de infracção a estas regras é uma promessa não cumprida. Se a pessoa A quando disse: "prometo-te que vou ter contigo ainda hoje" não tiver a intenção de ir lá, então existe uma infracção à quinta regra. Se A tinha de facto a intenção de cumprir a promessa, mas mais tarde reconsiderou em contrário, então trata-se de uma infracção à última regra. Mas aqui importa salientar o seguinte: apesar das infracções a promessa foi feita. Mesmo que o promitente não tenha à partida a intenção de cumprir a promessa, ele faz na mesma a promessa, unicamente a promessa não foi leal; se não cumprir o prometido, a promessa não deixa de ter sido feita, só que há um rompimento da promessa.

a) Enunciação

Enquanto o objectivo da análise linguística é a descrição explícita das regras que há que dominar para se poder produzir frases gramaticalmente correctas, a teoria dos actos de fala procura descrever o sistema fundamental de regras de uma competência enunciativa, isto é, já não de construção de frases, mas sim da sua aplicação correcta em enunciados. Não basta saber construir frases correctas à luz da gramática, há também que saber enunciá-las e isso é algo de diferente. O que está em causa, portanto, são as condições de enunciação.

Que condições são essas? Isto é, quais são as condições gerais de comunicação?

Vamos ver que não basta a gramaticalidade de uma frase como condição da sua enunciação. Se L for uma língua natural e GL o sistema de regras gramaticais dessa língua, então qualquer cadeia de símbolos é considerada uma frase de L se tiver sido construída de acordo com as regras de GL. A gramaticalidade de uma frase significa, em termos pragmáticos, que a frase quando enunciada é compreensível a todos os ouvintes que dominam GL. Mas não basta uma frase ser compreensível, para ser um enunciado. Um enunciado tem também de ser verdadeiro, na medida em que diz algo acerca do mundo que percepcionamos, tem de ser sincero na medida em que traduz o pensamento de quem o enuncia, e tem de estar correcto na medida em que se situa num contexto de expectativas sociais e culturais.

A frase para o linguista apenas tem de obedecer às condições de compreensibilidade, ou seja, de gramaticalidade. No entanto, uma vez pronunciada, tem de ser vista pragmaticamente sob outros aspectos. Além da gramaticalidade, o falante tem ainda de ter em conta o seguinte: i) escolher a expressão de modo a descrever uma experiência ou um facto (satisfazendo determinadas condições de verdade) e para que o ouvinte possa partilhar o seu saber; ii) exprimir as suas intenções de modo a que a expressão reflicta o seu pensamento e para que o ouvinte possa confiar nele; iii) levar a cabo o acto de fala de modo que satisfaça normas aceites e para que o ouvinte possa estar de acordo com esses valores.

Estas três funções pragmáticas, isto é, de com a ajuda de uma frase descrever algo, exprimir uma intenção e estabelecer uma relação entre o elocutor e o ouvinte, estão na base de todas as funções que um enunciado pode tomar em contextos particulares. A satisfação dessas funções tem como bitola as condições universais de verdade, sinceridade e correcção. Todo acto de fala pode, assim, ser analisado sob cada uma destas funções: i) uma teoria da frase elementar investiga o conteúdo proposicional do enunciado na perspectiva de uma análise lógico-semântica; ii) uma teoria da expressão intencional investiga o conteúdo intencional na perspectiva da relação entre subjectividade e intersubjectividade linguística; e a teoria dos actos de fala investiga a força ilocucional na perspectiva de uma análise inter-activa do estabelecimento de relações inter-pessoais.

b) A dupla estrutura da fala

Há muitos tipos de actos de fala: gritar "fogo!", celebrar um contrato, fazer um juramento, baptizar, etc. Mas a forma padrão de um acto de fala é aquela em que encontramos no enunciado duas partes: uma ilocucional e outra proposicional. Tomem-se alguns exemplos para clarificar esta distinção:

Peço-te que feches a porta / Peço-te que abras a porta

Ordeno-te que feches a porta / Ordeno-te que abras a porta

Pedir ou ordenar são a parte ilocucional – aliás essas são expressões tipicamente ilocucionais; o abrir a porta e o fechar a porta são a parte proposicional.

Há uma certa independência entre estas duas partes: podem variar independentemente uma da outra. Tal independência permite uma combinatória de tipos de acção e conteúdos. Tome-se outro exemplo: "Afirmo que Pedro fuma cachimbo", "Peço-te Pedro para fumares cachimbo", Pergunto-te, Pedro, se fumas cachimbo?", "Aconselho-te, Pedro, a não fumares cachimbo". Ora como a afirmação, a petição, a pergunta e o conselho, podiam ter outros conteúdos proposicionais, há no acto de fala dois níveis comunicativos em que elocutor e ouvinte têm de se entender simultaneamente, caso queiram comunicar as suas intenções. Por um lado, o nível da subjectividade em que quem fala e quem ouve estabelecem relações mediante actos ilocucionais, relações que lhes permite entenderem-se; por outro lado, o nível das experiências e estados de coisas sobre os quais querem entender-se no nível intersubjectivo. Todo o enunciado pode ser analisado sob estes dois aspectos: o aspecto relacional, intersubjectivo, e o aspecto de conteúdo, sobre o qual se faz a comunicação.

Correspondentemente, distinguimos dois tipos de compreensão: uma compreensão ilocucional e outra predicativa. A primeira tem a ver com o nível intersubjectivo do enunciado, a segunda com o nível proposicional, o nível das experiências. Ilocucionalmente compreendemos a tentativa de estabelecer uma relação interpessoal, predicativamente compreendemos o conteúdo proposicional de um enunciado.

Exemplos destes dois tipos de compreensão são fáceis de encontrar: Alguém faz uma pergunta, mas não compreendemos o que é que pergunta. Isto é, entendemos que está a fazer uma pergunta, mas não deciframos o que está a perguntar. Um aluno apanhado distraído pela pergunta que o professor lhe faz oferece um caso comum de compreensão ilocucional em que não se compreende o conteúdo proposicional. Outras vezes é ao contrário, alguém fala-nos sobre determinado assunto, por exemplo: das suas dificuldades económicas, e ao fim perguntamo-nos: está a dar-me uma notícia, ou a pedir-me dinheiro? Estes dois níveis de compreensão são, assim, não só distintos, como de certo modo independentes.

c) Modos de comunicação15

Austin julgava poder fazer uma clara divisão entre constatativos e performativos. Os primeiros diriam alguma coisa e seriam verdadeiros ou falsos; os segundos fariam alguma coisa e teriam ou não sucesso. Porém, as investigações subsequentes a Austin mostraram que também os constatativos têm uma parte ilocucional. Os actos locucionais de Austin foram substituídos a) por uma parte proposicional, que todo o enunciado explicitamente performativo tem, e b) por uma classe especial de actos ilocucionais, que implicam a exigência de verdade – os actos de fala constatativos.

A inclusão dos constatativos nos actos de fala revela que a verdade é apenas uma de entre outros critérios de validade que o elocutor coloca ao ouvinte e que se propõe satisfazer. Um acto de fala implica sempre certas condições, isto é, faz sempre exigências de validade. As afirmações (os constatativos), tal como outros actos de fala (avisos, conselhos, ordens, promessas) só resultam quando estão satisfeitas duas condições: a) estar em ordem; b) estar certas.

Actos de fala podem estar em ordem relativamente a contextos delimitados, mas só em relação a uma exigência fundamental que o elocutor faz com o acto ilocucional é que podem ser válidos (estar certos).

Em que se distinguem as afirmações dos outros actos de fala? Não na sua dupla estrutura performativa e proposicional, também não pelas condições de contexto geral, que variam de modo típico em todos os actos de fala; distinguem-se por implicarem antes de mais um critério de validade: a pretensão de verdade.

Outras classes de actos de fala também têm critérios de validade, mas é por vezes difícil dizer quais os critérios específicos. A razão é a seguinte: a verdade, enquanto critério de validade dos actos de fala constatativos, é de certo modo pressuposta por actos de fala de qualquer tipo. A parte proposicional de qualquer performativo pode ser explicitada numa frase de conteúdo proposicional e, assim, tornar-se-á clara a pretensão de verdade que coloca. Conclusão: a verdade é um critério universal de verdade; essa universalidade reflecte-se na dupla estrutura da fala.

Quanto aos dois níveis em que a comunicação se desenrola, a saber, o nível da intersubjectividade e o nível das experiências e estados de coisas, pode-se na fala acentuar mais um que o outro; dependendo dessa acentuação o uso interactivo ou o uso cognitivo da língua. No uso interactivo da língua tematizamos as relações que elocutor e ouvinte assumem, seja enquanto aviso, promessa, exigência, ao passo que apenas se menciona o conteúdo proposicional de enunciado; no uso cognitivo tematizamos o conteúdo do enunciado enquanto proposição sobre algo que ocorre no mundo, ao passo que a relação interpessoal é apenas mencionada. É assim que no uso cognitivo omitimos geralmente o "afirmo que...", "constato que...", "digo-te que...", etc.

Pois que no uso cognitivo da linguagem tematiza-se o conteúdo, só se admitem nele actos de fala em que os conteúdos proposicionais podem tomar a forma de frases enunciativas. Com esses actos reivindica-se para a proposição afirmada a satisfação do critério de verdade. Por sua vez, no uso interactivo, que acentua a relação interpessoal, reportamo-nos de modos vários à validade da base normativa do acto de fala. Quer isto dizer que tal como no uso cognitivo da linguagem temos como critério de validade a verdade do que afirmamos, no uso interactivo temos também critérios de validade, só que doutro tipo. A força ilocucional do acto de fala, que cria entre os participantes uma relação interpessoal, é retirada da força vinculativa de reconhecidas normas de acção (ou de valoração); na medida em que o acto de fala é uma acção, actualiza um esquema já estabelecido de relações. É sempre pressuposto um conjunto normativo de instituições, papéis sociais, formas de vida socio-culturais já habituais, isto é, convenções.

Um acto de fala realiza-se sempre na base de um conjunto de instituições, normas, convenções. Por exemplo, uma ordem, uma aposta, etc., implicam um certo número de condições para que se possam realizar. Para apostar, por exemplo, pressupõe-se que se aposta alguma coisa acerca de algo sobre o qual os dois apostantes têm pontos de vista diferentes. Mas não só os actos de fala institucionais (cumprimentar, apostar, baptizar, etc.) pressupõem uma determinada norma (regras) de acção. Também em promessas, proibições, e prescrições, que não se encontram reguladas à partida por instituições, o elocutor coloca uma pretensão de validade que, caso queira que o acto de fala resulte, deverá ser legitimada por normas existentes, e isso quer dizer: pelo menos, pelo reconhecimento fáctico da pretensão de que essas normas têm razão de ser. Ora tal como no uso cognitivo da linguagem a pretensão de verdade é posta, assim também este conjunto de normas é pressuposto como condição de validade no uso interactivo da linguagem. Ainda outro paralelismo: Tal como no uso cognitivo apenas são admitidos actos de fala constatativos, assim também no uso interactivo apenas são aceites os actos de fala que caracterizam uma determinada relação que elocutor e ouvinte podem assumir relativamente a normas de acção ou de valoração. Habermas. chama a estes actos de fala "regulativos". Com a força ilocucional dos actos de fala, a validade normativa – correcção ou adequação – encontra-se alicerçada tão universalmente nas estruturas da fala como a pretensão de verdade.

Contudo, só em actos de fala regulativos é que essa exigência de um fundo normativo é invocada explicitamente. A pretensão de verdade do conteúdo proposicional desses actos fica apenas implícita. Nos actos constatativos é exactamente o inverso: a pretensão de verdade é explícita e a pretensão de normatividade é implícita.

No uso cognitivo da linguagem tematizamos mediante constatativos o conteúdo proposicional de um enunciado; no uso interactivo da linguagem tematizamos mediante actos de fala regulativos o tipo de relação interpessoal estabelecida. A diferente tematização resulta da escolha de uma das pretensões colocadas pela fala: no uso cognitivo a reivindicação de verdade, no uso regulativo a reivindicação de uma norma.

Uma terceira reivindicação que a fala faz e que marca o uso expressivo da linguagem é a da veracidade. A veracidade é a reivindicação que o elocutor faz ao exprimir as suas intenções. A veracidade garante a transparência de uma subjectividade que se expõe linguisticamente. Paradigmas do uso expressivo da linguagem são frases como: "tenho saudades tuas", "gostaria...", "tenho a dizer-te que..." etc.

Também a exigência de veracidade é uma implicação universal da fala. Obtemos, assim, o seguinte esquema:
 

Modos de comunicação
Tipos de actos de fala
Tema
Pretensões de validade
Cognitivo
constatativo
Conteúdo proposicional
verdade
Interactivo
regulativo
Relação interpessoal
Adequação, correcção
Expressivo
representativo
intenção
Veracidade do elocutor

d) O fundamento racional da força ilocucional

Em que consiste a força ilocucional de um enunciado? Antes de mais, sabemos quais os seus resultados: o estabelecimento de uma relação interpessoal. Com o acto ilocucional, o elocutor faz uma proposta que pode ser aceite ou rejeitada. Em que casos é essa proposta inaceitável (não por motivos contingentes)? Aqui interessa examinar os casos em que é o elocutor o culpado do insucesso dos seus actos, da inaceitabilidade das suas propostas. Portanto, quais são os critérios de aceitabilidade de qualquer proposta ilocucional?

Austin estudou as infelicities e misfires, quando há infracções às regras vigentes que regem as instituições (casamento, aposta, etc.). Contudo, a força específica dos actos ilocucionais não se pode explicar através dos contextos delimitados dos actos de fala. A regra essencial, isto é, a condição essencial para o sucesso de um acto ilocucional consiste em o elocutor assumir um determinado empenho de modo a que o ouvinte possa confiar nele. Este empenho significa que, na sequência da proposta feita ao ouvinte, o elocutor se dispõe a cumprir os compromissos daí resultantes.

Diferente do empenhamento é a sinceridade do empenhamento. O vínculo que o elocutor se dispõe a assumir ao realizar um acto ilocucional, constitui uma garantia de que ele, na sequência do seu enunciado, cumprirá determinadas condições, por exemplo: considerar que uma questão foi resolvida, ao receber uma resposta satisfatória: abandonar uma afirmação quando se descobre a sua não-verdade; aceitar um conselho se se encontrar na mesma situação do ouvinte. Portanto, pode-se dizer que a força ilocucional de um acto de fala aceitável consiste em poder levar o ouvinte a confiar nos deveres que o elocutor assume ao realizá-lo, isto é, nos deveres decorrentes do acto de fala. Locutor e ouvinte colocam, com os seus actos ilocucionais, pretensões de validade e exigem o seu reconhecimento.

Em última instância o elocutor pode agir ilocucionalmente sobre o ouvinte e este, por sua vez, sobre o primeiro, justamente porque os deveres decorrentes dos actos de fala encontram-se vinculados a exigências de validade verificáveis cognitivamente, isto é, porque os laços recíprocos têm uma base racional.

O elocutor empenhado associa o sentido específico, em que desejaria estabelecer uma relação interpessoal, normalmente com uma exigência de validade, realçada tematicamente, e escolhe então um determinado modo de comunicação. Daí que o conteúdo do empenhamento do elocutor seja determinado pelos dois factores seguintes: i) pelo sentido específico da relação interpessoal a estabelecer (pedido, ordem, promessa, etc.); ii) pela exigência de validade universal, realçada tematicamente.

Em diferentes actos de fala, o conteúdo do empenhamento do elocutor é determinado por uma referência específica a uma exigência universal de validade, realçada tematicamente.

Para os três usos da linguagem: cognitivo, interactivo e expressivo, temos três tipos específicos de deveres decorrentes da referência a uma exigência universal de validade: i) Um dever de fundamentação no uso cognitivo. Os constatativos contêm a proposta de, se necessário, recorrer às fontes da experiência que estão na base da certeza do elocutor. ii) Um dever de justificação no uso interactivo. Os actos regulativos contêm a proposta de recorrer ao contexto normativo que está na base da convicção do elocutor. iii) Um dever de fiabilidade no uso expressivo, isto é, mostrar nas consequências ao nível do agir que o elocutor exprimiu exactamente a intenção que tinha efectivamente em mente.

Resumindo:

1) Um acto de fala resulta, isto é, estabelece uma relação interpessoal que o elocutor pretende, se: i) é compreensível e aceitável e ii) é aceite pelo ouvinte.

2) A aceitabilidade de um acto de fala depende, entre o mais, da satisfação de duas condições pragmáticas: i) a existência de um contexto delimitado típico ao acto de fala; ii) um reconhecível empenhamento do elocutor ao assumir deveres típicos aos actos de fala.

3) A força ilocucional de um acto de fala consiste em poder levar um ouvinte a agir sob a premissa de que o empenhamento do elocutor é sério; essa força pode o elocutor i) obtê-la, no caso dos actos de fala institucionalmente vinculados, à força obrigatória de normas vigentes; ii) no caso de actos de fala não institucionalmente vinculados, criá-la ao induzir ao reconhecimento de exigências de validade.

4) Elocutor e ouvinte podem influenciar-se reciprocamente no reconhecimento de exigências de validade, visto que o conteúdo do empenhamento do elocutor é determinado por uma referência específica a uma exigência de validade, realçada tematicamente, e em que o elocutor i) com a pretensão de verdade aceita o dever de fundamentação; ii) com a pretensão de correcção (adequação, justeza) o dever de justificação; iii) com a pretensão de veracidade, o dever de fiabilidade.

Notas:

1- Maria del Carmen Bobes Naves, La Semiología, Madrid: Síntesis, p. 97.
2- Cf. Charles Morris, Foundations of the Theory of Signs, Chicago: University of Chicago Press, 1938, p. 25.
3- ibidem, p. 27.
4- ibidem, p. 28.
5- ibidem.
6- ibidem.
7- Louis Hjelmslev, Prolegomena to a Theory of Language, Madison: The University of Wisconsin Press, 1961, p.28.
8 - Curso de Linguística Geral, p. 40.
9 - ibidem, p. 41.
10- Roland Barthes, Elementos de Semiologia, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 11.
11 - Sobre a noção de contexto em pragmática ver "Pragmatics" no Enciclopedic Dictionary of Semiotics, pp. 651-761.
12- Austin, How to do things with words, Oxford University Press, 1986, p. 121
13 - ibidem, p. 14-15.
14- Os exemplos que se seguem são extraídos da exposição que Wolfgang Stegmüller faz da teoria dos actos de fala de Austin; Hauptströmungen der Gegenwartsphilosophie II, Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1987, pp. 64 e ss.
15 - Segue-se aqui de perto a exposição de Jürgen Habermas em "Was heisst Universalpragmatik?" in Apel, Karl-Otto (org.), 1982, pp. 174-259.