LINGUAGEM E MODERNIDADE

Comunicabilidade da experiência e convenções de representação nas sociedades mediatizadas

(Tese de Mestrado em Ciências da Comunicação)


Gil António Baptista Ferreira, Universidade da Beira Interior


Janeiro de 2000

(Introdução; Capítulo I; Capítulo II; Capítulo III; Capítulo IV; Bibliografia)

Conclusão


Chegados a este ponto, verificamos que acabámos por tentar delinear um quadro global para a compreensão da linguagem na actualidade, esta última ligada como está a uma cultura decisivamente vincada pelos media. Trata-se no entanto de um ponto de chegada tão estimulante quanto gratificante, sobretudo porque nos permite a formulação de novos questionamentos, depois da obtenção de asserções (na medida em que tal é possível) em termos que não repetem necessariamente os frequentes tom jubilatório e a opção catastrofista. Central nesta perspectiva é, antes de mais, considerar as relações dos media - sob a ângulo das suas potencialidades comunicacionais - com a modernidade e com o estatuto que nela o homem tem. Porque a questão é precisamente esta: como pensar o que se passa à nossa volta (e dentro de nós, inevitavelmente) com as categorias que a actualidade impõe, no momento em que uma absorvente sociedade da informação procura absorver tudo o que existe, tendendo a esgotar até ao limite o que encontra de concreto e de individual?

Retirar do confronto com as teses e posições expostas argumentos de esperança, tal é, desde já, o objectivo proposto. Por outras palavras, o ‘programa’ que se propõe implica precisamente a intensificação e o adensamento da reformulada experiência quotidiana, onde o indivíduo se entrega à pluralidade de sinais do seu tempo, para emergir deles com o carácter destrutivo que nada veja de durável, mas antes que, em acordo com Benjamin, por toda a parte vislumbre caminhos.

Por fim, eis a asserção central, que aqui implica uma condição dupla: trata-se de impedir as cenas de clausura do sentido convertido em significação, em que física se confunde com semântica, onde se empobrece o imaginário e o individual se vai anulando, acto a acto, tal como o existente, mas em simultâneo romper com a solução irrisoriamente fácil de dizer que o sentido é não haver sentido (o anúncio moderno dostoievskiano de que «depois da morte de Deus tudo é possível»); sabemos que nestes dois extremos se agitam positivismo e niilismo.

Ora, observámos que o tempo em que «o sujeito se perde e se entrega à pluralidade dos sinais do seu tempo»1 é regido pelo acesso universal ao consumo – e sobretudo ao consumo de elementos semióticos e simbólicos, na terminologia de Barthes ou de Bordieu. De facto, a sensação a que chegamos é que o actual emergir de um paradigma comunicacional pode mais não significar que a absolutização da lógica de mercado, e em que tudo se passa no domínio das imagens. E é aqui que surge, então, o perigo actual da nossa relação à experiência: o que está em causa, no fundo, é a afinidade entre a liberdade e a imposição, no horizonte aberto pela crise generalizada que caracteriza a experiência, de que delineámos os contornos. Muito deste perigo assenta na promoção da esfera do vazio, da moldura de um sujeito que só existe no contorno da moldura, da instrumentalidade de dizer que «é assim porque é assim», da passiva aceitação do conforto da materialidade evidente.

Ora, é isso que em grande medida caracteriza a linguagem dos media na actualidade, alicerçada como está na apresentação da evidência e do lugar-comum. Assim, personalidades da cultura, da política ou da vasta categoria que é a sociedade, são com frequência mediatizadas pela evidência, de argumentação ou de conteúdo. No limite mas de modo paradigmático, no próprio panorama nacional personalidades políticas aparecem com facilidade no discurso público por factos irrisórios ou anedóticos como o de comprar gravatas com animais, pelo gosto de viajar de motociclo ou pela preferência clubística. E desta forma se compõe o tal círculo de afectos e de instintos que nos envolve com aquela relação dos outros com o que em nós é sensível a envolvimento; assim se exprime, sobretudo num plano psicológico, a dramaturgia dos enredos do sentido.

Há um deliberado apelo ao convívio imediato: gravatas com animais ou passeios de motociclo significam amistosidade – e são, antes de mais, massivamente significativos. Muito mais significativo que dizer: «ele prefere Keynes a Schumpeter» ou mesmo «é liberal e não marxista», formulações que se afiguram complexas e inadequadas ao discurso público. E assim o indivíduo é publicamente identificado no puro vazio da sua forma; sem razões, sem argumentos, sem verdadeiro confronto, sem interpretação, mas com evidência e pela excentricidade. Donde, a própria subjectividade é transformada numa forma oca: «Eu sou aquele que usa gravatas com animais» e «eu outro sou aquele que viaja amiúde num grande motociclo». Os exemplos invadem de forma inumerável o quotidiano: «Fulano, candidato a autarca, é apoiado pelo cantor X, o cantor X é um folgazão, logo fulano é amistoso, é o nosso candidato», etc. Num plano inferior, palavras e gestos sustentam, apoiam (função fáctica) e mantêm aquele equilíbrio de modo precário que, demasiado convencional, não significa praticamente nada.

Neste ponto, o conceito de mercadoria introduziu a possibilidade (bem sucedida) de uma diferenciação e reorganização daquilo que era antes concebido como descrição universal da experiência: pela cisão meios-fins, qualquer coisa foi reduzida a um meio para consumo. Não tem já qualquer valor qualitativo (valor de uso) em si própria, têm-no – e pode ser quantificado – na medida em que pode ser trocada (valor de troca). A força de um qualquer fenómeno é antes de tudo classificada pelos seus efeitos imediatos, de que a popularidade é sem dúvida o mais gritante. E no que diz respeito aos media, essa popularidade surge reconhecida como critério prioritário pelos analistas e especialistas, atentos sobremaneira à quantificação da apropriação colectiva das diversas variáveis: imagem, discurso ou postura, entre outras. Tornam-se correntes expressões de ‘especialistas’ do tipo: “o indivíduo x tem uma imagem que passa na opinião pública” ou “no plano das imagens, fulano é um enigma”. Ora, para fixar os parâmetros do conteúdo dos produtos de consumo não-material, sobre os quais a nossa análise se detém, há que reter o carácter demagógico – digamos assim – que se atribuiu à linguagem: são visíveis a uma análise menos incauta a procura constante da sintonia com as solicitações dos consumidores e o esforço de compatibilização integral (não de confronto) com os anseios do público, em acordo com levantamentos estatísticos orientadores da sua preferência.

A linguagem dos media serve-se pois da conversação coloquial, de personagens reconhecíveis, de situações estereotipadas; o que está em causa é a própria dinâmica de uma sociedade massificada cuja lógica faz com que a produção se organize em indústria e o consumo se estruture em termos de comércio. Para tal, importa conhecer de antemão o que as pessoas querem (cfr. Hauser), não se pode arriscar na incerteza e por isso a imposição das sondagens nos diversos esquemas de planificação discursiva. É ainda neste sentido que, por exemplo, uma publicidade na televisão anuncia música «to make love» com a naturalidade de quem dá sempre as melhores sugestões: a arrepiante erosão da autoridade que existe no fundo de cada um de nós pela programada e competente imposição social, que matiza, que rectifica. E assim, com a economia de mercado, cai também a ilusão da autonomia do sujeito e da sua discursividade, que era, sem dúvida, uma condição prévia da modernidade. Diz Heiner Müller: «a arte é o que se quer, não o que se é capaz de se fazer (...) a aparência da livre opção é uma ilusão de liberdade.»2 Da mesma forma, verificamos como o discurso não é expressão da verdade, mas antes da ilusão, não é um discurso dialogal, mas antes sedutor.

Deste modo, muito do ‘perigo’ actual assenta na convergência entre linguagem e tecnologia, que Adriano Duarte Rodrigues refere como logotécnica, e que parece constituir um limiar decisivo neste processo.3 Nesta situação, o absolutismo discursivo surge aparentemente entrelaçado com a crise da experiência, com a ilusão de ‘dominar’ o existente, de reconstruí-lo e de aperfeiçoá-lo por uma teoria ou uma técnica exacta: o conhecimento apresenta-se «como domínio da racionalidade instrumental sobre os diferentes mundos da experiência».4 Paradigmática (também no limite) é a proposta, por parte de uma multinacional (Philips), de comercialização de um telefone que eliminaria todas e quaisquer distorções à clareza (e evidência) da voz do utilizador, desde a respiração a sons contextuais, tremores suaves ou qualquer traço não verbal de emotividade. Segundo a anunciada promessa, as palavras sairiam ‘limpas’ e exactas; a técnica suplanta aqui a natureza e assenhoreia-se dos filamentos e das inclinações que compunham as palavras como um feixe de emoções localizadas, instáveis e fugidias. Daí a instauração da modalidade instrumental do pensamento, cujo princípio, «a operacionalidade e a automatização, não é o questionamento e a reflexividade.»5

A um nível de conteúdo discursivo, há a liquidação (parcial?) da autonomia individual em função do género ou do estilo mercantizável; a arte tem também ela uma função social, quantificável (personalidades notáveis elaboram episodicamente diários com uma dimensão pré-definida, a publicar logo que cada volume esteja elaborado para o público, numa equívoca actividade balouçada entre a criação e a venda, entre a emoção e a contabilidade). Sem dúvida que se nos apresenta a abrangente ameaça do papel do tecnológico, que, nos diversos domínios, permite realizar projectos impensáveis há poucos decénios. Lamentava-se Heiner Müller, no congresso de 1978 da Modern Language Association em Nova Iorque: «Entretanto, esta actividade [arte] é desempenhada – também no país donde venho – por especialistas mais ou menos qualificados para ela. (...) No smog dos meios de comunicação, que também no país donde venho rouba às massas a visão da situação real, lhes apaga a memória e lhes torna a fantasia estéril, o alargamento faz-se à custa do nível.»6


Retomando as percepções anteriores, julgamos haver dois processos de constituição da discursividade que, de certo modo, se fundem. Por um lado, temos as questões da indústria cultural e dos seus efeitos. Pelo outro, temos o desafio que se coloca ao indivíduo (em especial a pensadores e artistas) para resgatarem os valores espezinhados ou esquecidos, a liberdade e a verdade, o confronto da negatividade e a exigência de sentido. O que de certo modo se insinua na mistura dos dois processos instaurados, é que o desenvolvimento da democracia cultural impede o trabalho autónomo dos actores culturais – com a correspondência natural ao domínio da discursividade. Ora, a questão que se coloca é apenas: será impossível que assim seja?

A aceitação desta impossibilidade não encontra qualquer ponto de suporte neste trabalho; qualquer renúncia será sempre uma preço demasiado elevado a pagar e que, em última instância, determinará a ruína da própria ideia de democracia. A verdadeira questão será então a seguinte: não se poderá lutar, não contra a indústria cultural, mas no terreno da indústria cultural? Em suma, seria o reactualizar do mito de Dédalo, o paciente construtor do Labirinto de Creta, que conhecendo na perfeição o Labirinto, haveria de contribuir para provocar a morte do Minotauro.7 Esta posição é documentada fundamentalmente pelas teses benjaminianas do ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, que em breves palavras, postulavam o desaparecimento da aura estética num contexto de produção e recepção da obra de arte. Os novos meios, avança Benjamin, pela sua própria natureza, põem em questão conceitos como os de originalidade e individualidade da obra de arte; ora, aqui vê Benjamin representada a possibilidade de superação das aporias da arte moderna e a possibilidade de reconquistar para esta um sentido colectivo. Não cabe aqui aprofundar todos os aspectos da controvérsia sobre o texto de Benjamin; adiante-se apenas que a reprodução mecânica da obra de arte não garante por si só um potencial emancipador. Mas ressalve-se contudo que deixa aberto um manancial de possibilidades que cabe a cada indivíduo explorar. Ora, é a «fértil, a viva experiência, que permite aos homens sair da sua fascinação ébria.»8 Em situações próximas da equívoca actividade do marketing e das suas razões performativas, ainda assim, existirão momentos de encantamento que justificam o dispositivo de massa que os sustem.

O confronto das diversas questões e respostas formuladas neste trabalho deve servir para sustentar uma proposição que dele se deve ressalvar. Pretendemos mostrar que todas as formas de discursividade, sejam as de arte ou as de cultura de massa, trate-se do modernismo ou da cultura comercial, têm um impulso subjacente – se bem que muitas vezes numa forma inconsciente, distorcida e reprimida. Trata-se do nosso espírito mais profundo constituído sobre a natureza da vida social, tal como a vivemos antes, como a sentimos e vivemos agora e ainda como imaginamos que deveria ser vivida: alguém falará lá longe, e, num insuspeito encontro ou num arrebatamento súbito, de repente sucederá o face a face com a nudez da palavra.

Despertar, não uma vez mas sucessivamente, no meio de uma sociedade moldada por variáveis inéditas, obcecada pela tecnologia e bombardeada por solicitações discursivas; alguma compreensão do impulso inenarrável que pode - ainda assim -, ser ‘conhecido’, não importa quão vaga e debilmente, mas de forma tão segura nos mais degradados produtos da cultura de massa como nos clássicos do modernismo – eis o que são, sem dúvida, pressupostos indispensáveis de toda a intervenção com sentido na cultura contemporânea. Com uma ideia presente: «Não pecámos somente comendo do fruto da Árvore do Conhecimento, mas também porque não comemos ainda do fruto da Árvore da Vida.»9

1 Ribeiro, António Sousa, «Para uma Arqueologia do Pós-modernismo: a Viena 1900», in Revista de Comunicação e Linguagens, Moderno / Pós-moderno, Lisboa, Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, 1988, pág. 144.

2 Müller, Heiner, «Sobre o Pós-modernismo» in Revista Crítica de Ciências Sociais, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1980, pág. 12.

3Rodrigues, Adriano Duarte, Op. cit., pág. 116.

4 Ibid., pág. 129.

5 Ibidem.

6 Müller, Heiner, Op.cit., pág. 12.

7 Cfr. Hamilton, Edith, A Mitologia, Lisboa, Dom Quixote, 1991, pág. 219.

8 Benjamin, Walter, «El surrealismo», pág.61.

9 Kafka, Franz, «Meditações», pág. 123.