Gil A. Baptista Ferreira, Universidade da beira Interior
Fevereiro de 1998
Tanto pela originalidade como pela amplitude da sua obra, Walter
Benjamin é dos pensadores que continua determinante na cultura moderna
ocidental, passados que estão mais de cinquenta anos da sua morte.
Nesta análise procurar-se-á, acima de tudo, compreender a
lógica interna do pensamento de Benjamin no domínio da filosofia
da linguagem, descurando embora outros aspectos da sua obra. Pretende-se,
sobretudo, reflectir a estrutura das suas análises da linguagem,
sem esquecer o carácter relacional que orientou um pensamento coerente,
embora original.
Contudo, veremos aqui uma filosofia da linguagem sem o que se pode
considerar como uma formulação ou estatuto científico.
É que o próprio Benjamin nada possuía de filósofo
no sentido tradicional do termo; 1 também na sua
filosofia da linguagem, como em tudo o resto, a tendência de Benjamin
consistia em ir contra a interpretação habitual. 2
Tudo, visto por si, tomava necessariamente um aspecto diferente, e daí
a originalidade das suas análises e da sua forma de pensar. Na feliz
análise de Adorno, «sob o olhar das suas palavras, tudo se
transforma, como se se tornasse radioactivo». 3
O mérito de Benjamin - e do seu pensamento considerado como
um todo - consistiu sobretudo em relacionar-se com os objectos de acordo
com a sua organização interna, de um modo próprio,
como se a convenção não tivesse qualquer poder sobre
eles. E é por isso, como referiu de forma metafórica em Rua
de Sentido único, que «todos os golpes decisivos são
atestados com a esquerda»; 4 ou seja, é sempre
da forma menos habitual e menos esperada é que se consegue o inesperado.
Precisamente porque Benjamin via que todo o conhecimento assume a forma
de interpretação, compreendeu a óbvia importância
de ir contra qualquer interpretação dada como última
ou definitiva. O seu pensamento era, pois, centrado na experiência,
no face a face único, de onde partia para um qualquer conhecimento,
só assim tornado possível. Recorrendo uma vez mais à
caracterização adorniana, Benjamin «queria devolver-nos
a satisfação que a adaptação e a autoconservação
impedem de ter, o prazer em que se articulam os sentidos e o espírito.»
5
Nesta tarefa de procura de novas interpretações,
o modo de operar usual em Benjamin foi retirar o simbolismo a obras que
toda a gente reconhecia que o tivessem em si mesmas, como as de Goethe
e de Franz Kafka. Por outro lado, reconhecia esse simbolismo e metáforas
onde ninguém o suspeitava - como nas obras do barroco alemão,
que lia como alegorias ao pessimismo histórico, e onde encontrou
também elementos da sensibilidade moderna (o gosto pela alegoria
e efeitos de choque surrealista, entre outros). Agradava a Benjamin encontrar
coisas onde ninguém as procurava, e também por isso considerava
cada livro como uma apaixonante estratégia que lhe competia identificar.
6
Assim, nada era abertamente denunciado para Benjamin: antes havia
sempre algo oculto até cada nova interpretação. É
notória neste aspecto a influência que o seu pensamento sofreu
da mística judaica, que conheceu na juventude através do
amigo Gershom Scholem, o importante investigador da cabala. A filosofia
benjaminiana era sistemática e elaborada, de comentário e
crítica após cada experiência com o objecto. Numa carta
a um amigo, Benjamin havia afirmado, apenas em parte por brincadeira, que
os seus escritos tinham 49 níveis de interpretações.
Em suma, com Benjamin nenhum conhecimento é directo e tudo é,
pelo menos, difícil. Daí a atracção por tudo
o que é preciso decifrar; atracção também (a
mero título de exemplo) pelo extremamente pequeno: uma ambição
sua, referia Scholem, era escrever 100 linhas numa página. 7
E é neste processo que, como afirmou Adorno, possui «a linguagem
mais dignidade como cristalização do nome do que como portadora
de significado e expressão». 8 Contudo, trata-se
já de conceitos a analisar adiante noutro contexto.
A Magia da Linguagem
São diversas as razões pelas quais a filosofia da linguagem
de Walter Benjamin não tem um estatuto científico: 9
o sua posição face á linguagem terá sido sobretudo
uma (mais uma) estratégia a que o filósofo recorreu para
tentar definir sua tarefa de pensador. Contudo e apesar disso, parte importante
do seu pensamento sobre a linguagem pode ser encontrada no texto Sobre
a linguagem em geral e sobre a linguagem humana, 10
de 1916.
Neste ensaio, Benjamin parte da ideia de que a linguagem não
é uma particularidade do homem. Tudo, na Criação,
é linguagem, e a linguagem do homem mais não é que
uma forma privilegiada da linguagem em geral. 11 Numa
época em que Saussure e outros elaboram uma linguística científica,
Benjamin parece voltar a uma concepção pré-moderna,
metafísica e mística do Livro do Mundo, em que tudo fala,
em que tudo se comunica. Mas revelará então a intenção
mais específica que o guia e que o aproxima de um contexto simbolista
(Mallarmé, Stefan George). Tratar-se-á ? em última
análise - de afastar a linguagem de toda a concepção
instrumentalista, intenção que exporemos adiante.
Em Sobre a Linguagem em Geral, Benjamin afirma que toda a linguagem
humana comunica a essência espiritual que lhe corresponde. Repare-se,
contudo, que «essa essência espiritual comunica-se na linguagem
e não pela linguagem.» Sublinha pois com insistência
que «toda a linguagem se comunica a si mesma», 12
isto antes de poder ser, ainda que ilusoriamente, instrumento de comunicação
de um conteúdo particular. É então que surge a concepção
da linguagem como magia, a propósito de toda a comunicação
espiritual - que se produz na linguagem e não pela linguagem. A
magia da linguagem está em que ela comunica em si mesma, e de forma
absoluta. Benjamin distingue-a duma falsa magia inerente ao uso instrumental
da linguagem, de onde a tentará libertar. Assim, tal como a linguagem
das coisas e dos acontecimentos, também a linguagem humana exprime
e comunica antes de toda a comunicação instrumental. Daí
o propósito central que guiava Benjamin; libertar toda a linguagem
do carácter instrumentalista antes referido. 13
Em tal processo, Benjamin distingue duas linguagens: a linguagem das
coisas e a linguagem dos nomes. 14 A linguagem das coisas
é a própria essência linguística das coisas,
e comunica-se ao homem. Porém, no caso da linguagem do homem, sabemos
que ele fala por palavras onde comunica a sua própria essência
espiritual - e isto denominando todas as outras coisas. 15
E é assim que Benjamin lança a questão: comunica-se
a quem, tal linguagem ?
Benjamin assinala a diferença então ao nível do
destinatário destes dois tipos de linguagem. Por um lado, as coisas
e os seres da natureza comunicam-se ao homem. Mas, por outro lado, quando
o homem nomeia, «no nome, a essência espiritual do homem transmite-se
a Deus.» 16 Liberta assim a linguagem humana de
uma concepção instrumental, a que ele chama de «concepção
burguesa da linguagem». 17 Deus é
a testemunha dessa faculdade humana de nomear, pela qual a humanidade exprime
a sua essência espiritual. Benjamin rompe deste modo com qualquer
teoria da linguagem que associe a palavra humana a funções
meramente pragmáticas, uma característica da concepção
burguesa da linguagem, como vimos.
Esta faculdade de nomear faz do homem uma instância privilegiada
da Criação divina: é que a Criação completa-se
justamente através do acto de nomeação do homem. E
é assim que se estabelece uma graduação de todos os
seres espirituais, segundo «graus de existência ou segundo
graus de ser, como já sucedia na escolástica» 18,
em função do conceito filosófico-religioso de revelação.
A ideia de Benjamin é a de que «o domínio espiritual
mais elevado da religião é simultaneamente o único
que o inexprimível não conhece. Porque é interpelado
no nome e se manifesta como revelação.» 19
Imagina pois uma ordem genealógica da linguagem, a partir de um
evento irruptivo. No entanto, Benjamin sustenta que «só em
Deus existe a relação absoluta do nome com o reconhecimento»,
«só aí o nome é idêntico à palavra
criadora». 20 Considera, assim, ter havido na comunicação
entre os homens a perda da linguagem originária - a linguagem dos
nomes, que nada sabe da exterioridade e na qual o nome e a coisa coincidem
de maneira quase absoluta. 21 É que, como afirmara,
a linguagem só se exprime de um modo puro quando fala no nome, a
verdadeira e última invocação da linguagem. No nome,
acumula-se «a totalidade intensa da linguagem». 22
Mas fora dele, no uso, fica a indeterminação, dado que aí
nunca se trata nem da verdadeira nem da última invocação
da linguagem.
A Experiência da Comunicabilidade
A partir do momento preciso da perda da linguagem originária
e da multiplicação de linguagens, «toda a linguagem
humana é apenas reflexo da palavra no nome». 23
Assim, a linguagem surge com possibilidades limitadas, isto quando comparada
com a palavra Criadora, a palavra de Deus. E então, refere, o reflexo
mais profundo a que podemos aceder é o nome humano - só aí
atingimos uma modesta participação íntima na palavra
divina, na sua infinitude. 24 No entanto, sublinhe-se
que nesse mesmo ponto que é o nome a «palavra não pode
tornar-se palavra finita nem conhecimento». 25
Ou seja, não pode ser alvo de uma única e última interpretação,
de uma definitiva porque conclusiva análise. Não é
sempre ou necessariamente o mesmo aquilo a que a linguagem se refere. E
deste modo, é linguagem dispersada e transformada num (mero) sistema
de signos arbitrários. Com o uso da linguagem, surge ela perante
nós, utentes, carimbada pela convenção, e cada denominação
pode assim nomear uma ou outra coisa. Sublinhe-se como é notória
e determinante a brecha que se abriu aqui entre a coisa e o nome - dá-se
a perda da linguagem dos nomes, o que ocorre no momento preciso em que
o uso chega . 26
Esta ideia da linguagem dos nomes parece conformar-se à ideia
tradicional de obra de arte, 27 que Benjamin tão
bem reflecte. Na tradição, a obra de arte é apresentada
como com uma existência autêntica, única, com o hic
et nunc de um evento irredutível e insubstituível: como a
aparição daquilo que permanece protegido da reprodutibilidade
geral. A obra de arte tradicional gera um efeito de sacralização
que remete de volta a uma função ritual; em certa medida,
ela é um nome. Como mostra Benjamin no ensaio sobre a arte, é
a reprodução técnica que destroi a autenticidade da
obra de arte tradicional. Isto é também visível no
processo que submete a linguagem ao princípio da reprodução,
e nomeadamente da reprodução técnica.
Benjamin refere num outro ensaio sobre o jornalista e polemista Karl
Kraus como o seu objectivo era desmascarar o inautêntico. Para isso,
Kraus atacava a imprensa, a linguagem jornalística e os clichés,
como sendo todos «criaturas monstruosas da técnica».
Mas a forma que a linguagem assume na era da reprodutibilidade técnica
é precisamente esta: falar e escrever em clichés. Quando
«cunhamos ditos» usamos em cada vez expressões tão
gastas que acabam por assegurar que a linguagem criada pela imprensa (tida
como a instituição da reprodutibilidade técnica) é
uma linguagem de citações sem referências. A citação
aparece assim como um vestígio da comunicabilidade no interior da
própria comunicação. E é deste modo que, nas
palavras de Duettmann, esta linguagem da comunicabilidade mal chega a ser
uma linguagem: ela «é a própria coisa da linguagem,
ou a linguagem como a própria coisa.» 28
Partindo de tal concepção de linguagem, podemos dizer
que quando lemos um texto ou comentário, uma análise ou interpretação,
em vez de começarmos por nos aprisionar no conhecimento centrado
numa reprodução de dogmas e de formas instituídas,
antes sofremos um choque que nos lança para a frente e para trás,
levando-nos a pensar e a escrever. Esta é, pois, a experiência
da comunicabilidade. Jacques Derrida, pensador contemporâneo, enuncia
esta ideia de forma implícita na sua obra Glas. Refere ele como
procurava produzir «um outro tipo de escrita, uma escrita violenta
que demarque as falhas e desvios de linguagem; de modo a que o texto produza
uma linguagem dele próprio, nele próprio, que, enquanto continua
a operar através da tradição desponte num determinado
momento como um monstro, uma mutação monstruosa sem tradição
ou precedente normativo.» 29
O desejo de «produzir monstros» traduz-se no desejo de
produzir novas interpretações, produzir novos discursos a
partir do acontecimento singular de todo o discurso. Todo o discurso surge
como o sobrevivente de uma catástrofe que foi o seu próprio
acontecimento. Duettmann, de modo que julgamos brilhante e claro, resume
a questão da forma seguinte: «a lei da tradição
é inventada todas as vezes que o pensamento ou a escrita rompem
com a tradição.» 30
Processo(s) da indeterminação interpretativa
A leitura de Kafka por Walter Benjamin desenvolve-se entre 1934 e 1938
e foi parte essencial na troca de ideias que manteve com o seu amigo (já
referido) Gershom Scholem, versando principalmente a filosofia messiânica
da história. Iniciou-se Benjamin em Kafka com a leitura de O Processo,31
quando uma icterícia o obrigou a recolher-se ao leito, em 1927.
A interpretação que então fez de Kafka (inesperada,
como era de esperar) divergiu da que lhe era proposta por Scholem; mas
disso daremos conta adiante.
Considera-se ter Benjamin duas etapas nas leituras que fez de
Kafka. Na primeira leitura verificou como a transição da
tradição para a modernidade se manifesta do ponto de vista
da modernidade, como uma possibilidade que se abre. Na segunda etapa, reflectiu
o ponto de vista da tradição. O ensaio que escreveu sobre
Kafka é de 1934 32 e a linha de argumentação
é aí bastante clara. O ponto de partida é um exame
da natureza do mundo de Kafka, centrado no lugar que nele ocupa a lei:
«em Kafka, a lei escrita está contida nos livros, mas estes
são secretos; por se basear neles, o mundo pré-histórico
exerce o seu domínio de maneira ainda mais impiedosa.» 33
O carácter secreto da origem da lei torna a situação
do acusado desesperada. E é esse desespero que «revela a beleza»
do acusado. É que Kafka torna belo o desespero daqueles que sofrem
uma lei desconhecida, através da descrição da sua
situação sem solução aparente, sejam quais
forem as suas esperanças individuais. Este desespero distancia a
obra de Franz Kafka da restauração do mito: «até
o mundo mítico, que este contexto nos evoca, é incomparavelmente
mais jovem que o mundo de Kafka, a que o mito prometeu redenção.
Como um novo Ulisses, ele livra-se das sereias graças ao ‘seu olhar
... fixo na distância’.» 34 A lógica
da interpretação benjaminiana de Kafka oscila, pois, nesta
dupla referência: por um lado, um mundo anterior ao mito; por outro,
um mundo que o superou (justamente pela existência da lei).
Ao fazer parte de um mundo em que a realidade da lei é
legitimada no tocante à sua forma escrita, Kafka não pode
deixar de apresentar a opacidade dessa lei para o indivíduo, em
termos de alguma origem escrita. Trata-se assim de um mundo pré-histórico
(na sua exterioridade cega, incompreensível, quase natural) e pós-mítico
(na sua apresentação da forma racional da lei). A principal
consequência dessa projecção dual e contraditória
é a indeterminação interpretativa: uma indeterminação
que constitui o significado da obra de Kafka. O mundo de Kafka é
determinado só na sua indeterminação. Como afirma
Benjamin, «toda a obra de Kafka constitui um código de gestos
que certamente não tinham de início nenhum significado simbólico
para o autor; ao contrário, o autor tentou extrair deles um significado
em contextos cambiantes e arranjos experimentais.» Isto do mesmo
modo que os seus personagens usam para, em vão, extrair um significado
conclusivo das circunstâncias em que se inserem. 35
As histórias de Kafka pedem para serem lidas como parábolas
e, ao mesmo tempo, recusam-no. «Elas não querem ser tomadas
pelo seu valor nominal; prestam-se a citações e podem ser
contadas para fins de esclarecimento. Mas, será que, por acaso,
temos a doutrina que as palavras de Kafka interpretam e que as atitudes
de K. e os gestos dos animais elucidam? Essa doutrina não existe;
tudo o que podemos dizer é que temos, aqui e ali, uma alusão
a ela. Kafka poderia dizer que essas coisas são relíquias
que transmitem a doutrina, embora as possamos, igualmente, considerar como
percursoras...» De qualquer modo, «no espelho que o mudo pré-histórico
segurava à sua frente, na forma de culpa, (Kafka) via o futuro emergir
na forma de um julgamento.» Mas, acrescentou então Benjamin,
Kafka «não contou como ele era». 36
Benjamin mostrou que Kafka compreendeu as coisas somente na forma
de um gestus, mas que não foi capaz de compreender esse gestus em
si. E, deste modo, em Kafka a narrativa retoma a significação
que tinha na boca de Sherazade, nas Mil e Uma Noites: ela adia o futuro.
37
Vimos como havia sido Scholem a motivar Benjamin para a leitura de Kafka.
É que aí encontrara ele «uma afinidade com a linguagem
do juízo final ... o prosaico na sua forma mais canónica».
38 Fazendo juz à originalidade do seu pensamento,
para Benjamin o aspecto de maior saliência nas leituras de Kafka
é a ignorância que perpassa por todo o seu mundo, e que vai
tomar a forma de esquecimento.
A propósito disto, Benjamin cita Willy Haas, sobre O Processo:
«o verdadeiro herói desse livro incrível é o
esquecimento». E continua: «o que foi esquecido nunca é
algo puramente individual (...), o esquecimento é o receptáculo
a partir do qual o inesgotável mundo intermediário busca
a luz.» 39 Onde Scholem vê julgamento, Benjamin
vê memória, uma memória de que o personagem K. está
para sempre alienado:«sempre que personagens do romance têm
alguma coisa para dizer a K., por mais importante ou surpreendente que
seja, fazem-no de maneira displicente e dando a entender que ele devia
ter sabido aquilo o tempo todo.» Isto, note-se, como se nada de novo
estivesse a ser comunicado, e ele fosse apenas convidado a relembrar.
Scholem incluiu um poema didáctico sobre O Processo, aquando
da publicação do ensaio de Benjamin, no Juedische Rundschau,
em finais de 1934. Tendo em consideração a interpretação
benjaminiana de Kafka, note-se como as estrofes finais do poema se voltam
mesmo contra o próprio autor:
Quem é o réu aqui?
A criatura ou tu mesmo?
Caso alguém te perguntasse
Mergulharias no silêncio.
Pode essa pergunta ser feita?
Terá resposta precisa?
Oh, apesar de tudo temos de viver
Até que o teu tribunal nos investigue. 40
Atente-se que respondendo a este poema e às questões que
ele coloca, Benjamin afirmou como a obra de Kafka indica «um estado
do mundo em que tais perguntas não têm mais lugar porque as
suas respostas, longe de serem instrutivas, tornam as perguntas supérfluas.»
A experiência do presente (e decerto a modernidade também,
em termos da sua forma, nova e radicalmente abstracta) formula por si mesma
perguntas suficientes. 41
Conclusão
Se a importância da reflexão conjunta de Benjamin e de
Kafka é fulcral para a compreensão de ambas as obras, é-o
não menos numa perspectiva de análise da teoria da linguagem,
verdadeiro propósito deste trabalho. Neste sentido, observámos
como os escritos de Kafka proporcionaram a Benjamin elementos de análise
do polo da tradição - mas de uma tradição em
luta com a modernidade, e dessa mesma tradição em crise.
Também a modernidade em Kafka é assim vista sob o signo da
tradição (e da cabala, como forma de interpretação
e de conhecimento).
Segundo a teoria da linguagem de Benjamin, o que a linguagem tem de
comum com a sua comunicabilidade é uma ínfima e inquantificada
sombra de verdade; verdade essa que, contudo, está acima de qualquer
linguagem em particular. A importante tentativa de comunicar a experiência
da modernidade numa linguagem da tradição e o seu fracasso,
reconheceu Benjamin, tornam a obra de Kafka axial para o ilustrar o seu
pensamento. Porém, central na obra de Kafka para esta questão
é a indeterminação interpretativa, indeterminação
essa que constitui o significado da obra de Kafka. Como em Benjamin, também
a verdade está nos ‘livros’, numa escrita primeira afastada na lonjura,
a que não temos acesso. É que o seu carácter secreto
não nos permite ter as coisas pela linguagem de forma definitiva,
alguma vez acabada. Há aqui, como em Benjamin, o desespero (paradoxalmente)
fascinante de não nos podermos adaptar à convenção;
o tal prazer em que se «articulam sentidos e espíritos»,
na interpretação, na crítica e na análise.
Terminamos este trabalho tornando presente uma passagem de O
Processo 42 que nos parece, de algum modo, evocar o espírito
que presidiu à sua elaboração. Um homem está
frente à porta que o separa da Lei. O porteiro dá-lhe um
banco, onde fica sentado durante anos. Para lá desse porteiro, que
é enorme e inacessível, estão, garante ele, muitos
outros, cada vez mais difíceis, até se poder atingir a Lei.
Já perto da velhice, o homem consegue distinguir um fulgor que jorra
da porta da Lei. Mas a sua vida aproxima-se do fim. Pergunta então
ao guarda porque ninguém tinha procurado entrar por aquela porta,
ao longo dos anos que esperara. É que ninguém mais podia
por ela entrar, respondeu o guarda, por essa porta que estava a ele (e
só a ele) mesmo destinada.
Também nós, para atingir a verdade da linguagem temos
que passar múltiplas portas, portas difíceis (como com a
cabala e seus inúmeros degraus), sem termos ainda chegado à
coisa em si. Tudo isto porque se perdeu a linguagem originária.
No entanto, cada comentário, cada interpretação, cada
‘verdade’, é possível embora apenas nos pertença,
confrontados com a experiência que deu origem; há um texto
que só nós lemos de tal forma ? uma forma que não
é nem definitiva nem única. É que temos portas que
só a nós estão destinadas e que estamos condenados
a permanentemente abrir.
Notas:
1. Cfr. Adorno, T.W., Caracterização de Walter Benjamin, in Sobre arte, técnica, linguagem e política, Benjamin, Walter, Relógio d’água, Lisboa, 1992.
2. Sontag, Susan, Sob o signo de Saturno, in Rua de Sentido único, Benjamin, Walter, Relógio d’água, Lisboa, 1992.
4. Benjamin, Walter, Rua de sentido único, Relógio d’água, Lisboa, 1992.
5. Adorno, T.W., Op.cit., pág.11.
6. Cfr. Sontag, Susan, Op.cit., págs.20-21.
7. Cfr. Sontag, Susan, Op.cit., págs. 20-21.
8. Adorno, T.W., Op.cit., pág. 16.
9. Entre tais razões, atente-se apenas no comentário que o (importante e decisivo) amigo de Walter Benjamin, Gershom Scholem, registou certa vez: «uma filosofia que não inclua a possibilidade de fazer adivinhações com grãos de café e não consegue explicar isso não pode ser uma verdadeira filosofia». Scholem, Gershom, Walter Benjamin: the story of a friendship, Faber and Faber, Londres, 1982, pág.59.
10. Benjamin, Walter, Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana, in Sobre arte, técnica, linguagem e política, Relógio d’água, Lisboa, 1992.
11. Cfr. Benjamin, Walter, Op.cit., pág.177.
12. Benjamin, Walter, Op.cit., pág.179.
15. Cfr. Benjamin, Walter, Idem, pág. 180.
16. Benjamin, Walter, Idem, pág.181.
21. Cfr. Duttman, Alexander García, Tradição e Destruição: a política da linguagem em Walter Benjamin, in A Filosofia de Walter Benjamin, org. Benjamin, Andrew e Osborne, Peter, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997, pág. 49-52.
22 Benjamin, Walter, Op.cit., pág.183.
23. Benjamin, Walter, Op.cit., pág.187.
24. Cfr. Benjamin, Walter, Idem, pág.187.
26. Benjamin, Walter, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, in Sobre Arte, Política linguagem e técnica, Relógio d’água, Lisboa, 1994, págs. 192-193.
27. Cfr. Benjamin, Walter, Idem.
28. Duettmann, Alexander García, Op.cit., pág.58.
29. Derrida, Jacques, Glas, Galileé, Paris, 1974, pág.123.
30. Duettmann, A.G., Op.cit., pág.59.
31. Kafka, Franz, O Processo, Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
32. Benjamin, Walter, Kafka, in Essais 1 1922-1934, Gonthier, Paris, 1983.
33. Benjamin, W., Idem, pág. 187. Benjamin acrescenta que no mundo pré-histórico, leis e formas definidas permanecem não escritas.
38. Scholem, Gershom, Walter Benjamin: story of a friendship, pág.48.
40. Citado por Osborne, Peter, Vitórias de pequena escala, derrotas de grande escala, in A Filosofia de Walter Benjamin, pág.92.
41. The Correspondence of Walter Benjamin and Gershom Scholem, 1932-1940, org. por Gershom Scholem, Schockem Books, Nova Iorque, 1989, pág.125-128.
42. Kafka, Franz, O processo, Livros do Brasil, Lisboa,
s/d.