MODERNIDADE E INSTRUMENTALIZAÇÃO DA LINGUAGEM

Sobre a expressão do conhecimento e a procura do lugar da verdade


Gil Baptista Ferreira, Universidade da Beira Interior

Julho de 2000


As querelas alemãs

Ao longo do século XX, fruto da tradição iluminista mais clássica do conhecimento, duas preocupações distintas começaram a opor-se com maior ênfase, num processo que, com raízes no século anterior, se estendeu em múltiplos aspectos até aos nossos dias: de um lado a posição positivista, do outro a teoria crítica. A cisão entre estas posições coincidiria, além do mais, largamente com a cisão entre os campos científicos americano e europeu. Neste sentido, também – e sobretudo – nos círculos alemães se desenvolveu o debate filosófico e científico, acentuado a partir de 1961 com a célebre conferência de Tübingen, na Alemanha.

Max Horkheimer, num conjunto de ensaios escritos nos anos trinta, apresentara e destinguira já a teoria crítica de outras noções de teoria suas contemporâneas, e atacara então o positivismo lógico do Círculo de Viena. Sobre a teoria tradicional e a teoria crítica, dizia Horkheimer: «A teoria no sentido tradicional, estabelecida por Descartes e por todo o lado praticada por ciências especializadas, organiza a experiência à luz de questões situadas fora da vida social actual. O resultado do trabalho dessas disciplinas contém informação numa forma que a torna utilizável em cada situação particular, para o maior número possível de propósitos. Mas a génese social dos problemas, as reais situações em que a ciência se aplicaria, e os propósitos a que se destinaria, são todos olhados pela ciência como externos a si.» 1 Horkheimer apresentaria como alternativa a teoria crítica da sociedade, que «tem por objecto os homens como produtores da própria forma de vida na sua totalidade. As situações reais que são o ponto de partida da ciência não são olhadas como simples dados (data) para serem verificados e previstos em acordo com as leis de probabilidades.»2 Como na imagem de Kafka, não mais corremos atrás dos factos, como principiantes de patinagem em lugar impróprio; recorrendo a outra metáfora kafkiana, antes somos livres e em segurança, porque presos a uma cadeia bastante longa que «permite explorar livremente todos os espaços terrestres, mas não tão longa que possa[mos] ser atraído[s] para além das fronteiras da terra.»3 Cada dado (datum) dependerá agora não da natureza isolada, mas também do poder do homem sobre ela. E assim, afirmava então Horkheimer, os objectos, os tipos de percepção, as questões colocadas e os significados percepcionados, tudo está dependente da actividade humana e do grau do seu poder.

Se já no período em que Horkheimer escreveu tais textos os assumiu como uma teoria crítica, distinta das outras críticas, no entanto não foram alvo de uma controvérsia genuína, dado o contexto de exílio em que se encontravam tanto o autor como os membros da depois chamada Escola de Frankfurt. E é assim que, passadas pouco mais de duas décadas, no ano de 1961 em Tübingen, Adorno, regressado do exílio americano, retoma a controvérsia. Como ponto de partida, Adorno apresenta os positivistas como defendendo «um conceito rigoroso de validade (gueltigkeit) científica objectiva, acolhida pela filosofia, enquanto que os dialécticos, encorajados nesse sentido pela tradição filosófica, procedem de maneira especulativa.» E logo acusa: «a linguagem corrente modificou o conceito de ‘especulação’, de forma a invertê-lo completamente. Não é mais interpretado, como em Hegel, no sentido de uma autorreflexão crítica do entendimento, da sua limitação e da sua autocorrecção: chegamos, sem dar conta, a interpretá-lo no sentido popular do termo, que representa o que especula como o pensador irresponsável»;4 aquele que, não se baseando na autocrítica lógica, não se confronta com as coisas.5

Contudo, se o positivismo é o alvo mais visado nesta disputa, difícil é obter uma definição clara dos elementos que o compõem, de forma unívoca. O positivismo como corrente não é uma entidade estática, possui um dinamismo próprio que o leva a tomar diferentes formas nos vários contextos históricos. Por essa razão, o próprio Karl Popper – apresentado como o contendor positivista na querela - não se considerava positivista, sendo mesmo crítico do Círculo de Viena, de que aliás nunca seria membro. Criticou de forma incisiva os positivistas lógicos, e a sua classificação nessa escola não é possível de maneira nenhuma.6 Mas o positivismo lógico é apenas uma das variantes – decerto a mais importante deste século – de positivismo que, incorporando racionalismo e empirismo, reflecte sobre os diversos domínios. A este respeito, parece ainda claro que Popper tinha uma muito própria noção de positivismo, a que, todavia, os seus opositores nesta disputa não aludiram de forma tão concreta e dirigida, como o fizeram em relação ao positivismo lógico.7 É neste sentido que, num momento da sua comunicação, Adorno afirma ser a teoria de Popper mais leve que o positivismo corrente, reportando-se então a nomes como Hans Albert. Como Adorno reconhece, Popper não se refere de forma irreflectida à neutralidade axiológica e, como veremos de seguida (contrariamente ao positivismo corrente), confere mesmo importância aos sistemas de valores presentes em cada época.8


O conhecimento da mais pequena coisa

A teoria de conhecimento de Karl Popper foi apresentada em Tübingen sob a forma de 27 teses conducentes a uma proposição, numa formalmente assumida preocupação de simplicidade, rigor e método. Enunciava assim Popper um método científico, com as diversas etapas estruturadas em termos lógicos, cuja pretensão inicial ao nível de conhecimento era a resolução de problemas. Avançou então com uma tese principal, que, no essencial, consistia em colocar sucessivamente à prova, tentando refutar, tentativas de solução dos problemas. Este colocar à prova era, assim, uma crítica factual (Sachlich) e, a partir dela, toda a crítica se constituiria em tentativas de refutação.9 O crescimento do conhecimento, diz Popper noutro momento, seria «o resultado de um processo muito semelhante ao que Darwin designou por “selecção natural”, aqui uma selecção natural das hipóteses. O nosso conhecimento consiste sempre em hipóteses cuja aptidão (comparativa) se revela durante a luta pela existência, uma luta competitiva que elimina as hipóteses inadequadas.»10

É neste sentido que Popper afirma que «o nosso saber em mais não consiste que em sugestões provisórias de solução», até que uma crítica factual refute o que até aí era conhecimento. A forma de justificação é assim a resistência dos nossos ensaios de solução à crítica – a uma crítica objectiva, efectuada com instrumentos lógicos. Note-se ainda que tudo o que não for acessível à crítica factual é eliminado como não científico, mesmo que apenas provisoriamente.11 Entramos pois, embora de modo diverso, no famoso e já antes abordado postulado de clareza wittgensteiniana: de novo é válida a proposição «Tudo o que pode de todo ser pensado, pode ser pensado com clareza. Tudo o que se pode exprimir, pode-se exprimir com clareza.»12 Um postulado em que o que não tiver correspondência sensível, ou antes, o que não for passível de sujeição à crítica factual, não pode ser expresso com clareza. É a evidência, nesta perspectiva, que talha o discurso verdadeiro e eficaz, consagrado sobretudo através da construção lógica, e válido para as circunstâncias possíveis e para os indivíduos existentes, numa dada sociedade.

Karl Popper apresenta assim um «relativismo universal» para o conhecimento, um relativismo histórico sem uma verdade objectiva, mas apenas com verdades válidas para cada século. No lugar de uma verdade objectiva como resultado, coloca Popper a objectividade científica, sustentada por uma tradição crítica que se instala em torno de dogmas que prevalecem, e marcada pela série de condições sociais e políticas que a tornam possível.13 É aqui que afirma Popper (o que o próprio Adorno realça) a importância dos valores, presentes de forma lógica no processo de conhecimento: «a ausência de juízos de valores é em si mesma um valor, e a exigência de uma ausência de juízo de valor é um verdadeiro paradoxo.»14

Mas o debate inicia-se verdadeiramente quando Adorno passa também ele a caracterizar o positivismo, reactualizando a denúncia da natureza objectivada e da razão instrumental. Com ironia, afirma que, para quem as contradições são anátemas, o positivismo é vítima inconsciente de contradição interna, na sua própria orientação fundamental: «sonha com uma objectividade extrema, purgada de toda a projecção subjectiva», contudo não hesita em recorrer à «particularidade de uma razão instrumental puramente subjectiva.»15 Trata-se de uma crítica que, abarcando Carnap, se estende a Wittgenstein (do Tractatus, sobretudo), que acusa de criar uma tal tensão na pretensão de objectividade no espírito científico, que o resultado mais não foi que «esse paradoxo filosófico que constitui a aura wittgensteiniana».16 Para Adorno, simplesmente, todo o objectivismo que acompanhou os movimentos iluministas teve como contraponto um subjectivismo latente17 – um inevitável reductoi as hominem, cuja crítica e refutação que viriam a constituir a versão epistemológica da sua Dialéctica Negativa.

Para além das evidentes diferenças de estilo (uma dimensão lógico-instrumental da escrita em oposição à interpretação dos textos e à dimensão cultural e histórica dos problemas), a diferença entre perspectivas é essencial ao nível dos argumentos: e assim, as representações wittgensteinianas não podem ser abordadas de maneira coerente. Possuindo regras, como um jogo, que valem tão só em si mesmas como um momento no interior da realidade - como um facto social - a linguagem separa-se de tudo o que não é dado por esse facto, e a reflexão não poderá ultrapassar esse momento do mundo, a que apenas temos acesso pela linguagem. Isto é, a linguagem forma um contexto imanentemente fechado, através do qual são mediatizados os momentos não linguísticos do conhecimento, e entre eles os dados sensíveis e evidentes.18 A este propósito, Adorno aponta uma essencial contradição latente no apriorismo linguístico, que reconhece em Wittgenstein, quando este diz que tudo o que pode ser pensado o pode ser com clareza. Observa que decerto há estados de coisas que são algo menos que claros, por vezes até mesmo confusos: «Nada garante que eles [estados de coisas] se deixem exprimir com clareza.»19 É legítimo, no entanto, que a expressão se venha a adequar à coisa – que possamos falar dela – fazendo-lhe justiça. E aí reside a contradição wittgensteiniana: muitas vezes esse desejo de clareza não é satisfeito senão gradualmente, e mesmo aí não com a clareza imediata que a expressão exigia no Tractatus.20

Esta situação, forçosamente assimétrica, desenha-se em torno de um outro princípio: a posição adorniana defende que é a reflexão sobre a posição do conhecimento social, no interior do que ele mesmo (conhecimento) conhece, que permite ultrapassar o estádio da sistematização pura e simples. Também no Tractatus, Wittgenstein afirmara que a proposição mais simples, a proposição elementar, define a existência de um estado de coisas, fazendo eco do dogma cartesiano que defendia ser o mais simples mais verdadeiro. Uma vez mais, neste “confronto”, simplicidade é para os cientistas – e também Popper retoma este valor na quinta tese da sua exposição -,21 um importante critério valorativo no processo de conhecimento, uma virtude científica. Ora, fora essa exigência de sistematização e de simplicidade, apartada da realidade, que obrigara Wittgenstein ao paradoxo abertamente expresso na sua fase posterior (e de que demos conta em secções anteriores), depois de testemunhar como a formalização objectiva não pode ter a última palavra, ainda que sendo essa formalização “moldada” socialmente porque sancionada pela norma. Adorno exprime por isso a superioridade de Wittgenstein sobre os positivistas do Círculo de Viena: nesse momento, «o lógico apercebe-se do limite da lógica.»22

Adorno coloca então o problema em termos opostos. Existe algo nas formas da linguagem que escapa aos positivistas, e escapa-lhes por não estar inteiramente no dado factual (pedra de toque da crítica metodológica defendida por Popper, para além de essencial ao «jogo de linguagem» wittgensteiniano), embora esteja na linguagem. Quanto mais a linguagem se limita de forma estrita ao dado factual, mais ela se destaca da «significação, para adoptar qualquer coisa como uma expressão».23 Por outras palavras, «literalidade e precisão não são a mesma coisa, vão antes em sentido contrário.»24 Em tal processo, tornar-se-á, decerto, cada expressão quantificável e simplificada, apropriada para o conhecimento científico; «mas, se os teoremas sociais devem ser simples ou complexos, são os objectos que o decidem objectivamente.»25 O sentido que Adorno acusa a ciência de seguir mais não é que o de uma inteligibilidade universal e quase democrática das operações de conhecimento e das ideias. O método lógico de redução a elementos (de simplificação) a partir dos quais o social é passível de ser construído elimina virtualmente todas as contradições objectivas. Reina assim um entendimento tácito entre o elogio da vida simples e a preferência «anti-intelectual» pelo simples, como sendo o desejável para o pensamento.26

O ideal de objectividade científica defendido por Popper, em que para cada momento é aceite consensualmente pela crítica (factual) científica uma proposta tida como universal, é recusado por Adorno. O conhecimento das realidades sociais objectivas, e assim a sua representação pura, não pode em nenhum momento ser quantificável em termos de consenso objectivo. É que tal consenso objectivo é obtido em virtude de operações de pensamento mecânicas que, em acordo com o postulado da simplicidade, negam involuntariamente a complexidade de conceitos em proveito da extrema operacionalidade (estabelecendo uma relação que, como noutro momento diz Adorno, é semelhante à do ditador com os homens: «conhece-os na medida em que os pode manipular. O homem da ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las.»27 Ao assumir a simplicidade como um dever para o próprio pensamento, o método lógico de redução recorre a elementos a partir dos quais se eliminam virtualmente contradições. Refere-se Adorno à simplificação de que são alvo conceitos como alienação, reificação, funcionalidade e estruturalismo.28 O que traduz um processo em que ocorre desde logo a tentativa de dissolver a permanente e laboriosa tarefa da interpretação, assim convertida na identificação da essência das coisas sempre com o mesmo, onde, por fim, «o em si das coisas se converte em para ele»29 - numa elucidativa simetria das teses principais sobre a comunicabilidade da experiência.

Também Franz Kafka havia tido a percepção de como o conhecimento objectivo da mais ínfima das partículas não é tarefa fácil – mesmo com o recurso à mais sistematizada cientificidade. É o que nos mostra no conto breve chamado O Pião,30 onde narra a história do filósofo que «acreditava que o conhecimento de uma pequena coisa, qualquer que ela fosse, até, por exemplo, um pião girando, bastava para o conhecimento do universal», e cria ser desperdício a preocupação com grandes problemas. «Uma vez conhecida a mais pequena das coisas, estava tudo conhecido, e daí ele [filósofo] ocupar-se apenas com o pião a girar.» Só que não é tarefa fácil chegar a esse entendimento. Naquele decisivo e tão desejado momento, «davam-lhe náuseas, e a gritaria das crianças, que ele não ouvira até então e que, agora, de repente, se lhe enfiava pelos ouvidos, punha-o em fuga e lá ia ele a cambalear, qual pião lançado por desajeitado baraço.» É este o marco que encerra a compreensão dentro de determinados limites, mas que simultaneamente deixa algo em aberto: algo que pertence essencialmente (no sentido pleno do termo) à natureza das coisas. Era neste sentido que Gadamer citava H. Kuhn: «A lei é geral e por isso não pode fazer justiça a cada caso particular.»31 E acrescentava ainda como esta questão tão pouco depende, por exemplo, da codificação das leis: qualquer codificação é apenas possível porque as leis são em si mesmas, e pela sua essência, de carácter geral.32 O que nos indica uma conclusão: que, no plano da linguagem, todas as palavras são portadoras de sentidos virtuais, e só a experiência da sua representação consegue que se transformem em espaço de pura afirmação da linguagem. Ou ainda, como na oportuna expressão de Habermas, que «a imagem linguística do mundo ainda está entrosada com a ordem do mundo.»33


Tempos da informação

Interessará, neste momento e de forma (apenas por ora) sumária, reflectir o alvorecer da nova forma de comunicação que surge, agora, associada à sofreguidão pela verdade: a informação. A informação, antecipemos, que no espírito objectivo do tempo surge não só como valor mas sobretudo como imperativo, vem tocar, precisamente, num dos vértices que nos tem sido caro na nossa análise da linguagem, a comunicabilidade da experiência.

É no ensaio O Narrador que Walter Benjamin se refere ao bem sucedido advento da informação, a nova forma de comunicação na época moderna, pretensamente rigorosa e isenta. Que, contudo, coincide com a decadência da narrativa. Mas convirá, antes de mais, reter algumas palavras sobre a figura em extinção do narrador, tal como Benjamin no-lo apresenta: «o narrador vai colher aquilo que narra à experiência, seja própria ou relatada. E transforma-a por vezes em experiência daqueles que ouvem a sua história.»34 Isto é, detém uma experiência que é transfere convertendo-a em experiência daqueles que ouvem a história. O primeiro sinal da crise da narratividade é dado pelo advento do romance; ao nível da experiência (tão fundamental, recordemos, para esta concepção de pensamento e linguagem), o romancista é incomensuravelmente mais pobre. A produção do romance é feita na própria solidão do autor, a sua palavra não é já «tecida na substância da vida vivida», e o romancista perde a autoridade para se apresentar como exemplo. A experiência da leitura prescinde mesmo da figura romancista e, da experiência da leitura, não há já uma recordação identificável com a acção; assim se torna decisivamente mais pobre a experiência individual.

Com a eclosão da técnica moderna, simultaneamente alimentada e alimento da crescente exigência de conhecimento e rigor, surge uma nova forma de comunicação que, se com origens remotas, nunca encontrara ambiente (que analisaremos adiante) tão propício ao seu florescimento; essa forma de comunicação é a informação e o seu instrumento a imprensa.

Vimos já que a narratividade dispunha de uma autoridade intrínseca, que lhe vinha tanto da figura do narrador e da experiência da narração como da tradição; a sua autoridade era credível e não necessitava de verificação. Já a informação, contudo, tem que ser comprovada de imediato; para além de ter que ser verificável, provada, demonstrada e plausível, necessita ser compreensível em todos os seus aspectos – clara e simples, dir-se-ia. Por ser fornecida impregnada de explicações leva à interpretação unívoca e pretensamente exacta. Contrariamente, na decadente narrativa «o leitor tem a liberdade de interpretar as coisas como as entende e, desse modo, os temas narrados atingem uma amplitude que falta à informação.»35 Enquanto que a narrativa pede para ser lembrada, contada, interpretada e explorada repetidas vezes, sem perder nunca a sua força, a informação vive da actualidade e esgota-se nesse momento. Fruto de uma época de progresso económico e de técnica industrial, afirmava Valéry como o homem de então já não se dedicava a coisas que não pudesse abreviar;36 e era assim, de forma breve e imediata, que pretendia transmitir «o que há de puro ‘em si’ nas coisas»,37 através da informação ou do relato. Pureza das coisas que não estava ao alcance da narrativa, dizia Benjamin no capítulo IX d’ O Narrador: uma vez que «a narrativa tem marcadas as marcas do narrador, tal como o vaso de barro traz as marcas das mãos do oleiro que as moldou.»

Apercebemos desde já a emergência, neste momento da época moderna (primeira metade do nosso século), de uma forma de comunicação adequada aos novos tempos e às suas exigências: a informação como valor, a quantidade como preferível, o rigor conjugado com a clareza, e simplicidade e univocidade como imperativos. Tarefa que se nos afigura fundamental é, à luz do que da linguagem temos vindo a dizer, questionar a linguagem da actualidade e, intentando um dos principais objectivos deste trabalho, compreender as suas possibilidades comunicativas.


Episteme e experiência

Mas retomemos: uma das características fundamentais do estilo filosófico de Wittgenstein é a frequência com que coloca questões. Mais precisamente questões sem resposta, ou questões que em si mesmas são respostas. De um certo ponto de vista, as principais conclusões a tirar do confronto com as posições anteriores é que as questões da linguagem são infinitamente mais complicadas e as respostas mais flutuantes e complexas do que as haviam desejado os neo-positivistas, Karl Popper e o próprio Wittgenstein do Tractatus.

A superioridade essencial de Wittgenstein na sua fase posterior sobre a maior parte dos pensadores contemporâneos foi já aqui por vezes considerada, e advém justamente da percepção arguta da enorme complexidade dos problemas filosóficos em geral (e da linguagem em especial). Foi essa percepção que o conduziu a rejeitar como simplistas e redutoras todas as respostas clássicas, recusando-se a entrar na filosofia pela via habitual. Wittgenstein continuou, não obstante, convicto de que as soluções – mas tão só na medida em que são possíveis soluções - são simples, claras, completas e acessíveis a qualquer espírito preparado e atento. E aqui reside (mais) um paradoxo a flutuar sobre a sua obra, que passa por ser umas das mais difíceis e obscuras, conforme referimos inicialmente.

A análise das abordagens neo-positivistas de Frege e Russell, o positivismo de Popper e os dois momentos de Wittgenstein não forneceram à linguagem a autocompreensão para os seus problemas actuais, embora por razões diferentes. Apesar da sua força, observámos como a teoria da linguagem wittgensteiniana da última fase se mantém encerrada na dicotomia ‘sujeito-objecto’, uma característica do pensamento iluminista, mau grado a sua firme rejeição do cientificismo positivista. Ao perspectivarmos desse modo a nossa interpretação, não nos apercebemos do poder e da ubiquidade da linguagem e da própria história na nossa existência. A linguagem é vista como um objecto que comunica «significado», e o homem como o produtor de símbolos, sendo a linguagem o sistema com que domina os símbolos.

Mas já a rejeição desta dicotomia por parte de Gadamer permite uma concepção mais apropriada aos nossos propósitos: a interpretação em geral é interpretação linguística, e compreender é sempre experiência – na linguagem, uma vez que toda a compreensão é linguística.38 O alcance desta superação para o nosso estudo é incontornável, e será alvo de desenvolvimento posterior. Desde a Kant a Hegel, toda a filosofia idealista alemã havia legado a tese da identidade do sujeito e do objecto como pressuposto necessário para a existência da verdade. Isto fazia supor que o sujeito que se conhece a si próprio deve, segundo a concepção idealista, ser ele próprio pensado como idêntico ao absoluto: deve pois encerrar em si o conhecimento universal. Mas, deste modo, a consequência inevitável é a determinação de toda a relação à experiência a partir da episteme. O que Gadamer põe então em evidência é o obstáculo que consiste na crescente epistemologização da própria categoria de experiência: trata-se de «uma categoria de experiência (...) inteiramente orientada para a ciência e que não leva em conta, por consequência, a historicidade interna da experiência, pois o objectivo da ciência é o de objectivar a experiência para a despojar de todo o elemento histórico».39

Como é dito no trabalho conjunto de Adorno e Horkheimer, «a credulidade, a aversão à dúvida, a precipitação nas respostas, (...): todas estas atitudes e outras semelhantes terão impedido o feliz matrimónio do entendimento humano com a natureza das coisas, antes o ligando a vãos conceitos e experiências sem plano.»40 E experiência, como vimos anteriormente, não é um tipo de conhecimento fora da história, do tempo, abstracto e fora do espaço, onde uma consciência vazia e não localizada recebe percepções – antes é algo que acontece aos seres humanos possuidores de vida e de história. Pela ausência de plano e de localização no espaço e no tempo ocorreria a insidiosa mas simultaneamente irresistível acusação: «Um matemático não tem ar de coisa nenhuma; isto é, tem um ar inteligente de um modo tão geral que não faz nenhum sentido!», acusação proferida tão violenta quanto oportunamente por Walter, personagem desse vasto fresco da cultura ocidental que é O Homem Sem Qualidades de Robert Musil. Que explicita: «um matemático percebe tanto das coisas que lhe dizem respeito como as pessoas virão a perceber acerca dos prados, das galinhas e das vitelas quando as pílulas vitaminadas tiverem substituído a carne e o pão!»41

O positivismo moderno surge assim como arguente no momento do divórcio entre a exigência cientificista do saber (em que «não deve existir nenhum mistério, mas nem tampouco o desejo da sua revelação»42) e uma outra forma de procura da verdade, que rompe de forma evidente contra o destino factual e instrumental da Razão.43 Historicamente, esta clivagem teria atingido um momento de irreversibilidade a partir da I Guerra Mundial, momento em que, retomando o ensaio de Benjamin sobre o Narrador, ao fragor das novas máquinas de guerra que a técnica possibilitara apenas respondia a mudez dos homens, tão «mais pobres em experiência comunicável».44 Iniciava-se a dominação da actualidade pela técnica e pelo progresso, a destruição da experiência (ou, pelo menos, da experiência da experiência) e a consequente crise da narratividade, com a imposição de uma linguagem instrumental e epistémica como sendo a única aceitável.

É assim que em Tübingen se opõem dois conceitos de crítica: onde Popper entende um mecanismo racional para pôr à prova proposições gerais da ciência,45 Adorno entende a crítica e o desenvolvimento da realidade através do seu conhecimento, o que implica tomar em consideração a mediação social.46 Quatro anos antes, uma frase de Adorno - «incondicionalmente, a teoria é a crítica»47 - soara como uma chamada à necessidade de questionar a autoridade não questionada da indústria da ciência. De novo a partir de Musil - através de Ulrich, principal personagem do admirável O Homem sem Qualidades - colhemos a marca clara deste momento: «Ulrich recordava-se muito bem da maneira como a incerteza recuperara o seu lugar. Surgiam cada vez com mais frequência as declarações nas quais as pessoas que exercem uma profissão bastante incerta, poetas, críticos, mulheres, ou aqueles cuja vocação é formar novas gerações, se lamentavam de que a ciência pura era um veneno que corroía as grandes obras dos homens sem ser capaz de as recompor e apelavam para uma nova fé, para um regresso às fontes interiores, para um renovo espiritual e outras histórias do género.»48 A causa subentendida continua ainda hoje, naturalmente, a ser alvo de debate, mas para Ulrich era óbvia: «a ciência começava a passar de moda e o tipo de homem indefinido, que caracteriza a nossa época, principiava a impor-se.»49

Se a Teoria Crítica da Sociedade se assume ainda como uma das referências mais marcantes do pensamento social do nosso século, a sua posição é também incontornável no caso dos estudos da comunicação e da linguagem. A crítica que moveu à por si determinada indústria da cultura50 não deve de algum modo ser considerada como momento simplesmente acessório da reflexão social; para além disso é um contributo essencial para a posterior definição adorniana de uma estética da negatividade. Ora, é esta perspectiva que veremos profundamente enraizada, por seu lado, numa análise muito pessimista - realizada por diversos movimentos a que se convencionou agrupar sob o denominador de “modernismo” - da problemática da comunicação na sociedade moderna, onde a tónica foi de forma inequívoca colocada numa recusa dos processos de mercantilização das diversas instâncias culturais.

No complexo debate ainda em curso, as posições críticas então assumidas por esta corrente são decerto de discutível actualidade, como aliás até pela sua natureza dialéctica se afigura natural; contudo, tais posições não poderão deixar de constituir ponto de referência e sinal de aviso que não podem ser ignorados, sobretudo numa actualidade de incontornável configuração mediática.



Do debate sociável à mediação solitária

A universalização e massificação dos processos de comunicação, sobretudo a partir da introdução das novas técnicas industriais de reprodução, viria a levar a sociedade capitalista a um estado em que Jurgen Habermas diagnosticou a “desagregação do espaço público”. Com efeito, concluídos os processos de acumulação e de concentração de capital, os conflitos que começaram por explodir no mundo do trabalho alargaram-se ao universo político, e atingiram a opinião pública: a generalização dos conflitos de interesses, sob a forma de luta de classes, resulta na pulverização do espaço público.51

Em rigor, Habermas entende por espaço público «o domínio da nossa vida social onde pode formar-se algo como uma esfera pública»,52 e a sua dimensão institucional deve ser considerada em sentido amplo, uma vez que compreende todas as formas de mediação entre os particulares e o Estado; os seus órgãos são os que servem para que o público se comunique, função onde naturalmente os media (e a imprensa como primeiro grande medium moderno) assumem um papel decisivo.53 Habermas observou então a existência de uma autonomia privada, na qual se conjugam três estados do conceito de humanidade (que se pretendem estendidos a todos os homens), e que definem o sujeito enquanto ser humano: são eles o livre arbítrio, a comunhão de afecto e de formação. Subsiste nesse momento «uma emancipação que ainda ressoa quando se fala do puramente ou “simplesmente humano”, uma interioridade a desenvolver-se segundo leis próprias e livre de finalidades externas de qualquer espécie.»54

Neste contexto histórico em que Habermas situou a formação do conceito de “esfera pública”, restringido de forma explicita ao modelo liberal clássico da sociedade burguesa tal como se constituiu no século XVIII, a esfera pública pretendia, de forma progressiva, instaurar uma autoridade racional em última análise sobreposta à autoridade do Estado. A opinião pública surgia então como instância do ‘saber’ dos factos, em oposição à legitimidade do ‘querer’, esta a modalidade atribuída ao soberano. Aqui, a orientação era no sentido de um ideal de acessibilidade universal, de eliminação de privilégios e de legitimação racional.55 Ora, é o momento em que este ideal se revela minado por interesses particulares – o que é exemplificado por Habermas na comercialização da imprensa – que marca o surgimento de uma verdadeira indústria da consciência, que se exprime na formação de um falso consenso (manifestação da particularidade dos interesses capitalistas), em tudo oposto ao consenso livre e racional do ideal burguês clássico.

Assim, de forma progressiva, o espaço público autonomiza-se primeiro, e transforma-se depois, de modo a garantir a circulação generalizada da opinião.56 Até aí veículo da opinião produzida em espaços públicos de debate, de confronto e de convívio, a imprensa passa então a ser, pouco a pouco, produção de opinião em si mesma, mas opinião composta e recomposta em acordo com padrões predefinidos, sem outra função que a passiva acomodação ao público e a circulação generalizada, numa lógica em muito semelhante à das leis da mercadoria. Todo o trabalho de elaboração racional e colectiva, orientado pelos ideais iluministas, ficou reservado, de então em diante, a uma nova classe especializada: a dos profissionais da informação, demonstrada e plausível.

A função mediadora passa do público para aquelas instituições que, como as associações, se constituíram a partir da esfera privada ou, como os partidos, se constituíram a partir da esfera pública. No decurso deste processo, as instâncias proprietárias deste novo espaço preocupam-se em recorrer aos media mais favoráveis, «no sentido de obter do público mediatizado um assentimento ou ao menos uma tolerância.» Em suma, a referida publicidade «é desenvolvida como que do alto para criar uma aura de good will para certas posições.» Donde, «está rebentado o campo de ressonância de uma camada culta criada para usar publicamente a razão» e, desde então, é «a esfera pública [que] assume funções de propaganda»,57 difundindo através dos media uma “cultura de integração”. Ao mesmo tempo, o público perde o poder crítico sobre os produtores dos diversos discursos; os media captaram, pouco a pouco, e absorveram depois a maioria dos canais que tradicionalmente serviam para a produção e difusão da informação. Constituíram um espaço abstracto, anónimo e de ninguém, que substituiu o anterior espaço concreto da partilha intersubjectiva, próprio do debate intersubjectivo.58 Por outras palavras, é o «fim dos cenários interiores como redutos do imaginário, mas também como legitimação dos comportamentos»;59 o fim do homem iluminista orientado na sua formação e acção a partir da interior reflexão racional, desde agora substituído pelo sistema de orientação externa da acção humana, a partir do que lhe é dado a consumir pelos media.

Surge neste momento uma certa intelectualidade que progressivamente se isola, «deixada para trás» no dito de Habermas, estabelecendo-se a distância crescente entre as minorias críticas e produtivas, sem verdadeiro acesso aos media, e o grande público, alvo preferencial (e exclusivo) dos meios de comunicação de massa, ponto de partida para uma percepção adorniana de “neutralização da cultura”. A desagregação da esfera pública liberal clássica, expressa pela teorização de Habermas, corresponde à lógica profunda da Dialéctica do Iluminismo, avançada na célebre análise conjunta de Theodor Adorno e Max Horkheimer: a lógica da razão instrumental obrigou a uma total funcionalização dos processos de produção e de troca de sentido, sujeitos a uma erosão que, em última análise, os reduziu a uma simples mecânica. A sua aparente dinâmica e mobilidade mais não é que a do mercado capitalista, possuidor de um «catálogo expresso e implícito» homologador do tolerado e do proibido, e que fixa positivamente mesmo a própria linguagem, com as respectivas sintaxe e semântica.60 A este propósito diz Marcuse, traduzindo a voz da razão instrumental: «O senhor não fala como nós, como o homem comum, mas como um estranho que não pertence ao nosso meio. Temos de reduzi-lo às suas devidas proporções, desmascarar os seus truques, expurgá-lo.»61

Porém, o próprio Habermas viria ainda, 30 anos depois, a rever criticamente o seu pensamento quanto a estas questões, nomeadamente acerca da avaliação do comportamento do público. Com efeito, na época da sua primeira análise da esfera pública, a televisão dava ainda os primeiros passos e a influência da teoria da cultura de massa de Adorno era demasiado marcante. Além disso, Habermas considera ter subestimado a influência do desenvolvimento do ensino, factor que viria a ter importante reflexo quer na mobilização cultural como no desenvolvimento do espírito crítico. Por isso, o diagnóstico de uma evolução linear de um público politicamente activo para um público ‘privado’, de uma racionalidade sobre a cultura a um consumo da cultura, é demasiado redutor. E assim, afirmará agora: «Avaliei de forma demasiado pessimista a capacidade de resistência, e sobretudo o potencial crítico de um público de massa pluralista e largamente diferenciado, que desenha as fronteiras de classe nos seus hábitos culturais.»62


A cesura epistémica

Mediante a categoria da razão instrumental deve então compreender-se uma dupla dimensão do processo civilizacional: a transformação da natureza externa (tecnologia, indústria, domínio da natureza) e a transformação da natureza interna (individuação, repressão e formas de domínio social). Ora, o preço a pagar pelo domínio da natureza externa ameaça com a destruição da subjectividade dos sujeitos que assim empenham a sua emancipação. No breve ensaio intitulado A Vida dos Estudantes, Walter Benjamin tem bem presente esta percepção; observa sobretudo como «na maioria dos casos, o desempenho social do homem comum serve para recalcar as aspirações originais e autênticas do homem interior», e verifica com pesar como «a submissão acrítica e sem resistência a esse estado de coisas é um traço essencial» da vida dos estudantes alemães do início do século.63

Conviria ainda, neste momento, tornar presente a distinção habermasiana entre acção instrumental e acção comunicativa: por dimensão de acção instrumental considera uma extensão do âmbito da técnica e um incremento das capacidades de direcção e de cálculo; já na dimensão da acção comunicativa, a racionalidade identificar-se-ia com os processos de emancipação e individuação, e com a correspondente ampliação das esferas comunicativas, livres de outro domínio. Em suma, é o retomar de uma diferenciação antes iniciada, que devemos reavaliar à luz de ‘razão técnica’ e ‘razão prática’, ‘saber produtivo’ e ‘saber reflexivo’ e, por fim, de ‘racionalização’ e ‘emancipação’.64 Deste modo, para retomar a oposição também feita por Walter Benjamin no texto sobre a vida dos estudantes, a experiência criadora é substituída pela vivência, a existência de criador pela de procriador, ou ainda, dá-se a «deformação do espírito criador em espírito profissional».65 Estas considerações evidenciam desde já a urgência em desenvolver também uma teoria da linguagem adequada aos novos fundamentos.

Ponto assente é que o cerne da questão está em que o homem moderno já não se rege pelas leis universais da razão. A este propósito, Max Horkheimer escreve: «Durante muito tempo, a palavra ‘razão’ significou a actividade de conhecimento e de assimilação das ideias eternas que deviam servir de finalidade aos homens. Hoje, pelo contrário, já não é apenas o papel, mas o trabalho essencial da razão encontrar meios ao serviço dos fins, que cada um adopta num dado momento.»66

Face à crítica realizada pelos teóricos de Frankfurt, vemos pois como este fenómeno vai favorecer a submissão dos sujeitos, pretensamente emancipados, a estruturas sociais escravizantes. E é então que quem não se adapta a tal dinâmica é reduzido a um estado de impotência, económica em certos casos e espiritual noutros, que dá lugar às figuras do falido ou do solitário. Aparentemente sem outra solução (dita normal) possível, depois de ser «excluído da indústria, é fácil convencê-lo [ao indivíduo] da sua insuficiência».67 Enquanto elemento nuclear duma nova “sociedade total”,68 a indústria da cultura é analisada como um verdadeiro mecanismo de manipulação, que não admite contradições por residuais que sejam. As consequências deste mecanismo no domínio da linguagem são muito claras e remete-nos de novo para o espaço delimitado da linguagem instrumental. Aqui, a transgressão da locução para além da estrutura analítica fechada é incorrecta e, nesse universo de locução pública, a palavra move-se entre sinónimos e tautologias; por fim, o conceito - fechado, ritualizado e repetidamente ‘martelado’ – é tornado imune à contradição.69

Poucos anos depois, no final dos anos 50 e a propósito do aparecimento de um outro medium, a televisão, Adorno criticava o uso que dela se fazia. Justamente pela moderna superficialidade com que os assuntos são apresentados e recebidos, a televisão mostrava-se vocacionada para difundir ideologias e orientar de modo falso a consciência das pessoas. Uma ideologia difundia ela, antes de tudo: tornava o mundo homologado, embora feliz, pela manipulação dos seus desejos; 70 um mundo dominado a nível ideológico pelo “Grande Irmão” de 1984, romance de George Orwell, em que o real se pretende racional (cuja crença promove justamente a Consciência Feliz marcuseana), e em que a racionalidade tecnológica se traduz em comportamento social.


Linguagem e negatividade

Ao ser submetida à lei da mercadoria, também a linguagem se torna cúmplice de uma lógica de feiticização, que faz com que os valores e relações reais com as coisas que representa surjam deslocados e escondidos, no jogo in-significante da repetição («para mostrar a divindade do real mais não há que repeti-lo cinicamente até ao infinito»71) e do estereótipo. Este último é mesmo a «pedra» convertida em pão com que a indústria cultural alimenta os homens, uma pedra que, se vazia de sentido, era acima de tudo medium ou instrumento a apontar para algo bem concreto.72 A dinâmica deste processo passa por levar as instâncias diversas da comunicação a acomodarem-se passivamente aos papéis que de antemão lhes estão reservados; a ideologia exige previsão social, e por isso o indivíduo deve ser consciente da sua própria nulidade, subscrever a sua própria derrota, sendo que é a sua falta de resistência que o qualifica como membro de confiança.73

É face a este estado de coisas que a atitude do artista (e do criador em geral) modernista, reflectida pela teorização adorniana, se traduz no recuo para uma esfera já só pensável como «antítese social da sociedade», numa recusa veemente da instrumentalização avançada pela pretensa racionalidade das formas de comunicação dominantes. Esta recusa é a única forma de manter aberto um espaço de utopia; nele, a criação funciona ainda como expressão negativa com potencialidades essenciais. Como é defendido (entre outros) no célebre texto da indústria da cultura, a cultura, num certo sentido, não se acomoda a si própria aos homens, simplesmente; antes surge muitas vezes em protesto contra as relações petrificadas sob as quais esses homens vivem.74 Esta posição é recorrente desde as origens da Modernidade, e encontra-se bem vincada na Dialéctica do Iluminismo: «Noutro tempo, a oposição do indivíduo à sociedade constituía a sua substância»,75 o que parte já da exaltação de uma citação de Nietzsche. Aqui, é já tempo do conformismo, tempo em que o real é ‘racional’ ao mais alto nível.

Neste sentido, considerámos a pergunta gadameriana como a implicação de uma negatividade da experiência hermenêutica; o horizonte hermenêutico é o horizonte das perguntas e respostas, mas numa estrutura cujo impulso – a pergunta – representa justamente um não querer integrar de forma imediata as opiniões prévias, mas que antes move para novas experiências. A negatividade da experiência implica a pergunta e a resposta, aliás numa lógica que reactualiza de modo surpreendente a forma dos diálogos platónicos.76

Pelo contrário, a partir da análise feita à indústria cultural constatamos como o indivíduo só é tolerado enquanto a sua identidade com o universal estiver fora de dúvidas. Este sentimento assume uma força extraordinária na obra de outro teórico do Instituto de Pesquisa Social, Herbert Marcuse; a tese central da sua obra principal, O Homem Unidimensional, é precisamente a preponderância da consciência feliz num pensamento em que a racionalidade tecnológica e instrumental é a única dimensão. Há a «grande recusa» pela sociedade moderna da «recusa», e assim o pensamento negativo é substituído pelos exercícios do pensamento instrumental. Se «na verdade, a cultura superior esteve sempre em contradição com a realidade social (...) a característica principal actualmente é o aplanamento do antagonismo entre cultura e realidade social por meio da obliteração dos elementos de oposição (...), em virtude do que ela [cultura superior] constituiu uma outra dimensão da realidade.»77 Mas essa liquidação da cultura bidimensional, acrescenta Marcuse, não se deveu à negação ou à rejeição dos valores culturais, que seria uma forma de pensamento negativo: antes ocorreu pela incorporação destes na ordem estabelecida, pela sua reprodução e pela exibição em escala maciça «marteladas e remarteladas».

Bem ao contrário do modelo do pensamento negativo, uma análise da indústria da cultura vem mostrar como ela se aproximou daquilo que hoje se entende por relações públicas, no elementar sentido de procurar consensos e boas vontades (“good-will”), tendo como irrelevantes todas e quaisquer questões complexas ou particulares, que não de fácil e imediato entendimento.78 Neste contexto, a posição consciente da massa acerca de qualquer acção de resistência é pronta e bem clara (imediata): «quem ante a potência da monotonia ainda duvida, é um louco»,79 e assim a unidimensionalidade cultural mais não é que instrumento ao serviço da coesão social.


Ilusões comunicativas

A nova ideologia (de laivos cientificista) a que a Teoria Crítica da Sociedade se opõe considera ainda o mundo como objecto, como vimos numa parte anterior. Deste modo se adopta o culto do facto, valorizando-se sempre a exposição mais exacta possível, no reino bem concreto dos factos. Neste sentido, a indústria da cultura tende a apresentar-se como um conjunto de proposições protocolares, e assim, a assumir-se glorioso «profeta irrefutável do existente». Mediante esta transposição, a realidade mesma converte-se em sucedâneo do sentido, e palavra que não é medium ou instrumento não tem sentido: cada palavra converte-se em «proclamação energética e sistemática do existente», e exibe uma aversão «quase científica a comprometer-se com algo que não possa ser verificado»,80 reactualizando em pleno o sentido wittgensteiniano formulado no Tractatus. Marcuse coloca claramente a tónica da questão: «o carácter anticientífico dessas ideias [Belo, Justiça e Paz] enfraquece fatalmente a sua oposição à realidade estabelecida; (...) e o seu conteúdo concreto e crítico evapora-se na atmosfera».81 Os conceitos, como vimos noutro momento, são ritualizados e imunizados à contradição. Nos limites, Marcuse aponta a eclosão de uma «linguagem orwelliana» familiar, que conduziria à consagração geral de «mentiras pela opinião pública e privada, [com] a supressão do seu conteúdo monstruoso.»82

Assumindo até às últimas consequências a extensão deste estado de coisas, no domínio da linguagem também o nome (a que o carácter mágico estaria associado, como mostrou Benjamin antes) sofre uma profunda e essencial «mudança química». Assume a forma das tais «etiquetas arbitrárias e manipuláveis, cuja eficácia pode ser calculável», é estilizado e assim reduzido a sigla publicitária (no sentido de uma veloz circulação pública). A significação é a função única admitida pela semântica, e realiza-se perfeitamente sob a forma de sinal. Um sinal marcado pela rapidez com que circula e se repete, num processo que favorece a utilização universal de determinados termos, que vimos tornados familiares de forma (embora) cega mas veloz.

Além disso, mas de importância essencial para as concepções de linguagem que temos vindo a desenvolver, ao privilegiar a instrumentalidade e o uso universal, «o extracto de experiência que fazia das palavras palavras dos homens que as pronunciavam foi inteiramente alienado, e na sua pronta assimilação adquire a linguagem aquela frieza que até agora só caracterizava as colunas publicitárias e as páginas de anúncios dos jornais.»83

A Teoria Crítica aceita conscientemente, a partir desta asserção, o risco da incomunicação, e entrincheira-se numa intransigência metodológica que visa salvaguardar, contra a mercantilização da linguagem, a insituável diferença do sentido, num tempo em que «não é possível já perceber nas palavras a violência que sofreram.»84 Em muitas palavras – algumas, como ‘memória’, são citadas como exemplo – ter-se-á suprimido o último vínculo entre a experiência sedimentada e a língua. Mas para o redactor, figura que adiante será especialmente visada e a que também alude a parte final do texto da indústria da cultura, para ele «as palavras alemãs petrificaram-se e convertem-se subrepticiamente em palavras estrangeiras»,85 das quais não apreende já o sentido, mas que mesmo assim utiliza com notável e descomprometido à-vontade. É este o fundamento principal do violento requisitório que Kraus dirigiu à actividade jornalística, fazendo do ‘abastardamento’ da língua o suporte da sua crítica. Com veemência, denuncia: «Heine alargou tanto o corpete à língua alemã (...) que hoje qualquer caixeiro [leia-se jornalista] pode mexer-lhe nos seios.»86

Mais uma vez, esta é uma posição que exprime de forma clara o estatuto problemático da comunicação e a precaridade de figuras como o artista ou o criador na sociedade moderna, num tempo que terá perdido o seu carácter criativo, e culminará com a famosa sentença de Adorno sobre a impossibilidade da poesia depois de Auchwitz. Já Habermas havia focado bem este aspecto, e situara a origem deste tempo (com Arnold Hauser) por volta da metade do século XIX: um tempo em que «o reconhecimento publicitário-jornalístico do artista e da obra está apenas ainda numa relação ocasional com o reconhecimento deles pelo grande público.»87 Mas, como tem sido aludido, é a aguda consciência de crise que afirma frequentemente a tentação do silêncio. Não foi “apenas depois de Auchwitz” que pôde levantar-se a questão do carácter problemático da arte, numa sociedade marcada pela barbárie: Auchwitz só pôde surgir no seio de uma sociedade em que por acção dos mecanismos da indústria da cultura, se gerou um falso colectivo que alienou toda a capacidade crítica (uma importante tese que adiante desenvolveremos), esse falso colectivo personagem central dos textos krausianos.88


A inutilidade social do discurso estético

Recuando a essa época situada por Habermas e a um autor unanimemente considerado como representativo de um certo modernismo, é já essa mesma a questão que encontramos levantada num dos projectos de prefácio para As Flores do Mal (1861) de Charles Baudelaire: «Eu sei que o apaixonado pelo belo estilo se expõe à cólera das multidões. Mas nenhum respeito humano, nenhum falso pudor (...), nenhum sufrágio universal me constrangerão a falar o patois (dialecto) incomparável deste século». E assim Baudelaire escreveu este livro, «essencialmente inútil», para não mais que se «divertir» e exercer o «gosto apaixonado pelo obstáculo».89 Logo a seguir, no contexto de uma referência irónica à marcha do progresso, escreve ainda: «Este mundo ganhou uma espessura de vulgaridade que confere ao desprezo do homem espiritual a violência de uma paixão.»90

E é nessa vulgaridade que Adorno e Horkheimer notam a indústria cultural transformada em indústria da diversão, do curioso: «a excentricidade do circo, do museu de cera e do bordel» é então comparável a excentricidades como Schonberg e Karl Kraus.91 Em concreto sobre a arte e sua recepção, num outro momento, Adorno verifica ainda como elas não deveriam ser «um meio de prazer de ordem superior»;92 mas que antes emergia em si o seu valor de verdade – e seria essa a sua função.

Todavia, a percepção deste estado de coisas (e ao contrário da violência aludida) em Baudelaire não se exprime por qualquer desejo de intervenção pública, mas antes por um resignado encolher de ombros. «A minha intenção inicial era responder a numerosas críticas e, ao mesmo tempo, esclarecer algumas questões muito simples, totalmente obscurecidas pelas luzes modernas (...), mas detive-me perante a assustadora inutilidade de explicar seja o que for a quem quer que seja.»93

Esta consciência da inutilidade de ‘entrar no jogo’ da comunicação não resultará, cremos, de uma qualquer arrogância estética do artista, mas antes se articulará de modo mais explícito como uma crítica ao progresso e às formas de comunicação de massa por ele desenvolvidas. A própria afirmação de Baudelaire da inutilidade do seu discurso frente aos outros discursos (úteis...?) que dominam o quotidiano representa uma reivindicação de diferença radical, a expressão plena do afastamento e da cisura entre as grandes massas de consumidores e as minorias de especialistas que não pensam (e recusam por inútil qualquer explicação) publicamente.94 É este, finalmente, o grande dilema das vanguardas: por um lado a reconstituição da autenticidade, mas pelo outro restabelecer uma estrutura comunicacional que permita a autocompreensão. É também esta a consciência que Marcuse pretende expressar: «Poderá fazer poesia – está certo. Adoramos poesia. Mas queremos entender a sua poesia e só poderemos fazê-lo se compreender-mos os seus símbolos, as suas metáforas e imagens em termos da linguagem ordinária. (...) Mas, se o que ele diz pudesse ser dito em termos da linguagem ordinária, provavelmente tê-lo-ia feito logo de início.»95 E aqui está, por fim, o eixo desta problemática: é que a compreensão de uma qualquer linguagem ou mesmo conteúdo pode pressupor precisamente o colapso e a invalidação do universo de locução previamente adquirido, e no qual a massa o quer traduzir.

Menos de meio século mais tarde, a mesma reivindicação de autonomia, associada a uma crítica feroz às antinomias e contradições do progresso reflectidas de forma emblemática num dos media – na imprensa – irá encontrar uma expressão singular na panfletária e satírica obra do vienense Karl Kraus, de quem apresentámos já alguns pressupostos acerca da questão da linguagem. De certo modo enraizada em concepções que consideramos comuns a Adorno, se pensadas num quadro mais amplo do paradigma estético e cultural modernista, encontram-se afinidades relevantes entre as teses adornianas da arte (e da criação) como antítese social da sociedade e o sentido orientador da obra do escritor e jornalista vienense. Com efeito, a estética da negatividade de Adorno - fundada na oposição irredutível entre as formas de criação artística e as formas mercantilizadas de comunicação produzidas pela indústria de cultura -, expressa também na testamentária e póstuma Teoria Estética («a arte é a antítese social da sociedade e não deve imediatamente deduzir-se desta»96) está fundada já por Kraus nalguns dos seus aspectos capitais. Como modelo directo está a crítica intransigente da degradação da linguagem pela imprensa, que favorece a sua instrumentalidade, e onde a dedução do sentido - aparente - é imediata. Ora, como veremos, «a imediata comunicabilidade a qualquer preço não é o critério do verdadeiro».97


O diagnóstico percursor de Kraus

A revista Die Fackel (O Archote) foi a obra de toda uma vida de Kraus e constituiu uma verdadeira tribuna sempre atenta e implacável aos problemas sociais e culturais das primeiras décadas deste século, sendo sem dúvida um violento testemunho (com fundo pessimista) do caminho por que enveredou a civilização europeia a partir do século XIX, sobretudo no que se refere ao esvaziamento de valores e à vitória da banalidade. O jornal, na forma puramente comercial que assumiu a partir de meados do século XIX, foi (aos olhos de Kraus) o responsável máximo pela mercantilização da linguagem, e é entendido como tal que tem que ser decisivamente combatido (com a violência de uma paixão, diria Baudelaire). Embora também não imune à tentação do silêncio – conforme em outro momento, no discurso Esta Grande Época, é bem visível98 -, a acção de Kraus antes se irá exprimir numa intervenção satírica de envergadura invulgar, onde a crítica da língua, dos seus usos e abusos, será uma arma destrutiva e um espelho de toda a civilização à beira de um abismo, tantas vezes previsto nas páginas da Fackel.

O alvo essencial dos ataques krausianos é desde cedo apontado – de novo o estereótipo, uma figura que, ao longo deste trabalho, tem sido constantemente evocada, mas de cuja crítica Kraus terá sido de certo modo pioneiro.99 Uma figura que funciona como um efeito pré-programado gerador de formas de percepção automatizadas, que esvazia a linguagem, transformando-a em simples objecto de consumo, instituindo-lhe uma relação puramente instrumental com o mundo. O estereótipo adapta-se perfeitamente ao “culto do facto”, é vago em termos de conteúdo embora possa ser exposto com exactidão, é facilmente aplicável e assim uma eficaz ferramenta ou instrumento; sendo facilmente entendido em qualquer contexto (em certa medida), depressa se escapa a qualquer experiência que lhe possa dar sentido.100

No emblemático e central texto de 1944 sobre a indústria da cultura, com a Guerra Mundial como pano de fundo, Adorno e Horkheimer observarão, também eles, como «é verdade que esta linguagem se foi convertendo, pouco a pouco, em universal e totalitária»,101 e aí constatam o papel que a linguagem estereotipada (tão afastada da experiência da linguagem) teve em tal processo. Nesse mesmo texto observam ainda como para a massa qualquer palavra que não seja medium ou instrumento surge «sem sentido». Funcionando antes como consumidores, fascinados pelo esplendor da técnica, é para esta mesma técnica que a massa volta o interesse, em detrimento dos menosprezados conteúdos estereotipadamente repetidos e vazios de substância. As consequências que tal modelo de linguagem trará à concepção individual do mundo e formação subjectiva do espírito, nomeadamente no que se refere a uma teoria da linguagem como experiência do mundo, assumem-se de grande interesse e o seu questionamento será adiante oportuno, aquando da análise da linguagem dos media.

Neste momento, observemos tão só como a oposição arte/indústria da cultura (entendida esta última como universalidade do espectáculo e do estereótipo e combatível apenas por uma ascese “ao serviço da palavra”, que recuse a lógica aparentemente imperiosa da comunicação) está também no cerne de toda uma estética krausiana (também ela abrangente, é certo). Atente-se neste sentido no aforismo seguinte, publicado numa das suas célebres colectâneas de aforismos: «Toda a arte me parece ser apenas arte para o presente se não for arte contra o presente. Se mata o tempo – não o mata. (...) A arte só pode nascer da recusa. Só do grito, não da aquietação. A arte, chamada como conforto, abandona com uma maldição o quarto onde a humanidade agoniza.»102 E é esta mesma negatividade radical que dá à arte a possibilidade de sobreviver para além da sua circunstância.103

É ainda esta mesma ideia que surge com insistência na Teoria Estética de Adorno, por exemplo, quando se afirma que «só o que em cada momento está mais avançado tem capacidades de resistir ao tempo»,104 e que apela também para o tempo messiânico de Benjamin, um tempo de que a verdade está carregada a ponto de explodir. Por outras palavras, também o tempo do «agora» benjaminiano abre a “modernidade” para a promessa de realização, fruto daquela combinação de estruturas temporais aparentemente contraditórias que lhe dão tanta força quanto complexidade.

A mesma estética da negatividade foi uma das características distintivas não só da obra de Franz Kafka e dos seus anti-herois, mas mesmo da sua biografia e naturalmente da sua lúcida atitude reflexiva. Ainda em 1904, escreveu Kafka a um seu amigo, Oskar Pollak: «devíamos ler apenas livros que nos mordam e firam. Se o livro que estamos a ler não nos desperta violentamente como uma pancada na cabeça, para que havemos de nos dar ao trabalho de o ler?» Também Kafka, à semelhança de Adorno, rejeita a ideia dos livros (ou da arte, em Adorno) como objecto de consolo, de satisfação: «seríamos igualmente felizes sem livros nenhuns», refere. Bem pelo contrário, a experiência da negatividade é expressa logo de seguida: «Do que precisamos é de livros que nos atinjam como a desgraça mais dolorosa, como a morte de alguém que amávamos mais que a nós próprios, que nos façam sentir como se tivéssemos sido expulsos para o meio dos montes, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser a picareta para o mar gelado dentro de nós.»105 Tudo em Kafka funcionava de forma negativa, sublinhe-se; também ele como os seus personagens, alimentados pela experiência dão e tiram ao mesmo tempo, minam a fim de satisfazer, num vai e vem constante onde flutua a ilusão de compreender.




1Horkheimer, Max, citado por David Frisby, The Positive Dispute in German Sociology, Londres, Heinemann, 1983, pág. xxvi.

2 Ibidem.

3 Kafka, Franz, «Meditações», pág. 121.

4 Theodor, Adorno, «Introduction», in AAVV, De Vienne a Francfort, la Querelle Allemande des Sciences Sociales, Bruxelas, Complexe, 1979, pág.10.

5 A superação da hermenêutica gadameriana face ao cientificismo positivista toca a posição adorniana também neste ponto: o da estrutura especulativa do conhecimento. Com efeito, e como referimos anteriormente, a própria linguagem, por meio da qual se processa o conhecimento, tem uma estrutura intrinsecamente especulativa. Não é fixa nem dogmaticamente certa, mas processa-se sempre como evento de revelação: o seu movimento resiste constantemente à fixidez dos juízos finais, à maneira talmúdica.

6 Cfr. Frisby, David, Op.cit., pág. xi.

7 Ibidem.

8 Cfr. Adorno, T. W., Op.cit., pág. 52, e Cfr. Popper, Karl, «La logique des sciences sociales», in De Vienne a Francfort, la Querelle Allemande des Sciences Sociales, págs. 83-84.

9 Cfr. Popper, Karl, Op.cit., pág. 77.

10 Ibid., Objective Knowledge, Oxford, Oxford University Press, 1972, pág. 261.

11 Ibid., «La logique des sciences sociales», pág. 77.

12 Wittgenstein, Ludwig, Tractatus, §4.116, págs. 63-64.

13 Cfr. Popper, Karl, Op.cit., págs. 81-82.

14 Ibid., pág. 84.

15 Adorno, Theodor, Op.cit., pág.11.

16 Ibidem.

17 Também esta tese tem as suas histórias emblemáticas, que mais não são que narrações não-objectivas da impossibilidade de objectivar (narrativas, entre outras coisas). Paul Celan, por exemplo, apresentou a sua versão:

«Ele pôs na balança virtudes e vícios, culpa e inocência, boas e más qualidades, porque queria certezas antes de se julgar a si próprio. Mas os pratos da balança, com tais pesos, mantinham-se à mesma altura.

Como queria a todo o custo chegar a uma conclusão, fechou os olhos e andou vezes sem conta à volta da balança, ou num sentido ou no outro, até já saber em qual dos pratos estava este ou aquele peso. Depois colocou, às cegas, num dos pratos a sua decisão de se julgar a si próprio.

Quando voltou a abrir os olhos, um dos pratos tinha, na verdade, baixado, mas já não era possível reconhecer qual dos dois, se o prato da culpa, se o da inocência.

Isto deixou-o zangado, recusou-se a ver nisso uma vantagem e pronunciou a sua sentença, sem, contudo, poder evitar a sensação de estar eventualmente a cometer uma injustiça.» «Contraluz» in Arte Poética, O Meridiano e Outros Textos, Lisboa, Cotovia, 1996, págs. 25-26.

18 Cfr. Adorno, Theodor, Op. cit., pág.22.

19 Ibid., pág.47.

20 Cfr. Wittgenstein, Ludwig, Tractatus, §4.116.

21 Popper, Karl, Op.cit, pág.77.

22 Ibidem.

23 Adorno, Th., Op. cit., pág. 47.

24 Ibid., pág.34.

25 Ibid., pág.38

26 Note-se, a este propósito, a excelente (e oportuna) ilustração de Marcuse: «O intelectual é chamado a depor. Que quer o senhor dizer quando diz...? Não está a ocultar algo? O senhor fala uma linguagem suspeita. O senhor não fala como nós, como o homem comum, mas como um estranho que não pertence ao nosso meio. (...) Vamos ensiná-lo a dizer o que tem em mente, a ‘ser claro’ a ‘pôr as cartas na mesa’.» (Marcuse, Herbert, O Homem Unidimensional, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pág. 181)

27 Adorno, Th. e Horkheimer, Max, Dialéctica de la Ilustración, Madrid, Trotta, 1994, pág. 65.

28 Adorno, Th., Op.cit., págs. 40-41.

29 Adorno, Th. e Horkheimer, Max, Op. cit., pág. 66.

30 Kafka, Franz, «O Pião», in Histórias com Tempo e Lugar, prosa de autores austríacos, pág. 159.

31 Kuhn, H., citado por Gadamer, H.-G., Verdad y Metodo, pág. 615.

32 Gadamer, H.-G., Ibid., págs. 615 e segs.

33 Habermas, Jürgen, Discurso Filosófico da Modernidade, Lisboa, D. Quixote, 1990, pág. 116.

34 Benjamin, Walter, «O Narrador», in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, pág.32.

35 Ibid., pág.34.

36 Citado por Benjamin, ibid., pág.38.

37 Ibid., pág. 37.

38 Cfr. Gadamer, H.-G., Op. cit., pág. 317.

39 Ibidem.

40 Adorno, Th, e Horkheimer, Max, Op. cit., pág. 59.

41 Musil, Robert, O Homem sem Qualidades, I vol., Lisboa, Livros do Brasil, s/d, pág. 75.

42 Adorno, Th. e Horkheimer, Max, Op.cit., pág. 75.

43 Ocorre, a este propósito e acerca dos livros como paixão, o admirável texto de Benjamin, «Desempacotando a minha biblioteca»: «O nosso único conhecimento exacto – disse Anatole France – é o do ano de publicação e o do formato dos livros. (...) A época, a região, a arte, o dono anterior, (...) todos esses detalhes se somam para formar uma enciclopédia mágica, cuja quintessência é o seu destino de objecto.» in Obras Escolhidas II, Brasília, Editora Brasiliense, 1987, pág.228.

44 Cfr. Benjamin, Walter, «O Narrador», pág. 28.

45 «Livra-te de dar rédea solta à tua razão», advogava neste sentido Karl Kraus, razão que com exuberância desencantava o mundo.

46 Cfr. Dahrendorf, Ralf, «Comentaires sur les discussions de Tübingen», in De Vienne Franqfort, la querelle allemande des sciences sociales, pág. 116.

47Citado por Assoun, Paul-Laurent, A Escola de Frankfurt, Lisboa, D. Quixote, 1989, pág. 63.

48 Musil, Robert, Op. cit., pág. 306.

49 Ibidem.

50 A expressão foi usada pela primeira vez na Dialéctica do Iluminismo, escrita por Adorno e Horkheimer em 1944 e publicada em 1947. Num texto de 1963, Adorno explicita as razões da escolha: «Nos nossos rascunhos, falava-se de cultura de massa. Substituímos essa expressão por ‘indústria da cultura’, para obstar de antemão à interpretação que é grata aos defensores desta causa: a de que se trata de qualquer coisa que surge espontaneamente a partir da própria massa, a forma presente da arte popular, a forma presente da arte popular. A indústria da cultura distingue-se desta. (...) A indústria da cultura é a integração deliberada dos seus consumidores a partir de cima.» Adorno, Theodor, «Culture industry reconsidered», in The Culture Industry, Selected essays on mass culture, Londres, Routledge, 1996, pág. 85.

51 Cfr. Pissarra Esteves, João, A Ética da Comunicação e os Media Modernos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, págs. 209-210.

52 Habermas, Jurgen, Mudança Estrutural na Esfera Pública, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1984, pág.14.

53 Cfr. Ibid., págs. 14-15.

54 Ibid., pág. 64.

55 Cfr. Ibid., págs. 213 e segs.

56 Cfr. Ibid., págs. 68-70.

57 Ibid., pág. 207-210.

58 No seu estudo sobre a mudança de carácter na sociedade americana, David Riesman mostrou com clareza este aspecto. Ao analisar as funções socializadoras do impresso na orientação da acção e do pensamento do indivíduo, Riesman referiu como o leitor podia encontrar na imprensa refúgio às críticas dos vizinhos, ao mesmo tempo que punha à prova a própria orientação a partir dos modelos que a imprensa lhe ia fornecendo. O seu desempenho público, apenas eventual, ocorria quando escrevia ele próprio para a imprensa, na figura de correspondente local. Não passava, ainda assim, de um desempenho ‘público’ sem face a face, impessoal. Riesman, David et all, A Multidão Solitária, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, págs. 152-154.

59 Breton, Philippe, A Utopia da Comunicação, Lisboa, Piaget, 1994, pág. 123.

60Cfr. Adorno, Theodor e Horkheimer, M., Op. cit., págs. 172-173.

61 Marcuse, Herbert, Op. cit., pág. 181.

62 Habermas, Jurgen, « “L’espace public”, 30 ans après», in Quaderni nº 18, 1992, pág. 174.

63 Benjamin, Walter, «A vida dos estudantes» in Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie, S. Paulo, Editora Cultrix, 1986, págs. 152-153.

64 Cfr. Wellmer, Albrecht, «Comunicatión y emancipación», in Isegoría, nº1, Barcelona, Instituto de Filosofia, 1990, págs. 29-32.

65 Benjamin, Walter, «A vida dos estudantes», pág. 155.

66 Horkheimer, Max, citado por Touraine, Alain, Crítica da Modernidade, Lisboa, Piaget, 1996, págs. 183-184.

67 Adorno Th. e Horkheimer, Max, Op. cit., pág. 178.

68 O conceito de “sociedade total” ou “mundo administrado” surgiu a partir da década de 40 com crescente insistência no discurso dos membros do Instituto de Pesquisa Social (Institut fur Sozialforschung), e radica na desilusão pelo fracasso da experiência socialista na União Soviética e das vanguardas revolucionárias europeias. A partir desses anos, os membros do Instituto irão pôr em causa a própria noção de sujeito revolucionário, cujo desaparecimento numa sociedade massificada acabarão por postular.

69 Marcuse, Herbert, Op.cit., pág. 95.

70 Adorno, T.W., «Televisón y formación cultural», in Educación para la emancipación, Eddicionnes Morata, s/d, págs. 51-53.

71Adorno Th. e Horkheimer, Max, Op.cit., págs. 192-193.

72 Ibid., págs. 192-193.

73 Cfr. Ibid., pág. 197 e segs. Neste sentido, é desaconselhado todo o comportamento não ‘alinhado’, dissociado. É uma ideia recorrente no pensamento crítico, e que se dissemina por múltiplas direcções, sociais ou epistemológicas. Retenha-se, pois, a consideração geral: «A atitude mais vituperada, a misantropia, reprimida no inconsciente, domina este mundo da divisão de classes e da competência.» Horkheimer, Max, Historia, metafísica y escepticismo, Barcelona, Altaya, 1988, pág. 169.

74 Cfr. Adorno, Theodor, «Culture Industry reconsidered», págs. 85-86.

75 Adorno e Horkheimer, Op. cit., pág. 198.

76 Cfr. Gadamer, Hans-Georg, Verdad y Metodo, págs. 444-447.

77 Marcuse, Herbert, Op. cit., págs. 69-70.

78 Cfr. Adorno, Th., Op. cit., pág. 276.

79 Adorno Th., e Horkheimer, Max, Op.cit, pág.192.

80 Ibidem.

81 Marcuse, Herbert, Op. cit., pág. 145.

82 Ibid., pág. 96.

83 Adorno, Th. e Horkheimer, Max, Op. cit., pág. 211.

84 Ibidem.

85 Ibidem.

86 Kraus, Karl, citado por Ribeiro, Ant. Sousa et all, Histórias com Tempo e Lugar, pág. 290.

87 Habermas, Jurgen, Mudança Estrutural na Esfera Pública, pág. 206.

88 Numa posterior análise crítica à actividade jornalística, ver-se-á que Benjamin, no texto sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, acusa já a linguagem de preparar o caminho para a agressão e para a desumanização do homem – onde a guerra, como esteticização da vida política, seria o ponto culminante. Karl Kraus é mais conciso: «Através de uma prática de decénios, ele [repórter] levou a humanidade precisamente àquele estado de falta de fantasia que torna possível uma guerra de extermínio contra si própria. Já que, com a rapidez desmedida das suas engrenagens, lhe poupou toda a capacidade de ter vivências e de as prolongar intelectualmente, tudo o que o repórter é capaz de fazer é instilar à humanidade a necessária coragem do desprezo pela vida que a leva a precipitar-se numa guerra contra si própria.» «Nesta Grande Época», pág. 206.

89 Baudelaire, Charles, Les Fleures du Mal, Paris, Gallimard, 1992, pág. 229.

90 Ibid., págs. 229-230.

91 Adorno, Th. e Horkheimer, Max, Op.cit., pág. 180.

92 Adorno, Theodor W., Teoria Estética, Lisboa, Ed. 70, 1982, pág. 24.

93 Baudelaire, Charles, Op.cit., pág. 230.

94 É esta uma posição concomitante e recorrente ao longo das teses apontadas. Veja-se, como exemplo, um outro aforismo de Kraus: «A arte tem que desagradar. O artista quer agradar, mas nada faz de agradável. A sua vaidade compraz-se na criação. A vaidade da mulher compraz-se no eco. É criadora como a do artista, como a própria criação. Vive do aplauso. O artista, a quem a vida nega o aplauso por direito, antecipa-o.» Kraus, Karl, Contra Los Periodistas y otros contras, Madrid, Taurus, 1982, pág. 77.

95 Marcuse, Herbert, Op.cit., pág. 181.

96Adorno, Theodor W., Teoria Estética, pág. 19.

97 Ibid., Dialéctica Negativa, Madrid, Taurus, 1992, pág. 49.

98 Referimo-nos de novo àquele discurso pronunciado em Viena a 19 de Novembro de 1914, após o eclodir das hostilidades da I Grande Guerra. Um texto cujo «único fim é preservar o silêncio de ser mal interpretado» e que começa justamente com um apelo ao silêncio: «quem tiver alguma coisa a dizer, avance e fique calado». «Nesta Grande Época», pág. 200.

99 Decerto que não de todo; por exemplo, conhece-se a suprema admiração de Kraus por Shakespeare, em especial pela figura de Hamlet, a que recorre com frequência em diversos contextos, e com quem pretendia sinalizar o desconcerto dos tempos. Ora, também Shakespeare conhecia bem os poderes da linguagem, mas sobretudo as suas limitações: é sobejamente conhecida, neste sentido, a constatação de Hamlet: «words, words, words...»

100 Cfr. Adorno e Horkheimer, Op.cit., págs. 192, 210.

101 Ibid., pág. 211.

102 Kraus, Karl, «Ditos e Contraditos», in Histórias com Tempo e Lugar, pág. 228.

103 Repare-se na pergunta e resposta oportunas de Bertold Brecht, em De como construir obras duradouras: «Quanto tempo vão durar as obras? Enquanto não estiverem prontas.», in Bertold Brecht Poems Part II, 1929-1933, Londres, Eyre Methuen, 1976, pág. 193.

104 Adorno, T. W., Teoria Estética, pág. 67.

105 Kafka, Franz, citado por Manguel, Alberto, Uma História da Leitura, Presença, Lisboa, 1988, pág. 105.