Como tornar as nossas ideias claras
(HOW TO MAKE OUR IDEAS CLEAR, Collected Papers V,  388-410)

Charles S. Peirce

Tradução de António Fidalgo, Universidade da Beira Interior
§1. Clareza e distinção
388. Quem já tenha folheado um tratado moderno de lógica dos do tipo habitual, recordar-se-á com certeza das duas distinções entre concepções claras e obscuras, e entre concepções distintas e confusas. Encontram-se nos livros há quase dois séculos, sem estarem provadas e sem terem sido modificadas, e em geral os lógicos contam-nas entre as jóias da sua doutrina.

389. Uma ideia clara é definida como uma que é apreendida de tal forma que será reconhecida onde quer que se encontre, de modo que nunca será confundida com outra. Se esta clareza faltar, dir-se-á então que é obscura.

Isto é um exemplo bem típico de terminologia filosófica; mesmo assim, pois que estão a definir clareza, eu desejaria que os lógicos fossem um pouco mais claros na sua definição. Não falhar nunca no reconhecimento de uma ideia, e não a confundir em quaisquer circunstâncias com outra, não importa sob que forma mais recôndita, implicaria com efeito uma força e uma clareza tão prodigiosas do intelecto como se encontram raramente neste mundo. Por outro lado, habituar-se meramente a uma ideia de modo a familiarizar-se com ela, e não ter qualquer hesitação em reconhecê-la nos casos comuns, dificilmente parece merecer o nome de clareza de apreensão, pois que em qualquer caso isso apenas tem a vêr com um sentimento subjectivo de domínio que pode estar perfeitamente errado. Suponho, contudo, que, quando os lógicos falam de "clareza", apenas querem significar uma tal familiaridade com um ideia, visto que encaram essa qualidade como sendo de pouco mérito, já que tem de ser complementada com uma outra, a que chamam distinção.

390. Uma ideia distinta é definida como uma que não contém nada que não seja claro. Isto é linguagem técnica; por conteúdos de uma ideia os lógicos entendem o quer que esteja contido na sua definição. Assim, uma ideia é apreendida distintamente, no parecer deles, quando pudermos dar uma definição precisa dela em termos abstractos. Aqui os lógicos profissionais abandonam o assunto; e eu não teria incomodado o leitor com o que eles têm a dizer, se isto não fosse um exemplo evidente de como dormiram ao longo de séculoa de actividade intelectual, ignorando por descuido a engenharia do pensamento moderno, e nem sonhando em aplicar as lições desta ao desenvolvimento da lógica. É fácil demonstrar que a doutrina, de que o uso familiar e a distinção abstracta constituem a perfeição da apreensão, encontra o seu verdadeiro lugar em filosofias que se extinguiram há muito; ora agora é altura de formular o método de alcançar uma clareza mais perfeita do pensamento, tal como vemos e admiramos nos pensadores do nosso tempo.

391. Quando Descartes se lançou à reconstrução da filosofia, o seu primeiro passo foi (teoricamente) permitir o cepticismo e abolir a prática dos escolásticos, em procurarem na autoridade a última fonte de verdade. Feito isso, procurou uma fonte mais natural dos verdadeiros princípios, e julgou encontrá-la na mente humana; passando assim, pela via mais directa, do método da autoridade para o da aprioridade, como descrevi no meu primeiro artigo. A auto-consciência dar-nos-ia as verdades fundamentais, e decidiria o que estaria de acordo com a razão. Mas pois que, obviamente, nem todas as ideias são verdadeiras, foi levado a reparar que a primeira condição de infabilidade era de que tinham de ser claras. A distinção entre uma ideia que parece clara e uma que realmente o é, nunca lhe ocorreu. Confiando na instrospecção como confiava, mesmo relativamente ao conhecimento dos coisas exteriores, porque poria ele em causa o seu testemunho relativamente aos conteúdos das nossas próprias mentes? Mas então, julgo eu, ao ver homens que pareciam estar esclarecidos e determinados, defendendo opiniões contrárias sobre princípios fundamentais, foi levado posteriormente a dizer que a clareza de ideias não é suficiente, que elas também têm de ser distintas, isto é, não terem nada de menos claro acerca delas. O que ele provavelmente entendeu por isto (pois que não o explicou com precisão) foi que elas tinham de aguentar o teste de um exame dialéctico; que teriam de ser não somente claras ao princípio, mas que a discussão nunca poderia trazer à luz quaisquer obscuridades relacionadas com elas.

392. Essa era a distinção de Descartes, e uma pessoa verifica que estava à altura da sua filosofia. De algum modo foi desenvolvida por Leibniz. Este grande e singular génio foi tão notável no que não conseguiu ver como no que viu. Que um mecanismo não podia trabalhar perpetuamente sem que fosse de alguma forma alimentado com energia, era algo perfeitamente evidente para ele; contudo, não entendeu que o mecanismo da mente só pode transformar conhecimento, mas nunca originá-lo, a menos que alimentado com factos da observação. Deste modo, não captou o ponto mais essencial da filosofia cartesiana, o de que aceitar proposições que nos parecem perfeitamente evidentes é algo que, seja lógico ou ilógico, não podemos evitar. Em vez de encarar o assunto deste maneira, procurou reduzir os primeiros princípios da ciência a duas classes, aos que não podem ser negados sem contradição, e aos que resultam do princípio de razão suficiente (sobre isso, mais à frente), e aparentemente não se deu conta da grande diferença entre a sua posição e a de Descartes. Foi desse modo que recaíu em velhas trivialidades da lógica; e, sobretudo, que definições abstractas desempenharam um papel tão importante na sua filosofia. Foi, portanto, bastante natural, que ao observar que o método de Descartes incorria na dificuldade de que apreensões de ideias que nos parecem a nós claras são na verdade muito vagos, não encontrou melhor solução do que exigir uma definição abstracta para todos os termos importantes. Assim, ao adoptar a distinção entre noções claras e distintas, descreveu a última qualidade como a clara apreensão de qualquer elemento contido na definição; e os compêndios desde então limitaram-se a copiar as suas palavras. Não há perigo que o seu esquema quimérico venha a ser alguma vez novamente sobre-avaliado. Nada de novo se pode aprender por analisar definições. Contudo, as nossas crenças existentes podem ser ordenadas por este processo, e a ordem é um elemento essencial da economia intelectual, como de qualquer outra. Pode-se reconhecer, por conseguinte, que os livros têm razão ao fazerem da familiaridade com uma noção o primeiro passo para a clareza da apreensão, e da definição dela o segundo passo. Mas ao omitirem toda a referência a qualquer superior perspicuidade do pensamento, simplesmente reflectiram uma filosofia que se estilhaçou há cem anos. Esse admiradíssimo "ornamento da lógica" -- a doutrina da clareza e distinção -- pode ser muit bela, mas já é mais do que tempo de relegar a jóia antiga para a câmara de curiosidades, e de adoptarmos algo mais adequado aos costumes modernos.

393. A primeiríssima lição que temos o direito de pedir que a lógica nos ensine é como tornar as nossas ideias claras; e é uma muito importante, só desprezada pelas mentes que dela mais necessitam. Saber o que pensamos, sermos senhores do que queremos significar, isso será um fundamento sólido para pensamentos grandes e de peso. Isso será mais facilmente aprendido por aqueles cujas ideias são pobres e limitadas; e muito mais felizes do que aqueles que se revolvem num pântano profundo de concepções. É verdade que uma nação pode, com o correr de gerações, ultrapassar a desvantagem de uma excessiva riqueza da língua e o respectivo correlato natural, uma enorme e impenetrável profundeza de ideias. Podemos verificar isso na história, lentamente aperfeiçoando as suas formas literárias, abandonando finalmente a metafísica, e, graças à inesgotável paciência que constitui frequentemente uma compensação, alcançando uma grande excelência em cada ramo da actividade intelectual. Porém, ainda não foi voltada a página da história que nos dirá se esse povo conseguirá ou não sobrepor-se a um outro cujas ideias (tal como as palavras da sua língua) são poucas, mas que possui um admirável domínio sobre as que tem. Relativamente a um indivíduo, contudo, não pode haver dúvida que umas poucas ideias claras são mais valiosas que muitas confusas. Um jovem dificilmente se convencerá a sacrificar a maior parte dos seus pensamentos para salvar o resto; e a cabeça confusa é a menos apta a reconhecer a necessidade de tal sacrifício. Desse apenas teremos que ter pena, enquanto pessoa com um defeito congénito. O tempo ajudá-lo-á, mas a maturidade intelectual relativa à clareza tende a chegar já muito tarde. Isto parece uma disposição infeliz da natureza, tanto mais que a clareza é de menor utilidade para um homem já instalado na vida, cujos erros já cobraram em grande parte os seus efeitos, do que para aquele que tem ainda à frente o caminho a trilhar. É terrível ver como uma única ideia confusa, uma simples fórmula sem significado, escondida na cabeça de um jovem, actuará por vezes como um material inerte obstruindo uma artéria, impedindo a nutrição do cérebro, e condenando a sua vítima a definhar-se na abundância do seu vigor intelectual e no meio da plenitude intelectual. Algumas pessoas cultivaram durante anos como um hobby a vaga sombra de uma ideia, por demais insignificante para ser decididamente falsa; no entanto, amaram-na apaixonadamente, fizeram dela o seu companheiro de noite e de dia, dedicaram-lhe a força e a vida, abandonando por mor dela todas as outras ocupações, em suma, viveram com ela e para ela, até se tornar carne da sua carne e sangue do seu sangue; para então acordarem numa bela manhã e verificarem que desapareceu, que se foi como a bela Melusina da fábula, e que a essência da sua vida se foi com ela. Eu próprio conheci uma pessoa dessas; e quem poderá dizer quantas histórias de vendedores de banha de cobra, metafísicos, astrólogos, e que sei eu, não há tal como no velho conto alemão?
 
 

§2. A máxima pragmatista.

394. Os princípios desenvolvidos na primeira parte deste ensaio conduziram-nos, de imediato, a um método de alcançar uma clareza de pensamento de grau superior à "distinção" dos lógicos. Apurou-se aí que a acção do pensamento é excitada pela irritação da dúvida, e que cessa quando se atinge a crença; de modo que a produção da crença é a única função do pensamento. Todas estas palavras são, no entanto, demasiado fortes para os meus objectivos. É como se eu descrevesse os fenómenos tal como surgem sob um microscópio mental. Dúvida e crença, do modo como estas palavras são habitualmente empregues, reportam-se a questões religiosas ou outras de grande importância. Mas eu emprego-as aqui para designar o início de qualquer questão, não importa quão grandes ou pequenas elas são ou a sua solução. Se, por exemplo, num autocarro puxar pelo porta-moedas e verificar que tenho uma moeda de quinhentos e cinco de cem tenho de decidir, ao tirar o dinheiro, de que maneira é que vou pagar o bilhete. Chamar a isso uma dúvida, e à minha decisão uma crença, é um emprego certamente bem desproporcionado das palavras nessa situação. Dizer que essa dúvida causa uma irritação que precisa de ser acalmada, sugere um temperamento irritadiço à beira da loucura. Contudo, examinando de perto o assunto, haverá que admitir que se houver a menor hesitação de como hei-de pagar o bilhete, se com uma moeda de quinhentos, se com cinco moedas de cem (e haverá sempre tal hesitação, a menos que proceda de uma maneira já ditada pelo hábito), e embora irritação seja uma palavra demasiado forte, sinto a excitação para uma actividade mental tão pequena quanto o necessário para decidir o modo como agir. Na maior parte das vezes as dúvidas surgem de tais indecisões, ainda que momentâneas, nas nossas acções. Por vezes não é assim. Estou, por exemplo, à espera numa estação de comboio, e para passar o tempo ponho-me a ler os horários afixados na parede. Comparo as vantagens de diferentes comboios e diferentes percursos que julgo nunca ter de apanhar ou fazer, simplesmente fazendo de contas de que me encontro numa situação de hesitação na escolha, pela simples razão de que estou aborrecido com o não ter nada que me preocupe. Uma hesitação fingida, seja por puro prazer ou devido a um objectivo elevado, desempenha um grande papel na produção da pesquisa científica. Independentemente do modo como a dúvida é suscitada, ela estimula a mente a uma actividade que pode ser fraca ou enérgica, calma ou turbulenta. Imagens passam rapidamente pela consciência, diluindo-se incessantemente umas nas outras, até à última, quando tudo acabar -- pode ser na fracção de um segundo, numa hora, ou após muitos anos -- decidimo-nos como deveremos agir em tais circunstâncias como as que causaram a nossa hesitação. Por outras palavras, chegámos à crença.

395. Neste processo observamos dois tipos de elementos da consciência, a distinção entre o que se pode tornar mais claro mediante um exemplo. Numa peça de música há as notas separadas, e há a melodia. Um som singular pode prolongar-se por uma hora ou um dia, e existe tão perfeitamente em cada segundo desse tempo como no todo do seu conjunto; de modo que, enquanto soar, pode estar presente a um sentido do qual está ausente tão completamente tudo o pertence ao passado como o próprio futuro. Mas é diferente com a melodia, que leva um certo tempo a tocar, e em que durante as partes do tempo só são tocadas partes dela. Consiste numa sequência de sons que afectam o ouvido em tempos diferentes; e para a perceber tem que haver alguma continuidade da consciência que torne presentes a nós os acontecimentos de um período de tempo. Certamente só percebemos a melodia ouvindo as notas separadas; assim, não podemos dizer que a ouvimos directamente, pois só ouvimos o que está presente a cada instante, e uma sequência não pode existir num instante. Estes dois tipos de objectos, aquilo de que temos imediatamente consciência e aquilo de que temos mediatamente consciência, encontram-se em todas consciências. Alguns elementos (as sensações) estão completamente presentes a cada instante enquanto durarem, ao passo que outras (como o pensamento) são acções que têm começo, meio e fim, e consistem numa congruência na sucessão de sensações que passam pela mente. Não podem ser-nos imediatamente presentes, antes têm que cobrir certa porção do passado ou do futuro. O pensamento é a linha de uma melodia através da sucessão das nossas sensações.

396. Podemos acrescentar que tal como uma peça de música se pode escrever em partes, cada parte tendo a sua própria melodia, assim também diferentes sistemas da relação de sucessão subsistem conjuntamente entre as mesmas sensações. Estes diferentes sistemas distinguem-se por terem diferentes motivos, ideias ou funções.O pensamento é apenas um destes sistemas, pois que o seu motivo, a sua ideia ou a sua função é apenas a de produzir crença, e aquilo que não fizer parte deste objectivo pertence a um outro sistema de relações. A acção de pensar pode incidentalmente ter outros resultados; pode servir para nos divertir, por exemplo, e entre os dilettanti não é raro encontrar os que perverteram de tal modo o pensamento para fins de diversão que parece perturbá-los pensar que as questões que gostam de discutir possam vir a ser um dia finalmente resolvidas; e determinada descoberta que retire da arena do debate intelectual um dos seus assuntos favoritos aceitam-na eles de mau-grado. Tal disposição é a completa devassidão do pensamento. Mas a alma e o sentido do pensamento, abstraindo dos outros elementos que o acompanham, embora voluntariamente se possa frustar, nunca poderá incidir sobre outra coisa que não seja a produção de crença. O pensamento em acção tem como seu único motivo chegar ao descanso do pensamento; e tudo o que não se reportar à crença não faz parte do próprio pensamento.

397. E o que é, então, a crença? É a semi-cadência que fecha uma frase musical na sinfonia da nossa vida intelectual. Já vimos que tem precisamente três propriedades: primeiro, é algo de que nos damos conta; segundo, sossega a irritação do pensamento; e, terceiro, implica a determinação na nossa natureza de uma regra de acção, ou, numa palavra, de um hábito. Quando sossega a irritação da dúvida, que é o motivo do pensamento, o pensamento acalma-se, e descansa o momento em que chega à crença. Mas, visto que a crença é uma regra de acção, cuja aplicação implica posterior dúvida e posterior pensamento, ao mesmo tempo que é um lugar de paragem é também um novo lugar de recomeço para o pensamento. O resultado final do pensar é o exercício da volição, e disso já não faz parte o pensamento; mas a crença é apenas um estádio da acção mental, um efeito da nossa natureza sobre o pensamento, que influenciará o pensamento futuro.

398. A essência da crença é a criação de um hábito; e diferentes crenças distinguem-se pelos diferentes modos de acção a que dão origem. Se as crenças não diferirem neste aspecto, se elas apaziguarem a mesma dúvida através da produção da mesma regra de acção, então as simples diferenças na maneira de como temos consciência delas não podem torná-las crenças diferentes, assim como o tocar de uma melodia em escalas diferentes não é o mesmo que tocar diferentes melodias.
 
 


Fig. 1 e Fig. 2


Frequentemente fazem-se distinções entre crenças que diferem somente no seu modo de expressão; -- sendo, contudo, bem real a disputa que daí resulta. Acreditar que alguns objectos se ordenam entre eles como na fig.1, e acreditar que se ordenam como na fig.2, são uma e a mesma crença; no entanto, é bem concebível que um homem afirme uma proposição e negue a outra. Distinções erradas deste tipo são tão nocivas como a confusão de crenças realmente diferentes, e contam-se entre as ratoeiras de que constantemente temos de nos precaver, especialmente quando têm uma base metafísica. Uma ilusão muito particular deste tipo, que ocorre frequentemente, consiste em considerar a sensação produzida pela falta de clareza do nosso pensamento como uma característica do objecto que estamos a pensar. Em vez de perceber que a obscuridade é puramente subjectiva, julgamos que estamos a olhar para uma qualidade do objecto essencialmente misterioso; e se, posteriormente, essa concepção nos for apresentada de um modo claro então não a reconhecmos como sendo a mesma, dada a ausência de um sentimento de ininteligibilidade. Enquanto durar essa ilusão, teremos obviamente um obstáculo inultrapassável no caminho de um pensamento perspicaz; pelo que tanto importa aos adversários do pensamento racional perpetuá-la como aos partidários deste precaverem-se contra ela.

399. Outra ilusão do mesmo tipo consiste em considerar uma mera diferença na construção gramatical de duas palavras como uma distinção entre as ideias que elas exprimem. Nesta época pedante, quando a plebe dos escritores presta muito mais atenção às palavras que às coisas, esse erro torna-se muito comum. Qaundo acabei de dizer que o pensamento é uma acção e que consiste numa relação, embora uma pessoa realize uma acção mas não uma relação, que pode apenas ser o resultado de uma acção, então não há qualquer inconsistência naquilo que disse, mas tão só uma falta de precisão gramatical.

400. De todos estes sofismas estaremos completamente salvaguardados desde que tenhamos presente que a função global do pensamento consiste em produzir hábitos de acção; e que qualquer coisa que esteja ligada com um pensamento, mas que seja irrelevante para o seu objectivo, é um acréscimo, mas não parte dele. Se há uma unidade entre as nossas sensações que não têm referência ao modo como devemos agir numa determinada ocasião, como por exemplo quando ouvimos uma peça de música, a isso não chamamos pensamento. Para desenvolver o seu significado, temos, portanto, de simplesmente determinar quais os hábitos que produz, pois que o que uma coisa significa são simplesmente os hábitos que ela encerra. Ora a identidade de um hábito depende de como ele nos induz a agir, não só nas circunstâncias em que provavelmente surgiram, mas também naquelas que poderão ocorrer, não importa quão improváveis elas sejam. Aquilo que o hábito é depende do quando e do como ele nos leva a agir. No que toca ao quando, qualquer estímulo para a acção provém da percepção; no que toca ao como, todo o objectivo da acção é o de produzir um resultado sensível. Assim, chegamos ao que é tangível e concebivelmente prático como sendo a raiz de qualquer distinção real do pensamento, independemente de quão subtil ele for; e não há distinção de significado por mais fina que seja que não consista numa possível diferença da prática.

401. Para ver ao que este princípio nos leva, consideremos à luz dele uma doutrina como a da transubstanciação. As igrejas protestantes defendem em geral que os elementos da eucaristia são carne e sangue apenas em sentido figurado; alimentam as nossas almas tal como a carne e o vinho o fazem aos nossos corpos. Mas os católicos afirmam que esses elementos são à letra exactamente carne e sangue; embora possuam todas as qualidades sensíveis de pão de hóstia e de vinho diluído. Contudo, não temos uma concepção de vinho que não seja a que se pode tornar numa crença, nomeadamente, ou
1. que isto, isso ou aquilo é vinho; ou
2. que o vinho possui certas propriedades.
Tais crenças mais não são que auto-indicações de que, nas devidas ocasiões, deveremos agir, relativamente às coisas que acreditamos serem vinho, de acordo com as qualidades que acreditamos que o vinho tem. A ocasião de uma tal acção seria uma dada percepção sensível, e o motivo dela o produzir um dado resultado sensível. Deste modo, a nossa acção tem referência exclusiva ao que afecta os sentidos, o nosso hábito tem o mesmo comportamento que a nossa acção, a nossa crença o mesmo que o nosso hábito, e a nossa concepção o mesmo que a nossa crença; e, por conseguinte, não podemos compreender por vinho senão aquilo que tem certos efeitos, directos ou indirectos, sobre os nossos sentidos; e falar de algo como tendo todas as características do vinho, mas que na realidade é sangue, é palavreado oco. Mas, o meu objectivo não é desenvolver uma questão teológica; e tendo-o usado como exemplo lógico abandono-o sem a preocupação de me antecipar à resposta de um teólogo. Apenas desejo salientar de como é impossível que tenhamos uma ideia nas nossas mentes que não se relacione com os concebíveis efeitos sensíveis das coisas. A nossa ideia de qualquer coisa é a nossa ideia dos seus efeitos sensíveis, e se supusermos que temos uma outra é enganar-nos a nós próprios, e confundimos uma simples sensação que acompanha o pensamento como uma parte do próprio pensamento. É absurdo dizer que o pensamento tem um significado não relacionado com a sua única função. É idiotice que os católicos e os protestantes se creiam em desacordo acerca de elementos da eucaristia se concordam sobre todos os efeitos sensíveis da mesma, agora e no futuro.

402. Parece, pois, que a regra para atingir o terceiro grau da clareza de apreensão é a seguinte: considera quais os efeitos, que podem ter certos comportamentos práticos, que concebemos que o objecto da nossa concepção tem. A nossa concepção dos seus efeitos constitui o conjunto da nossa concepção do objecto.
 
 

§3- Algumas aplicações da máxima pragmatista

403. Ilustremos esta regra com alguns exemplos; e, para começar, com o mais simples possível, o que é que queremos dizer ao chamar dura a uma coisa. Evidentemente que será o ela não ser riscada por muitas outras substâncias. A concepção completa desta qualidade, tal como a de qualquer outra, reside nos seus efeitos concebíveis. Não há absolutamente nenhuma diferença entre uma coisa dura e uma coisa mole enquanto não forem postas à prova. Suponhase então que um diamante podia cristalizarse no meio de uma almofada de algodão macio, e aí permaneceria até que fosse finalmente queimado. Seria errado dizer que aquele diamante era mole? Isto parece uma questão idiota, e sêloia de facto se não estivéssemos no reino da lógica. Questões deste tipo são frequentemente da maior utilidade para dar aos princípios lógicos um realce mais nítido do que o conseguido em quaisquer discussões reais. Ao estudar lógica não podemos eliminar estas questões com respostas apressadas, mas há que as considerar com redobrada atenção, de modo a descortinar os princípios nelas envolvidos. No presente caso, podemos modificar a questão, e perguntar o que é que nos impede de dizer que todos os corpos duros permanecem perfeitamente moles até ao momento em que são tocados, e que então a sua dureza aumenta com a pressão até serem riscados. A reflexão mostrarnosá que a resposta é a seguinte: dizer isso não seria um erro. Isso implicaria uma modificação no uso que fazemos actualmente em relação às palavras duro e mole, mas não em relação ao seu significado. É que elas não representam um outro facto; apenas implicariam rearranjos de factos, rearranjos que seriam extremamente desastrados. Isto levanos a verificar que a questão sobre o que ocorreria em circunstâncias que realmente não existem não é uma questão de facto, mas tão só um arranjo mais sagaz deles. Por exemplo, a questão do livrearbítrio e do destino, na sua forma mais simples, despida de qualquer palavreado, é a seguinte: Fiz algo de que agora me envergonho; poderia eu, com o esforço da minha vontade, ter resistido à tentação, ter procedido de outro modo? A resposta filosófica é de que isto não é uma questão de facto, mas unicamente de um arranjo de factos. Arranjandoos de modo a mostar o que é particularmente importante para a minha questão nomeadamente, que deveria censurar-me por ter procedido mal , então é perfeitamente verdade se disser que, se tivesse querido proceder de outro modo que aquele como procedi, deveria ter procedido de outro modo. Por outro lado, arranjando os factos de modo a mostrar outra consideração importante, é igualmente verdade se disser que, quando se cede a uma tentação, ela irá, caso tenha alguma força, produzir os seus efeitos, por mais que eu lute contra isso. Não há objecção a fazer a uma contradição que resulta de uma suposição errada. A reductio ad absurdum consiste em mostar que resultados contraditórios seguirseiam de uma hipótese, que consequentemente se considera ser errada. Muitas questões estão envolvidas na discussão do livrearbítrio, e longe de mim dizer que ambas as partes têm igual razão. Pelo contrário, sou da opinião de que um dos lados nega factos importantes, o que não acontece com o outro lado. Mas o que afirmo é que a questão singular acima levantada foi a origem de toda a dúvida; e que se não fosse esta questão nunca teria surgido a controvérsia; e que esta questão se resolve perfeitamente da maneira que indiquei. Examinemos agora uma ideia clara de peso. Este é outro caso muito simples. Dizer que um corpo é pesado significa simplesmente que, na ausência de uma força oposta, cairá. Isto (ignorando certas especificações de como cairá, etc., que existem na mente dos físicos que usam a palavra) é evidentemente toda a concepção de peso. É uma questão válida perguntar se certos factos não esclarecem a gravidade; mas o que queremos dizer com a própria força [de gravidade], isso está completamente envolvido nos seus efeitos.

404. Isto levanos a determinar a ideia de força em geral. Esta é a grande concepção que, desenvolvida na primeira parte do século XVII a partir da tosca ideia de causa, e desde então continuamente melhorada, nos mostrou como se explicam todas as mudanças de movimento que os corpos experimentam, e como havemos de pensar todos os fenómenos físicos; ideia que deu origem à ciência moderna, e mudou a face do globo; e que, além dos seus usos mais específicos, jogou um papel principal na determinação do rumo do pensamento moderno, e ainda na implementação do moderno desenvolvimento social. Vale a pena, por conseguinte, fazer alguns esforços para a compreender. De acordo com a nossa regra, temos de começar por perguntar qual a utilidade imediata quando pensamos acerca de força; e a resposta é que assim nós explicamos as mudanças de movimento. Se os corpos forem deixados entregues a eles mesmos, sem a intervenção de forças, todo o movimento continuaria inalterado tanto na velocidade como na direcção. Mais ainda, a mudança de movimento nunca ocorre abruptamente; se a direcção se altera é sempre através de uma curva sem angulos; se a velocidade se altera é por graus. As mudanças graduais que constantemente ocorrem concebemnas os geómetras como sendo compostas de acordo com as regras dos paralelogramas de forças. Se o leitor ainda não souber isto, considerará, assim o espero, seremlhe úteis os esforços para acompanhar a seguinte explicação; mas se a matemática lhe for insuportável, então meIhor será saltar três parágrafos, do que nos abandonar já aqui.

Um caminho é uma linha cujo começo e fim se distinguem. Dois caminhos são considerados equivalentes, se, começando no mesmo ponto, conduzem ao mesmo ponto. Assim, os dois caminhos A B C D E e A F G H E (fig.3) são equivalentes. Caminhos que não começam no mesmo ponto são considerados equivalentes, desde que, movendo um deles sem o voltar, mas mantendoo sempre paralelo à sua posição original, quando o seu começo coincide com o do outro caminho, os fins também coincidem. Os caminhos consideramse geometricamente adicionados quando um começa onde o outro acaba; assim,


o caminho A E é concebido como sendo a soma de A B, B C, C D, e D E. No paralelograma da Fig.4 a diagonal A C é a soma de A B e BC; ou, pois que A D é geometricamente equivalente a B C, A C é a soma geométrica de A B e A D. Tudo isto é puramente convencional. O que importa simplesmente é isto: de que é nossa escolha chamar iguais ou adicionados aos caminhos com as relações que descrevi. Mas, embora isso seja uma convenção, é uma convenção com uma boa razão. A regra para a adição geométrica pode ser aplicada não só a caminhos, mas também a qualquer coisa que se possa representar por caminhos. Ora, como um caminho é determinado pela variação de direcção e de distância do ponto que desde o ponto de começo se move sobre ele, seguese então que qualquer coisa que do seu começo ao seu fim é determinada por uma variação de direcção e uma variação de grandeza pode ser representada por uma linha. As velocidades podem, portanto, representarse por linhas, pois que só têm direcções e variações. O mesmo se diga das acelerações, ou mudanças de velocidades. Isso é bastante evidente no caso das velocidades; e tornase evidente para as acelerações se considerarmos que o que as velocidades são para as posições nomeadamente, mudanças de lugar delas são as acelerações para as velocidades.

O chamado "paralelograma de forças" é simplesmente uma regra para compor acelerações. A regra consiste em representar as acelerações por caminhos e então adicionar geometricamente os caminhos. Os geómetras, não só usam, contudo, os "paralelogramas de forças" para compor diferentes acelerações, mas também para resolver uma aceleração numa soma de várias. Seja A B (Fig.5)
 
 

o caminho que representa uma certa aceleração digamos que se trata de uma mudança no movimento de um corpo que ao fim de um segundo a corpo estará, sob a influência dessa mudança, numa posição diferente daquela que teria se o seu movimento se tivesse mantido inalterado, de modo que um caminho equivalente a A B levaria da última posição à primeira. Esta aceleração pode considerarse como a soma das acelerações representadas por A C e C B. Poderá também considerarse como a soma de acelerações muito diferentes representadas por A D e D B, onde A D é quase o oposto de A C. E é claro que existe uma imensa variedade de maneiras em que A B poderia ser resolvida na soma de duas acelerações.

Após esta explanação entediante, que espero, dado o extraordinário interesse da concepção de força, não tenha esgotado a paciência do leitor, estamos preparados para determinar o grande facto que esta concepção encarna. Este facto é que se as mudanças reais de movimento que as diferentes partículas dos corpos experimentam forem todas resolvidas numa forma apropriada, então todas as acelerações componentes são precisamente como são prescritas por uma dada regra da Natureza, de acordo com a qual o~s corpos, nas posições relativas que os corpos realmente têm no momento, recebem determinadas acelerações que, compostas por adição geométrica, dão a aceleração que o corpo efectivamente experimenta.

Este é o único facto que a ideia de força representa, e quem se preocupar em apreender claramente o que este facto é, compreende perfeitamente o que é a força. Se devemos dizer que uma força é uma aceleração, ou que ela causa uma aceleração, é uma mera questão de propriedade de linguagem, que não tem mais a ver com o significado real por nós intendido do que a diferença entre a expressão francesa "Il fait froid" e a sua equivalente inglesa "It is cold". Ainda assim, é surpreendente verificar como esta questão simples confundiu as mentes humanas. Em quantos tratados profundíssimos não se fala da força como de uma "entidade misteriosa", que parece ser apenas uma maneira de confessar que o autor desespera de conseguir alguma vez uma clara noção do que a palavra significa! Numa obra recente, muito admirada, sobre Analítica Mecanica afirmase que sabemos precisamente o efeito da força, mas que o que a força ela mesma é não o sabemos! Isto é simplesmente uma autocontradição. A ideia que a palavra força excita nas nossas mentes não tem outra função que a de afectar as nossas acções, e estas acções não têm referência a força a não ser através dos efeitos desta. Consequentemente, se soubermos quais são os efeitos de força, então conhecemos todos os factos implicados ao dizermos que uma força existe, e não há nada mais para saber. A verdade é que circula por aí uma vaga noção de que uma questão pode significar algo que a mente não pode conceber; e quando alguns filósofos picuínhas foram confrontados com o absurdo de tal noção, inventaram uma distinção oca entre concepções positivas e negativas, procurando emprestar à sua nãoideia uma forma que não fosse obviamente absurda. A nulidade de tal esforço é evidente à luz das considerações feitas poucas páginas atrás; e, além dessas considerações, o carácter sofista desta distinção tem de chocar toda a mente habituada a pensar realmente.

§4. Realidade

405. Abordemos agora a questão lógica e consideremos uma concepção que lhe está particularmente associada, a saber, a questão da realidade. Tomando clareza no sentido de familiaridade, nenhuma ideia poderia ser tão clara como esta. Toda a criança a usa com perfeita confiança, não sonhando alguma vez que a não compreende. Relativamente à clareza em segundo grau, contudo, seria provavelmente embaraçoso para muitas pessoas, mesmo para as mais inclinadas ao pensamento, dar uma definição abstracta de realidade. No entanto, essa definição pode talvez conseguirse considerando os pontos de diferença entre a realidade e o seu oposto, a ficção. Uma ficção é um produto da imaginação de alguém; tem as características que o seu pensamento lhe imprime. Essas características são independentes de como cada um de nós pensa uma realidade exterior. Há, contudo, fenómenos nas nossas mentes, dependentes do nosso pensamento, que são simultaneamente reais no sentido de que realmente os pensamos. Mas embora as suas características dependam de como nós pensamos, elas não dependem daquilo que nós pensamos que essas características sejam. Assim, por exemplo, um sonho tem uma existência real enquanto fenómeno mental, se alguém realmente o tiver sonhado; que ele sonhou isto e aquilo, isso não depende daquilo que alguém pensa que ele sonhou, antes é completamente independente de toda a opinião sobre o assunto. Por outro lado, considerando, não o facto de sonhar, mas a coisa sonhada, então esta tem as suas peculiaridades simplesmente pelo facto de que se sonhou que ela as tinha. Des,te modo, podemos definir o real como aquilo cujas características são independentes do que alguém possa pensar que elas sejam.

406. Mas, independentemente de quão satisfatória se considerar tal definição, seria um grande erro supor que torna a ideia de realidade perfeitamente clara. Vamos então aplicar aqui as nossas regras. De acordo com elas, a realidade, como qualquer outra qualidade, consiste nos efeitos peculiares sensíveis que as coisas que fazem parte da realidade produzem. O único efeito que as coisas reais têm é causar crença, pois que todas as sensações que elas excitam irrompem na consciência sob a forma de crenças. A questão, portanto, é de como se distingue uma crença verdadeira (ou crença no real) de um crença falsa (ou crença na ficção). Ora, como vimos no primeiro artigo, as ideias de verdade e falsidade, no seu pleno desenvolvimento, pertencem exclusivamente ao método experimental de fixar a opinião. Uma pessoa que arbitrariamente escolhe as proposições que quer adoptar pode usar a palavra verdade unicamente para realçar a expressão da sua determinação em se manter fiel à sua escolha. Naturalmente, o método da tenacidade nunca teve o domínio exclusivo; a razão é demasiado natural aos homens para que isso'acontecesse. Mas na literatura de épocas sombrias encontramos alguns bons exemplos dele. Quando Scoto Eriúgena comenta um texto poético, onde se diz que a morte de Sócrates tinha sido causada por heléboro, ele não hesita em informar o leitor atento que Heléboro e Sócrates eram dois eminentes filósofos gregos, e que o último, ao ser vencido pela argumentação do primeiro, tomou isso tanto a peito que morreu! De que tipo poderia ser a ideia de verdade de um homem que adoptava e ensinava, sem a hesitação de uma dúvida, uma opinião apanhada completamente à margem? O espírito real de Sócrates, a quem, espero, agradaria ter sido "vencido em argumentação", pois que teria aprendido alguma coisa com isso, contrasta curiosamente com a ideia ingénua do comentador, para quem (tal como para "o missionário nato") a discussão pareceria ter sido simplesmente um combate. Quando a filosofia começou a acordar do seu longo sono, e antes de a teologia a ter completamente dominado, parece que a técnica de cada professor era ocupar uma posição filosófica ainda não ocupada e que lhe parecesse forte, entricheirarse nela, para de vez em quando fazer uma surtida e guerrear os outros. Mesmo os parcos documentos que nos restam dessas disputas, permitemnos ainda assim apurar doze ou mais opiniões sustentadas por diferentes mestres na mesma altura relativamente à questão do nominalismo e realismo. Leiase a parte inicial da Historia Calamitatum de Abelardo, que certamente era tão filósofo como os seus contemporâneos, e vejase a atmosfera de combate que ali se respira. Para ele a verdade é simplesmente a sua fortaleza particular. Quando o método de autoridade era ainda o método dominante, a verdade significava pouco mais que a fé católica. Todos os esforços dos doutores escolásticos visavam a harmonização da sua fé em Aristóles com a sua fé na Igreja, e podemos percorrer os seus pesados folios sem encontrar um argumento que nos leve mais longe. É digno de nota que onde diferentes fés cresceram lado a lado, os renegados são vistos com desprezo até por aqueles para cuja fé eles se passaram; tão completamente havia a ideia de lealdade substituído a da procura da verdade. Desde o tempo de Descartes, as falhas na concepção de verdade tornaramse menos visíveis. Ainda assim, às vezes um cientista fica surpreendido vendo que os filósofos estão menos interessados em investigar o que os factos são do que em apurar qual a crença que se harmoniza melhor com o seu sistema. É difícil convencer um defensor do método a priori mediante a adução de factos; mas mostremoslhe que uma opinião por ele defendida é inconsistente com outra por ele defendida numa outra ocasião, e ele será muito capaz de a retractar.Estas mentes parecem não acreditar que a disputa háde um dia terminar; parecem pensar que a opinião que é natural a um homem não o é para outro, e que a crença, por conseguinte, nunca ficará estabelecida. Em contentandose em fixar as sua próprias opiniões mediante um método que levaria outro homem a um resultado diferente, atraiçoam a sua fraca ideia da concepção do que é a verdade.

407. Por outro lado, todos os partidários da ciência são animados pela alegre esperança de que os processos de investigação, desde que levados suficientemente longe, darão uma determinada solução a cada questão que se lhes coloque. Uma pessoa pode investigar a velocidade da luz estudando as passagens de Vénus e a aberração das estrelas; outra pode fazêlo pelas oposições de Marte e os eclipses dos satélites de Júpiter; uma terceira pelo método de Fizeau; uma quarta pelo de Foucault; uma quinta pelos movimentos das curvas de Lissajoux; uma sexta, uma sétima, uma oitava, e uma nona, podem empregar diferentes métodos de comparação das medidas da electricidade estática e da dil~anima. Podem ao início obter resultados diferentes, mas, à medida que cada um aperfeiçoa o método e os processos, verificarseá que os resultados se aproximarão cada vez mais em direcção a um determinado centro. E o mesmo se passa com toda a investigação científica. Mentes diferentes podem partir dos pontos de vista mais antagónicos, que o progresso da investigação leválosá, por uma força a eles estranha, a uma e mesma conclusão. Esta actividade do pensamento pela qual somos levados, não a onde desejamos, mas a uma meta preordenada, é como a acção do destino. Nenhuma modificação do ponto de vista de onde se partiu, nenhuma selecção de outros factos como objecto de estudo, nem tão pouco uma natural inclinação da mente, podem permitir a um homem fugir à opinião predestinada. Esta grande esperança realizase na concepção de verdade e realidade. A opinião de que todos os que investigam estão destinados a chegar por fim a um consenso, é aquilo que significamos com a verdade, e a realidade é o objecto representado nessa opinião. Esta é a minha maneira de explicar a realidade.

408. Mas poderá dizerse que esta acepção se opoe directamente à definição abstracta de realidade que tínhamos dado, na medida em que torna as características da realidade dependentes do que acabamos por pensar acerca delas. Mas a resposta a esta objecção é de que, por um lado, a realidade é independente, não necessariamente do pensamento em geral, mas daquilo que tu ou eu ou um número finito de pessoas pode pensar sobre isso; e de que, por outro lado, embora o objecto da opinião final dependa daquilo que a opinião é, contudo, o que essa opinião é não depende do que tu ou eu ou qualquer outra pessoa pensa. A nossa preversidade e a dos outros pode postergar indefinidamente o estabelecimento da opinião; poderá mesmo concebivelmente fazer com que uma proposição arbitrária seja universalmente aceite enquanto a humanidade durar. Mesmo assim, isso não alteraria a natureza da crença, que só ela seria o resultado da investigação levada suficientemente longe; e se, após a extinção da nossa raça, uma outra surgisse com faculdades e disposição para investigar, também a verdadeira opinião seria a última a que eles chegassem. "A verdade arremessada ao chão levantarseá de novo" e a opinião a resultar finalmente da investigação não depende de como alguém possa efectivamente pensar. Mas a realidade daquilo que é real depende isso sim do facto real que a investigação está destinada a levar, por fim, se levada suficientemente longe, a uma crença nela.

409. Mas poderseá perguntar o que tenho a dizer acerca de todos os factos mínimos da história, esquecidos e irrecuperáveis, acerca dos livros perdidos dos antigos, acerca dos segredos já sepultados.

"Quantas gemas do mais cristalino esplendor
Se escondem nas escuras e profundas cavernas do oceano;
Quantas flores nasceram para florirem sem serem vistas
E perderem o seu odor na aragem do deserto."
Será que não existem realmente estas coisas apenas porque não há qualquer esperança de alguma vez estarem ao nosso alcance? E então, após a morte do universo (de acordo com a predicção de alguns cientistas), e toda a vida tiver cessado, não continuará a haver o choque dos atómos, embora não haja uma mente para o saber? A isto a minha resposta é que, embora em nenhum possível estádio do saber possa haver um número suficientemente grande para exprimir a relação entre a quantidade do que permanece desconhecido e a quantidade do que sabemos, não é, no entanto, filosófico supor que, relativamente a uma dada questão, (com um significado claro) a investigação não possa chegar a uma solução, desde que levada suficientemente longe. Quem diria, há poucos anos, que poderíamos alguma vez saber quais as substâncias de que são feitas as estrelas cuja luz pode ter levado mais tempo a chegar até nós do que aquele que a humanidade já leva de vida? Quem pode estar certo daquilo que a humanidade não vai saber daqui a umas centenas de anos? Quem pode adivinhar qual será o resultado da pesquisa científica, se continuada por dez mil anos, ao ritmo da actividade dos últimos cem anos? E se o continuar por um milhão, ou por mil milhões, ou por um número de anos que se queira, como é possível dizer que há alguma questão que poderia por fim não ser resolvida?
Mas alguém poderá fazerme a objecção: "Porquê estar com considerações tão remotas, especialmente se o teu princípio afirma que só as distinções práticas têm um sentido? Bem, devo confessar que faz pouca diferença se dissermos que uma pedra no fundo do oceano, na escuridão total, é brilhante ou não o mesmo é dizer, que provavelmente não faz qualquer diferença, mas lemkrandonos sempre que essa pedra pode ser "pescada" amanhã. Mas que existem gemas no fundo do mar, flores no deserto virgem, etc., são afirmações que, como a de um diamente que é duro sem ser tocado, têm muito mais a ver com o arranjo da nossa linguagem do que com o significado das nossas ideias.

410. Pareceme, contudo, que, com a aplicação da nossa regra, conseguimos uma apreensão tão clara do que significamos com realidade, e do facto em que assenta essa ideia, que talvez não devêssemos ter a pretensão, tão presunçosa como singular, de oferecer uma teoria metafísica da existência com aceitação universal entre os que empregam o método científico da fixação da crença. Porém, dado que a metafísica é uma matéria muito mais interessante do que útil, e o seu conhecimento, como no caso dos recifes submersos, nos serve sobretudo para nos livrarmos dela, não importunarei agora o leitor com mais ontologia. Já fui mais longe neste caminho do que era meu desejo; e como já dei ao leitor uma tal dose de matemática, psicologia e de tudo o que é altamente abstruso, receio que ele já me tenha posto de lado, e que o que estou a escrever seja exclusivamente para o compositor e o revisor da tipografia. Confiei na importância da matéria. Não há um caminho real para a lógica, e as ideias realmente valiosas só se podem conseguir pelo preço de uma atenção redobrada. Mas também sei que no que toca às ideias o público prefere o barato e o vulgar; no meu próximo artigo voltarei ao facilmente inteligível, e não voltarei a afastar-me dele. O leitor que fez o sacrifício de percorrer todo este artigo, será recompensado no próximo, verificando quão preciosamente aquilo que foi desenvolvido aqui de forma tão fastidiosa se pode aplicar à determinação das regras do raciocínio científico.

Até agora ainda não atravessámos o limiar da lógica científica. Certamente é importante saber como tornar as nossas ideias claras, mas elas podem ser claríssimas sem ser verdadeiras. Como tornálas verdadeiras, estudáloemos a seguir. Como originar as ideias vitais e procriadoras que se multiplicam em milhares de formas e se difundem em toda a parte é uma arte ainda não reduzida a regras, mas de cujo segredo a história da ciência já nos oferece algumas indicações.