António Fidalgo, Universidade da Beira Interior
1997
I
Ser uma boa pessoa não faz dela um bom
profissional, nem um bom profissional é por isso uma boa pessoa.
O que faz com que um médico seja um bom médico, um advogado
um bom advogado, um político um bom político e um jornalista
um bom jornalista, não é o mesmo que aquilo que faz de uma
pessoa uma boa pessoa. De uma boa pessoa espera-se que seja compassiva,
prestável, compreensiva, generosa, tolerante, grata, simples, corajosa,
entre outras qualidades (veja-se o belo livro de André Comte-Sponville,
Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Lisboa: Presença). Estas não
são, porém, as mesmas virtudes que se esperam de um bom médico
ou de um bom advogado. Ninguém escolhe um médico ou um advogado
pelas virtudes da simplicidade, gratidão, generosidade, lealdade
ou tolerância. E as virtudes que se esperam de um médico não
são forçosamente as mesmas que se exigem a um advogado (v.g.:
abnegação, espírito de sacrifício versus persistência,
tenacidade).
A emergência e a urgência da questão
ética na área da comunicação social não
podem e não devem levar-nos a uma solução tão
radical quanto simplista como a de estender pura e simplesmente os preceitos
morais pessoais à esfera profissional. Isso aconteceu há
anos atrás na política portuguesa, quando se ouviram políticos
a dizer que era preciso estar na política como se está na
vida, considerando que os valores por que se regem no dia a dia das suas
vidas pessoais são os mesmos que devem presidir às suas actividades
públicas e profissionais. O que resulta desta atitude são
geralmente políticos de discurso moralizante, de dedo em riste contra
os outros políticos que não se regem pelos mesmos (seus deles)
princípios. Há uma ingenuidade (linearidade) nesta atitude
que tanto pode ser dramática como perigosa (o caso do presidente
americano James Carter, e o caso dos fundamentalistas religiosos, cristãos
ou islâmicos). As respostas moralizantes às crises éticas
(Carter sucessor de Nixon) são as mais rápidas e as mais
simples, mas reduzem-se na prática a boas intenções
de pouco fôlego no confronto com a realidade. Penso que uma campanha
moralizante como resposta à crise ética vivida hoje pelos
meios de comunicação social seria uma péssima resposta.
Os profissionais da comunicação não têm que
ser santos ou boas pessoas, mas sim bons profissionais de comunicação.
Duas objecções podem ser levantadas
ao que acabo de dizer. A primeira é de que utilizei o termo bom
em sentido lato, e até equívoco. Se na expressão "uma
boa pessoa", não sofre contestação considerar que
"boa" tem um significado ético, o mesmo já não se
passa com a expressão "um bom profissional". Aqui pode defender-se
que "bom" não significa uma qualidade ética; que bom tem
neste caso um sentido similar ao usado nas expressões "uma boa casa",
ou "uma boa máquina". Com efeito, nas profissões que não
lidam directamente com pessoas, como nos casos citados de políticos,
médicos, advogados, jornalistas, mas com objectos, como ladrilhadores,
sapateiros, canalizadores, etc., parece que a designação
de bom não tem o menor sentido ético: "um bom ladrilhador"
ou "um bom sapateiro". No entanto, defendo que a designação
de bom relativamente a uma profissão comporta sempre um elemento
ético. Um médico não é bom apenas porque conhece
a fundo a fisiologia humana, diagnostica certeiramente e prescreve a terapêutica
correcta. O juramento de Hipócrates constitui seguramente um critério
que define um bom médico. Mesmo nos casos de ladrilhadores, sapateiros,
mecânicos, etc., considero existir na designação bom
uma importante componente de ética profissional. O saber assentar
azulejos na perfeição não faz de uma pessoa um bom
ladrilhador, um bom profissional. Se essa pessoa não for fiável,
não assumir e respeitar compromissos (relativos ao trabalho, aos
prazos e aos preços), não tiver em suma uma consciência
profissional (e esta será sempre de cariz ético!), então
não será certamente um bom ladrilhador, um bom mecânico.
etc.
A segunda objecção diz respeito
ao perigo de cinismo (maquiavélico) que se incorre com a distinção
entre ética de foro individual (a ética de convicção)
e ética profissional (a ética de responsabilidade). De facto,
a lógica de poder e as razões de estado tendem mais e mais
a utilizar e a santificar meios, em si contestáveis e reprováveis,
em nome de valores últimos, incontestáveis e louváveis,
ao mesmo tempo que desqualificam as críticas, assentes na convicção,
acusando-as invariavelmente de românticas. A resposta a esta objecção
é que, e cito Max Weber, "a ética de responsabilidade e a
ética de convicção não são termos absolutamente
opostos, mas sim elementos complementares que devem concor-rer para formar
o homem autêntico (Max Weber, O Cientista e o Político, Lisboa:
Presença, p. 97)". O cinismo só existe se a convicção
ética for eliminada; mas se ela perdurar (não se embotar)
nos detentores de cargos de responsabilidade, então haverá
sempre um permanente confronto entre convicção e responsabilidade
que nalgumas situações poderá ser altamente dramático.
II
Dito isto, ou seja, 1) não confundir um
bom profissional com uma boa pessoa, 2) não responder com uma campanha
moralizante à exigência ética da comuni-cação
social, gostaria de abordar uma virtude que considero muito importante
para uma ética profissional dos homens (e mulheres) da comunicação
da nossa época. Refiro-me à distância no sentido do
termo em "manter as distâncias" e "saber guardar as distâncias".
Trata-se de uma virtude imprescindível às alterações
pós-modernas do conceito de objectividade.
O primeiro dever de um jornalista é a
verdade e a objectividade (vejam-se os códigos deontológicos,
"1§ O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão
e interpretá-los com honestidade" Código Deontológico
do Jornalista aprovado em 4.5.93). Este dever é entendido, porém,
ainda no "modelo clássico de referência, herdado das Luzes"
(Boris Libois, Éthique de l'Information. Essai sur la Deontologie
Journalistique, Bruxelas: Éditions de l' Université de Bruxelles,
1993). Os factos estão lá e há que os relatar o mais
fielmente possível. O jornalista não criaria nada, limitar-se-ia
a reproduzir a realidade pela palavra. Aliás no mesmo sentido das
epistemologias modernas de que o homem apenas teria que saber ler o mundo
e não inventar hipóteses explicativas (hypotheses non fingo
de Isaac Newton). As novas teorias epistemológicas de Popper, Kuhn
e Feyerabend, porém, vieram mostrar o quão importante são
os quadros mentais e socio-culturais (os paradigmas) na elaboração
da ciência. Ora também o paradigma do jornalismo referencial
se encontra em crise. É que a mensagem é, no mínimo,
condicionada pelo meio. E os novos meios alteraram decisivamente formas
e conteúdos de informação. Justamente a derrocada
do modelo referencial de comunicação constitui uma das causas
da actual crise ética dos meios de comunicação social,
no parecer de investigadores como Boris Libois e Niceto Blasquez. Este
último escreve: "A grande novidade produziu-se com a introdução
técnica da voz, da música e da imagem viva com os seus correspondentes
silêncios, insinuações e manipulações
distorcedoras." (Etica y Medios de Comunicacion, Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1994, p. 6) Qual a objectividade de uma imagem de primeiro
plano do criminoso levado a tribunal ou dos familiares da vítima
no momento da dor? E questões semelhantes também se podem
colocar à imprensa. A mesma notícia não é a
mesma consoante a página em que é inserida, o local da página,
o corpo de letra do título e do corpo da notícia, e as notícias
ao lado das quais é colocada. Pelo menos desde os primórdios
da fenomenologia sabemos que a percepção do objecto tem um
campo de percepção e que o campo condiciona de modo essencial
o objecto percebido. Uma primeira página, um tamanho de letra de
18, são completamente diferentes de uma página esquerda do
interior ou de um tamanho de letra de 12. Mas é o jornalista que
constrói estes campos da notícia e não a realidade.
A realidade não tem destaques e não faz a diferença
entre preto e branco e a cores.
Na situação actual, de mutação
acelerada dos media, de alteração de paradigmas, de crise
ética, de embriaguez do poder, a virtude da distância constitui,
em meu entender, uma das principais virtudes de quem trabalha na comunicação.
Saber guardar as distâncias não significa de modo algum ignorar
as coisas, o que seria absurdo em relação à natureza
da comunicação, não significa não aprofundar,
investigar, os factos da notícia, não significa atrasar a
notícia ou mesmo não noticiar os factos. Pode-se noticiar
um acontecimento de diferentes maneiras, de uma forma distante ou de uma
forma próxima. Distante e próximo designam aqui atitudes
e não o local em que o jornalista se encontra relativamente ao acontecimento.
É possível manter as distâncias em cima do acontecimento
e ser-se demasiado próximo mesmo afastado do acontecimento, no tempo
e no espaço. Penso que hoje em dia há uma confusão
nestes planos; confusão aliás quase inevitável na
época do directo. A exigência de estar lá no momento
em que as coisas acontecem impele a uma atitude próxima, a uma fusão
do jornalista com a realidade circundante; confunde-se objectividade com
vivência. A atitude da distância num momento de presença,
contudo, significa que se está lá também, só
que de uma forma distante.
III
Voltemos à distinção entre
boa pessoa e bom profissional. Uma boa pessoa caracteriza-se por uma atitude
próxima, participativa, compassiva, com todos os que a rodeiam.
Sentimentos e emoções são tão ou mais importantes
que frios raciocínios. O mesmo não se passa com um bom profissional.
No seu caso tem de triunfar a razão, uma cabeça fria. O seu
trabalho deve fazer-se sine ira et studio, imparcialmente. Para isso tem
de saber manter a devida distância.
É na explicitação da ponderação
como uma das três qualidades do homem político que Max Weber
fala da distância, mais exactamente, do "manter a distância".
Cito Weber: "Pode dizer-se que são três as qualidades decisivamente
importantes para o político: paixão, sentido da responsabilidade
e ponderação. (...) A paixão não transforma
um homem em político se não estiver ao serviço de
uma "causa" e não faz da responsabilidade para com essa causa a
estrela que guia a acção. Para tal é necessário
ponderação, a capacidade para deixar que a realidade actue
sobre a pessoa sem por isso perder o domínio e a tranquilidade,
ou seja, para manter a distância em relação aos homens
e às coisas." (p.75)
Manter a distância na acção,
no caso do político, é uma qualidade na medida em que qualquer
acção política deve ser perspectivada e conduzida
num contexto mais vasto do que o do momento. Aqui há que ter em
conta o médio e longo prazo, tanto a montante como a jusante. Ou
seja, toda a acção política exige a consideração
do que a precede e dos efeitos que se lhe seguem. Saber como se chegou
à situação que requer a acção, conhecer
as implicações futuras que a acção envolve,
significa relativizar o momento presente, reconhecer que na acção
política não há o momento absoluto. Nunca o político
poderá agir de acordo com a máxima fiat iustitia pereat mundus
(faça-se justiça, mesmo que o mundo soçobre), em que
o presente se torna um absoluto ético. A máxima é
válida na ética de convicção, na ética
da boa pessoa, em que por mor da justiça se pode sacrificar tudo,
incluindo a própria vida, mas não o é na ética
de responsabilidade por que se deve nortear o político. A missão
do político enquanto político é certamente a de construir
um mundo em que a justiça se cumpra, mas nessa tarefa o seu primeiro
dever é a subsistência desse mundo como condição
da justiça.
É a distância, a relativização
do presente, que melhor demarca o político responsável do
demagogo. O demagogo entrega-se ao momento, funde-se com ele, tenta aniquilar
qualquer distância que o possa separar dos homens e das coisas presentes.
Passado e futuro, homens e coisas ausentes, existem apenas em função
do momento presente.
IV
Também na informação, manter
a distância relativamente ao presente é uma qualidade do jornalista
na medida em que o significado de um facto noticiado é ditado pelo
contexto em que se insere. O homem comum pode apelar à proximidade
da vivência como garante da objectividade do que relata, dizer que
o que diz é o que viu, com os olhos que a terra há-de comer.
Mas o jornalista deve temperar o que vê e ouve com o que, não
vendo e não ouvindo, sabe que condiciona o que vê e ouve.
A percepção do presente situa-se entre a memória do
passado e a previsão do futuro. E as presenças são
condicionadas pelas ausências.
A distância do jornalista começa
logo pela consciência viva da diferença entre ser e parecer.
Talvez mais do que ninguém o jornalista sabe que nem tudo o que
parece é e que o que é muitas vezes não aparece como
é. Porque sabe que é assim, o jornalista assume uma atitude
activa de investigação do que ocorre, procurando através
das aparências chegar ao que efectivamente se passa e que merece
ser noticiado. Caso o jornalista não cultivasse qualquer distância,
não passaria de caixa de ressonância de factos e palavras
tidos por noticiáveis, ficando em aberto quem ou o quê lhes
daria o estatuto de notícia.
O espírito de inquirição
e de investigação que caracterizam a profissão de
jornalista nascem de uma atitude de distância, que não distanciamento,
relativamente aos homens e às coisas. Ninguém é bom
juiz em causa própria e, de igual modo, ninguém pode fornecer
boa informação em situações em que não
pode distanciar-se. Um jornalista terá de manter a distância
que aos juizes de fora, do tempo de D. Afonso IV, garantia a imparcialidade
da sentença.
Trata-se, pois, e antes de tudo o mais, de uma
distância no próprio acto de percepção da notícia.
Decidir o que de entre o que ocorre é ou não notícia
depende uma atitude de distância. Quem está completamente
mergulhado no curso dos acontecimentos não tem a perspectiva necessária
para discernir o que é e não é notícia.
Ganhar distância significa aqui ganhar
uma visão de conjunto, como quem querendo ter uma visão global,
por exemplo de um acidente de carro, busca a perspectiva superior da ave
ou do helicóptero. É que se vê mais e melhor numa atitude
de distância, já que não se dá azo aos pormenores
a preencherem totalmente o campo de visão. Ver relações,
correspondências, causas e efeitos, oposições, reacções,
exige a visão simultânea dos vários e múltiplos
correlatos e isso só é possível numa visão
de conjunto, numa perspectiva de distância. Ora as relações
são o que verdadeiramente faz de uma ocorrência um acontecimento
digno de registo, uma notícia, pelo que sem distância na percepção
dos acontecimentos não pode haver jornalismo, propriamente falando.
O ponto essencial da assunção de
uma atitude de distância na percepção dos acontecimentos
reside justamente na possibilidade e capacidade de perceber coisas que
não se vêem quando se está demasiado próximo.
Essas coisas são o que certa ontologia (Meinong) apelidou de objectos
superiores e que mais não são do que as relações.
A percepção da rivalidade ou cumplicidade de dois políticos,
por exemplo, é a percepção de uma relação.
Um jornalista dá-se conta ou não dessa relação,
mas para se dar conta dela tem de adoptar uma atitude de distância
relativamente aos eventos singulares na base dos quais baseia a sua percepção
da relação.
Mais uma vez convém realçar aqui
que distância é uma atitude e que o seu contrário é
a proximidade que pode consistir numa proximidade partidária, clubística,
financeira, de interesses, etc., com os acontecimentos e respectivos intervenientes.
Distância significa aqui também e claramente uma independência
do observador.
V
Tão ou mais importante que a percepção
distanciada dos acontecimentos (objecto de notícia) é a apresentação
distanciada dos mesmos. Apesar de percepção e apresentação
do objecto da notícia serem momentos de um mesmo processo (a informação)
e de estarem intimamente relacionados, são, no entanto, acções
diferentes, e são-no de tal modo que podem ser desempenhadas por
pessoas diferentes, aliás sob a forma de divisão de tarefas
que ocorre frequentemente nos órgãos de comunicação,
sobretudo na rádio e na televisão. É assim que, embora
directa e estreitamente relacionados, percepção e apresentação
exigem, em termos profissionais, requisitos e qualidades diferentes, como
por exemplo, em certas circunstâncias, coragem física no caso
da percepção e facilidade de expressão no caso da
apresentação. Numa e noutra acção, porém,
deve haver uma atitude de distância do actor, seja ele repórter
ou apresentador.
Manter a devida distância na apresentação
das notícias, na imprensa, na rádio ou na televisão,
significa antes de mais comedimento ou contenção. O que se
verifica muitas vezes no apresentador da notícia é o oposto,
a exuberância e o empolgamento de quem anuncia a notícia como
verdade única e última. O apresentador esvai-se na apresentação,
funde-se nela, esquecendo-se de si. É como se ele próprio
fosse um simples meio por onde a corrente informativa passaria sem a menor
resistência. Tratar-se-ia de apresentar a notícia sem mais
nem menos, tal como chegou. Só que a transparência da apresentação,
assim representada, é sempre uma ilusão. Ora é por
causa desta ilusão, e contra ela, que se exige comedimento a quem
apresenta as notícias.
As palavras, as imagens, os sons, que enformam
a apresentação da notícia, são objecto de selecção.
A questão não é só de verdade, mas também
de adequação. Uma imagem de um acidente é tão
verdadeira como qualquer outra e, no entanto, pode fornecer uma visão
distorcida do todo pelo qual é tomada. É por isso que é
necessário saber escolher as palavras apropriadas e buscar as imagens
mais representativas. A apresentação das notícias
é uma acção, com toda a carga que o conceito de acção
comporta, nomeadamente intencionalidade e responsabilidade de um agente.
Antes de mais, quem apresenta as notícias
tem de tomar consciência de si como instância própria
no processo informativo. Dar ou não dar a notícia, dá-la
sob que forma, são decisões dessa instância. O jornalista
que dá a notícia assume a responsabilidade de a dar. Não
há um automatismo noticioso de tipo ilibatório: a notícia
chegou, logo é apresentada. Pelo contrário, no meio há
uma decisão.
É nesta consciência de si, como
instância de decisão, consciente e responsável, de
dar ou não dar a notícia, sob que forma, que o jornalista
tem de ter comedimento ou contenção. Não pode agir
indiscriminadamente, ao jeito de tudo o que vem à rede é
peixe, não pode agir às cegas, ao sabor dos impulsos, do
mercado, de interesses particulares, mas tem agir sob princípios,
e isso significa fazê-lo com ponderação, com distância.
É esta distância que Max Weber preconiza
ao sustentar a validade de uma ética profissional ou de responsabilidade
em relação a uma ética da convicção
ou absoluta. A ética absoluta obriga a dizer toda a verdade. Não
assim a ética da responsabilidade. Esta preocupa-se com as consequências,
vê mais longe que o imediato, visão que só a distância
permite. "Finalmente, a obrigação de dizer a verdade, que
a ética absoluta nos impõe sem condições. Daqui
se tirou a conclusão de que devem ser publicados todos os documentos,
sobretudo aqueles que culpam o próprio país, e, com base
nesta publicação unilateral, incondicional, das próprias
culpas, sem pensar nas consequências. O público dar-se-á
conta de que, agindo assim, não se ajuda a verdade, mas que, pelo
contrário, ela será obscurecida pelo abuso e desencadeamento
das paixões: Verá que apenas uma investigação
total e bem planeada, levada a cabo por pessoas imparciais, pode render
frutos, e que qualquer outro procedimento pode ter, para a nação
que o siga, consequências que não poderão ser eliminadas
em dezenas de anos. A ética absoluta, no entanto, nem sequer se
interroga acerca das consequências." (ibidem, p.84)
A distância ou contenção
na apresentação das notícias toma em conta não
só as notícias, mas sobretudo a relação destas
com o público destinatário da notícia. Não
há informações descontextualizadas. As relações
e os contextos da apresentação das notícias constituem
o que se poderá chamar uma pragmática da notícia e
que obriga a uma avaliação das notícias relativamente
ao público alvo, avaliação que deverá ser feita
com cabeça fria, distante.
VI
Ao falar aqui de distância como virtude,
faço-o no sentido aristotélico de virtude como uma disposição
que se adquire por hábito. A distância não é
um dado adquirido. Pelo contrário, nascendo-se no meio das coisas,
próximo delas, exige um certo treino o alcançar a distância
necessária ao bom exercício da actividade de informar.
Os códigos deontológicos falam
muito de deveres e nada de virtudes. Contudo, a experiência tem mostrado
que um bom jornalista só o será com a experiência,
com o cultivo das virtudes próprias à profissão. Aristóteles
escreve logo no início do segundo livro da Ética a Nicómaco
que os instrumentistas musicais só se tornam bons instrumentistas
mediante a prática de tocarem os instrumentos e que o mesmo acontece
com as virtudes, um homem justo praticando actos justos, um homem corajoso
praticando actos de coragem. Também o jornalista precisa de praticar
actos informativos para se tornar um bom jornalista. É necessário
uma certa habituação, um treino próprio.
Lá por um jornalista conhecer muito bem
o códigos deontológicos da sua profissão não
significa que as suas acções estejam moralmente certas. Segundo
Aristóteles, a ética não tem um propósito teórico,
mas sim prático. Não se trata de saber o que é o bem
ou o que são as virtudes, mas sim de adquirir as virtudes e de as
praticar. Ora isso só a experiência o pode facultar. Não
é por alguém estudar muito ética que será um
bom jornalista, mas sim por aprender fazendo boa informação.
A distância como virtude dos jornalistas
e tal como a retratei aqui é afim das virtudes aristotélicas
da phronesis (prudência, bom senso) e da sophrosyne (temperança).
Contudo, quero salientar aqui a sua diferença face às virtudes
pessoais da prudência e da temperança, e que seria a sua dimensão
enquanto como virtude profissional. Vimos que Max Weber a considera uma
das virtudes dos políticos, própria de uma ética de
responsabilidade, e eu estendi-a à profissão do jornalismo.
Para o jornalista a obter necessita de a exercitar.
Não é tanto o conhecimento teórico de que há
contextos das notícias, o conhecimento de que o jornalista tem de
praticar um certo cepticismo metodológico na sua profissão,
que dotará o jornalista dessa distância, mas sim a prática
correcta nascida da experiência que lhe permitirá aumentar
mais e mais essa virtude.