LINGUAGEM E MODERNIDADE

Comunicabilidade da experiência e convenções de representação nas sociedades mediatizadas

(Tese de Mestrado em Ciências da Comunicação)


Gil António Baptista Ferreira, Universidade da Beira Interior


Janeiro de 2000

(Introdução; Capítulo II; Capítulo III; Capítulo IV; Conclusão; Bibliografia)

Capítulo Primeiro

DA LINGUAGEM COMO MODO DE COMUNICAÇÃO



Pensamento, linguagem e significação

Como ponto de partida para um estudo do estatuto da comunicação na actualidade, sem dúvida que se assume de interesse essencial a compreensão do processo de formação da linguagem, assim como o modo de constituição e organização do pensamento do homem. Partiremos da ideia de que pensamento e linguagem se entrecruzam; se na constituição de qualquer conteúdo é relevante o papel da experiência, parece também incontornável abordar as condições em que se dá a linguagem e a significação, partindo então para uma pesquisa das suas condições de possibilidade (dos seus limites). Consideramos, ainda, que o próprio estudo do pensamento se assume associado ao estudo da linguagem, sustentados pela relação entre a conduta, o pensamento (como discurso interior levado a cabo face a elementos exteriores) e a linguagem que utilizamos.

Foi desta relação que George Herbert Mead se dera conta, desde o início deste século. No seu trabalho principal, Mind, Self and Society, Mead parte da percepção de Wundt da existência de um «paralelismo entre o que ocorre no corpo e o que sucede nas próprias experiências».1 A partir do exemplo da reciprocidade do comportamento dos cães e da esgrima ou pugilismo, apercebera-se Wundt que um gesto serve de estímulo para outras formas de actos. Há uma adaptação instintiva à atitude do outro, num peculiar jogo recíproco que leva os gestos a executarem funções, e assim a provocarem reacções nos outros, funcionando como estímulos para uma readaptação.

É assim que se assume, desde já, a importância do conceito de gesto – muito embora um conceito usado por Mead ainda com alguma hesitação, «em sentido geral»,2 lato. Não servindo como expressão de emoção por parte do “actor” (agem como estímulo para outras formas que estão sob estimulação social), os gestos são no entanto expressões de emoção para os observadores. Por outras palavras, num primeiro momento, os gestos funcionam como fases de um acto que produz a reacção e a adaptação da outra forma. Mas estas fases levam consigo a atitude, tal como a reconhece o observador (a atitude interna do “actor”). Ora, é por detrás dessa atitude que o observador supõe também uma ideia – mas uma ideia fruto da sua própria experiência, como adiante veremos -, e, assim, a expressão de uma emoção.

Neste ponto, o gesto representa uma ideia por detrás de si e provoca essa mesma ideia noutro indivíduo; então teremos um símbolo significante. Dito de outro modo, há um símbolo significante quando um gesto implicitamente provoca no seu autor a mesma reacção que provoca explicitamente nos outros indivíduos.3 Se o gesto é primeiro parte de um acto individual, frente a si há uma adaptação dos outros indivíduos, iniciando então um processo social – em que é produzido um (mesmo) efeito sobre eles. É de um significante que remete para (ou representa) certo significado que aqui se trata: foi a sua referência a outros indivíduos que transformou a expressão (que no sentido wundtiano seria entendida como mera expressão de excitação nervosa) em significado, com valor social.4 E, neste ponto preciso, converteu-se já o gesto em algo que Herbert Mead considera linguagem: constitui então imagens, de certo modo resplandecentes.

Em suma, numa fase anterior, a linguagem é «primeiro a atitude, o relance do olhar, o movimento do corpo e das suas partes, indicando o acto próximo a que os outros indivíduos devem ajustar a sua conduta.»5 É linguagem quando é já discurso comum tanto ao indivíduo como a todos os envolvidos no acto: naquele momento em que «his speech is their speech».6 E aqui, a fala mais não é que uma forma de gesto: «o gesto vocal converte-se em símbolo significante quando produz o mesmo efeito sobre o indivíduo a quem está dirigido ou que se relaciona a ele.»7



A compreensão do processo interaccional e das suas implicações afigura-se assim decisiva. O pensamento é, nesta perspectiva, conversação subjectivada ou implícita do indivíduo consigo mesmo.8 Porém, a essência do pensamento assume-se como a internalização na experiência das conversas externas de gestos, levadas a cabo com outros indivíduos; uma conversação apenas possível por meio de tais gestos, verdadeiros símbolos significantes, dado terem as mesmas significações para todos os membros da sociedade ou grupo social.

Neste sentido, a linguagem expressa uma série de símbolos, que respondem de modo idêntico à experiência dos diversos indivíduos. Evidencia-se a extrema relevância do símbolo: com efeito, nestes termos pode haver pensamento (conversação subjectivada, repita-se), inteligência ou espírito. E nesta perspectiva consideramos o processo social da experiência como prévio, mesmo que numa forma rudimentar, à existência do espírito – uma vez que a origem dos espíritos se explicaria em termos da interacção dos indivíduos dentro desse processo.9 O espírito surge assim de uma conversação de gestos num processo social ou num contexto de experiência, isto é, através da comunicação – e não a comunicação através do espírito -, que, sublinhe-se, se assume fundamental para a natureza do espírito, neste sentido.10 O mesmo é dito de forma bem explícita num outro momento; segundo Mead, «é vestindo-se a si próprio no papel de um outro que o ‘self’ nasce na experiência», na interacção do confronto.11

Mas atente-se, ainda, na inscrição da experiência humana no desenvolvimento da linguagem: há um conjunto de reacções mais ou menos ligadas entre si que se manifestam quando usamos um vocábulo, como vimos. Ora essas reacções são (graças a experiências prévias) despertadas tanto em nós como no outro indivíduo. Vimos ainda como é a relação do símbolo (que pode ser um gesto vocal) com a série de reacções no próprio indivíduo como nos outros, que faz com que esse gesto se converta num símbolo significante. É sempre pela forma como nos afectamos a nós, no processo social, que vamos afectar os outros; intervimos nas situações sociais graças à compreensão do que dizemos.

Ora, é o facto do símbolo possuir a capacidade de nos afectar e aos outros que poderá explicar a tese de um certo acento musical que as linguagens primitivas teriam vincado fortemente nas frases: a linguagem, no início da sua história, seria uma linguagem passional tornada musical, como mostraram Carlyle e Spencer, entre outros. Uma palavra reuniria em si, na unidade de um único vocábulo, sentido, nome, pessoa, tempo, modo e voz: categorias gramaticais que, ao longo da história das línguas se viriam a tornar distintas. A civilização viria contudo a moderar tal carácter e expressividade. E assim, partindo de línguas compostas por palavras-frase, o desenvolvimento da linguagem ter-se-á feito pela supressão da musicalidade e pela combinação de elementos independentes, numa tendência evolutiva em que se passou de «conglomerações» irregulares a elementos curtos, livre e regularmente combináveis e utilizáveis.12 Também como gesto, no sentido proposto por Mead, a linguagem é antes expressão de uma emoção – no seguimento da proposta wundtiana. Contudo, para além da significação emocional cresce depois a significação intelectual, e a referência a outros indivíduos transforma a expressão da emoção em significação social, fornecendo as bases da comunicação num campo de interacção social.13

Mas, retomando o processo de constituição da linguagem, os efeitos do símbolo não são imediatos. O símbolo converte-se num estímulo, primeiro, para uma etapa posterior da acção, que ocorrerá do ponto de vista de uma reacção: produz um estímulo que se coloca antes de uma reacção posterior. É este aspecto que caracteriza o homem como ser reflexivo e o distingue na sua conduta dos animais: o homem coloca-se numa posição pela qual é responsável, «põe-se no lugar de outra pessoa e diz, virtualmente: ‘Actuaste de tal modo e eu actuarei deste outro’.»14 É então este o sentido de uma coisa, a sua significação.

E assim chegamos a mais uma posição decisiva: na procura do sentido do comportamento expressivo tomamos em conta a relação entre os padrões observáveis do mundo exterior e os padrões não observáveis da mente.15A significação tem assim duas referências, uma para a coisa que para nós mesmos indicamos e outra para a resposta, a instância a que se dirige o significado ou ideia. Conota por um lado e denota por outro. Nos termos de Mead, quando é usada para o próprio é um nome; se usada para o outro, é um conceito. Mas nada denota ou conota excepto quando estas formas se encontram dirigidas para o próprio indivíduo e para outros, num «universo de discurso orientado e com referência ao indivíduo».16 De certo modo, antecipa-se aqui a posição hermenêutica assumida por Ricoeur, que atribui à significação uma dupla dimensão: objectiva e subjectiva. A dimensão objectiva da significação é veiculada pelo conteúdo proposicional do discurso; a dimensão subjectiva traduz-se na referência ao locutor que transparece na frase, na sua dimensão ilocutória e na procura da intenção do locutor por parte do ouvinte.17

Mas atente-se desde já em que a dialéctica subjectivo-objectivo não esgota o significado: tudo isto se processa num círculo de experiências, de instintos, de palavras e de gestos, que sustentam cada significação num equilíbrio precário. Estamos, de certa forma, vinculados a esse círculo que envolve ainda a relação dos outros com aquilo que em nós resiste a qualquer forma de envolvimento; e é neste aparente paradoxo (que o presente trabalho procurará esclarecer) que reside o ‘segredo’ dessa comunicabilidade que ‘travamos’ com os outros.

Paul Valéry, entre outros, defendia também ele a ideia de que todo o acto comunicativo exige um processo reflexivo, de transporte, semelhante ao que se opera na transmutação de uma língua para outra.18 Além disso, prosseguia ainda, a orientação do discurso na direcção do outro é notória nas formas diversas como ‘discursamos’: temos uma linguagem (com nomes) para nós próprios mas também uma linguagem (de conceitos) para os nossos parentes, uma para o amor e outra para o ódio, uma para a poesia e outra para a prosa, e tudo isto com o mesmo vocabulário (mais ou menos extenso, é certo) e com a mesma sintaxe.19 Toda a linguagem assenta, enfim, numa significação pragmática, social, em que «palavra e figuração constituem a argamassa que aglutina os elementos da célula étnica.»20

Mas na linguagem, onde (sendo embora expressão do pensamento) todos os constituintes gravitam em torno de pontos centrais, cada conceito assume-se pleno de representações complementares ou opostas, encontrando-se assim marcado justamente pela flexibilidade das imagens e por um halo de associações.21 Isto porque na génese da linguagem estaria o comportamento imitativo, resultado da experiência interaccional – uma análise que nos levaria, pelo menos, à figura do elemento onomatopaico. Neste sentido, a linguagem funciona como um cânone que permite ordenar as diferentes palavras e diferentes gestos com o mesmo significado (mas muitas vezes sem qualquer semelhança entre si) em torno desse significado, como se ele fosse um ponto central.22

A posição de Mead concede ainda à comunicação uma outra possibilidade: ela é também responsável pelo aparecimento de novos objectos no campo da experiência dos organismos individuais envolvidos em cada processo. A simbolização constitui objectos antes não constituídos, objectos que não existiriam a não ser pela relação social em que se inserem. Tal processo de constituição de objectos e de significações através da simbolização é também ele de importância decisiva para a compreensão das potencialidades da linguagem, e será retomado com frequência no decurso deste trabalho, em outros contextos e aplicado a formas de comunicação aparentemente mais complexas (como é o caso da comunicação mediática). É também uma ideia recorrente na literatura (peculiar medium que tão bem se alimenta dessa potencialidade); encontra-se, por exemplo, admiravelmente ilustrada no célebre soneto do unicórnio de Rainier Maria Rilke, que não resistimos a transcrever:


«Este é o animal que não existe.
Eles não sabiam e em todo o caso
amaram-no – o andar, a postura,
o pescoço, até a luz do calmo olhar.

Certo que não existia. Mas porque o amavam,
nasceu um bicho puro. Deixavam sempre espaço.
E neste espaço claro e reservado
ergueu a fonte leve e apenas precisava


de existir. De nenhum grão o sustentaram,
sempre só co’a possibilidade de existir.
E esta deu ao bicho tanta força


Que expeliu da frente um corno. Um corno.
Branco se aproximou duma donzela –
e no espelho argênteo ficou e dentro dela.»23



Em suma: tratando-se embora de uma exemplar quimera poética, narra como o unicórnio se torna realidade pela sua sustentação social. As reflexões de Paul Ricoeur, a este propósito, assumem-se com relevância. Com efeito, o discurso, ao contrário da língua, constitui um evento, um acontecimento sujeito ao tempo, e portanto, evanescente. Daqui resulta precisamente a necessidade de fixação – fixação do discurso e da sua significação, não do evento que lhe deu origem: «o facto humano desaparece. (...) O que escrevemos, o que inscrevemos é o noema do acto de falar, a significação do evento linguístico, e não o evento enquanto evento.»24

Assim, a tese que avançamos é clara: a experiência (mesmo que apenas enquanto mera experiência comunicacional) assume-se como ponto de partida e condição de possibilidade para a constituição dos objectos que compõem o horizonte de cada indivíduo. E deste modo surge a essência do pensamento delimitada pela internalização de experiências de interacção entre os indivíduos - interacção esta essencial para a formação do espírito, e que se afirma, como vimos, na comunicação.

Temos então que a experiência da comunicação é indissociável da experiência do mundo, e é a partir daqui que se torna possível a construção de uma teoria do indivíduo (do Self), instância onde o indivíduo toma consciência de si na relação com os diversos pontos de vista dos membros do seu grupo.25 Em suma, uma reflexão que implica uma passagem pela hermenêutica e se debruça sobre um Si (Soi), não no sentido do cogito ergo sum cartesiano, mas que se constitui como tarefa, que «precisa ser mediada pelas representações, acções, instituições e monumentos que a objectivam. É nesses objectos, no sentido mais lato da palavra, que o ego deve perder-se e encontrar-se.»26

Também este sistema de determinação de significações viria a ser nuclear nos posteriores estudos da comunicação interaccional - considerada a partir das diversas situações de interacção humana -, que concebem a comunicação como um sistema de múltiplos canais em que cada emissor participa a todo o instante, quer queira quer não, tão só por ser membro de determinada cultura.27 E é deste modo, precisamente, que após um esforço psicanalítico e antropológico, se dá uma verdadeira invasão do culto do corpo (do gesto), de que os múltiplos estudos que floresceram nos Estados Unidos são reflexo (estudos da comunicação interaccional de Palo Alto, entre outros). Pretende-se fazer falar o corpo, criar um discurso do corpo, no sentido da sua libertação e expressão.


Neste sentido, é através dos métodos terapêuticos florescentes ao longo deste século e da crescente cientificidade das diversas áreas do saber (inseridas um momento chave que oportunamente apresentaremos) que se pretende, a propósito de tudo e de nada, descobrir «um discurso do corpo»; o objectivo aqui, em dado momento, passaria por descobrir uma língua do corpo à qual se subordinaria qualquer outra forma de linguagem. Se as consequências de um processo de instrumentalização da linguagem serão frequentemente reflectidas no decurso deste trabalho, parece desde já oportuno observar como linguagem e técnica se encontram num mesmo plano logo a partir do momento em que a escrita passa a ser o meio para registar foneticamente o encadeamento do discurso de forma mais eficiente.

Quer isto dizer que, se antes a interacção (simbólica por natureza) permitia o aparecimento de algum halo de imagens associadas, a eficácia técnica progressiva da escrita, por seu lado, é já proporcional à eliminação de tal halo. No sentido do antes afirmado acerca da simplificação da palavra-frase, decomposta e tornada reconfigurável descontextualizada, é também para um restringimento das imagens geradas por cada indivíduo que a escrita tende, ao partir da rigorosa linearização dos símbolos.

Possuindo o alfabeto, dispõe o indivíduo de um utensílio pelo qual o símbolo pensado se submete à mesma notação, na palavra e no gesto.28 É neste sentido - embora em contexto diverso - que Walter Benjamin cita Lesskov, que bem dera conta do que significava o declínio da narrativa, aquela arte artesanal própria da capacidade de trocar experiências, o narrar, substituída pela «técnica industrial» face à qual o escritor russo se sentia estranho: «A escrita – diz [Lesskov] numa das suas cartas – não é para mim uma arte livre, mas um ofício.»29 É esta uma ideia central em Benjamin, retomada também no ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, em que a reprodução técnica que facilita a circulação multiplicada (ao serviço da mercantilização) provoca alterações profundas que implicam a perda da existência única em se que cumpre a história30 – aspectos que, contudo, oportunamente aprofundaremos.



Das potencialidades da comunicação

A partir deste momento, há uma questão que se assume com premência: que comunica esta linguagem? Ou antes, que comunica a linguagem daquela experiência que a originou? O pensamento, na forma de conversação subjectivada ou implícita do indivíduo consigo mesmo por meio de gestos significantes, não será por definição algo de indeterminado, único, indizível, e por isso em alguma parte incomunicável? Mas, assim sendo, onde vai o significante buscar a necessária plasticidade que implique simultaneamente o plano da expressão e o plano do conteúdo?

De certa forma, é a isto que parece responder Walter Benjamin no ensaio Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem Humana. Neste texto emblemático, linguagem significa, antes de mais, uma orientação para a comunicação de conteúdos intelectuais; isto qualquer que seja a forma que tal comunicação assuma, sendo a comunicação pela palavra apenas uma dessas formas possíveis. E assim, na linguagem participam «toda a natureza, acontecimento ou coisa, seja na natureza animada, seja na inanimada (...), porque a todos é essencial a comunicação do seu conteúdo espiritual».31

É a partir daqui que Benjamin postula como o mundo em que vivemos nos comunica incessantemente a sua linguagem. Distingue então dois tipos de essências: a essência espiritual e a essência linguística, essências a comunicar na linguagem (que distingue de comunicar pela/através da linguagem, concepção da linguagem que designaria como burguesa). Ora, a linguagem, em acordo com esta perspectiva, comunica a essência espiritual das coisas, mas apenas na medida em que essa essência for comunicável, por estar contida na essência linguística das coisas. A essência espiritual da natureza é uma linguagem sem voz e sem nome. E essa linguagem da essência espiritual acaba por ser, assim, o que nessa mesma essência espiritual for comunicável.32 É essa, então, uma comunicabilidade apenas possível na linguagem; através da linguagem nada se comunica, e por isso ela é imediata, indeterminada e infinita. Assim, na relação entre linguagem e acção, Benjamin mostra que, por mais variadas que sejam as formas de acordo em que a linguagem se pode revelar eficaz, ela não o é comunicando conteúdos, mas antes trazendo à luz do dia, da maneira mais pura, a sua dignidade e a sua essência.

Desta forma, os limites da linguagem não são determinados pelos conteúdos verbais, mas antes pela essência linguística das coisas que se comunicam ao homem. Mas, é óbvio que podemos determinar o contorno dos conteúdos verbais. Então, se a essência das coisas se comunicasse através deles seria ali logo determinável, e a linguagem teria assim um carácter instrumental; esta é a concepção que Benjamin considerou burguesa e que procurou afastar.

A posição benjaminiana é que a linguagem humana exprime e comunica antes de toda a comunicação intencional – ela comunica em si mesma, antes de qualquer função meramente pragmática. Ao realizar esta separação, Benjamin procura mostrar o abismo que se depara entre a consideração da linguagem como simples instrumento de comunicação de conteúdos (que nos merecerá atenção especial, em outro contexto) e a consideração da natureza mágica da linguagem (uma natureza que se desdobra em procura, em inquérito, em reconhecimento, em revelação) que se comunica a si própria. Da articulação de cada uma das margens deste abismo decorrem consequências profundas em domínios determinantes, nomeadamente ao nível da configuração do mundo e correspondente organização de vivências.

Temos pois que, na sua própria linguagem, as coisas e os seres da natureza se comunicam ao homem. Ele é o «senhor da natureza»;33 natureza e seres vivos comunicam-se-lhe, e ele, como instância privilegiada da Criação, nomeia-os e alcança assim o seu conhecimento. Ao mesmo tempo, nomeando, o homem expressa ainda a sua própria essência espiritual – no nome, precisamente. Contudo, quando no quotidiano designa as coisas, então manifesta – tão só - a sua essência linguística. Com este acto do homem – o conhecimento das coisas pelo nome, primeiro, e a comunicação da sua essência espiritual pela denominação, depois, - se dá a «verdadeira invocação da linguagem», e «a criação empreendida por Deus atinge a sua perfeição».34

Também Herbert Mead considerara a conversação de gestos, num processo social ou contexto de experiência, como a alavanca de emergência do espírito. Na simbolização, os objectos constituíam-se perante o homem e existiam no espírito: e a atribuição do nome era assim condição para a existência de espírito. Como vimos, a teoria da significação proposta por Mead é baseada em termos de uma relação tripla entre o agente do gesto, o objecto referido e o indivíduo a quem o gesto é dirigido. A operacionalidade dependeria da universalidade do significado nos intervenientes. E considerava–se assim que «todos os nossos símbolos são universais», desde que mediados em termos da tripla relação referida.35

Mas daqui uma surge, uma vez mais, a questão: qual poderá ser a eficiência de uma objectivação discursiva, delimitada por natureza, da conversação subjectivada do indivíduo (pensamento)? Trata-se sem dúvida de um desafio que percorre, de certa forma, toda a cultura ocidental, e que é ilustrado por exemplo também pelo mítico Fausto, a célebre personagem de Goethe: «Que espectáculo! Mas ai! Onde apanhar-te, natureza infinita? Não poderei eu também apertar os teus seios, de onde o céu e a terra estão suspensos? Eu quereria beber esse leite inesgotável... mas ele corre por toda a parte, inunda tudo, e debalde eu enlanguesço desejando-o!»36 Ou seja, se à luz dos conceitos benjaminianos, expressos no ensaio Sobre a Linguagem, nos damos conta de um transporte da linguagem das coisas para a linguagem humana – para a linguagem dos nomes -, verificamos também que essa transposição implica reservas que não se podem dissipar nem superar (de modo universal) quando se questiona a operacionalidade dessa translação.

Refira-se, a propósito, que tentativas no sentido de lançar as bases de um sistema de notação dos elementos significantes, nomeadamente os relacionados com a origem de uma «géstica», se encontram enraizados numa já longa tradição: em 1599, por exemplo, Arcangelo Tuccaro publicava os Trois dialogues de l’exercice de sauter, et de voltiger em l’air, onde propunha «substituir uma designação global, metafórica e mágica por uma descrição científica dos gestos e saltos do acrobata».37 Mas, concluiu-se ainda, também o corpo resiste a este desejo de «descrição científica». Os problemas que se põem a esta – como a qualquer outra, veremos – tentativa de objectivação partem do seguinte: poder-se-á conceber um sistema de signos próprio do corpo? Há duas tarefas essenciais a realizar: «1. Cortar o continuum dinâmico em unidades discretas elementares, objectivas e mensuráveis; 2. Apreender, independentemente dos cortes linguísticos, unidades sintagmáticas formadas pela combinatória destas unidades constitutivas.»38

Mas, e para além das dificuldades anteriores, mantém-se ainda a questão central: que comunica a linguagem humana, na sua plenitude? E a quem, qual é o seu destinatário? A tese de Benjamin é que a linguagem exprime e comunica antes de toda a comunicação intencional. E que a comunicação entre os homens através da linguagem apenas ilusoriamente pode ser considerada instrumento de comunicação de qualquer conteúdo particular. Esta será, pois, uma questão recorrente neste trabalho; com a análise hermenêutica, para já, veremos que mais correcto seria dizer que a linguagem nos fala do que dizer que a falamos, e que são os usos linguísticos que nos conduzem a qualquer compreensão e não a subjectividade do autor, 39 tese que sintetizará, de certa forma, as percepções consideradas, de Mead a Benjamin. Porém, estes são aspectos a merecer especial abordagem em outro contexto.



A inscrição da experiência na linguagem

Em grande medida próximas de uma concepção que implica linguagem e pensamento estão as relações que um polemista e jornalista austríaco da primeira metade do século, Karl Kraus, percebeu na linguagem. Relações que, em dado momento, descreve mesmo em termos de epopeia erótica: «Eu não domino a língua; a língua é que me domina totalmente».40 E define, de modo percursor, a linguísticidade do pensamento, uma tese cuja relevância será explicitada adiante: «Não a considero [língua] servidora dos meus pensamentos. Tenho com ela uma relação que me faz conceber pensamentos e ela pode fazer de mim o que quiser».41

É a partir desta convicção que, também de forma até então inédita (na viragem do presente século), a concepção burguesa e instrumental da linguagem passa a ser o alvo do ataque do escritor austríaco: «a língua é uma soberana dos pensamentos», insiste, «e, se alguém consegue inverter a relação, ela passará a ser útil em casa, mas negar-lhe-á o seu colo».42

Mas, que comunica então a linguagem do homem, uma vez afastada a convicção burguesa que a entende como fiel servidora aos pensamentos? A resposta a tal questão é dada explicitamente por Benjamin, e tem a ver com uma certa forma desdobrada de encarar a linguagem, em verdadeira aporia. Da mesma forma que as coisas e seres da natureza se comunicam ao homem na sua linguagem, tornando-o ente privilegiado e receptáculo da comunicação do mundo, o ente humano, quando nomeia as coisas, comunica também ele a sua essência espiritual.43 É na percepção deste processo por parte dos artistas que reside o seu incessante (e decisivo) abandono à transmissibilidade do que comunica: «(...) para nós, nada mais há na natureza senão versos em fragmentos: disjecti menbre poetae. Recolhê-los, eis a tarefa do sábio, interpretá-los, a do filósofo; imitá-los, ou mais audaciosamente ainda! Conformá-los ao destino, a do poeta.»44 Há, assim, uma comunicação da essência espiritual do homem, transmitida na sua linguagem, que se comunica a Deus, destinatário último da essência espiritual do homem.

Deus é nomeado para responder à pergunta «a quem se comunica o homem?» e para justificar o carácter único do nome, que apenas consagra o louvor daquele a quem a vida foi concedida e, portanto, de quem a concedeu.45 E assim, também Benjamin livra a linguagem de uma concepção instrumental, que a concebia de modo a que «o meio de comunicação é a palavra, o seu objecto a coisa, o seu destinatário um homem».46 Acima (e antes) de tudo, no nome - «no qual a própria linguagem se comunica, em absoluto» - comunica-se a essência espiritual do homem a Deus, e a comunicação não se detém como uma revelação sem destinatário. Aí se dá «a verdadeira invocação da linguagem.»47 Recordemos também aqui a linguagem que o xamane fornece ao doente nas sociedades primitivas: com essa linguagem podem ser expressos estados informulados, que nesse momento são passados à forma de expressão verbal. Ora, esta é uma passagem que se processa pela compreensão da linguagem do xamane – uma língua secreta e esotérica a que por exemplo os Kadag, xamanes da Geórgia, chamam a dzhvart ena, a linguagem dos deuses.48

Mas, à luz da concepção benjaminiana da linguagem, só no nome que as coisas recebem do homem se dá essa perfeição. No nome, «o homem alcança, por si próprio, o conhecimento delas [coisas]»49 na sua denominação universal, e nele se exprime a linguagem. Exprime-se, contudo, enquanto essência espiritual comunicável (nomeação) e essência comunicante (denominação). O que denota a imperfeição da linguagem: «a essência espiritual que dela emana não consiste apenas na sua [essência comunicante] estrutura global»,50 ou seja, nesse ponto a essência espiritual não é comunicável. Dizia a bruxa do Fausto como «o saber que é mais profundo/ não é dado a ninguém no mundo», muito embora acrescentasse também que «o saber universal/ vem revelar-se afinal/ a quem por tal não se esforça»,51 aparente contra-senso, que, contudo, se tornará claro no decurso do presente trabalho.

Mas, retome-se o anteriormente dito acerca do carácter duplo da significação, uma percepção apontada, havíamos visto, desde Herbert Mead. Com efeito, também aqui a significação tem uma referência quando usada para o próprio - é então um nome -; mas já é um conceito, se dirigida ao outro. Daqui a pertinência, para já, da formulação hermenêutica do afastamento da significação relativamente ao evento, a instauração da autonomia semântica de um texto, governada agora pela dialéctica de evento e significação.52 Em suma, a posição benjaminiana é que «a linguagem comunica uma essência espiritual»; em termos meramente operativos, no quotidiano, ela é (tão só?) «uma comunicabilidade» onde não existe (a não ser de modo fugaz porque coincidente) essência espiritual. É neste mesmo sentido que, diz-nos Filomena Molder, «a linguagem das coisas, a mudez, recua diante da linguagem do som articulado, o silêncio do que é anónimo, recua diante do nome dito.»53



A interpretação como tarefa de “depuração”

Consideramos, pois, as diferentes linguagens como variáveis e indeterminadas: variam no processo de mediação, tanto na esfera do comunicante (denominante) como na do comunicável (nome). Ora, a equiparação de uma esfera com a outra dá-se segundo uma graduação das próprias essências em níveis, num permanente conflito que opõe expresso e exprimível, e não expresso e não exprimível. No limite, «vê-se na perspectiva do inexprimível a última essência espiritual».54 E assim, a linguagem tem uma palavra própria. Ao receber o que de inominado há no nome, ela encontra ainda, no domínio linguístico, condições de recepção e de espontaneidade. Para além da tradução (ou conversão) da linguagem das coisas na linguagem do homem, do insonoro no sonoro, converte-se também o que não tem nome no nome.55

Com o aval divino, transformamos a linguagem das coisas, muda e sem nome, em nome e som; e neste sentido falar é traduzir, porém não no sentido da decifração de um texto já existente, mas antes como aparição própria das coisas, que, como vimos, se revelam na medida em que são nomeadas – é a tese defendida por Hamann56 e em grande parte (de forma explícita) retomada por Benjamin. Ora, o facto de, na medida em que são nomeadas as próprias coisas aparecerem, é uma ideia também ela presente já no processo interaccional de Mead. De certo modo, assiste-se ao reproduzir de uma certa posição que considera ser a palavra da criação, caminhando por todos os tempos e lugares, aquela voz que traduzimos quando falamos. E então o nosso falar é já uma partilha dessa voz, da voz de cada coisa; uma voz que sempre convida cada língua à tradução.57

É sobre a partilha dessa voz (muda) das coisas que Benjamin fala num seu ensaio sobre a tradução. Aí mostra como a tarefa do tradutor é «resgatar essa linguagem pura confinada no idioma estrangeiro, para o idioma próprio, libertando a linguagem presa na obra ao nascimento da adaptação.»58 A linguagem procura já não o verso nascente – o tradutor de poesia não precisa de ser mesmo um poeta, nem sequer há mesmo a «musa» do tradutor -, mas antes, de modo transitório e provisório, aquilo que de singular tem cada língua; como se fosse razoável a aspiração de chegar àquela região que de modo predestinado sabemos inacessível, «onde se realiza a reconciliação e a perfeição das línguas.»59

Neste ponto preciso importa distinguir como a tradução é mais que a comunicação: é onde e naquilo que a tradução ultrapassa a comunicação que a referida reconciliação das línguas se torna inacessível, uma vez que na palavra do autor (e em todo o original) a relação entre essência e linguagem se distingue totalmente após a sua substituição (acto impossível!) por outras palavras (e outras relações). A tarefa do tradutor é, como mostra Benjamin de modo exemplar, dirigida para aquele ponto em que a tangente toca ligeiramente o círculo, seguindo depois a sua trajectória recta até ao infinito. Tocando a tradução o original num ponto infinitamente pequeno do sentido, «segue a sua própria trajectória de conformidade com a lei da fidelidade, na liberdade do movimento linguístico.»60 Mas, despertando então, nesse ponto e nessa língua, um eco do original. É que o tradutor ‘habita’ a sua própria língua e com ela partilha o seu processo de maturação; inapelavelmente, o tradutor seguirá «as dores natais na própria língua.»61

Também Paul Celan, o hermético poeta da Bucovina, observou como na tradução o poema se afirma à margem do Outro-de-si (o original), transformando-se numa fala própria. O poema traduzido vive essencialmente de uma tensão entre o «já-não» (ser a linguagem do outro) e o «ainda e sempre» (do novo texto).62 E, assim, a tradução é nem sempre literal, mas antes lateral/litoral, e terá que ser fiel tão só em relação a si própria, à coerência interna do novo texto. Entre outros, é no poema Elogio da Distância que encontramos bem expressa esta poética da translação: «Um fio apanhou um fio:/ separamo-nos entrelaçados», ou de outro modo ainda: «Só quando sou falso sou fiel./ Sou tu quando sou eu.»63

Mas, um outro aspecto, de tão evidente, se assume também aqui com particular pertinência: com efeito, aquilo que no tempo em que um autor viveu podia ser uma tendência literária, pode depois ceder lugar a outras tendências, aquilo que era novo pode depois ser considerado gasto e o uso corrente passar a arcaico.64 Mas também a corrente denominada por Estética da Recepção65 apercebeu e mostrou bem estes aspectos. Antecipando embora aqui esta referência a uma posição que lhe é anterior (e que consideraremos nuclear), de Hans-Georg Gadamer - também ela, em parte essencial, retomada pela Escola da Recepção –, ver-se-á pois como ocultamos a implicação da consciência histórica na história da recepção, se acreditarmos que basta ao intérprete, situado fora da história, mergulhar no texto para ver-se revelar, directa e totalmente, a verdade intemporal do sentido de uma obra (confundindo um kafkiano julgamento sumário com juízo final, confusão que adiante precisaremos). Compreender será pois, neste sentido, sempre um processo de fusão de horizontes pretensamente independentes – uma posição que também importará aprofundar oportunamente.

Ora, (e retomando), é dessa oscilação singular que o original sofreu ao longo da sua história que o tradutor tem que fazer vibrar o ritmo primeiro, mas já na rima oculta da sua própria língua. Isto é, movido por uma outra rima e por um outro ritmo, escutando a voz de outro idioma – escutando de fora, em suma. ‘Abrigado’ na sua própria língua, a imagem do tradutor é então a de quem está à porta, de quem ‘espreita’ à entrada da floresta de vozes da linguagem. A tarefa do tradutor, segundo o dito prodigioso de Benjamin, manifesta-se quando, «desde a sua [língua original] frente e sem penetrar nela, faz entrar o original em cada um dos lugares em que eventualmente o eco pode dar, no próprio idioma, o reflexo de uma obra escrita numa língua estrangeira.»66

É deste modo, dirá noutro momento Benjamin, que o tradutor é sacudido com violência pela língua estrangeira, enquanto nela procura aqueles vestígios apagados, invisíveis, onde imagem, palavra e som se confundem numa só coisa. Como na meditação de Kafka, temos «um martelo poderoso» de que não nos podemos servir: «pois seu punho é ardente.»67 E então, quanto mais elevada for a categoria de uma obra, tanto mais se manterá o seu carácter fugidio em relação ao sentido e também maior será a dívida a resgatar, tão mais ‘o punho queimará’. Nas traduções de Holderlin das tragédias de Sófocles, «a harmonia da linguagem é tão completa que o sentido só é roçado pelo idioma como uma harpa eólica pelo vento. (...) Nelas o sentido salta de abismo em abismo.»68 Este momento da tradução, em que se ‘toca’ a língua estrangeira e se recua, providencialmente, é também caracterizado, de modo superior, por Filomena Molder: é «ser ferido pelo brilho sem ficar ofuscado, ser tocado pelo raio e ansiar tocar, por seu intermédio, um outro, como se o brilho, o raio divino, fossem matéria para uma troca insensata».69 De modo embora metafórico, aproximamos o acto da tradução a um arriscado transe: nele se joga, por um lado, a descodificação, pelo outro um renascimento. Se num primeiro momento o desbloqueamento do sentido é essencial, esse mesmo sentido (pretende-se) irrompe depois, progressivamente recodificado.

Mas, há uma dívida a saldar, e o ‘preço’ a pagar é alto: se há troca, ela é, pelo menos, à custa de uma experiência de viagem arriscada às regiões do incodificável. Como exemplarmente Benjamin diz depois, subsiste o «perigo imenso e primordial de todas as traduções: que as portas de uma linguagem tão aberta e perfeitamente disciplinada se fechem e condenem o tradutor ao silêncio», e este perigo Holderlin tê-lo-á sentido. No seu caso, tal risco ser-lhe-ia fatal e tê-lo-á conduzido ao abismo: a Antígona foi a derradeira obra que traduziu, antes de as palavras se lhe terem confundido. Uma confusão provocada pelo reconhecimento das coisas como testemunhas daquela linguagem pela qual foram criadas, e pelo avanço da linguagem das coisas, da mudez, perante a linguagem do som articulado. «Se tivesse sido possível construir a Torre de Babel sem a subir, teria sido autorizado»,70 notara Kafka. Frederich Holderlin, à luz do texto benjaminiano Sobre a Linguagem, terá nesse momento recuado e rendido-se perante o brilho do nome dito, perdendo-se para sempre nessa linguagem surda que é a linguagem das coisas. Neste mesmo sentido estão, decerto, as ocorrências em certas sessões xamanísticas particularmente espectaculares, que originam metamorfoses (neste caso) do corpo; nelas, são os intervenientes transformados pelos xamanes em porcos selvagens, em macacos, ou incarnam espíritos: tal é o preço da viagem fora de qualquer código e a audição do incodificado, do ‘puro’.71

Em acordo com tal concepção da linguagem, somos levados a reconhecer que a tradução mais não é que um procedimento transitório e provisório para interpretar o que de singular tem cada língua. Ora, temos visto como nem o homem dispõe de outros meios para captar tal singularidade: não tem ao seu alcance qualquer solução permanente ou definitiva, ou não poderá, pelo menos e para já, aspirar a ela de modo imediato.

Mas, na proposta de Benjamin, a tradução não nega ainda assim à linguagem uma orientação para uma fase final e decisiva: para uma fase onde se exalte o original, elevado a uma qualidade onde, embora de linguagem (muito embora hesite nesta qualificação) superior e pura, não se pode viver eternamente.72 É que a vida do original alcança também pelas traduções a sua expansão, vasta e sempre renovada, e põe em relevo a relação íntima que guardam os idiomas entre si. Naturalmente, as traduções serão mais ambíguas; mas, em certo sentido, a ambiguidade é uma riqueza.73 A tradução não é solução única, enquanto que o original é sempre único. Em acordo com o princípio da plenitude, afirmava S. Tomás de Aquino que a existência do diferente é melhor que a do monótono do igual: Deus gosta do múltiplo, do vário, e assim, entre dois anjos e um anjo e uma pedra, preferia S. Tomás de Aquino os últimos. Do mesmo modo as traduções perfazem a perfeição do mundo, expressando a essência do original, constituindo um essencial fenómeno vital, com objectivo superior.74

Por seu turno, também em acordo com a filosofia das religiões, a linguagem tem um carácter mediato: há graduações de todas as essências, tanto espirituais como linguísticas, em que toda «a linguagem superior é tradução da inferior, até que na última clareza desabroche a palavra de Deus, que é a unidade deste movimento da língua.»75 Por outras palavras, germina nos diferentes idiomas a semente oculta da outra linguagem mais oculta ainda.

Esta visão está inscrita, em grande medida, nos contínuos esforços desenvolvidos pelos estudiosos da cabala, e entre eles por Gershom Scholem (célebre amigo de infância de Benjamin), que consideravam a interpretação um processo gradual. Diz Scholem: «Na cadeia que contém os vários graus da essência tudo está ligado de um modo mágico. Assim se compreende que os cabalistas tardios insistam no facto de que a ascensão aos mundos mais elevados, e até aos limites do Nada, não implique um movimento por parte dos homens, pois onde tu te encontras estão todos os mundos».76 O mais pequeno gesto abre uma perspectiva infinita, com infinitas consequências. Em acordo com a cabala, devem elas ser previstas e até temidas.

É neste sentido que tratar tudo como objecto de comentário era o vício de Benjamin, que o impelia para resultados cada vez mais refractários, em oposição à unívoca e imediata significação burguesa. Revelou ele, num elucidativo momento de confissão, a Max Rychner, em 1931: «Nunca pude estudar e pensar senão em sentido teológico, se assim posso dizer, ou seja, de acordo com a doutrina talmúdica dos quarenta e nove degraus de significado de cada passagem da Tora. Ora, a minha experiência diz-me que a mais gasta platitude marxista contém em si mais hierarquias de significado do que a actual profundidade burguesa, que tem sempre um único significado, o da apologia».77

A raiz desta ideia parece pois estar associada à tradição judaica e, mais intimamente, à cultura hebraica. O texto hebraico de pensamento sistemático e especulativo mais antigo que se conhece – o Sefer Yezirah, escrito no século VI – explica que Deus criou o mundo através de trinta e dois caminhos de sabedoria secretos, dez Sefirot, ou números, e vinte e duas letras.78 A partir dos Sefirot foram criadas todas as coisas abstractas; com as vinte e duas letras criaram-se todos os seres reais nos três estratos do cosmo – o mundo, o tempo e o corpo humano. O universo, na tradição judaico-cristã, é concebido como um Livro escrito, feito de números e letras; a chave para compreender o universo reside na nossa capacidade para ler estes números e letras adequadamente e conseguir o domínio das suas combinações, aprendendo assim a dar forma a alguma parte desse texto colossal, numa imitação do nosso Criador.

A este propósito é de interesse referenciar Paul Celan: também nele encontramos a mesma tradição que ganhara forma em Walter Benjamin (e, entre outros, também em Gadamer, que adiante veremos). Celan centrara a sua obra no respeito pelo «sopro» que a palavra (o “Verbo”) transporta, para além da pura e simples literalidade. Por isso, a sua poesia traduz, em imagens e símbolos, a gnose da cabala judaica, aparentada contudo à mística da negatividade. Da meditação cuidadosa, paciente, sairia, segundo as enigmáticas palavras de Celan, a Pedra, ou a marca do verdadeiro caminho:



«Um ribombar: é a
própria verdade
que chegou
às pessoas
no meio do
turbilhão de metáforas.»79


Noutro momento referira Celan, citando Benjamin (de um ensaio deste sobre Kafka), que a atenção é a oração natural da alma. Também o poema é para si, embora disso não possua certezas ou apoteoses, o testemunho da atenção ao respirar do mundo, à criatura nesse mundo. É testemunho ainda da História desse século, que negou à criatura o seu estatuto simplesmente criatural e a transformou em coisa – uma tomada de posição cuja recorrência será evidente noutros momentos deste trabalho.80 E é deste modo que, em cada poema, sente também Celan o lugar (de risco) onde se arrisca, um lugar que opõe ao domínio da eloquência e da “literatura”; faz então (também ele) passar a experiência na forma de um “resíduo cantável” (singbarer rest). Mas resíduo que também é, na poesia de Celan, memória. Vinte de Janeiro, por exemplo, é a data marcante: «A vinte de Janeiro Lenz atravessava a montanha». Depois disso, Celan escreve:«Talvez se possa dizer que em cada poema fica inscrito o seu ‘20 de Janeiro’»81. Neste sentido, todo o poema é registo de uma circunstância, que é uma experiência; a maior parte dos poemas de Celan co-memoram (lembram com e para os outros) e agradecem.82 Por outras palavras, a «preocupação de salvar o passado no presente graças à percepção de uma semelhança que transforma tanto o passado como o presente», como o faz Proust a partir do gosto da madalena, ou a partir de uma posição do corpo.83

Porem, aqui a memória do poema não se esgota como mera projecção de uma vivência; e aqui está o lado paradoxal, mas mais próprio desta poesia: uma dimensão de história que não abdica de uma dimensão de memória que amplia o ‘acontecimento’, até ao nível de sentido histórico mais amplo, fazendo-o ao mesmo tempo convergir no instante, no que «em ti há de mais estreito».84 Atente-se, a este propósito, na descrição do Zohar (I,1ª) para a simbólica da rosa: «Está escrito: ‘tal como a rosa entre os espinhos, assim é a minha bem-amada entre as raparigas’. Que significa a palavra rosa? Significa a ‘comunidade de Israel’. Assim como a rosa é vermelha e branca, do mesmo modo a comunidade de Israel ora sofre o rigor, ora sofre a clemência, e assim como a rosa tem treze pétalas, do mesmo modo a comunidade de Israel está rodeada de treze vias de misericórdia...»85 Não há um código fixo, o real é inclausurável, e pelas imagens o significado é sempre ampliado.

Mas, cortado da origem (a mística da Cabala), Celan não encontra qualquer novo caminho. O mundo perdeu significado, e com o mundo o Verbo que o sustentava. Cessam os nomes, o desejo e o acto de nomear. A manifestação, a fractura, o desdobramento, tornaram o mundo ilegível. A palavra degrada-se, desarticula-se, o sentido perde-se no absurdo inconsequente, na exclamação e na vocalização aleatórias. Qualquer som, indício de riso ou desespero, pode servir, dado que já nada serve, já nada reflecte a ligação primordial ao Verbo86 :


«Ilegibilidade deste
mundo. Tudo duplicado.»87


Apagada a palavra deve pois apagar-se a consciência, o espírito, e o corpo que lhe serve de suporte, é o que constata Celan. É de silêncio que fala nos últimos poemas (poemas que ele mesmo havia condenado ao silêncio). Neles é a linguagem que se retira para deixar agigantar-se a imediata eloquência e a literatura, sem «resto» ou resíduo. Na sua caminhada passa por portas fechadas, por gente que (des) conversa(«Que tempos são estes /em que uma conversa / é quase um crime, / porque contém / tanta coisa dita?»). Celan, como vimos, procurava uma fala própria: «Quem fala, não fala para ninguém, fala porque ninguém o ouve, ninguém e Ninguém».88

Uma posição semelhante é assumida já na viragem do século pelo polemista vienense Karl Kraus, que dera bem conta da degradação da linguagem e a acusa de estar transformada e prostituída ao serviço de objectivos mercantis, agressores e degradantes da condição do homem. No meio do ruído do progresso e posteriormente da guerra, alimentados um e outra pelas palavras, também para ele o silêncio devia ser a opção natural. Mas é no profético texto Nesta Grande Época, por si mesmo lido a 19 de Novembro de 1914, que exprime a tentação do silêncio de forma clara. «(...) Nesta época, não esperem uma só palavra minha. Nem uma só para além destas, cujo único fim é preservar o silêncio de ser mal interpretado. Nos domínios da pobreza da imaginação, em que o homem morre de inanição espiritual sem sentir a fome do espírito, onde penas mergulham no sangue e espadas na tinta, aquilo que não é pensado tem de ser feito, mas o que não é senão pensado não pode ser dito. (...) Os que, agora, não têm nada para dizer, porque é a acção que tem a palavra, continuam a falar. Quem tiver alguma coisa a dizer, avance e fique calado!»89 Contudo, para Kraus continuaria a ser imperioso continuar a falar, apesar de tudo. E é por isso mesmo que o reverso desse silêncio se revelou com toda a crueza na veemência das suas acusações, que atingiram, antes de mais, todos aqueles que, por abusarem das palavras, criaram e sustentam as condições para que se abusasse do homem: refere-se concretamente à figura do jornalista, em que adiante nos deteremos.



A interpretação como caminho da “redenção”

A concepção benjaminiana de uma linguagem plena por um lado de indeterminação e pelo outro de delimitação é explícita: «a linguagem não é apenas comunicação do comunicável», além disso ela é ainda «símbolo do não-comunicável.» É neste contexto que se insere o verdadeiro ‘choque’ que sempre constitui o aparecimento na consciência de algo já antes vivido; um ‘choque’ que toma geralmente a forma de um som. É uma palavra, um rumor ou um palpitar que é dotado do poder de nos arrastar desprevenidos para o túmulo frio do passado, cuja abóbada parece deixar ressoar apenas um eco do presente.90

É também a partir daqui que Benjamin retoma a natureza “pré-histórica” do mundo, tal como a havia descrito o seu contemporâneo Franz Kafka; na obra deste, sublinha Benjamin como se apresenta tudo, até o mais absurdamente desconhecido, como devendo ser conhecido. Daí apreende então um conceito que se virá a revelar de certa forma central: a figura do esquecimento: «Todo o esquecimento se mistura com o esquecimento do mundo primitivo, unindo-se a si por laços inomináveis, incertos, mutáveis, para formar criações sempre novas.»91 E é por isso que noutro momento afirma: «Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele foi efectivamente’. É muito mais apropriar-se de uma recordação que brilha num momento de perigo.»92

De modo metafórico, também Benjamin comparara a linguagem da natureza a uma senha secreta, que cada sentinela passava à próxima, porém na sua própria linguagem; o conteúdo da senha era a linguagem da própria sentinela.93 Ora, em cada linguagem, trata-se inevitavelmente de linguagens que se comunicam a cada um, num processo que mostra continuamente a falsidade das generalizações. Um modelo desta indeterminação interpretativa é a análise feita pelo próprio Benjamin à obra de Franz Kafka, onde existe um mundo composto e dominado pela indeterminação, tão ao seu agrado. Toda a obra de Kafka pede para ser lida como um código de gestos, «tão simples quanto enigmático[s]»; então, os gestos humanos escapam aos seus suportes tradicionais, tornando-se em simples matéria de intermináveis exegeses.»94

A indeterminação deste mundo é explicada logo de seguida. Kafka terá compreendido as coisas somente na forma de ‘gestus’, mas não foi capaz de compreender esses ‘gestus’ em si. Diz Benjamin, numa carta a Scholem: «Kafka vive num mundo complementar (...) Kafka percebia o complemento, sem perceber o que o rodeava (...) estava à escuta da tradição e quem escuta esforçadamente não vê.»95 E, deste modo, emerge a indeterminação concreta, a mutabilidade e a correspondente inconclusividade;96 assim, a narrativa adia constantemente a significação última, à maneira da narrativa com que Sherazade nas Mil e Uma Noites adiava o futuro e a perdição, a esperança da redenção misturada com a angústia do vislumbre do fim da narrativa, à maneira da paciente e demorada construção da Muralha da China. Medo da fórmula, da instrução cabalística, de que a doutrina possa ditar o caminho. Donde, diz Benjamin, a paixão de Kafka pelos detalhes, pelos enigmas, pela infinidade, própria do «medo ante o final.»97

Kafka avançara já que: «Só a nossa noção do tempo [imediata] nos faz falar de juízo final, pois é de julgamento sumário que se trata».98 Não sabemos se também o poeta Paul Celan tinha ou não em mente a redenção, entendida aqui como o reencontro com a palavra originária. Mas sabe-se pelo menos, por carta escrita a um amigo por alturas da sua morte, citando então Kafka, a preocupação que sentia em «elevar o mundo à pureza, à verdade, ao imutável.»99 Pretendia Celan pôr a língua como que a nu, num estado em que a sua crueza fosse maior, onde se acentuasse mais fortemente a singularidade da experiência e da aventura poética única. Cada experiência é imprevisível, como cada poema ou aventura poética, enfim como a Morte:

«A morte é uma flor que só abre uma vez
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora da estação.»100

Na fase final da sua vida, Celan reger-se-ia sobretudo pela crença na possibilidade – e mesmo pela necessidade – de dizer a singularidade da experiência na singularidade de linguagem que o poema tem de ser. Aqui mesmo se arriscaria – como adiante mostraremos – a redenção, obtida ao conseguir passar a experiência na forma de um “resíduo cantável”, a que já antes aludimos. Existência e linguagem confundem-se então em Celan; os últimos poemas chegam por fim ao limite do dizível e suportável na linguagem, que cada vez se apaga e fecha mais sobre si própria. Existência e linguagem anulam-se em crescendo, a palavra torna-se em instrumento e em sinal, objectiva-se, estranha-se o corpo, e, em certo momento, o suicídio físico é não mais que um passo sereno e incontornável.101 Não deixamos, pois, de notar o paralelismo existente entre o percurso intelectual, psicológico e biográfico de Celan e a problemática que percorreu toda uma consciência deste século, que servirá de pano de fundo deste trabalho.



O carácter linguístico da experiência

Mas, se é na linguagem que o processo de subjectivação do mundo se manifesta, quando comunicamos procedemos à comunicação da nossa experiência com o mundo. Existe uma relação entre as experiências que vivemos e a linguagem que usamos, e é essa consciência aparentemente inalienável que importa compreender quando procuramos estudar a natureza da comunicação.

A recusa do carácter instrumental da linguagem, em Hans-Georg Gadamer, é apenas um dos aspectos que denota a sua posição acerca da linguagem e da experiência. Num certo modo, embora num contexto diferente, também a sua concepção hermenêutica de interpretação concebe as palavras (nomeadas) como elementos «fixos numa direcção de pensamento», prescrevendo o único modo pelo qual as podemos utilizar. Contudo, afasta delas a arbitrariedade que existe no uso de um qualquer instrumento ao considerar que a linguagem carrega tudo consigo: tudo (no mundo e fora dele) é incluído no domínio da ‘compreensão’ e da compreensibilidade em que nos movemos. «Todo o compreender é interpretar, e toda a interpretação se desenrola por meio de uma linguagem que pretende deixar falar o objecto e ao mesmo tempo a linguagem própria do intérprete.»102

Por outro lado, é sempre a um conhecimento «que não se sustém» que nos referimos. O conhecimento surge da experiência de algo que não é como havíamos suposto; a cada experiência que se tem com qualquer objecto, alteram-se duas coisas: o nosso saber e o seu objecto.103 Sabemos sempre outras coisas e sabemos melhor. Uma imagem concisa deste processo é dada por Yvette K. Centeno: «Partes de um círculo. Destróis-lhe o interior. A obra é o que resta dessa destruição. Inscrita num todo reenvia ao todo (de) que partiu.»104 E é assim que, nas palavras de Gadamer, «o novo objecto contém a verdade sobre o anterior»,105 unindo-se desse modo com nós mesmos, numa inversão em que nos reconhecemos no estranho, no Outro.

A exposição do chamado círculo hermenêutico surge como forma de responder a uma das preocupações centrais do pensamento de Gadamer: como é possível a compreensão? A resposta é que toda a compreensão é hermenêutica. Como ponto de partida, define hermenêutica como «o carácter fundamentalmente móvel básico do Ser-aí que constitui a sua finitude e a sua especificidade e, por isso, inclui o conjunto da sua experiência no mundo.»106 O estudo da hermenêutica é assim o estudo do Ser, e, finalmente, o estudo da linguagem: «o Ser que pode ser compreendido é linguagem»,107 precisamente no caminho da experiência.

Realiza-se o caminho da experiência como um estender-se pela multiplicidade dos conteúdos, com o surgimento de formas sempre novas no espírito. E é precisamente porque o homem é ‘ser-no-mundo’ que experiencia a realidade. Donde, diz Ricoeur, é por sentir necessidade de comunicar a sua experiência do mundo que a linguagem surge. «Porque estamos no mundo, porque somos afectados por situações e porque nos orientamos mediante a compreensão de tais situações, temos algo a dizer, temos experiência para trazer à linguagem.»108 É ao reportarmo-nos a esta característica da linguagem que estabelecemos a relação entre ontologia e linguagem: o discurso supõe sempre um sujeito – locutor – e um mundo, que o sujeito refere ao falar.

Ora, a resposta à questão que Gadamer coloca no início da sua obra principal, Verdade e Método, é portanto que toda a compreensão é linguística. A compreensão que fazemos do mundo é feita pela compreensão da linguagem que possuímos. Um passo decisivo nesta discussão é, assim, o estabelecimento desta relação entre a linguagem e a ontologia. A «aceitação da linguagem é como que aceitação do mundo», isto é, a linguagem não tem uma vida independente à margem do mundo, que no seu interior vem à linguagem.109 Não só o mundo é mundo na medida em que vem à linguagem, mas a linguagem também se torna realidade porque representa nela o mundo. Um outro registo no mesmo sentido vem-nos de Ricoeur: «não há compreensão de si que não seja mediada por signos, símbolos e textos; a compreensão de si coincide, em última análise, com a interpretação aplicada a estes termos mediadores.»110 Não existe mundo para o homem que não esteja já de antemão inscrito na sua experiência de falante, que não aceda à linguagem. De novo é válida a metáfora que considera a língua como soberana dos pensamentos, no sentido preciso de domínio e posse material.

A este propósito, recorda o argentino Alberto Manguel na sua História da Leitura, como em jovem “apreendera” o mundo a partir da aceitação da linguagem: «Mais tarde, consegui dissociar-me da ficção contida nos livros; mas na infância e em grande parte na adolescência, o que o livro me dizia, por mais fantástico que fosse, era verdade na altura em que o lia e tão tangível como a matéria de que o próprio livro era feito.»111 Uma experiência semelhante havia sido por Benjamin registada nas Crónicas de Berlim: «enquanto agora, conteúdo, tema e assunto são alheios ao livro, antes encontravam-se única e inteiramente dentro dele. (...) Assim, em cada livro, também o seu conteúdo, o seu mundo, estavam palpavelmente lá, à mão. (...) Este conteúdo e este mundo transfiguravam cada parte do livro. Ardiam dentro dele, resplandeciam dele; localizados não apenas na capa ou nas ilustrações, estavam encerrados nos títulos de capítulos e capitulares, parágrafos e colunas.»112

Do mesmo modo que considerámos o processo de formação do espírito pela comunicação ou experiência da linguagem (indissociável da experiência partilhada do mundo), podemos aqui verificar que não existe mundo para o homem que não esteja ‘dentro’ da linguagem. «A linguagem não é a aia, mas a mãe do pensamento»,113 dizia Kraus. Por seu turno, também uma linguagem que não se dirija à experiência do mundo não é inteligível, não fala: «Se não se pensa se não se tem nada a dizer qual é o estilo? Arabescos no vazio a mim não me interessam.»114 Pelo menos uma percepção se assume desde já plena de evidência: é sempre a uma experiência que tanto o pensamento como a linguagem recorrem, inevitavelmente,115 já que se a linguagem nos dá um mundo, também o inverso é verdade: o nosso mundo dá-nos a linguagem, numa permanente «aceitação da linguagem como aceitação do mundo». Nas esclarecidas palavras do poeta Al Berto é esta a convicção: «por trás de cada verso nasce uma ave, um silêncio ferido, ou um mineral que se enterra sílaba a sílaba no corpo. (...) por trás de cada poema existe o corpo que o gerou num instante de pânico.»116 Quer isto dizer que «a linguagem não é só uma das dotações de que o homem está dotado tal como está no mundo, mas é nela que se baseia e se representa o que os homens simplesmente chamam mundo.»117

O conceito de experiência é assim, de novo, central numa teoria da compreensão e linguagem: assume-se como fio condutor de todo o percurso por seguir. Na sequência do que acerca dele antes foi referido, nomeadamente pela proposta hermenêutica, consideramos experiência, em primeiro lugar, como experiência de algo que não é como havíamos suposto, e que provoca alterações nos dois pólos, em nós e no objecto. A experiência leva à produção da unidade entre conteúdo e certeza em si mesmo, e é através dela que há o tal «reconhecer-se a si próprio no estranho, no Outro».118 Num outro momento, Gadamer acrescentaria que «somente pela mediação dos outros podemos chegar a um verdadeiro conhecimento de nós mesmos.»119 Retomando como émulo a (duplamente) hermética prosa de Yvette Centeno, «o eu não existe logo. Constitui-se no processo da vida como depois se dissolve no processo da morte.»120



Historicidade e compreensão

Ora, também a análise do conceito de experiência nos conduzirá à identificação da verdadeira experiência com a experiência da própria historicidade, numa dialéctica que tem a sua própria consumação não num saber conclusivo (que importará salientar), mas antes numa permanente abertura à experiência, posta em funcionamento pela própria experiência, em que «o sentido de um texto está aberto a quem quer que possa ler».121

Pedra de toque da teoria da compreensão de Gadamer é o conceito de juízo prévio (para o que se serve da ‘estrutura de antecipação’ de Heidegger).122 Juízo prévio é considerado como o conceito que «dá ao problema a sua verdadeira direcção», isto é, um juízo que se forma antes da validação definitiva de todos os momentos objectivamente determinantes. Nenhum conhecimento parte do nada, há sempre um conhecimento prévio fruto da autorreflexão do indivíduo na «corrente contínua da vida histórica». Quando nos acercamos de algo, há já opiniões de conteúdo e hábitos linguísticos que constituem a nossa précompreensão desse algo a compreender. Por isso, há a admitir juízos prévios que o indivíduo possui em cada momento da sua vida, e que formam o que se pode considerar a realidade histórica de um ser. A tese fundamental é aqui que a experiência pressupõe necessariamente que se defendam muitas expectativas.123 Contudo, ela pressupõe também decepções, que lhe apontam a finitude humana.124

Neste mesmo sentido, surgem os estudos da chamada Estética da Recepção, também eles alegando como a experiência literária, que conduz em direcção ao conhecimento de uma obra até aí desconhecida, possui do mesmo modo um «pré-conhecimento», um elemento da experiência. Assim, uma obra nunca se apresenta como absoluta novidade: antes, através de informações e sinais mais ou menos manifestos, predispõe o seu púbico para uma determinada forma de recepção. Qualquer obra evoca outras obras já lidas, referências diversas; cria, desde o início, expectativas ao seu respeito. Mas estas expectativas podem obviamente ser conservadas ou alteradas, reorientadas ou despeitadas. «Cada novo texto evoca para o leitor (ouvinte) o horizonte de expectativas e de regras de jogo que se tornaram familiares a partir de outros textos, e que ao longo do texto podem ser modeladas, corrigidas, modificadas ou ainda simplesmente reproduzidas», diz Hans Jauss.125 O texto autonomizou-se pois da intenção do autor, bem como das expectativas do leitor original. E, se a autonomização do texto, pela escrita, permite uma universalização do auditório, ela possibilita também uma universalidade de sentido.126

Com efeito, também para Gadamer apreender qualquer coisa que é dita não é ainda aprovar essa coisa. Inicialmente, tomamos conta dos dizeres do outro sem que isso comprometa as nossas próprias opiniões. Deve acrescentar-se que, regra geral, ao tomarmos conta dos dizeres de outrém, sentimo-nos, ipso facto, convidados a tomar posição: temos mesmo que tomar partido, e é habitual sentirmo-nos também convidados a uma tomada de posição favorável. E aqui reside a verdadeira fundamentação dos juízos prévios: «abrir-se aos dizeres de outrém, de um texto, etc., implica desde já que eles estejam situados no sistema das minhas opiniões, ou, então, que eu próprio me situe por relação a eles.»127 Operamos então uma discriminação por entre os diferentes sentidos possíveis para o que nos dizem: há aqueles que nós consideramos possíveis, e há outros que, antecipadamente, recusamos como absurdos. Então se dá o já referido afrontamento entre o novo e o antigo, em que ou o novo se afirma ou o antigo, familiar e previsível, recupera a sua consistência.

É esta mesma sensibilidade que provocara também a profunda identificação de Benjamin com o «carácter destrutivo», bem expressa quando afirma «como o mundo é imensamente simplificado quando é testado quanto ao seu valor de destruição». O carácter destrutivo é tudo menos orientado por objectivos e é destituído de qualquer visão abarcante do modo como o mundo deveria ser. «Tem poucas necessidades e a última delas é saber o que irá substituir aquilo que foi destruído.»128 Ulrich, a personagem central d’O Homem Sem Qualidades de Robert Musil, reflecte neste sentido: «Se este é senhor das suas emoções, nada encontra a que possa dizer sim sem reserva. (...) O desejo de evoluir, próprio da sua natureza, impede-o de acreditar no facto realizado, (...). Há mais futuro no instável que no estável e o presente não passa de uma hipótese que ainda não foi ultrapassada.»129 Era ainda com este mesmo espírito que Benjamin citava entusiasticamente uma observação de Adolf Loos: «Se a obra humana consistir apenas na destruição, será uma obra verdadeiramente humana, natural, nobre.»130

Mas, que significa por fim isto para uma teoria da compreensão hermenêutica? Significa, sobretudo, que, nas palavras de Centeno, «o círculo é a perfeição que temos de destruir»,131 destruição que consumamos quando absorvemos múltiplas experiências, quando repetimos até à exaustão a apreensão do sentido, retomando-o, analisando-o, celebrando-o. «Nada de repetições, construir para destruir», afirmava Valéry.132 E então, diz Kafka: «A partir de um certo ponto deixa de haver regresso. É esse ponto que é necessário atingir.»133

Mas é também esta experiência que vai determinar o carácter artístico de uma obra, ou que, pelo menos, se constitui como critério de formação de juízo de valor estético. Em acordo com a denominada escola da Recepção, o modo como uma obra, no momento histórico do seu aparecimento, responde à expectativa do seu primeiro público, como a ultrapassa, a desaponta ou a contradiz, é o critério que justamente determina o seu valor estético. Por outras palavras: o carácter artístico de uma obra é determinado pela distância entre um inicial (prévio) horizonte de expectativa e a mudança de horizonte que a obra poderá determinar e requerer. Jauss não hesita numa classificação: «quando esta distância se encurta e a consciência receptora não é já forçada reorientar-se em direcção ao horizonte de uma experiência ainda desconhecida, a obra aproxima-se do domínio da arte culinária ou de uma simples diversão.»134 O oposto verifica-se quando uma obra se opõe às expectativas do seu primeiro público, causa admiração e perplexidade e pode mesmo dissipar-se para públicos ulteriores; e então, à medida que a negatividade originária da obra se torna em evidência, integrar-se-á como familiar no horizonte de estética futura.

Contudo, em acordo com a subtileza gadameriana, não esqueçamos que um juízo prévio não é, em si mesmo, um juízo falso; antes está no seu conteúdo o que pode ser validado positivamente ou negativamente, antes estão em si as directrizes autorizadas da compreensão verdadeira. Foi ao admitir esta possibilidade que Gadamer se afastou do pensamento iluminista de forma explícita, justamente por, como suporte para a sua hermenêutica, reabilitar o conceito de juízo prévio, e assim reconhecer a existência de juízos prévios legítimos.135 É justamente neste momento que surge uma das questões centrais da hermenêutica: em que basear a legitimidade dos juízos prévios? Ou antes, «como distinguir os juízos prévios que cegam dos que iluminam, os juízos prévios verdadeiros dos juízos prévios falsos»?136

É neste quadro que Gadamer apresenta o conceito de autoridade como fundamento de validação e de justificação para os juízos prévios, e a partir daqui distingue os juízos legítimos de todos os inumeráveis juízos «cuja superação representa a inquestionável tarefa de toda a razão crítica».137 Autoridade é conhecimento, ou o que como tal pode ser reconhecido, porque procedente de quem tem uma visão mais ampla, como o educador ou o especialista, antes sujeitos à experiência ou experimentados. Assim, se os juízos prévios são legitimados pela pessoa, a sua validação requer sempre uma inclinação em favor dessa mesma pessoa que os representa.

O modo de estabelecer a distinção entre os vários juízos prévios, e assim fazer uma aproximação à compreensão do verdadeiro sentido, é através do recurso à distanciação temporal, «a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há nas coisas».138 Mas, refere desde logo Gadamer que o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgotará ao chegar a um determinado ponto final («o caminho é infinito», é recorrente em Kafka). Ao longo das etapas deste processo, cada vez se vão descobrindo novas fontes de erro, que nos possibilitam a filtragem de todas as distorções possíveis do verdadeiro sentido. Constantemente, pelo espaçamento temporal se apresentam ainda novas fontes de compreensão que compreendem em si relações de sentido, antes insuspeitadas.

Era neste mesmo sentido que para Paul Celan o que havia era divisão e desdobramento, que tornavam o mundo ilegível. Advogava como era preciso sair dele, já que somente o exílio (do mundo, de si mesmo, e – por que não? - do tempo) poderiam abrir os caminhos conducentes à sabedoria – ou compreensão.139 É evidente e essencial a associação desta posição ao papel da experiência, na acepção gadameriana: a verdade da experiência contém sempre (e mais uma vez) a referência a novas experiências. A pessoa experimentada é não só alguém que se tornou o que é através de experiências, mas também alguém aberto a novas experiências. «O homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que, precisamente por ter feito tantas experiências e ter aprendido de tanta experiência, está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e aprender com elas.»140 Sendo a experiência sempre algo que forma parte da essência histórica do homem, por essa razão é composta por expectativas a defraudar, e é adquirida através de decepções, como notámos antes. Por isso é «afrontamento porque ela [experiência] opõe o novo ao antigo e nunca sabemos, em princípio, se o novo prevalecerá, isto é, se se tornará verdadeiramente uma experiência, ou se o antigo, familiar e previsível, recuperará finalmente a sua consistência.»141

O ser histórico do homem contém, assim, como momento determinante, uma negatividade fundamental, que lhe advém de continuamente ser sujeito ao «engano e à decepção» como modo de «conhecer mais adequadamente as coisas». Uma meditação de Kafka refere, a propósito, como «Fazer o negativo é-nos ainda imposto: o positivo já nos é dado.»142 E, no pleno sentido da posição exegética benjaminiana, também Gadamer nos diz que aquilo que o homem aprende pela dor «não é isto ou aquilo, mas antes a percepção dos limites do ser homem, a compreensão de que as barreiras que nos separam do divino não se podem superar.»143

É, lembremos pois, a distanciação temporal que torna possível a filtragem, aqui considerada como lado negativo desta actividade. Por outro lado, a compreensão aparece-nos como o seu lado positivo e mais interessante. Tendo por base esta tensão, é possível construir um verdadeiro paradigma, que «não só ajuda a que vão morrendo os juízos prévios de natureza particular, mas permite também que vão aparecendo os que estão em condições de levar a uma compreensão correcta»,144 embora histórica, do indivíduo.

Nas Teses Sobre a Filosofia da História (1940), Benjamin fala de um «entendimento tácito entre as gerações passadas e a nossa», que nos concede uma «frágil força messiânica».145 Além disso, carrega o passado um índice temporal que reenvia para a redenção, estado indissociável da imagem de felicidade. Foi por esta razão que Benjamin (tal como depois Celan) insistiu no primado metodológico da recordação, por oposição a um conceito (iluminista) de progresso, orientado para o futuro. Benjamin investiu esta ideia de um forte poder teológico: só através da recordação seria possível redimir o tal acordo secreto existente entre as gerações (as quais distingue entre vivos e desaparecidos).146

Foi este um dos aspectos que mais levou Benjamin a interessar-se pela leitura de Franz Kafka: fascinava-o a força pré-histórica do mundo de Kafka, que apresenta tudo, até mesmo o desconhecido, como já conhecido. Simplesmente, a ignorância toma aqui a forma do esquecimento. Benjamin cita Willy Hass, a propósito de O Processo: «de facto, o verdadeiro herói desse livro incrível é o esquecimento (...), é o receptáculo a partir do qual o inesgotável mundo intermediário busca a luz, (...) envolve sempre o melhor, pois envolve a possibilidade de redenção.»147 Há uma memória de que K., o personagem principal, está para sempre alienado. Sempre que as personagens do romance têm algo a dizer a K., por mais importante ou surpreendente que seja, fazem-no de maneira displicente e dando a entender que ele devia ter sabido aquilo o tempo todo. Daí a culpa e a vergonha de K., por nem sequer lembrar o que foi que esqueceu.

As experiências, à beira de se converterem em conceitos, têm assim que guardar – para não se petrificarem em abstractos – os vestígios da visão (sob a forma de halo) que a engendrou e acompanha; e que transparece no nome benjaminiano. Recorremos, neste momento, a um outro conceito benjaminiano, o conceito de aura tal é apresentado no texto sobre a obra de arte: a aura transparece em todas as coisas, quando nelas reconhecemos uma estranheza imediata pela qual somos tocados, e que alimenta e sedimenta a nossa experiência, recuperando para ela a beleza de cada coisa. Também a experiência da aura pressupõe uma anterior experiência, que a chama, porque a traz consigo; chama-a, pois, pelos vestígios. E assim, se estes são, nas palavras de Benjamin, a manifestação de uma proximidade por mais longe que possa estar o ser que a deixou, já a aura é a manifestação de uma lonjura, por mais próxima que possa estar daquilo que evoca.

Só pela voz que o vestígio emite podemos seguir algum caminho, prestando atenção. Mas é-se obrigado, ainda, a ter já prestado atenção: é por resistir guardada na recordação (de forma semelhante à madalena de Proust), que se pode ainda recuperar tal visão, depois esvanecida pelo recurso conceptual. Podemos também, neste sentido, defender que o Angelus Novus de Paul Klee, que fixou os traços do anjo da história, constitui um paciente e demorado regresso da voz surda a que aludimos antes, da voz das coisas – um anjo cuja demora é tão misericordiosa como impotente.

É pois para uma experiência profundamente histórica que nos dirigimos aqui, cuja interpretação é também ela histórica e considerada do ponto de vista da tradição. O presente é definido pela negação que faz do passado, mas também pela negação que faz da forma passada de temporização histórica (tradição). Noutros contextos Gadamer deixará explícito, de modo bem claro, como a verdadeira experiência é a experiência da historicidade de cada um, num processo que continuamente demonstrará a falsidade de todas as generalizações.148 Na limitação do indivíduo, não é um “objecto verdadeiro” que podemos conhecer, situado para lá das ilusões. É antes (e sempre) uma unidade do Eu e do Outro que me permite conhecer o «verdadeiramente outro face às convicções e opiniões que são minhas».149 Isto é, não conhecemos um “objecto”, mas antes a unidade de Um e de Outro, numa relação de pertença em que Dois se manifestam: realidade histórica por um lado, realidade da compreensão histórica pelo outro.

Em termos metodológicos, só a distância no tempo possibilita que se resolva a verdadeira questão crítica da hermenêutica: como distinguir os juízos prévios verdadeiros, pelos quais compreendemos o mundo, dos juízos prévios falsos, que produzem os mal entendidos. É importante, neste momento, sublinhar como se mantém o carácter inconclusivo da tarefa da compreensão do verdadeiro sentido, quer nos refiramos às coisas, quer a um qualquer texto ou obra de arte. O verdadeiro sentido não se esgota «ao chegar a um determinado ponto final», como se depreende da descrição feita do processo de distanciação temporal. Antes se trata de um processo infinito, em constante movimento e expansão, sem uma dimensão conclusiva, em que «a compreensão começa ali, onde algo nos interpela».150

O sentido verdadeiro está sujeito aos pressupostos da aura benjaminiana e da manifestação do nome, nesse lugar onde «a palavra não pode tornar-se palavra finita nem conhecimento». Fora do nome, estamos também fora do verdadeiro e último sentido, daquele processo infinito de expansão, na direcção da compreensão da verdadeira e última invocação da linguagem. Somos remetidos de novo para o conceito de experiência: uma experiência que é experiência da finitude humana, havíamos visto. Experiência que não pode ser, por consequência, imediata: diz antes respeito a uma demorada aprendizagem, que supõe a paciência de seguir um caminho até onde a coisa nos devolver ‘o seu olhar’; mas também um caminho que, finalmente, indicará a irradiação da própria coisa, se objectivamente mediatizada. Assim, «é experimentado no autêntico sentido da palavra aquele que é consciente desta limitação, aquele que sabe que não é senhor do tempo nem do futuro; pois o homem experimentado conhece os limites de toda a previsão e a insegurança de todo o plano.»151



Tradição e superação

Há então um elemento pelo qual acede toda a experiência: a tradição. Tradição que é também linguagem, que é o «verdadeiro companheiro de comunicação» a que estamos vinculados, e de onde não podemos sair sem destruirmos o verdadeiro sentido das coisas. Quem quer compreender está vinculado a um assunto que se expressa na tradição, e que tem determinada conexão - também - com a tradição de quem transmite. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada ao assunto na forma de uma unidade inquestionável e natural. É este o privilégio que, segundo Gadamer, caracteriza o homem actual surgido da época moderna: a sua consciência histórica. Uma consciência que se caracteriza, justamente, pela percepção da historicidade de todo o presente e da relatividade de todas as opiniões, por um pensar coextensivo à vida que vivemos e à experiência aí vivida. Enfim, uma consciência que já «não escuta beatamente a voz que lhe chega do passado, mas, reflectindo sobre ela, recoloca-a no contexto de onde surgiu para verificar a significação e o valor relativo que contém.»152 É a este comportamento reflexivo face à tradição que Gadamer chama interpretação.

A posição de Ricoeur, neste contexto, não deixa de se afirmar como incontornável. Considera necessária uma dialéctica entre explicação e compreensão na interpretação do texto. Depois de considerar que a tarefa da hermenêutica consiste na tarefa de apropriação do que se tornou estranho na distanciação, a tarefa de interpretação consiste na actualização do sentido do texto pelo leitor, hic et nunc: então, «produz algo de semelhante a um evento, um evento do discurso, que é um evento no momento presente».153 Não importa compreender a situação inicial do discurso: «O texto fala de um mundo possível e de um modo possível de alguém nele se orientar. (...) Aqui, mostrar é ao mesmo tempo criar um novo modo de ser.»154

Consciente da perda do vínculo anterior, no limiar da primeira Grande Guerra descrevia já Karl Kraus a expressão da sua época como apenas transmissível de modo incisivo pela viva experiência dessa época: «é meu dever pôr a minha época entre aspas, porque sei que só ela pode descrever a sua indescritível infâmia». A grande originalidade de Karl Kraus está no modo como assesta e, de certo modo, filia, percepções e propostas que se identificariam em programas filosóficos muito mais vastos, ao longo do século. A mesma posição seria depois retomada, embora com uma valoração completamente distinta, pela hermenêutica gadameriana, e pelo reconhecimento da impossibilidade objectivista da interpretação. «Não é possível, nem necessário, nem desejável que nos coloquemos nós mesmos entre parêntesis. A atitude hermenêutica supõe apenas uma tomada de consciência que, ao caracterizar as nossas opiniões e os nossos preconceitos, os qualifica como tais, e lhes retira, do mesmo lance, o seu carácter excessivo.»155

Kraus aludia frequentemente à exemplar figura da citação: ela sairá sempre da sua época, viva ou morta, mas decerto transformada: falando uma “outra” língua, «como estrangeira, recém-nascida».156 E aqui, de novo, a afinidade com a interpretação como a propõe Ricoeur: vimos já que compreender não é apenas repetir o evento do discurso num evento semelhante, é acima de tudo gerar um novo acontecimento. Donde, no conflito de interpretações «o mal-entendido é possível e até inevitável.»157 E a proposta do conceito de conjectura: «Construir o sentido como o sentido verbal do texto é uma conjectura.»158 Gadamer acrescentaria ainda como o horizonte do presente está continuamente num processo de formação, na medida em que estamos obrigados a pôr à prova constantemente todos os nossos juízos. E parte desta prova mais não é que o tal encontro com o passado e a compreensão da tradição de que procedemos.159

Num outro momento, observara Benjamin como todo aquele que domina é sempre herdeiro de todos os anteriores vencedores, e triunfalmente surge ostentando os despojos do passado. E a história surge carregada assim de “agora”: neste sentido, «para Robespierre, a Roma antiga era um passado carregado de “agora”, surgido do contínuo da história. (...) É ao percorrer a selva de outrora que a moda cheira o aroma daquilo que é actual.»160 Citava ainda Benjamin a propósito, modificando, a formulação kafkiana do imperativo categórico, numa carta a Gershom Scholem de Abril de 1938: «age de maneira tal que os anjos tenham alguma coisa que fazer.»161 Nas Teses referir-se-ia ainda à imagem dialéctica, a imagem rápida (congénere desse passar relâmpago da passagem da vida, que n’O Narrador diz os moribundos experimentarem), a imagem fulgurante que se gera no momento em que se dá o reconhecimento de um agora como o agora próprio, ajustado e esperado, de um outrora. Na medida em que a linguagem medeia a relação entre um constituído e um constituinte, ela tem que ser descrita precisamente como esse espaço «entre», esse espaço de tensão. De certo modo, é isso que também Hannah Arendt nos diz: «O homem na plena realidade do seu ser concreto vive nessa brecha do tempo entre o passado e o futuro. [...] Esse mínimo não-espaço-tempo no próprio seio do tempo, contrariamente ao mundo e à cultura em que nascemos, não pode ser transmitido ou herdado do passado; cada nova geração e ao mesmo tempo todo o ser humano novo, na medida em que se insere entre um passado infinito e um futuro infinito, deve descobri-lo e abri-lo laboriosamente de novo.»162

De um modo simplista mas conclusivo, em acordo com as teses apresentadas é recorrente a referência à polaridade entre familiaridade e estranheza, entre a linguagem em que nos fala a tradição e o que lemos nela. Ao reflectir as condições sob as quais se compreende - ou antes, como se distinguem aqueles juízos prévios que tornam possível a compreensão dos que produzem os mal-entendidos, processo onde não podemos menosprezar a distância temporal - surge-nos esta tensão: «a posição entre estranheza e familiaridade que ocupa para nós a tradição é o ponto médio entre a objectividade da distancia histórica e a pertença a uma tradição.»163 É esta simultaneamente tanto a nossa localização como o nosso limite. Ora, a reabilitação destes conceitos representou um litígio essencial com os fundamentos do pensamento iluminista. Razão e lógica, conceitos associados à compreensão e verdade, não são neste sentido «dons de Deus», com carácter absoluto e para além do tempo e espaço, tal como os prescrevia o Iluminismo.

A razão agora proposta, pelo contrário, «existe para mim apenas em termos concretos, históricos», associada à vida histórica e à autorreflexão do indivíduo, dependente das circunstâncias em que ele opera. Interpretar é um esforço que há que renovar sem cessar, fruto da frágil força messiânica sobre a qual o passado exerce uma pretensão. Nesse esforço, «toda a imagem do passado corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu», avançava Benjamin nas Teses.164

Um esforço contrário aos ideais iluministas; um esforço «conservador em sentido eminente»,165 considerou Habermas. Ora, a principal questão então colocada a Benjamin é motivada pela referida força «conservadora e revolucionária»,166 que se centrava retrospectivamente nos “agora” passados. Uma posição que Habermas aponta condenada ao fracasso, por considerar os “agora” que intermitentemente saltam do passado em direcção ao destino - «a origem é o fim», dizia Benjamin nas Teses citando Kraus – como sustentando uma concepção conservadora da história. O que a teoria dialéctica do progresso (por Habermas considerada como pretensão de materialismo histórico) apresentava como progresso, podia assim revelar-se como mera perpetuação do supostamente superado, deixando-nos apenas como que deslumbrados pela mera aparência de emancipação.167



Linguagem, universalidade e verdade

No entanto, sem dúvida que entre as questões centrais para uma teoria da compreensão está a perspectiva gadameriana da objectividade, uma posição que, longe de ser pacífica, antes viria a alimentar o meio académico alemão nos anos 60-70. O ponto de partida foi, pois, a proposta de Gadamer segundo a qual a tarefa central de uma hermenêutica histórica era, como vimos, definida a partir da análise do juízo prévio e da distinção entre os juízos prévios legítimos e ilegítimos. Então, os verdadeiros juízos prévios podiam distinguir-se dos falsos recorrendo aos sentidos partilhados em comum, que constituintes de cada comunidade linguística humana.

Ora, a protecção que Gadamer propõe contra a arbitrariedade advém assim da necessidade do intérprete estar situado na história e no tempo; de se contextualizar aí, onde, através do entendimento linguístico com os outros indivíduos, o mundo se torna manifesto. E então, aquilo que se pensa, em cada momento se destaca e se distingue como conhecimento, como logos, como constelação objectiva enunciável acerca do todo abrangente que constitui o horizonte do seu mundo e da sua linguagem. E é assim que os objectos ganham a sua verdade, formam o seu carácter manifesto no pensamento humano.168

Por esta razão, considera Gadamer que os sistemas inventados de entendimento artificial não são nunca linguagens, precisamente devido à sua instrumentalidade. «As linguagens artificiais, linguagens secretas ou simbolismos matemáticos, não têm na sua base uma comunidade nem de linguagem nem de vida, mas são introduzidas e aplicadas meramente como meios e instrumentos do entendimento.»169 Entendimento esse que, por consenso numa comunidade linguística, remete já para uma linguagem. Como refere noutro lugar «o carácter verdadeiramente universal da linguagem (...) que representa, por assim dizer, o positivo pela relação ao negativo que será a arte da interpretação pela linguagem, é atestado pela retórica». E então, continua, «a relação à praxis contribui para trazer ambiguidade à pretensão a ciência.»170 Embora Gadamer não ofereça uma posição consistente sobre a objectividade da linguagem e da compreensão, a sua abordagem propõe ainda assim um meio de refutar a acusação de arbitrariedade, quando afirma que «compreender é sempre o processo de fusão destes horizontes para si mesmos».171 Refere-se a horizontes de sentido – o do intérprete e o do texto –, que podemos determinar na interpretação, de forma mais ou menos reveladora.

O debate inicia-se então neste contexto e é indissociável da operacionalidade de um conceito central para o pensamento iluminista, ao mesmo tempo que estabelece uma tensão que Gadamer procurará afastar: trata-se pois do conceito de verdade e da dicotomia que se forma entre si e o juízo prévio ou tradição. Lançada por Habermas, a ideia, que se confunde do ponto de vista do Iluminismo com o problema da razão, era que não tendo critérios metodológicos de verdade não conseguiremos distinguir o verdadeiro do não verdadeiro; sem isso a razão não sobreviverá à crítica, correndo-se o risco de apenas se aprofundar o niilismo.172

A resposta de Gadamer decorre das premissas antes apresentadas. O juízo prévio – o nosso estar situados na história e no tempo – é para si a condição prévia da verdade e não um obstáculo. Por outro lado, recorde-se que a verdade não é algo acabado. A estrutura geral da compreensão concretiza-se na compreensão histórica, onde são operantes os vínculos concretos do costume e da tradição, e ainda as correspondentes possibilidades de futuro.173

Habermas ataca directamente a proposta de Gadamer, que classifica «de compreensão contextual de avanço do mundo que nos é familiar»; uma compreensão que se pode tornar problemática, «o incompreensível em potência».174 A experiência hermenêutica definia-se pela reunião de dois vectores bem evidenciados na sua crítica. Primeiro, o entendimento intersubjectivo que é realizado na linguagem do quotidiano é, por um lado, ilimitado, porque extensivo à vontade, e, pelo outro, fragmentário, porque não determinável de forma definitiva e completa. E depois, a experiência hermenêutica transporta em si a relação entre sujeito falante e objecto, através da linguagem ordinária - sempre a última metalinguagem, numa hierarquia em crescendo - o que exclui, logo à partida, a aplicabilidade de formalizações a quaisquer conteúdos particulares.

Face a isto, Habermas considera que a perspectiva hermenêutica tem sérias limitações, sobretudo por não ter em consideração a transcendência dos jogos de linguagem particulares, isto é, todos os aspectos da compreensão que transcendem a compreensão pela linguagem. «As línguas naturais são informais; é por isso que os sujeitos falantes não podem abordar a sua língua como um sistema fechado»,175 como um círculo hermenêutico. Recorde-se que Gadamer havia advogado a universalidade da compreensão hermenêutica, sustentando como a linguagem continha a compreensão do mundo. O domínio de aplicação da hermenêutica coincidia com os limites da comunicação normal, no meio da linguagem ordinária. Mas, continua Habermas, «os sujeitos não têm consciência da competência linguística de que são portadores»; considera a hermenêutica, por isso, incompleta, e, com esta crítica à sua universalidade, acusa-a ainda de não reflectir o limite da compreensão hermenêutica.176

Esta oposição fundamental entre Gadamer e Habermas expressou-se numa série de contextos diferentes. Contudo, sobretudo um aspecto do debate assume-se neste contexto como particularmente relevante: a oposição entre tradição/autoridade e pensamento iluminista (leia-se, maioridade da razão). Desta oposição, ressalta, como é evidente, a reabilitação gadameriana do conceito de juízo prévio e a respectiva estrutura prévia da compreensão. Gadamer não via qualquer oposição entre autoridade e razão. O reconhecimento dogmático de uma tradição – ou a aceitação da pretensão a verdade dessa tradição – não pode ser identificado com o conhecimento senão na condição de que a tradição garanta, relativamente a si mesma, uma intercompreensão ilimitada e livre de constrangimentos. A crítica erigida por Habermas radica na pressuposição gadameriana da legitimação e entendimento da autoridade sem violência: «A experiência da comunicação sistematicamente deformada contradiz essa pressuposição.»177

Além do referido, a proposta hermenêutica torna-se sobretudo problemática pela tentativa de impor restrições de princípio no processo de interpretação.178 Principalmente devido à estrutura dos juízos prévios na compreensão, Gadamer terá reduzido a racionalidade emancipatória do Iluminismo ao horizonte das convicções em vigor. A interpretação encontra, por fim, um limite nas convicções reconhecidas, tradicionais, do mundo sociocultural a que o indivíduo pertence. Mas, argumenta então Habermas, podemos colocar a hipótese de o consenso próprio da tradição e dos jogos de linguagem estabelecidos poder ser «uma consciência integrada sob o constrangimento, resultado de uma pseudo-comunicação (...). É por isto que não podemos submeter a liberdade de manobra de uma compreensão hermenêutica (...) aos limites tradicionais que estejam em curso.»179 Mas, por seu turno, Gadamer sustenta firmemente que tanto a reflexão como a razão podem ser libertas de qualquer ideologia ou preconceito no exercício da análise.180 Além disso, é-lhe evidente que não pode haver comunicação sem assentimento anterior; Habermas, tal como os pensadores iluministas, sobrevaloriza os poderes da reflexão e da razão. Em suma, enquanto Habermas defende que a historicidade dos seres humanos limita a nossa compreensão, Gadamer (entre outros, antes referidos) sustenta que é essa historicidade que torna possível a compreensão, alargando-a mesmo. No entanto, primeiro, uma limitação que não suprime; e depois, um tornar possível não isento de limitações.



1Mead, George H., Espiritu, persona y sociedad, Barcelona, Paidos, 1982, pág. 88.

2Cfr. Ibid., «What social objects must psychology presuppose?» in Selected Writings, Chicago, The University of Chicago Press, 1981, pág. 109.

3Cfr. Ibid., Espiritu, persona y sociedad, pág. 89.

4Cfr. Ibid.., «Social psychology as counterpart to physiological psychology», in Selected Writings, pág. 102.

5Ibid., «The Psychology of punitive justice», in Selected Writings, pág. 213.

6Ibidem.

7Mead, George H., Espiritu, persona y sociedad, pág. 88.

8Ibidem.

9Num estudo clássico consagrado à linguagem e ao pensamento, também Henri Delacroix observava o aparecimento da linguagem nas crianças como resultado, num primeiro momento, da acção e do meio envolvente. No processo de aquisição da linguagem, ao fim de certo tempo, algumas palavras são repetidas e, aos poucos, numa fase posterior, compreendidas, quando em presença de certos objectos ou situações. A criança recebe a linguagem quando percebe que tudo pode ser nomeado, dito e, obviamente, produzir um determinado efeito sobre o outro; é, assim, evidente como «a criança recebe a linguagem antes de a emitir». Delacroix, Henri, La Langage et la Pensée, Paris, Félix Alcan, , 1924, pág. 112.

10Mead, George H., Op. cit., pág. 92.

11Ibid., «The objective reality of perspectives», in Selected Writings, pág. 312.

12Cfr. Delacroix, Henri, Op.cit., págs. 114-118.

13Cfr. Mead, George Herbert, «Social psychology as counterpart to physiological psychology» in Selected Writings, pág. 102.

14Ibid., pág.112.

15Cfr. Leach, Edmund, Cultura e Comunicação, Lisboa, Edições 70, 1992, pág. 29.

16Mead, George H., «A behaviourist account of the significant symbol», in Selected Writings, pág. 246.

17Cfr. Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, Porto, Porto Editora, 1995, págs. 69-70.

18Veja-se ainda a este propósito a função semântica do significante flutuante de que falava Lévi-Strauss, a que juntou uma outra, decisiva, de mediador entre os códigos, de permutador de códigos. Na análise que faz da obra de Marcel Mauss, vê como este se apercebeu claramente de que a linguagem do feiticeiro operava a passagem de um código a outro, e que esta passagem enigmática era também realizada por uma determinada força. E é assim que surge a figura do xamane, que é precisamente aquele que se encarrega mais especialmente de fazer passar o indivíduo e o grupo de um código a outro, de um estado a outro. Através dos mitos que utiliza, traduz um sistema simbólico num outro, relacionando os astros com a alimentação ou os animais com as plantas. Deste modo, o xamane fornece uma linguagem, em que se podem exprimir os estados informulados e ainda os informuláveis, possibilitando a vida de forma ordenada e inteligível. Cfr. Lévi-Strauss, Claude, «El socarei et As magoe» e «L’efficacité simbolique» in Antropologie Structurale, Plon, Paris, 1974.

19Valéry, Paul, «Variations sur les Bucoliques», in Oeuvres, I, Paris, NRF, 1955, págs. 207-225.

20Leroi-Gouhran, A., O Gesto e a Palavra, vol. 1, Lisboa, Ed. 70, 1983, pág. 179.

21Cfr. Ibid., Vol. 2, pág. 207-209.

22Cfr. Benjamin, Walter, «Teoria das Semelhanças», in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água, 1992, págs. 61-63.

23Rilke, Rainier Maria, Sonetos a Orfeu, Porto, O Oiro do Dia, 1983, II, iv, pág. 253.

24Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, Porto, Porto Editora, 1995, pág. 77.

25Por detrás desta ideia encontramos o psicólogo e filósofo americano William James, que em 1890 havia escrito: «um homem tem tanto de ‘si [fr: soi] social’ que há tantos grupos distintos de pessoas cuja opinião lhe importa.», James, William, Principles of Psychology, Nova Iorque, Drover, 1950, pág. 294.

26Ricoeur, Paul, O Conflito das Interpretações, Porto, Rés Editora, s/d, pág. 321.

27Este modelo de estudo da comunicação desenvolveu-se nos Estados Unidos a partir dos anos 60, agrupava então investigadores de áreas como a antropologia, psicologia ou sociologia e é conhecida como A Nova Comunicação ou Escola de Palo Alto, localidade californiana onde alguns membros se fixaram.

28Leroi-Gourhan, A., Op. cit., Vol. 2, págs. 212-214.

29Benjamin, Walter, «O Narrador» in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, págs. 37-38.

30Ibid., «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica», in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, págs. 75-77.

31Ibid., «Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana», in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, pág. 177.

32Nesta espécie de cadeia comunicacional, todos os seres comunicam a sua essência, isto é, disseminam o seu Ser na complexa trama de uma linguagem anterior à que a aprisiona nas palavras. É a este tipo de linguagem da ‘essência’ que se refere recorrentemente Clarice Lispector: «Ambos sabiam que esse era um grande passo dado na aprendizagem. E não havia perigo de gastar esse sentimento com medo de perdê-lo, porque ser era infinito, de um infinito de ondas do mar. Eu estou sendo, dizia a árvore do jardim. Eu estou sendo, disse o garçon que se aproximou. Eu estou sendo, disse a água verde da piscina. Eu estou sendo, disse o mar azul do oceano. Eu estou sendo, disse a aranha e imobilizou a presa com o seu veneno. Eu estou sendo, disse uma criança que escorregara nos ladrilhos do chão e gritara assustada: mamãe! Eu estou sendo, disse a mãe que tinha um filho que escorregava nos ladrilhos que circundavam a piscina.» Lispector, Clarice, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Lisboa, Relógio d’Água, 1999, pág. 62.

33Benjamin, Walter, Op.cit, pág. 182.

34Ibid., pág. 182.

35Mead, George, Espiritu, persona y sociedad, pág.146.

36Goethe, Johann Wolfgang, Fausto, Lisboa, Amigos do Livro, s/d, pág.45.

37Koechlin, Bernard, citado por Gil, José, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, Relógio d’Água, 1997, pág.36.

38Bouissac, Paul, citado por Gil, José, Ibid., pág.37.

39Gadamer, Hans-Georg, Verdad y Metodo, Salamanca, Sígueme, 1984, pág. 461 e Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, págs. 75-76.

40Kraus, Karl, Dits et contredits, Paris, Gérard Lobovici, 1986, pág. 149.

41Ibidem.

42Ibid., pág. 151.

43Cfr. Benjamin, Walter, «Sobre a linguagem em geral», págs. 187-188.

44Einleitung u. Anmerkungen von Josef Simon, citado por Molder, Maria Filomena, «A propósito de uma tradução», in Semear na Neve, Lisboa, Relógio d’Água, 1999, pág. 26.

45Cfr. Benjamin, Walter, Op. cit., pág. 186-187.

46Ibid., pág. 181.

47Ibidem.

48Cfr. Charachidzé, V. G., Le systtème religieux de la Géorgie paienne, Maspero, Paris, 1968, pág. 135, cit. por Gil, José, Op. cit., pág. 23.

49Benjamin, Op.cit., pág.182.

50Ibid., pág. 183.

51Goethe, J. W., Op. cit., pág. 127.

52Cfr. Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, págs. 75-76.

53Molder, Maria Filomena, «O eterno motivo», in Semear na neve, pág.179.

54Ibid., pág. 182.

55São estas as circunstâncias que conduzem à veneração da palavra (especialmente a impressa; em pergaminho, papel ou mesmo o actual ecrã), um dos fundamentos de qualquer sociedade letrada. O Islão leva esta ideia ainda mais longe: o Alcorão não é apenas uma criação de Deus, mas também um dos Seus atributos, tal como a Sua omnipresença ou a Sua compaixão.

56Johann Georg Hamann, filólogo, teólogo e filósofo alemão que foi contemporâneo e conterrâneo de Kant.

57Cfr. Molder, Maria Filomena, «A propósito de uma tradução», in Semear na Neve, págs. 25-26.

58Benjamin, «La tarea del traductor» in Angelus Novus, Barcelona, Edhasa, 1971, pág. 141.

59Ibid., págs. 134-135.

60Ibid., pág. 141.

61Ibid., pág. 133.

62Paul Celan nasceu em 1920 na cidade de Czernowitz, região da Bucovina, «uma terra onde viviam homens e livros», na altura romena e hoje território da Ucrânia, que até à 2ª Guerra era um dos centros mais importantes da cultura judaica do Leste europeu.

63Celan, Paul, Sete Rosas Mais Tarde, Lisboa, Cotovia, 1996, pág. 13.

64Foi desta oscilação que também o argentino Jorge Luis Borges se deu conta, ilustrando esta tese no admirável conto «Pierre Menard, o autor do Quixote». O protagonista deste conto, Pierre Menard, «não queria escrever outro Quixote – o que era fácil -, mas «o» Quixote. (...) A sua admirável ambição era produzir umas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.» O resultado de tal tarefa é comentado por Borges, momentos depois: «É uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote, primeira parte, nono capítulo):

«...la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.»

Redigida no século XVII, redigida pelo engenho leigo Cervantes, esta enumeração é um simples elogio retórico da História. Menard, em contrapartida, escreve:

«...la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.»

(...) Também é vivo o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de Menard – estrangeiro mesmo – sofre de uma certa afectação. Não sucede o mesmo com o do percursor, que maneja com desenvoltura o espanhol corrente da sua época.» Borges, Jorge Luis, Obras Completas I, Teorema, Lisboa, 1998, págs. 465-466.

65Escola a que estão ligados de forma profunda Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, ambos da Universidade de Konstanz, e que acentua os aspectos comunicacionais da obra literária e artística, dando especial atenção aos efeitos sobre o público e à mutação histórica desses efeitos.

66Benjamin, Walter, Op. cit., pág. 136.

67Kafka, Franz, «Meditações» in Antologia de Páginas Íntimas, Lisboa, Editores Reunidos, 1994, pág. 143.

68Ibid., pág. 142.

69Molder, Maria Filomena, «A propósito de uma tradução», pág. 30.

70Kafka, Franz, Op. cit., pág. 116.

71Cfr. Gil, José, Op. cit., págs. 24-25.

72Benjamin, Walter, «La tarea del traductor», págs. 134-135.

73Cfr. Borges, Jorge Luis, «Pierre Menard, o autor do Quixote», pág. 465.

74Cfr. Benjamin, Walter, Op. cit., págs. 130-131.

75Ibid., «Sobre a Linguagem em Geral», pág.196.

76Scholem, Gershom, La Habbale et sa Symbolique, Paris, Payot, 1966, págs. 141-142.

77Benjamin, Walter, citado por Calasso, Roberto, Os Quarenta e Nove Degraus, Lisboa, Cotovia, 1998, pág.54.

78Scholem, Gershom, A Cabala e a Mística Judaica, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990.

79Celan, Paul, Sete Rosas Mais Tarde, pág. 133.

80Cfr. Barrento, João, «Memória e Silêncio», in A Morte é Uma Flor, Poemas do Espólio, Celan, Paul, Lisboa, Cotovia, 1998, págs.131-134.

81Celan, Paul, Arte Poética, Lisboa, Cotovia, 1996, pág. 54.

82Cfr. Ibid., pág. 32.

83Atente-se na descrição que Proust faz, no monumental Em Busca do Tempo Perdido, do seu trabalho de recherche, aqui a partir do sabor da madalena: «Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de S. Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. (...) De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole onde não encontro nada mais que no primeiro, um terceiro que me traz pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. A bebida despertou-a, mas não a conhece (...). Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade.» Proust, Marcel, Em Busca do Tempo Perdido, vol. I, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, págs. 53-54.

84Celan, Paul, Op. cit., pág. 59.

85Centeno, Y.K., «Celan, o Sentido e o Tempo», in Sete Rosas Mais Tarde, pág. XX.

86Cfr. Ibid., Literatura e Alquimia, Ensaios, Lisboa, Presença, 1987, e «Celan: o Sentido e o Tempo», in Sete Rosas Mais Tarde.

87Celan, Paul, Op.cit., pág. 165.

88Cfr. Barrento, João, «Paul Celan: o Verbo e a Morte», in Sete Rosas Mais Tarde, pág. XXX-XXXI.

89Kraus, Karl, «Nesta Grande Época», in Histórias com Tempo e Lugar, Lisboa, Publicações Europa-América, s/d, pág. 200.

90Cfr. Benjamin, Walter, «Teses sobre a filosofia da história», in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, págs. 160-162.

91Ibid., «Franz Kafka», in Essais1, Paris, Denoel Gonthier, 1983, págs. 194-195.

92Ibid., «Teses sobre a filosofia da história», págs. 159-160.

93Cfr. Ibid., «Sobre a linguagem em geral», pág.196.

94Ibid., «Franz Kafka», pág. 202.

95Ibid., «Una carta sobre Kafka» in Iluminaciones I, pág. 206.

96É neste sentido a seguinte meditação: «Mentimos tão pouco quanto possível somente quando mentimos o menos que se pode, não quando temos tão pouco quanto possível a oportunidade de mentir.» Kafka, Franz, «Meditações», pág. 120.

97Cfr. Benjamin, Walter, «Construyendo la muralla china» in Iluminations I, Madrid, Taurus, 1998, pág. 213.

98Franz, Kafka, Op. cit., pág. 119.

99Citado por Felstiner, John, «Langue maternelle, langue éternelle. La présence de l’hebreu», Colloque de Cerisy:Études sur Paul Celan, Paris, Éd. Du Cerf, 1986, págs. 65 e segs.

100Celan, Paul, A Morte é Uma Flor, Poemas do Espólio, Lisboa, Cotovia, 1998, pág. 15.

101Cfr. Barrento, João, Op. cit., págs. XIX-XXII.

102Gadamer, Hans-Georg, Op. cit., pág. 467.

103Sublinhe-se, neste ponto, a importância de sermos elementos de uma sociedade letrada, como factor determinante neste processo: as sociedades sem escrita têm um sentido circular do tempo, ao passo que nas sociedades letradas o tempo é cumulativo.

104Centeno, Yvette Kace, Os Jardins de Eva, Porto, ASA, 1998, pág. 31.

105Gadamer, H.-G., Op. cit., pág. 430. E ainda, nas palavras de Benjamin, «todo aquele que domina é sempre herdeiro de todos os vencedores (...)os senhores de hoje marcham sobre os corpos dos vencidos de hoje.», Benjamin, Walter, «Teses sobre a filosofia da história», pág. 161.

106Ibid., pág. 15.

107Ibidem.

108Ricoeur; Paul, Teoria da Interpretação, pág. 71.

109A este propósito havia dito Heidegger, simplesmente, «a linguagem é a morada do Ser». Heidegger, Martin, «Letter on humanism», in Basic Writtings, Nova Iorque, Harper and Row, s/d, pág. 189.

110Ricoeur, Paul, Do Texto à Acção, Porto, Rés Editora, s/d, pág. 40

111Manguel, Alberto, Uma História da Leitura, Lisboa, Presença, 1998, pág. 25.

112Benjamin, Walter, «A Berlin Chronicle», in Reflections, org. Peter Demetz, Nova Iorque, 1978.

113Idem, Pro domo et mundo, in Op. cit., pág.236.

114Centeno, Y. K., Idem, pág. 53.

115Também o poeta Rainier Maria Rilke orientava a atenção e a expressividade do jovem Franz Kappus no sentido da expressão do quotidiano vivido, ao aconselhar: «Foge para os temas do teu próprio quotidiano, diz as tuas tristezas e os teus desejos (...), diz tudo com uma sinceridade profunda, serena (...). Se o teu quotidiano te parece pobre, não o acuses; acusa-te a ti próprio.» Rilke, Rainier Maria, Lettres à un jeune poète, Paris, Mille et une nuits, 1998, pág. 9.

116Al Berto, «Salsugem» in O Medo, Lisboa, Assírio e Alvim, 1997, pág. 231.

117Gadamer, H.-G., Op. cit., pág. 531.

118Ibidem.

119Ibid., O Problema da Consciência Histórica, Gaia, Estratégias Criativas, 1998, pág. 13.

120Centeno, Y. K., Op. cit., pág. 106.

121Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, pág. 137.

122Heidegger coloca a questão de um modo claro em O Ser e o Tempo: «A interpretação nunca é a captação sem pressupostos de algo previamente dado.» (pág.150) O que aparece do objecto é o que a tematização do mundo actuante na compreensão traz à luz. Heidegger dá um exemplo: «O martelo é pesado.» Na própria asserção, diz, já actua um determinado modo de concepção. Antes de qualquer interpretação ou análise realmente visíveis, a situação foi estruturada em termos lógicos para se adequar à estrutura de uma asserção. O martelo foi já interpretado como uma coisa com propriedades, neste caso o peso. A estrutura da frase, na asserção, com o seu modelo de sujeito, cópula e adjectivo predicativo, colocou o martelo diante de nós, como um objecto, como algo que possui propriedades.

123Veja-se, a este propósito, a referência que Franz Kafka faz à carga significativa que cada termo ‘carrega’ pela sua historicidade: «Basta, por exemplo, dizer incessantemente de uma pessoa, e dizê-lo com a maior obstinação, que é simples de espírito e idiota para, se carrega em si um nódulo dostoievskiano, ser literalmente forçada a executar o máximo do que pode fazer. (...) Se dizem: «És um imbecil», não querem afirmar com isso que o outro seja verdadeiramente um imbecil e que se sintam desonrados com o facto de se terem tornado seus amigos, há nisso geralmente, quando não se trata de um simples gracejo, uma infinita mistura de intenções.» «Diário», in Antologia de Páginas Íntimas, pág. 72.

124Cfr. Gadamer, H.-G., Verdad y Metodo, págs. 334, 344.

125Jauss, Hans Robert, A Literatura como Provocação, Vega, Lisboa, 1993, pág. 68.

126Cfr. Ricoeur, Paul, Op. cit., pág. 137.

127Gadamer, H.-G., «Esboço dos fundamentos de uma hermenêutica», pág. 77.

128Benjamin, Walter, «The Destrutive Character» in Reflections, Nova Iorque, Harcourt Brace Jovanovich, 1978, pág. 301.

129Musil, Robert, O Homem Sem Qualidades, vol. I, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, pág. 307.

130Benjamin, Walter, «Karl Kraus», in Reflections, pág.272.

131Centeno, Y. K., Op. cit., pág. 106.

132Valéry, Paul, Apontamentos, Arte, Literatura, Política & Outros, Lisboa, Pergaminho, 1994, pág. 69.

133Kafka, Franz, «Meditações», pág. 115.

134Jauss, Hans Robert, Op. cit., págs. 71-72.

135Gadamer, H.-G., Verdad y Metodo, pág. 337.

136Ibid., «Esboço dos fundamentos de uma hermenêutica», pág. 85.

137Gadamer, Verdad y Metodo, págs. 344-347.

138Ibid., pág. 347.

139«Os relógios fortes / dão razão à hora da fractura / roucamente. / Tu, entalado no mais fundo de ti mesmo, / sais de ti / para sempre.» Celan, Sete Rosas Mais Tarde, pág.165. Era no mesmo sentido que orava Pessoa em 1912: «Senhor, livra-me de mim.»

140Gadamer, H.-G., Op.cit., pág. 432. Ocorre ainda, a propósito desta ideia, o começo genial da obra Para Além do Bem e do Mal (Relógio d’Água, 1999), de F. Nietzsche: «Se a verdade é mulher, não teremos motivos para suspeitar que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, pouco entenderam de mulheres?».

141Gadamer, H.-G., O Problema da Consciência Histórica, pág. 14.

142Kafka, Franz, «Meditações», pág. 117.

143Gadamer, H.-G., Verdad y Metodo, pág. 432.

144Ibidem.

145Benjamin, Walter, «Teses sobre a filosofia da história», pág.158

146Cfr. Wolin, Richard, Labirintos, Lisboa, Instituto Piaget, 1998, pág.129. Por razões semelhantes, Benjamin insistiria, nas Illuminations, na ideia de que o socialismo é alimentado mais pela imagem de antepassados escravizados do que pela imagem de netos livres.

147Benjamin, Walter, «Kafka», págs. 194-195.

148Cfr. Gadamer, Hans-Georg, Op.cit., pág. 375. Ocorre a este propósito o conto de Kafka intitulado Desiste, onde se dá conta, de forma metafórica, da dificuldade em chegar ao conhecimento universal: incapaz de descobrir o caminho por si só, o personagem pergunta-o a um polícia. Rindo, este repete as palavras «desiste, desiste», como sendo única solução. Que significará tal metáfora? À primeira vista, perguntar o caminho a outrém não é a solução. O Outro não é o lugar da verdade, mas o ponto de apoio onde encontramos a verdade que em nós estava já antes, oculta ou rasurada. O Outro não é homem de fórmulas; aliás, para Kafka nenhuma fórmula serve.

149Gadamer, H.-G., «Esboço dos fundamentos de uma hermenêutica», pág. 89.

150Ibid., Verdad y Metodo, pág. 369.

151Ibid., pág. 433.

152Gadamer, H.-G., «Os problemas epistemológicos das ciências humanas», in O Problema da Consciência Histórica, págs. 17-22.

153Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, pág. 135.

154Ibid., pág. 132.

155Gadamer, H.-G., «Esboço dos fundamentos de uma hermenêutica», pág. 78.

156Kraus, Karl, Dits et Contredits, pág. 150.

157Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, pág. 121.

158Ibidem.

159Cfr. Gadamer, H.-G., Verdad y Metodo, pág. 376.

160Benjamin, Walter, «Teses sobre a filosofia da história», pág. 166.

161Cfr. Molder, M. Filomena, «O eterno motivo», pág. 184.

162Arendt, Hannah, La Crise de la Culture, Paris, Gallimard, 1972, págs. 24-25.

163Gadamer, Hans-Georg, Op.cit., pág. 367.

164Benjamin, Walter, «Teses sobre a filosofia da história», págs. 158-159.

165Habermas, Jürgen, «Walter Benjamin» in Perfiles Filosófico-Políticos, Madrid, Taurus, 1975, pág.306.

166Ibid., pág.320.

167Cfr. Ibid., pág. 328.

168Cfr. Gadamer, H.-G., Op. cit., págs. 534-535.

169Gadamer, H.-G., Verdad y Metodo, pág.535.

170Ibid., «Rhétorique, herméneutique et critique de l’idéologie», in L’Art de Comprendre, Paris, Aubier, 1982, pág. 125.

171Ibid., Verdad y Metodo, pág.s.376-377.

172É o facto de o niilismo ser uma consequência da experiência moderna que explica que, no século XIX, tenha acedido à consciência lúcida de alguns o desespero que resume a célebre exclamação de Dostoievsky, n’Os Irmãos Karamazov: «Se Deus morreu tudo é permitido.»

173Gadamer, Hans-Georg, Op. cit., pág.330.

174Habermas, Jürgen, «La pretension a l’universalité de l’herméneutique» (1970), in Logique des scienses sociales et autres essais, Paris, Presses Universitaires de France, 1987.

175Ibid., pág. 243.

176Cfr. Ibid., pág. 251.

177Ibid., págs. 271-272.

178Este dilema é colocado de forma bem clara por Paul Ricoeur, que o estende aos traços da antinomia entre a experiência individual e a experiência colectiva. Com efeito, a ambivalência parece justificar-se pelo recurso a valores em situações em que as suas regras se fazem valer (honra, amizade, lealdade), mas há por outro lado situações únicas, sem precedentes, e onde a tradição não tem lugar. Mas o que sucede com a linguagem é que ela é transmitida pela cultura e pelo discurso, e assim condiciona a interpretação das gerações vindouras. E a tradição, sendo mais que uma mera transmissão – este um termo neutro – transmite um conteúdo cultural com uma autoridade específica, uma autoridade que se pode tornar em forma de violência sobre o pensamento, limitando dessa forma o avanço da nossa maturidade. Neste sentido, avança Ricoeur com a demonstração de duas propostas críticas: «Em primeiro, uma hermenêutica da tradição pode apenas cumprir o seu programa se introduzir uma distância crítica, concebida e praticada como parte integrante do processo hermenêutico. Em segundo, e por outro lado, uma crítica de ideologias também pode apenas cumprir o seu programa se incorporar uma certa regeneração do passado, e consequentemente, re-interpretando a tradição.» Há uma mediação, mas uma mediação prática: «Só um trabalho de avaliação – que é também um trabalho de transavaliação (transavaliation) – nos assegura que a relação entre o projecto de liberdade e a memória do passado constitui um circulo vicioso para a compreensão analítica, mas não para a razão prática.» Ricoeur, Paul, «Ethics and Culture, Habermas and Gadamer in Dialogue» in Political and Social Essays, Athens, Ohio University Press, 1974, págs. 246 e 270.

179Habermas, Jürgen, Op.cit., pág. 273.

180Este debate conduz também a conclusões que, significativamente, têm implicações políticas. Porque Habermas defende que a consciência emancipatória se autonomiza da tradição, da autoridade e da obediência, segue-se que «inconscientemente a imagem condutora final da reflexão emancipatória nas ciências sociais tem de ser uma utopia anárquica.», Gadamer, H.-G., On the Scope and Function of Hermeneutical Reflection, Nova Iorque, Continuum, 1970, pág. 95.

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