O modo de informação de Mark Poster1

António Fidalgo
Universidade da Beira Interior


Índice

Origem e demarcação do conceito

Modo de informação é o conceito cunhado por Mark Poster, nomeadamente nos livros Critical Theory and Poststructuralism de 1989 e The Second Media Age de 1995 (A Segunda Era dos Média, Celta Editora, 2000) para designar ``o modo como a comunicação electronicamente mediada desafia e, ao mesmo tempo, reforça os sistemas de dominação emergentes na sociedade e cultura pós-moderna.'' 2 O conceito desenvolve-o Poster a partir da teoria marxista do modo de produção (e daí nome de modo de informação!).3 Entre os dois modos há afinidades e diferenças. As primeiras são três, a saber, que todas as relações sociais são transitórias, constituídas historicamente, que o teórico faz parte da realidade que analisa e, portanto, não dispõe de uma supra-posição epistemológica que lhe possibilite uma análise universal e intemporal da linguagem, e que, finalmente, o objectivo da teoria é tanto revelar as estruturas de dominação como a de descortinar o potencial libertador de todo e qualquer padrão de experiência linguística.4

O que diferencia o modo de informação do modo de produção é desde logo a recusa da prioridade que Marx concede ao trabalho. Embora Poster reconheça que o trabalho continua a desempenhar um papel fundamental nas sociedades contemporâneas, considera que se trata de um conceito desadequado para servir de charneira numa análise das actuais situações de dominação. A segunda diferença está na eliminação do aspecto teleológico do materialismo histórico. A preservação da teleologia no modo de informação tornaria o elemento linguístico no 'centro' ou na 'essência' do campo social a que acabariam por se reduzir todos os outros aspectos deste campo. Aliás, e esta é outra diferença, a teoria do modo de informação mina de certo modo a teoria do modo de produção na medida em que enquanto esta se centra no modo como os objectos que satisfazem as necessidades humanas são produzidos e trocados, aquela incide sobre o modo como os símbolos são usados para partilhar sentidos e constituir objectos. Em quarto lugar, e finalmente, as sociedades contemporâneas, tecnologicamente sofisticadas, caracterizam-se por distintos novos modos de informação que alteram radicalmente o quadro das interrelações sociais. é neste sentido que também é legítimo falar das sociedades da revolução industrial como modos de produção.

Mas Poster além de caracterizar o modo de informação demarcando-o do modo de produção, fá-lo também relativamente ao modo de significação de Baudrillard, tal como aparece na obra deste Para uma Economia Política do Signo. Poster considera que Baudrillard ao limitar-se às categorias saussureanas reduz a comunicação a um código abrangente e totalizante, limitado ao campo semiológico, mas incapaz de analisar os fenómenos linguísticos além dos que estão associados ao marketing e ao comércio de produtos, como sejam as técnicas de vigilância e as possibilidades comunicacionais das novas tecnologias. 5

Feita a definição do conceito de Poster mediante o confronto com os conceitos de modo de produção e de modo de significação, há a salientar antes do mais o carácter marxista do novo conceito, nomeadamente no seu propósito de analisar as relações sociais de dominação e de simultaneamente, mediante essa análise, procurar potenciais elementos de libertação social. Declaradamente o modo de informação visa dar um novo alento aos propósitos finais da teoria do modo de produção.6 Com efeito, Poster assume declaradamente a teoria crítica como ponto de partida para analisar a hegemonia ideológica da sociedade capitalista avançada, a cultura de massas e a diluição da classe operária como factor de libertação social. A especificidade do modo de informação está no contributo que Poster vai buscar ao pós-estruturalismo, em particular na inter-relação entre discurso e poder explorada por Michel Foucault. As relações sociais de poder são indissociáveis dos tipos de discurso que as instituem e as justificam. é com base na intelecção do papel da linguagem nas relações sociais que Poster aborda a forma como a própria linguagem vem sendo alterada pelos sistemas electrónicos de comunicação.7

Discurso e poder

Não só Marx, mas também os outros pais das ciências sociais, como Weber e Durkheim, partiam do princípio de que era a acção, e não a linguagem, que determinava as relações de poder e que, portanto, o objecto de análise seria a acção. Ora é este princípio que é posto em causa com os contributos linguísticos do século XX, nomeadamente com a emergência e a afirmação das teorias da linguagem, Saussure, Wittgenstein, Austin, Chomsky entre outros.

Poster atribui a Foucault o mérito de muito claramente ter exposto a íntima relação entre linguagem e poder, colocando no centro da atenção que dedica ao filósofo francês a noção de discurso. O discurso não pode ser analisado como simples forma da consciência ou expressão do sujeito, mas como uma forma de positividade. Retira-se assim o discurso do reino da pura subjectividade para o submeter a um conjunto de categorias objectivas. é antes a positividade do discurso que faz a síntese das variações subjectivas da consciência e do indivíduo. Em dois artigos8 cita Poster a passagem da Arqueologia do Saber em que a unidade do discurso é contraposta à unidade do sujeito, onde o discurso deixa de ser a manifestação majestosa de um sujeito que pensa, conhece e fala, para, pelo contrário, se tornar uma totalidade em que se subsume a totalidade no seio da qual se determina a dispersão do sujeito e respectivas discontinuidades.

Mas onde melhor sobressai a relação de linguagem e poder, em que o discurso é configurado como uma forma de poder e a concepção de poder pressupõe a actuação através da linguagem é na concepção do ``panopticon como discurso''.9 A questão fundamental é o da construção histórica e contextualizada do sujeito pelo discurso. ``O desafio de Foucault é construir uma teoria do discurso que analise a razão à luz da história, revele o modo como o discurso funciona como poder e incida sobre a constituição do sujeito.''10

O panopticon, o sistema de vigilância prisional, em que de uma torre central os os guardas podiam observar a todo o momento os presos sem que estes os vissem, instituia um regime de autoridade que tudo vê, mas que é invisível. O propósito consistia em, mediante a percepção de estarem sempre a ser vigiados, os presos interiorizarem essa vigilância e, assim, os princípios e os valores que a justificavam enquanto causa final. Ora é este dispositivo de vigilância e de enformação psico-social que Foucault e Poster estendem à constituição do sujeito e da sociedade moderna.11

Como entidade objectiva dominadora, mas ao mesmo tempo imperceptível. o discurso cumpre as funções do panopticon. ``O discurso actua sobre o sujeito posicionando-o na relação com as estruturas de dominação de modo a que essas estruturas possam então agir sobre ele ou ela. A influência do discurso caracteriza-se principalmente por disfarçar a sua função constitutiva relativamente ao sujeito, aparecendo apenas após a formação do sujeito enquanto destinatário do poder.''12 O poder inerente ao discurso está na sua omnipresença face ao sujeito e nos ditames invisíveis que tal facto inculca neste.

O estruturalismo desta posição é evidente na negação de um sujeito primordial, autónomo, detentor de uma razão constituinte da linguagem, da sociedade e do mundo. A afirmação estruturalista, pelo contrário, é de que o sujeito é um construto de estruturas discursivas. O pós-estruturalismo, por seu lado, fica patente na multiplicidade, diversidade e até na contraditoriedade dos discursos enformativos do sujeito. Não há um discurso único, coerente, e, como tal, também não há um sujeito único, mas um sujeito espartilhado pela diversidade dos discursos a que é sujeito e de que é sujeito.

Discurso e poder são conceitos imbrincados e inseparáveis, e esse é o primeiro contributo fundamental que Poster vai buscar ao estruturalismo de Foucault. Só que a deconstrução da noção do sujeito moderno vai ainda mais longe na visão pós-estruturalista na medida em que o sujeito é o resultado simultâneo e sucessivo de múltiplos discursos. Mais do que discurso e poder há que falar de discursos e de poderes que concorrem entre si na formação e dominação do sujeito. Este é o segundo contributo que Poster retira da leitura de Foucault.

O modo de informação e o super-panopticon

Segundo Mark Poster os meios de comunicação de massas introduzidos no século XX, telefone, rádio, televisão e internet, instauram novos tipos de acção e de discurso. A vida quotidiana transformou-se radicalmente no último século graças aos avanços tecnológicos e são essas transformações que distinguem especificamente o capitalismo avançado.13 São justamente estas transformações que há a ter em conta nos discursos determinam os sujeitos. Para isso importa estudar as novas linguagens ditadas pelos novos média.14 Só mediante a exploração dos novos tipos de discurso é que se entenderão as novas formas de dominação que caraterizam o capitalismo actual.

Muito mais do que simples dispositivos instrumentais que, na perspectiva do marxismo tradicional, em nada ou em muito pouco alterariam as relações de poder, Poster encara os sistemas de comunicação electrónica como linguagens determinantes da vida dos indivíduos e dos grupos em todos os seus aspectos, social, económico, cultural e político. Os meios e as formas de comunicação constituem tipos de discurso determinantes das relações de poder e de dominação nas sociedades contemporâneas. Daí que Poster defenda como tese geral que ``o modo de informação decreta uma reconfiguração radical da linguagem, que constitui sujeitos fora do padrão do indivíduo racional e autónomo''.15 O modo de informação mostrará como o familiar sujeito moderno se transforma num sujeito ``múltiplo, disseminado e descentrado, interpelado continuamente como uma identidade instável''.16

Um dos exemplos mais desenvolvidos por Poster de como o modo de informação dissolve o sujeito estável da modernidade, autónomo e crítico, é a transformação operada pela passagem da informação impressa à informação electrónica feita em tempo real. O livro impresso é uma materialidade que tanto promove a substantividade do leitor e do autor, na medida em que os isola criando entre eles um hiato espaço-temporal. ``A materialidade espacial da imprensa - a apresentação linear das frases, a estabilidade da palavra na página, o espaço ordenado e sistemático das letras pretas num fundo branco - permite aos leitores afastarem-se do autor. Estas características da imprensa promovem uma ideologia do indíviduo crítico, lendo e pensando em isolamento, fora da rede das dependências políticas e religiosas.''17 Do outro lado, o escritor, ao criar a materialidade da palavra impressa, estável, duaradoira, em contraposição à evanescência da palavra oral, vê afirmado o seu estatuto de autoridade. A imprensa constitui os indivíduos como sujeitos, entidades estáveis e fixas. A história da imprensa é também a história do sujeito tal como foi sendo concebido pela modernidade.

As comunicações electrónicas podem ser compreeendidas, e são-no frequentemente, dentro do quadro conceptual da imprensa ou da modernidade, apenas como melhorias de eficiência. Toda a evolução dos média, dos sinais de fumo aos satélites da comunicação, seria entendida a partir do mesmo princípio, o de expandir a voz humana. A teoria subjacente seria a mesma, a do indivíduo racional autónomo.18

A proposta teórica de Poster de com o modo de informação entender as linguagens instauradas electronicamente é radicalmente contrária à teoria tradicional dos média, comum também ao marxismo e à teoria critica. O hiato existente na imprensa entre autor e leitor também existe na dimensão electrónica, com emissor e receptores, mas a natureza dessa distância altera-se. ``No modo de informação, a distância entre o o orador e o ouvinte transtorna os limites da auto identidade do sujeito. A combinação destas distâncias com o imediatismo temporal produzida pelas comunicações electrónicas, tanto os afasta como os aproxima. Estas distâncias opostas - opostas do ponto de vista da cumtura impressa - reconfiguram a posição do indivíduo de forma tão drástica que a figura do self, fixa no tempo e no espaço, capaz de exercer controlo cognitivo sobre os objectos circundantes, não consegue ser mantida. A linguagem já não representa a realidade, já não é uma ferramenta instrumental que realce a racionalidade instrumental do indivíduo: a linguagem torna-se, ou melhor, reconfigura a realidade. E, ao fazê-lo, o sujeito é interpelado através da linguagem e não pode escapar facilmente ao reconheci mento dessa interpelação. As comunidades electrónicas removem sistematicamente os pontos fixos e estáveis, as fundações que eram essenciais à teoria moderna''.19

Mark Poster analisa o mundo da publicidade televisiva, aliás no seguimento das análises de Jean Baudrillard, para mostrar como as perspectivas tradicionais são insuficientes na análise. De um ponto de vista humanista, os 'spots' publicitários são enganadores, ilusórios, induzem a decisões irracionais por parte dos consumidores. Vistos pelo marketing são poderosos instrumentos para criarem uma procura efectiva para o produto. Olhados de uma cultura democrática, ``minam o pensamento independente do eleitorado, diminuindo a sua capacidade para distinguir o verdadeiro do falso, o real do imaginário e estimulam um estado de passividade e indiferença''. Na perspectiva do marxismo, apenas estimulam falsas necessidades dos trabalhadores, alienadores da sua condição e desmotivadores do propósito revolucionário.20

Ora, segundo Poster, nenhuma destas perspectivas, apesar de válidas no seu âmbito, ``aborda o papel principal da publicidade televisiva na cultura contemporânea, nenhuma revela a estrutura alterada da linguagem dos anúncios e, mais importante, nenhuma dá atenção à relação entre a linguagem e a cultura na constituição de novas posições do sujeito, isto é, novos lugares na rede de comunicação social.''21 Claro que a publicidade televisiva pode ser olhada apenas como mais uma forma de comunicação unidireccional tal como acontece na imprensa e na rádio, onde um emissor emite para um receptor. Porém, ao contrário destes modos comunicativos unidireccionais, na publicidade televisiva não há possibilidade de uma intervenção, de um feedback, de uma resposta, mesmo a posteriori. Os anúncios de publicidade criam uma realidade própria, uma hiper-realidade, misturam facilmente imagens, som e escrita, permitem a introdução da voz-off da autoridade. As referências e as associações que os anúncios publicitários criam são autónomos face à realidade que pretendem influenciar, hábitos de consumo, mudanças de atitude e outros.22

Mediante a dissociação com a realidade, os anúncios permitem uma identificação do espectador com a mensagem e os artigos que veiculam, ao nível de emoções e desejos. O que se pretende justamente é que com essa dissociação se alcance uma integração e identificação do expectador com o produto anunciado. As fronteiras do real quotidiano desaparecem no anúncio, e assim tudo se torna possível. No reino da publicidade as mais ínfimas hipóteses, as probabilidades mínimas, ficam ao alcance de qualquer um, mediante um simples gesto de consumo. Desta análise, tira Poster a conclusão de que linguagem tradicional, referencial do mundo real se altera. ``O paradigma linguístico realista é abalado. O anúncio televisivo trabalha com simulacros, com invenções e com imaginações.''23 Só que o desfasamento da realidade da vida quotidiana e da realidade simulada nos anúncios, em que o espectador se vê mergulhado, não é esporádico, mas um fenómeno contínuo, ``todos os dias e por longas horas''.

Ainda no seguimento de Baudrillard, Poster considera que o mundo dos bens é cada vez mais atravessado de múltiplas significações e interpretações. ``Os bens são afastados do domínio da teoria económica ou comentário e visto como um código complexo. A chave para o consumo não e uma tendência irracional para uma ostentação, mas a inserção dos indivíduos numa relação de comunicação na qual recebem mensagens sob a forma de artigos para consumo.''24 O referente do anúncio não é um objecto de compra ou consumo, não é objectivo, mas um simulacro criado pelo próprio anúncio.

Ainda que Poster não ligue directamente o conceito baudrillardiano de simulacro à análise que faz das bases de dados é provavelmente nestas que melhor se descortina o mundo hiper-real dos simulacros.25 Os objectos de uma base de dados são segmentados em múltiplas entradas que se combinam e recombinam em sínteses diversas, e às quais eles se reduzem. Linguisticamente as bases de dados são de extrema pobreza narrativa, ``estruturas de informação intrinsecamente limitadas e restritas''.26 A experiência particular, a percepção de um qualquer objecto do mundo quotidiano, é reduzida a entradas ``que podem ser caracterizadas como caricaturas''. Mas à pobreza linguística corresponde na proporção inversa uma operacionalidade tremenda na classificação e na velocidade de encontrar a informação.

De modo algum se pode falar de uma verosimilhança entre o objecto da base de dados e o possível correspondente do mundo da experiência inidividual. Tratam-se de identidades diferentes. Ora é na constituição das identidades assentes em bases de dados que Poster liga o tema à análise que Foucault faz do panopticon. Tal como o mecanismo prisional de vigilância determinava o comportamento e a identidade dos reclusos, assim também as bases de dados, de que mais e mais se socorrem as instituições públicas, determinam as identidades dos indivíduos com que estas instituições tratam. ''Os indivíduos são 'conhecidos' das bases de dados, têm 'personalidades' distintas e em relação às quais os computadores 'trratam-nos' de formas programadas. Estas identidades são pouco inocentes uma vez que podem afectar seriamente a vida do indivíduo (...). O indivíduo é transformado em relação à sua identidade e é consituído na base de dados. Simplesmente porque esta identidade não tem uma íntima relação com a consicência interna do indivíduo, com os seus atributos definidos, não minimiza de forma alguma a sua eficácia. Com a disseminação das bases de dados, as tecnologias da comunicação invadem o espaço social e multiplicam a identidade dos indivíduos, independentemente da sua vontade e intenção, sentimento ou cognição.''27

As bases de dados constituem, segundo Poster, como um super-panopticon, na medida em que ``operam de forma contínua, sistemática e sub-reptícia, acumulando informação acerca dos indivíduos e compondo-os em perfis.''28 Neste caso a vigilância não depende de qualquer tipo especial de arquitectura, antes exerce-se no decorrer da vida normal e quotidiana dos indivíduos. O super-panopticon não interfere com o indivíduo, não o constrange ou o limita nos seus movimentos. O indivíduo é, de certo modo, inteiramente livre. O que o super-panopticon faz é registar e tratar informaticamente os rastos que a utilização dos meios electrónicos deixa atrás de si, utilização progressiva uma vez que facilita a vida social, económica e institucional do próprio indivíduo. A enorme capacidade de armazenamento de dados e a extrema facilidade de transmissão desses dados entre computadores assegura a eficiência da vigilância imperceptível e indolor do super-panopticon.

As bases de dados como discurso

O mais interessante na abordagem que Poster faz das bases de dados, no entanto, é o entendimento que faz delas como discurso no sentido foucaultiano.29 ``As bases de dados são discurso, em primeira instância, porque afectam a constituição do sujeito.''30 Tal como o discurso também a base de dados é entendida, não como expressão ou acção de um sujeito prévio, mas como positividade constituinte de sujeitos. A base de dados liberta-se do seu criador ou utilizador para se tornar numa realidade autónoma que cresce e estende o seu poder sobre os próprios utilizadores.31

Ao entender as bases de dados como discurso Poster demarca-se da abordagem que liberais e marxistas fazem das bases de dados, nomeadamente como instrumentos de dominação de um governo central burocrático ou como factores da disputa no controlo dos meios de produção. Para Poster a limitação destas abordagens reside no facto de encararem o campo social principalmente como campo de acção, descurando a linguagem como factor enformante da cultura e da sociedade. ``Como forma de linguagem, as bases de dados têm efeitos sociais apropriados à linguagem, ainda que também tenham, certamente, relações diversas com formas de acção.''32

Entendidas as bases de dados como discurso, objectivas, e por isso anteriores aos sujeitos que criam, dever-se-á proceder por um lado à abstracção da sua formação e até da sua pertença. Desde Saussure que a estrutura linguística, a língua, é vista como elemento social anterior à fala, ao uso individual da linguagem. Mas a língua também não existe sem as falas que a realizam e de algum modo a modificam. O que interessa aqui, porém, são as regras estruturantes da língua, as regras de formação e de transformação. ``Se considerarmos as bases de dados como um exemplo da noção foucaultiana de discurso, encaramo-las como 'exterioridades', e não como constituídas pelos agentes, e procuramos nas suas 'regras de formação' a chave para o modo de constituição dos indivíduos.''33

A estrutura das bases de dados é de listas ``organizadas, digitalizadas com o objectivo de tirar partido da velocidade electrónica dos computadores''. Mas cada elemento ou registo destas listas é classificado por múltiplas entradas ou campos, o que permite a ordenação das listas por cada um destes campos e, assim, ter tantas listas - e modos de busca! - quantos os campos em que o elemento é classificado. Da alteração da ordenação por campos resultam diferentes perfis dos elementos integrantes da base de dados. Pode-se ordenar por número de entrada, nome, diversos campos de morada, rua, bairro, cidade, idade, sexo, mas também por rendimentos, hábitos de consumo, e quaisquer transacções electrónicas, de comunicação ou de compra. Basta cruzar uma procura por idade e rendimentos, por exemplo, para saber exactamente quais as idades a que correspondem os maiores rendimentos, ou cruzar moradas e hábitos de consumo para extrair da base de dados informações relevantes de um ponto de vista socio-geográfico. Se a facilidade e a velocidade de acesso a uma informação são as características primeiras de uma base de dados electrónica, não deixam também de ser relevantes as características da sua portabilidade, isto é o facto de serem facilmente reproduzidas, copiadas e enviadas ad libitum para qualquer outro sistema informático (a expansão da Internet, veio a simplificar e a incrementar enormemente essa portabilidade), a sua expansão e, em particular, a faculdade de serem cruzadas com outras bases de dados.

Consoante a finalidade e a estrutura da base de dados assim se altera o perfil do indivíduo registado. ``Estas listas electrónicas tornam-se identidades sociais adicionais à medida que cada indivíduo é constituído pelo computador como agente social, variando em função da base de dados em causa.''34 Sendo apanhado ou introduzido em diferentes bases de dados os indivíduos vão ganhando perfis específicos. O mesmo indivíduo tem seguramente um perfil diferente enquanto cliente de um supermercado na base de dados que é possível aí fazer dele, nomeadamente através do pagamento electrónico, que enquanto sócio de um clube de futebol. As bases de dados constituem 'grelhas de especificação' que são uma das regras de formaçnotar e conotar. As bases de dados são apenas máquinas performativas, mecanismos de produção de identidades recuperáveis.''36

Acrescente-se ainda que o aspecto discursivo das bases de dados sai mais reforçado na medida em que são os próprios indivíduos que vão alimentando as bases de dados que os enformam enquanto sujeitos. é tal como no modelo saussureano, em que a língua se reforça mediante o uso que dela se faz na fala. Quanto mais falada for uma língua tanto maior é a sua independência face às falas individuais. No que concerne às bases de dados são os próprios indivíduos que precisam e lucram com sua a utilização, deixando com isso novos traços electrónicos automaticamente introduzidos e que, assim, as completam e ao mesmo tempo diversificam. A vida contemporânea requer cada vez mais a utilização dos computadores e da sua ligação em rede, possibilitando dessa forma a constituição de bases de dados maiores. Quem utiliza um telemóvel, usa um cartão electrónico, passa pela via verde das auto-estradas, está voluntariamente a contribuir para a alimentação da base de dados, isto é do discurso que o enforma enquanto sujeito. é, aliás deste modo, que se esboroa a fronteira entre o público e o privado. Os actos privados dos indivíduos, com quem fala ao telefone, quanto tempo, o que compra, quando e onde, passam a constar de bases de dados. O que, diga-se, representa o triunfo do super-panopticon. ``A indesejada vigilância da escolha individual torna-se parte de uma realidade discursiva através da participação voluntária do indivíduo vigiado. Nesta situação, o jogo de poder e discurso tem uma configuração singular, uma vez que o vigiado é quem fornece a informação necessária para a vigilância.''37

Modo de informação e resistência

Dito isto, falta perguntar em que é que o modo de informação, depois de analisar as estruturas discursivas de dominação, e em particular as bases de dados como super-panopticon, pode despoletar o potencial libertador de todo e qualquer padrão de experiência linguística. Com efeito, alinhando o modo de informação com o modo de produção marxista, há como que um dever de oferecer, ou pelo menos de descortinar, uma saída para a dominação que os meios electrónicos de comunicação, nomeadamente as bases de dados, exercem enquanto discursos configuradores da própria subjectividade. Poster rejeita a solução de Lyotard, feita em A Condição Pós-Moderna de uma acessibilidade plena e universal às bases de dados. E rejeita-a pelo princípio teórico de que parte, o de que as bases de dados são constituintes de sujeitos. A solução de Lyotard ainda é moderna, já que ``a tese da liberalização das bases de dados pressupõe a figura social do sujeito centrado e autónomo que as bases de dados rejeitam.'' 38 Ora a posição verdadeiramente pós-moderna, a assumida por Poster, é de que os sujeitos se fazem e se refazem pelos discursos e em particular pelos discursos extremamente performativos das bases de dados. ``A função cultural das bases de dados não é tanto a instituição de estruturas de poder dominante contra o indivíduo, mas a restauração da própria natureza do indivíduo.''39

A proposta libertadora de Poster assenta na multiplicidade de sujeitos que as bases de dados efectivamente criam. Ao contrário do panopticon, que segundo Foucault criava ``o indivíduo moderno, 'interiorizado', consciente da sua auto-determinação'', o super-panopticon gera ''indivíduos com identidades dispersas, identidades de que eles podem nem sequer ter consciência. O escândalo do super-panopticon é talvez a violação flagrante do importante princípio do indivíduo moderno, da sua identidade centrada, 'subjectivada'.''40 é justamente com base nas novas identidades que se podem gerar movimentos de resistência. A resistência tem de partir não da concepção moderna do indivíduo autónomo, mas da constatação das identidades sempre em mutação que o novo mundo da comunicação electrónica contantemente gera. ``A via para uma maior emancipação deve passar pelas formações do sujeito do modo de informação e não pelas da precedente era moderna e da sua cultura, em rápido declínio.''41

é justamente nos movimentos que surgem a partir das novas identidades, nas comunidades de algum modo virtuais, que surge a possibilidade de resistência às estruturas de dominação. A desconstrução da racionalidade autónoma típica da modernidade e consequente fragmentação de identidades pelas comunicações electronicamente mediadas constituem desde logo, segundo Poster, uma base para a crítica das formas de dominação que preponderantemente elas próprias geram.42 Embora haja, com a comunicação electrónica, um fortalecimento das estruturas modernas, ele ocorre ao mesmo tempo que surgem intersticíos entre essas estruturas, intersticíos que só emergem devido às novas tecnologias. Poster refere o impacte político da comunicação eletrónica na ''propagação dos movimentos de protesto exteriores ao paradigma modernista, algumas posições feministas e étnicas, certos aspectos de algumas políticas gays e lésbicas, certo tipo de preocupações ecológicas e anti-nucleares.''43 Existe aqui um questionamento da ideologia moderna e uma alteração dos termos da discussão política.

Resumindo. O potencial libertador do modo de informação está fundamentalmente na intelecção da fragmentação do sujeito. ``Esclarece o modo de ver o self como múltiplo, mutável, fragmentado, em resumo como fazendo um projecto da sua própria instituição.''44 Ora esse esclarecimento permite o desafio das práticas e discursos tradicionais de dominação. ``Esta possibilidade desafia todos aqueles discursos e práticas que poderiam rstringir este processo, que poderiam fixar e estabilizar a identidade, fossem estes fascistas que assentam as suas ideias nas teorias de raça essencialistas, liberais que se baseiam na razão ou socialistas que confiam no trabalho. Uma compreensão pós-estruturalista das novas tecnologias da comunicação levanta a possibilidade de uma cultura e sociedade pós-moderna que ameaça a autoridade como a definição da realidade pelo autor.''45



Notas de rodapé

... Poster1
Texto publicado em João Carlos Correia, org., Comunicação e Poder, Universidade da Beira Interior, 2001, pp. 345-363
...os-moderna.'' 2
- A Segunda Era dos Média, p.71.
... informação!).3
- ``The Mode of Information'' in Critical Theory and Poststructuralism, p. 130.
...istica.4
- ibidem.
... tecnologias.5
- ibidem, p. 134
... produção.6
- ``seeking to undermine the theoretical hegemony of the latter [mode od production] if only to support its final purposes''. Ibidem, p. 131.
... comunicação.7
- ``The mode of information designates social relations mediated by electronic communciation systems, which constitute new patterns of language''. Ibidem, p. 126.
... artigos8
- ``Foucault, Poststructuralism, Mode of Information'' em Critical Theory and Poststructuralism, p. 118, e ``Bases de dados como discurso'' em A Segunda Era dos Média, p. 96.
... discurso''.9
- Título de uma das partes do artigo ``Bases de dados como discurso'' em A Segunda Era dos Média, p. 98-100.
... sujeito.''10
- ibidem, p. 98.
... moderna.11
- ``As a means of punishment and reform of criminals, the panopticon was a failure. As a means of control and discipline of a population, it was a success. (...) Its success as a tool of the administration of large institutions ensured itss widespread use in schools, asylums, workplaces, the military and so forth.'' ``Foucault, Poststructuralism, Mode of Information''in Critical Theory and Poststructuralism, p. 121
... poder.''12
- ``Bases de dados como discurso'', p. 99.
...cado.13
- ``For what characterizes advanced capitalism is precisely a sudden explosion of multiple types of linguistic experience at every point in daily life. The act of production, for one, is increasingly defined by computer-regulated machines. The world of leisure, as well, increasingly concerns the manipulation of information processors. Social controlsystems are dependent on vast amounts of stored information and on organizations that can manipulate. Knowdege about the social worls is indirectly transmitted from one person to another through the mediation of electronic devices.'' in ''Foucault, Poststructuralism, and the Mode of Information'', p.109-110
... média.14
- ``to avoid absolescence critical theory must account for the line of new languages that stretches from body signals, grunts, spoken language, and writing to print, the telegraph, radio, film, television, computers, and other new linguistic technologies. Theses new phenomena constitute a rupture with traditional linguistic experience, and they make possible new forms of communicative relationships.'' ibidem.
...onomo''.15
- ``O modo de informação e a pós-modernidade'', p. 71
...avel''.16
- ibidem.
... religiosas.''17
- ibidem, p. 72.
...onomo.18
- ``As teorias que olham para as tecnologias de comunicação puramente como uma questão de eficiência desencorajam novas questões que são geradas pelas comunicações electrónicas, colocando-as ao nível dos velhos paradigmas gerados para teorizar a cultura oral e impressa. Quando as comunicações electrónicas são vistas como permitindo simplesmente um prolongamento espacial e temporal, o investigador reafirma a figura do indíviduo racional autónomo e reinstala a estabilidade do sujeito'', ibidem, p. 73
... moderna''.19
- ibidem, p. 74.
...ario.20
- ibidem, p. 75.
... social.''21
- ibidem, p. 75.
... outros.22
- ``Com grande flexibilidade, a publicidade constrói uma realidade onde as coisas são colocadas em justaposições que violam as regras do dia-a-dia. Em particular, os anúncios televisivos associam significados, conotações e modos de estar que são inapropriados à realidade, sujeitos a objecções em comunicações dialógicas, mas efectivas ao nível do desejo, do insconsciente e do imaginário. A publicidade televisiva constitui um istema linguístico que deixa de fora o referente, o simbólico e o real, trabalhando ao invés, com cadeias de significantes e significados'' Ibidem.
...oes.''23
- ibidem, p. 76.
... consumo.''24
- ibidem, p. 77.
... simulacros.25
- Seguindo a definição do próprio Baudrillard: ``O real é produzido a partir de dcélulas miniaturizadas de matrizes e de memórias, de modelos de comando - e pode ser reproduzido um número indefinido de vezes a partir daí. é um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera.'' Simulacros e Simulação, Lisboa: Relógio d'Água, 1991, p.8
... restritas''.26
- ``O modo de informação e a pós-modernidade'', p. 80.
... cognição.''27
- ibidem, p. 81 e 82.
... perfis.''28
- ibidem.
... foucaultiano.29
- ``Bases de dados como discurso, ou interpelações electrónicas'' em A Segunda Era dos Média, pp. 93-109. ``Neste capítulo salientarei o modo como as bases de dados informáticas funcionam como discurso, no sentido foucaultiano do termo - ou seja, o modo como constituem sujeitos fora da imediatez da consciência.'' p. 93.
... sujeito.''30
- ibidem, p. 100.
... utilizadores.31
- ``Na sua forma electrónica e digital, a base de dados pode perfeitamente ser transferida no espaço, indefinidamente preservada no tempo; ela pode inclusivamete durar para sempre em qualquer parte. Ao contrário da linguagem oral, a base de dados não é apenas alheia a qualquer presença autoral, mas é da autoria de tantas mãos que escarnece do princípio do autor como autoridade.'' ibidem, p. 100.
... acção.''32
- ibidem, p. 94.
...iduos.''33
- ibidem, p. 102.
... causa.''34
- ibidem, p. 103.
... discurso.35
- ibidem, p. 103 e 104.
...aveis.''36
- ibidem, p. 104.
...ancia.''37
- ibidem, p. 102.
... rejeitam.''38
- ibidem, p. 108. ``Como estratégia de resistência este argumento não toma em consideração o efeito performativo do discurso das bases de dados, a sua capacidade de constituir sujeitos. A posição de Lyotard implica a recuperação, pelos sujeitos `reais', do `poder' inerente às bases de dados.''
...iduo.''39
- ibidem.
... 'subjectivada'.''40
- ibidem.
...inio.''41
- ibidem. p. 109.
... geram.42
- ``O que não significa que toda a emissão desta comunicação tecnológica é automaticamnte revolucionária; a grande preponderância destas comunicações trabalha para solidificar a sociedade e a cultura existente. Mas existe uma forma de entender os eus impactes que revelam o seu potencial para a mudança estrutural.'' ``O modo de informação e a pós-modernidade'', p. 90.
... anti-nucleares.''43
- ibidem. p. 90.
... instituição.''44
- ibidem. p. 91.
... autor.''45
- ibidem. p. 91.