Os meios e os fins da comunicação
(Introdução à edição do texto da Última Lição do Prof. Manuel Lopes da Silva)

António Fidalgo, Universidade da Beira Interior

1- Quando se fala de meios, fala-se também normalmente dos respectivos fins. Porém, no que concerne aos meios de comunicação, de que tanto se fala, poucas vezes se abordam os fins. Ou melhor, aparece a própria comunicação como o fim imediato, mas também último, desses meios. Os meios de comunicação servem para comunicar e é tudo. É assim que os meios de comunicação aparecem o mais das vezes como girando por si, numa lógica de auto-alimentação, onde estão ausentes outros fins que não sejam os de um melhor funcionamento dos meios.
A obra científica de Manuel Lopes da Silva, representada exemplarmente nos dois textos aqui editados, caracteriza-se justamente pela abordagem dos sistemas de comunicação a partir dos fins. Corajosamente, remando contra a maré, Lopes da Silva mostra que só uma abordagem teleológica dos meios de comunicação é cabal e, consequentemente, capaz de dar resposta à crescente complexificação dos sistemas de comunicação. A escolher um termo só para indicar o teor e o sentido da sistémica de Lopes da Silva esse termo seria "teleologia". O entendimento de qualquer sistema, sobretudo dos mais completos e complexos, passa impreterivelmente pela análise dos seus fins.
Não deixa de ser curioso que seja Lopes da Silva, licenciado e doutorado em engenharia electrotécnica pelo Instituto Superior Técnico, e um dos pioneiros da televisão em Portugal, a ter um abordagem teleológica da comunicação. Alguém que tem um conhecimento especializado e profundo dos mais recentes meios técnicos da comunicação é levado a superar uma visão meramente técnica desses meios, para olhar para os fins a que se destinam. Para isso não se coíbe de proceder a um trabalho filosófico de análise e reflexão da comunicação nos seus mais variados aspectos: tecnológicos, sociais, jurídicos, éticos. A obra Temas Filosóficos da Comunicação (Lisboa: Editora Rei dos Livros) aí está como resultado desse trabalho.

2- O primeiro texto de Lopes da Silva "Diagnóstico Sistémico da Sociedade Pós-Industrial" é a última lição proferida como Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Mas mais do que um simples diagnóstico, a última lição proferida em 3 de Junho de 1997, é um voto e um contributo para a saída da crise em que se encontra a nossa sociedade.
O que caracteriza a sociedade actual, em que o peso do sector industrial é cada vez menor na economia, e onde o sector dos serviços ganha cada vez mais importância, é antes de tudo a sua extrema diversidade. Surgem novas actividades com saberes novos, do comércio ao lazer, passando pelas finanças, seguros, sáude, educação e investigação. A especialização aumenta e a sociedade divide-se e subdivide-se. As estruturas sociais alteram-se rapidamente. Novos critérios de ascensão social, de exercício do poder, substituem os antigos.
Existem aspectos muito positivos na sociedade pós-industrial. A enorme complexidade social, cultural e económica em que vivemos obriga a que se respeitem as liberdades individuais como um meio de adaptabilidade a situações e a alterações cada vez mais especializadas. A crescente democratização dos regimes políticos a nível mundial surge como a melhor resposta à evolução social e económica havida. Com o aumento das liberdades individuais e a melhoria significativa das condições de vida, nunca como hoje houve tanta possibilidade de realização pessoal.
A par desses aspectos positivos surgem, todavia, outros negativos. A despersonalização é provavelmente o mais grave. A pessoa deixa de ser vista na sua condição única, singular e concreta, para ser vista tão só como mais um cliente, um utente, um paciente, um contribuinte. O sistema é composto de indivíduos anónimos, reduzidos a uma determinada função. Por outro lado, com o anonimato e a crescente especialização de funções num sistema altamente complexo, diminui a participação e a possibilidade de participação dos indivíduos na condução da vida pública. O sistema torna-se burocrático, entregue a especialistas que se apoderam ditatorialmente de pequenas áreas de decisão. Ao indivíduo e cidadão comum resta então a fuga na vida privada e o alheamento da vida pública.
É perante uma sociedade complexa, com aspectos claramente positivos e outros negativos, que as abordagens meramente funcionalistas dos sistemas sociais e políticos se revelam redutoras. Quanto mais complexos os sistemas, mais imperioso se torna incluir na análise os fins orientadores do seu funcionamento. A mor das vezes não são a regulação ou o funcionamento do sistema que são postos em causa, mas sim os fins visados. A questão fulcral é sobre os valores que o sistema procura atingir. Porque é muito diferente se é a igualdade social ou a liberdade individual que o sistema coloca como objectivo. Ora nem sempre os objectivos do sistema político são idênticos aos do sistema social, e por vezes até os valores perseguidos por um mesmo sistema podem entrar em conflito. A crise das sociedades contemporâneas é sobretudo uma crise na fixação dos valores, à falta de um quadro teleológico explícito. A tarefa não poderá deixar de ser, pois, voltar a uma hierarquização axiológica, em que os valores de ordem superior comandam os de ordem inferior. Só deste modo poderão os sistemas proceder a uma auto-regulação bem sucedida, porque orientada.
A relação dos média com a sociedade tem vindo a estreitar-se mais e mais, sendo hoje impensável a sociedade actual sem os média que a informam, a condicionam e a determinam na sua organização, nos seus fins, nas suas políticas, e na sua auto-análise e avaliação. Os modelos de comunicação correspondem a diferentes modelos de sociedade. Cada regime escolhe o seu modelo de comunicação ou é por ele determinado. Um regime político totalitário, por exemplo, é incompatível com uma imprensa livre. Os fins que um se propõe estão intimamente relacionados com os fins do outro. Faz, por isso, todo o sentido examinar de perto a teleologia dos média, para chegar a um melhor entendimento do quadro teleológico da sociedade.
Dito de uma forma muito simples, podemos questionar os fins dos média perguntando: O que é que faz correr os média? O lucro sómente e nada mais que o lucro? Não, de modo algum. Mesmo visando o lucro, não deixam os média na sua actuação de apelar a valores como sejam os do interesse público. Existe um núcleo de valores, por que se regem os meios de comunicação, e que coincide com os valores básicos da nossa sociedade. São estes a liberdade, a justiça e a igualdade, a ordem e a solidariedade. É destes valores que outros se retiram numa escala em que os de baixo decorrem dos que estão acima. É na prossecução destes valores que a actuação e a acção dos média ganham sentido.
E, no fundo, do que se trata é de uma questão de sentido. Para onde se olha? Que se quer no fim de tudo? O que se propõe é que os média, a sociedade, e sobretudo os jovens, visem os valores mais altos que podem dar sentido a todos os outros e também sentido à sua acção. Estão nessa posição suprema os valores do Belo, do Bem, da Verdade. São valores de ordem transcendente que nenhum acto no espaço e no tempo podem pôr em causa e que valem eterna e universalmente. É que, e cito Lopes da Silva: "Unidade, Verdade, Beleza são afinal os valores fundamentais que permitem a ligação do Homem com o Ser, porque eles são os seus atributos gerais".
Os meios de comunicação podem e devem desempenhar um papel central na superação da crise da sociedade hodierna, que é sobretudo uma crise de conflitos de valores, apontando os fins últimos e trabalhando em ordem a realizá-los no dia a dia. Antes de mais, é preciso recuperar aqueles valores humanos, tão naturais para os nossos pais, como a honra, a fidelidade, a benevolência, a generosidade, a misericórida, e que com a rápida evolução económica, social e cultural quase desapareceram do nosso quotidiano. É preciso que a forma como os média comunicam tenham em atenção esses valores, olhando o mundo e o ser humano como realidades dispostas ao bem e à verdade. Ou seja, dito agora do outro lado, é preciso que a informação do slogan, do espectáculo, do escândalo, do mau gosto e da violência, tenha o repúdio dos novos comunicadores, de pessoas lúcidas, com vistas largas.

3- Quem assistiu à ultima lição do Prof. Lopes da Silva, no dia 3 de Junho de 1997, não esquecerá certamente o profundo humanismo com que diagnosticou a sociedade pós-industrial, a nossa sociedade, também dita de informação. Não se tratou de proceder a uma análise fria, seca, por parte de um sistémico, preocupado com o rigor da análise e nada mais, alheio ao ser e ao devir do sistema analisado. O sistémico soube sempre aliar o rigor da análise à consciência muito clara de pertencer ao sistema que estava a analisar. Não interessava a análise pela análise, o diagnóstico pelo diagnóstico, mas sim por algo mais que os ultrapassava. Pelo diagnóstico perpassou sempre um intuito de contribuir para uma terapia, para a resolução dos problemas detectados. Houve sempre uma preocupação assumida pelo que se analisava. E era justamente aí que estava o carácter humanista do diagnóstico. Não podemos aceitar sistemas de sociedade ou sistemas de comunicação onde o homem seja despojado daquilo que faz verdadeiramente dele um homem, isto é, a sua singularidade de pessoa racional, livre e responsável pelo seu destino. Há que tomar posição e essa deve ser pelos valores que desde sempre iluminaram os trilhos da humanidade na sua história.

4- O segundo texto ora editado de Lopes da Silva intitula-se "Homem e Acção. Do 'Mind-Body Problem' à Realidade Virtual". Trata-se da comunicação apresentada à Conferência Internacional sobre Tecnologia e Mediação, organizada em fins de Março de 1997 em Lisboa. Pensando sobre um problema candente como é o da realidade virtual, Lopes da Silva fá-lo a partir de um problema clássico da filosofia moderna que é o união da alma e do corpo. Também aqui a solução apontada é de cariz teleológico.
A distinção cartesiana de alma (res cogitans) e corpo (res extensa), remetendo o estudo da primeira entidade para a filosofia e psicologia e o da segunda para a mecânica, levantou um problema que tem perdurado séculos e que ainda hoje é um tema da filosofia. Ao separar o homem em dois elementos completamente distintos, Descartes estava em sintonia com o seu tempo, nomeadamente com a cosmologia de Galileu. A compreensão aristotélica do homem, baseada na teleologia do modo como a alma era a forma do corpo, era assim banida. O corpo passava a ser entendido como um mecanismo, unicamente regido por leis exactas, à semelhança das leis matemáticas. Mas tal distinção deu, por outro lado, também azo aos idealismos, realçando o conhecimento e a realidade só enquanto realidade conhecida ou a conhecer.
Fortalecido pela mecânica de Newton, o mecanicismo cartesiano tornou-se num modelo que se tentou aplicar à psicologia e à política. Entendia-se a alma e a sociedade como dois sistemas regidos por leis absolutas, mecânicas, de um determinismo total, onde não havia espaço para o livre arbítrio. Tratava-se tão somente de considerar o funcionamento de um sistema, sem que se questionassem os seus fins.
As ciências da vida, porém, vêm pôr em causa a concepção mecanicista dos organismos vivos. Mas, se no início ainda não se atrevem a admitir uma finalidade dos sistemas vivos, mais tarde acabarão por reconhecer que a biologia tem necessariamente de recorrer à teleologia como princípio explicativo da vida. Há nos seres vivos um projecto que comanda o comportamento de cada célula e que define o desenvolvimento de células, tecidos, orgãos, sistemas, numa hierarquia de funções, onde as do topo integram e dão sentido às inferiores.
É com esta visão mais ampla dos seres vivos que é possível compreender a existência de comunicação nos organismos, onde as partes não se condicionam mutuamente à maneira de peças de um mecanismo, mas comunicam entre si mediante 'sinais' informativos, tanto do todo para as partes (comunicação centrípeta), como das partes para o todo (comunicação centrífuga). Assim, um organismo vivo não pode mais ser entendido como um agregado de elementos, mas como uma hierarquia de sub-conjuntos semi-autónomos, que por sua vez se ramificam em outros sub-conjuntos e assim sucessivamente. A vida é uma forma, à maneira aristotélica, porque o que anima um corpo é também forma, e é também uma forma, à maneira da teoria da Gestalt, porque o todo é muito mais que a simples soma das partes.
A concepção teleológica dos seres vivos, da hierarquia das suas partes, numa subordinação perfeita do mais elementar ao mais complexo, suplanta as teorias dualistas do homem. O 'mental' e o 'corpóreo' deixam de ser realidades completamente distintas para se tornarem complementos dum mesmo processo, onde domina um ou outro consoante as mudanças de nível dos comandos da hierarquia. Ora é à luz desta teoria hilemórfica que podem ser encontradas respostas satisfatórias a questões cruciais como sejam a consciência reflexiva e a identidade pessoal.
O homem tem consciência de si, desde as actividades mais vegetativas do seu corpo às mais intelectuais do seu espírito. Sente, isto é, tem consciência de que há um centro em si, que lhe permite dirigir o feixe da atenção, reger o pensamento e tomar decisões. As propostas neurológicas de situar esse centro no cérebro, embora se distanciem muito do dualismo cartesiano, ainda se quedam numa perspectiva emergentista do espírito e não constituem um esclarecimento cabal do fenómeno da consciência pessoal em toda a sua rica diversidade e dinamismo.
Uma abordagem fenomenológica da homem em acção permite a experiência da pessoa. Já na definição de Boécio "rationalis naturae individua substancia", pessoa encerra um elemento de dinamismo que coube à fenomenologia explorar. É a partir do homem em acção que se há-de fazer a reflexão filosófica sobre a unidade, a integridade e a totalidade do homem, subsumida na sua dimensão de pessoa. Tanto na experiência de que o homem actua por si, como na experiência de que algo ocorre nele, se pode apurar a consciência reflexiva do homem, a sua capacidade de se objectivar e de se compreender como pessoa e centro de acção.
Não sendo nem anjo nem besta, o homem possui, no entanto, dois níveis básicos de acção, o somático e o psíquico. E níveis tão distintos que, não raras vezes ao longo da história, se tentou reduzir o homem a um deles. No homem encontram-se processos vegetativos claramente distintos de procedimentos intelectuais. Ora é na pessoa em acção que a diversidade e complexidade psico-somática encontra a sua unidade. Há uma integração de níveis distintos e diferentes numa mesma realidade que é a acção eminentemente humana. E que acção é essa? É uma acção que embora, decorrendo no mundo visível da realidade corpórea, é regida e dirigida por valores de ordem espiritual.
São exactamente a diversidade e a unidade presentes no homem e, de algum modo, a interface da acção psico-somática que permitem uma abordagem privilegiada do real e do virtual.
Na utilização que o homem faz do computador há sempre uma finalidade subjacente. No computador o homem prolonga a sua acção. Esta dimensão, tantas vezes ignorada por quem usa o conceito de realidade virtual, revela-nos que o computador e todas as suas potencialidades não são mais que meios para fins humanos. A tarefa do computador é suscitada por uma acção do homem e é nesta que, no fim, reside o sentido de qualquer virtualidade computacional.
O conceito de realidade virtual, suscitado pela vaga informática e hoje tão em voga, sofre as ambiguidades resultantes da modo como o homem lhe acede. O homem acede-lhe corporeamente, mas nesse acesso está o homem todo, em pessoa, e não apenas uma dimensão de si. A ilusão típica da realidade virtual é possível porque a forma como o homem acede ao mundo é corpórea e sensível, mas o homem aquilata conscientemente esse acesso, e por isso distingue realidade real e realidade virtual. Não incluir a dimensão consciente do homem, auto-reflexiva e espiritual, na análise da questão real/virtual deixa campo aberto a alienações graves, em que o utilizador se torna presa das técnicas criadoras da ilusão.

5- Quero também realçar o importantíssimo contributo de Lopes da Silva às ciências da comunicação em Portugal. Primeiro na Universidade Católica Portuguesa e depois, a partir de 1982, na Universidade Nova de Lisboa, Lopes da Silva pertence à plêiade de académicos que lançaram e consolidaram, com um êxito a todos os títulos assinalável, os estudos de comunicação no panorama universitário português. Ainda não são passadas duas décadas desde a criação na Universidade Nova de Lisboa do primeiro curso de licenciatura em comunicação, e já milhares e milhares de jovens portugueses estudam comunicação por várias dezenas de cursos de ensino superior, público e privado. Mestre universitário na investigação e no ensino Lopes da Silva tem hoje dezenas de discípulos a ensinar por vários dos cursos de comunciação, espalhados por todo o país. A semente foi lançada à terra.

6- Para terminar, regresso ao ponto de partida que me parece ser o nó do pensamento e da acção de Lopes da Silva. É certo que os fins não justificam os meios, mas os meios ainda menos justificam os fins. Ora é isto que acontece hoje numa comunicação de consumo, virada para a satisfação da curiosidade informativa e para a diversão. Desde que as audiências sejam altas, vale tudo. É justamente isto que Lopes da Silva não aceita e mostra, cientificamente, que não é aceitável, tanto de um ponto de vista ético, como mesmo sistémico. A sociedade actual e a comunicação que é hoje uma das suas traves mestras têm de se reconsciencializar dos seus fins, daquilo que efectivamente lhes dá o sentido. E esse sentido só pode advir dos valores da unidade, da verdade, da bondade e da beleza, que determinam todos os entes no mais fundo do seu ser.