Poder, código e comunicação
 
  João Pissarra Esteves, Universidade Nova de Lisboa
 (in, Revista de Comunicação e Linguagens , nº.s 17/18, Lisboa, Ed. Cosmos, 1993)

 
A questão comunicacional mereceu, desde sempre, atenção por parte  do pensamento sociológico e, nos últimos anos, com o desenvolvimento das sociedades modernas, a sua importância tem vindo progressivamente a reforçar-se. É hoje uma preocupação partilhada tanto pela Sociologia empírica como pela Sociologia teórica (passe o simplismo das designações), o que significa que a comunicação é encarada, ao mesmo tempo, como objecto de estudo (ou campo de pesquisa) e,  noutro plano e com outro relevo epistemológico, como importante instrumento teórico-analítico deste tipo de pensamento científico.

Por este motivo, a Sociologia conquistou um lugar próprio no estudo da moderna problemática comunicacional; e um aspecto onde o seu contributo está presente diz respeito à comunicação não-verbal -  problemática  que é comum também  a outras disciplinas do conhecimento centradas na questão comunicacional.

Em geral, as discussões em torno da comunicação não-verbal  identificam e exploram uma contradição entre este tipo de comunicação e a comunicação dita "normal", isto é, a comunicação verbal. Reconhecem a existência de uma tensão, de uma articulação problemática ou, eventualmente, conflitual entre estes dois tipos de comunicação.

A propósito de um tema central da Sociologia - o poder -, alguns autores, conotados com a chamada teoria sistémica, propuseram uma solução inteiramente original para este problema. Uma solução que passa, do seu ponto de vista, pela constatação de que nas sociedades desenvolvidas dos nossos dias surgem novas formas de comunicação que não podem já ser identificadas com nenhuma das formas convencionais, de ordem verbal ou de qualquer outro tipo. Estas novas formas de comunicação, de que o poder seria um exemplo, apresentam-se como uma espécie de sínteses formais entre o verbal e o não-verbal, mas com uma lógica constituinte inteiramente original: obedecem apenas a um critério funcional.

O presente artigo tem como objectivo passar em revista os passos essenciais desta proposta sociológica e avaliar, em termos críticos, os limites da mesma, designadamente  a  partir  da  discussão da  teoria do poder e  da  sua  articulação com a comunicação, e segundo um quadro de referência aceitável das condições da vida moderna.
 

O poder como código funcional

A Teoria dos Sistemas designou as novas formas de comunicação das sociedades desenvolvidas, "media simbolicamente generalizados". Eles consistem, basicamente, em mecanismos de regulação/normalização dos fluxos comunicacionais presentes neste tipo de sociedades - as sociedades complexas, caracterizadas por uma progressiva diferenciação estrutural e especificação funcional dos processos sociais básicos: a adaptação, a realização de fins, a integração e a manutenção do padrão (cultural).

A especificação funcional dá lugar à formação de sistemas sociais autónomos, orientados, precisamente, a responder de modo mais eficaz às necessidades funcionais entretanto individualizadas. Este desiderato envolve um problema de comunicação crucial: para satisfazer as necessidades funcionais, para reforçar a autonomia e a performatividade dos sub-sistemas é necessário que da parte destes exista uma particular capacidade de gerir os múltiplos fluxos que os atravessam. E isso eles conseguem graças aos "media simbolicamente generalizados" - conceito pela primeira vez proposto por Parsons e bastante aperfeiçoado, mais tarde, por Luhmann, ao distinguir este tipo de media dos meios de comunicação em geral, em virtude do elevado grau de probabilidades de êxito que garantem à realização da comunicação.

Em que condições radicam as vantagens deste tipo de mecanismos? Essencialmente no facto de eles sintetizarem, no seu próprio interior, a comunicação e, assim, servirem de dispositivo ordenador das múltiplas "formas" que reveste o processo comunicacional geral (cf. Izuzquiza, 1990: 221).

O funcionamento dos media simbolicamente generalizados encontra-se directamente comprometido com a lógica dos sistemas sociais. À multiplicação e aceleração dos fluxos da experiência social, eles respondem com a imposição de uma determinada ordem, criam uma certa unidade: definem os limites do sentido e, deste modo, têm uma influência determinante sobre a dinâmica da evolução social.

Directamente associados aos sistemas sociais, estes media distinguem-se pela sua elevada performatividade, que tem por base as seguintes características: são media de circulação, que  na aceleração das trocas encontram a condição da sua própria reprodução; tem um carácter simbólico - à semelhança de qualquer outra linguagem, eles não possuem valor em si, valem em função daquilo por que podem ser trocados , de acordo com um código institucionalizado próprio; por último, revestem-se de generalidade, no sentido em que a sua validade não se restringe a uma relação particular (cf. Parsons, 1977: 204-28).

A sua performatividade está também relacionada com o elevado grau de confiança que eles introduzem nas relações sociais - consequência das características acima referidas. No fluxo aparentemente caótico das experiências vivênciais, os media simbolicamente generalizados estabilizam as expectativas sociais e possibilitam a formação de identidades.

O dinheiro foi o primeiro exemplo apresentado de um medium com estas características (Parsons e Smelser, 1956: 70-1), e permanece ainda hoje como o exemplo mais indiscutível. O próprio autor do conceito apresentou outros exemplos, casos do poder e da influência; e, mais tarde, outros autores acrescentaram a verdade, o amor e deixaram subentendidas novas possibilidades - dada a sua estreita articulação com a evolução social e o facto desta promover uma progressiva diferenciação e autonomização de sub-sistemas funcionais, o elenco deste tipo de media encontra-se permanentemente em aberto.

Para percebermos melhor o funcionamento destas novas formas de comunicação, tomarei como exemplo concreto de análise, o poder. A discussão que se segue não pretende apenas ilustrar um caso particular de medium de troca das sociedades complexas, mas acima de tudo avaliar os limites desta teoria do poder, a partir da análise crítica do conceito de comunicação subjacente.

Há que referir, em primeiro lugar, que esta proposta não se assume como uma teoria geral do poder. A sua especificidade diz respeito a uma forma particular de poder, socialmente o mais relevante nas sociedades modernas: o poder político.

Dentro destes limites, Parsons começou por enquadrar o poder nas tipologias das sanções e das funções sociais (esta, reconhecida sob a signa "AGIL"): o poder define-se pela sua orientação para objectivos colectivos e recorre a uma sanção de tipo negativo ( cf. Parsons, 1963: 237). A partir daqui, chega rapidamente à caracterização do poder como medium simbolicamente generalizado, de acordo com as seguintes características: simbolicidade - o seu valor é definido pelos objectivos colectivos que permite atingir, o que lhe confere, por outro lado, uma obrigação com carácter legal (legitimada por orientações sociais comuns); capacidade de intervenção generalizada; permanente circulação; e a segurança que transmite à acção (sempre que necessário, a obrigatoriedade legal pode ser secundade pela coerção).

Na Sociologia estrutural-funcional de Parsons, a teoria dos sistemas era ainda pouco mais que uma intuição . Isso traduziu-se na constatação de diversas lacunas que, entre outros factores, viriam a dar lugar a uma intensa discussão do pensamento deste autor ao longo dos últimos anos. No centro das polémicas encontra-se a sua teoria do poder: define o poder como medium, mas tem da comunicação uma ideia muito simplista - por um lado, entende-a como uma espécie de dispositivo tecnológico de transmissão e, nessa medida, sem articulação muito explícita com a acção e a linguagem; por outro lado, considera a comunicação subordinada a uma lógica relacional pretensamente exacta (signo/referente) e a um princípio normativo unidimensional do sentido (no exterior do sentido constituído apenas há lugar para a sanção).
Como, mais tarde, vários autores demonstraram, desta concepção da comunicação (e do poder) resulta, inevitavelmente, um fechamento drástico da dinâmica social: a oposição símbolo-sanção sobrevaloriza o carácter consensual das avaliações institucionais e "cria a sensação que a sociedade é constituída apenas com opções bipolares (...) qualquer desvio do status quo  é visto como presságio de uma sentença de morte em vez de uma oportunidade para investigar e adoptar alternativas estruturais" (Cartwright e Warner, 1976: 654-5). Parsons associa o poder à dinâmica dos sistemas sociais, mas, paradoxalmente, procura preservar a ideia de subordinação à teoria da acção (e, em última análise, à vontade individual).

Só quando o ponto de referência deixa de ser o indivíduo (a acção humana) e passa a ser o sistema político, estas incongruências da teoria do poder são superadas; mas, então, outros problemas surgem - estes de ordem mais profunda, pois põem em causa a pertinência da aplicação do paradigma sistémico à realidade social.

Com este recentramento e clarificado o estatuto do poder como mecanismo de selecção no quadro de uma teoria sistémica da sociedade, o poder não pode já ser considerado apenas como uma réplica da linguagem, mas apresenta-se antes como  complemento ou, até, alternativa à própria linguagem. À semelhança dos outros media funcionais, o poder garante critérios seguros de escolha que a linguagem, só por si, não permite (Luhmann, 1982: 169).

Trata-se de uma capacidade selectiva cuja eficácia está directamente relacionada com a sanção que o poder incorpora: confere-lhe capacidade de concretização efectiva e torna-o performativo, na medida em que favorece uma determinada combinação de alternativas (quanto aos comportamentos dos indivíduos)  num contexto social complexo, no qual, as possibilidades de selecção parecem, à partida, ilimitadas.

É a sanção, em última análise, que permite a transição do poder enquanto virtualidade ao poder concreto; e isto mesmo nas sociedades modernas, onde a sanção assume, por regra, um carácter virtual, isto é, a selecção e a redução da complexidade neste tipo de sociedades não ocorre por ruptura das expectativas sociais dos participantes, mas antes pela neutralização a  priori  ("voluntária") da vontade do "Outro".

Em termos comunicacionais, esta dupla dimensão do poder - virtual/real - está consagrada na distinção entre código e processo: o primeiro gera as potencialidades do medium (objecto de generalização simbólica), o segundo dá lugar a concretizações  (realiza apenas as possibilidades favoráveis). É com base na especificidade do seu código e do seu processo que o poder é considerado uma forma de comunicação especializada (distinta da linguagem): forma de comunicação com uma modulação e uma mecânica próprias, que ditam as condições concretas de administração do poder e de formação das "cadeias de dominação".

Sob influência, mais ou menos discutível, da realidade política norte americana, Parsons considerou que o código do poder é de tipo binário, constituído pelos pólos governo/oposição; e é desta pretensa simplicidade que faz depender a capacidade performativa do medium poder: a partir dessa dicotomia elementar, muitas outras diferenças podem ser articuladas por forma a garantir a estruturação regular da acção e do discurso político.

O código do poder, segundo a sua lógica interna e forma de funcionamento, é concebido como uma técnica ,  subordinada ao critério da eficácia: a fundamentação ou simples justificação moral do poder cede lugar a um tipo de racionalidade de ordem estritamente técnico-funcional - a performatividade dos sistemas. Neste sentido, não só o poder se apresenta como  o  medium  específico de  um  determinado sistema social - o político -, como toda a sua existência e funcionamento passam a ser orientada pelas necessidades deste mesmo sistema. Em termos sociais globais, a vantagem que daqui decorre consiste na capacidade que o poder tem  de reduzir a complexidade do mundo. Deste ponto de vista, é esta a sua suprema utilidade.

A tecnicidade do código do poder apresenta ainda como vantagem, em termos sistémicos, uma economia geral de meios/custos na concretização dos seus objectivos. A simplicidade do código binário permite uma apreensão muito rápida das alternativas selectivas - economia de tempo; permite uma fácil articulação de universalismo e especificidade(abertura/fechamento) - plasticidade do poder; e permite desenvolver um perfeito sentido de totalidade - a lógica binária normaliza as múltiplas alternativas e contempla a totalidade das hipóteses (auto-suficiência).

Será mesmo caso para falarmos não só da tecnicidade do poder, mas de uma verdadeira lógica maquínica - espécie de tecnologia totalizante, de elevado rendimento e capacidades performativas inesgotáveis. Um caso muito particular daquilo que alguns autores designam por logotécnicas (Rodrigues, 1990: 91-4), na medida em que o poder, assim concebido, é não apenas uma técnica, mas também uma forma de comunicação, cuja principal originalidade consiste, justamente, em apresentar-se como uma alternativa à linguagem convencional.

É certo que o poder, como todos os outros media funcionais , utiliza os recursos da  linguagem, como  sejam   os    diferentes  tipos  de  símbolos   linguísticos  ou   para-linguísticos. Mas o que lhe confere especificidade é o seu modo próprio de funcionamento. O poder é, em si, uma forma sintética de linguagem , que sedimenta, aglutina e reconverte formas simbólicas muito diversas. Simplifica as articulações de sentido, o que lhe permite descongestionar o plano da comunicação. Oferece automatismos de resposta, acelera os processos de escolha e simplifica a participação dos sujeitos (em termos de exigências de intersubjectividade): é como se os processos de sentido se encontrassem antecipadamente formados, cristalizados, e aos sujeitos apenas restasse pô-los em circulação de acordo com  conveniências circunstanciais. A confiança ilimitada que os teóricos dos sistemas depositam nesta funcionalização (e tecnologização) da comunicação leva-os mesmo a considerar que "a comunicação explícita ficará assim restrita a uma função residual inevitável" (Luhmann, 1975: 31).
 

Limites de uma teoria funcional do poder

Entre as muitas críticas a que o paradigma sistémico tem sido sujeito, sobressai a crítica política da teoria do poder que põe em causa a perspectiva positivista da legitimidade (cf. Gouldner, 1970: 293 e sgs.). Como facilmente se compreende, a ideia limitada de democracia que aqui está subjacente não é politicamente aceitável, sob diferentes perspectivas - a democracia como espécie de programa de regulação de um sub-sistema funcional da sociedade, mero dispositivo decisional, sem outros investimentos, aspirações ou conteúdos simbólicos que não sejam a boa gestão das performances do poder (cf. Izuzquiza, 1990: 30-1).

Mas a par desta crítica política , parece-me também necessária uma crítica em termos comunicacionais da teoria do poder como medium funcional, para pôr em evidência a arbitrariedade intelectual que transforma a eficácia sistémica em imperativo soberano das sociedades complexas e no único critério da evolução social. A análise rigorosa dos pressuspostos comunicacionais desta teoria dos media permitirá legitimamente questionar a  excessiva confiança numa tecnologização generalizada do social, na marginalização das estruturas da comunicação e da racionalidade (que não as sistémico-funcionais) e, por último, na desarticulação moral  da vida humana.

A possibilidade de o poder constituir uma linguagem em si é tanto mais extraordinária dado ele utilizar os recursos da linguagem comum - as formas simbólicas, verbais e não-verbais, presentes na linguagem quotidiana. É como se o poder efectuasse uma apropriação particular destes recursos e, assim, os esvaziasse da sua simbolicidade intrínseca, eliminando todas as tensões e contradições que lhe são próprias.

A par das expressãoes linguísticas, o poder recorre a um vasto leque de outras formas simbólicas, como sejam os símbolos propriamente ditos - insígnias, distintivos, marcas que estão um pouco por todo o lado onde o poder circula (nas roupas, nos lugares, nos corpos); o próprio espaço tem uma simbolicidade própria, objecto da refuncionalização que resulta da circulação do poder; ou, ainda, os investimentos do poder nos planos mais imperceptíveis da gestualidade e da aparência - tanto mais importantes hoje em dia com a massmediatização da política. Desde o aprecimento dos modernos meios de comunicação audiovisual que estes aspectos marcam uma forte presença, ao ponto de muitas vezes serem  mesmo considerados mais importantes que a linguagem verbal; e se no início, por exemplo, a entoação radiofónica de Roosevelt pôde ser considerada uma espécie de "dom natural" deste político (cf. Lazarsfeld, Berelson e Gaudet, 1944: 186), hoje em dia a situação é bem diferente: dicção, entoação, guarda-roupa, controlo mímico e gestual, etc. são objecto de uma preocupação sistemática, de uma aprendizagem e de um controlo cuidadosos por parte dos políticos, com vista a dar maior "credibilidade" às suas posições (e aspirações) de poder. Bourdieu refere-se à "hexis corporal" como a marca distintiva mais profunda de um determinado "habitus" (cf. Bourdieu, 1982: 89-90) - verdade que parece plenamente confirmada pela preocupação crescente demonstrada pelos políticos com a sua "imagem" (ao ponto de, muitas vezes, se transformar em pura obsessão): é a esse nível que se jogam as "primeiras impressões", essenciais para definir o quadro de qualquer interacção ( cf. Goffman, 1959: 20).

Como extensão do gestual, podemos também falar de uma para-linguagem do poder relacionada com os comportamentos. E, ainda, a simbolicidade associada ao próprio tempo: o poder impõe ritmos, pontuações, acelerações, etc. à vida das instituições e organizações, e ao próprio quotidiano de cada agente social.

A existência de um código binário do poder leva-nos a supor que todas estas formas simbólicas passariam a estar ordenadas sob uma lógica unitária, um "quadro de experiência" radicalmente diferente daqueles que as relações sociais quotidianas geram. Isto equivale a imaginar a possibilidade de uma perfeita normalização da actividade simbólica, com vista à sua adequação funcional às necessidades de uma organização política da sociedade concebida em termos sistémicos. Seria como se o sentido da acção política estivesse fixado à partida, segundo uma codificação elementar orientada exclusivamente para responder às necessidades do sistema político, e as formas simbólicas surgissem destituídas de qualquer autonomia, destinadas apenas a revestir um conteúdo previamente fixado e que lhes é estranho.

Não faltam, por certo, exemplos na vida política dos nossos dias que parecem corroborar semelhante possibilidade. E isso é tanto mais evidente nas sociedades  mais desenvolvidas e complexas, com a estereotipização e rotinização da actividade política, com a imposição de uma lógica unificadora e homogeneizante das marcas simbólicas das ordens do discursivo, do gestual, do iconográfico e, até, do espaço e do tempo.

No plano da comunicação, esta lógica de funcionamento do sistema político significa a imposição de uma articulação específica (funcional) a todos os domínios simbólicos: uma "solução" violenta do problema do sentido que elimina as relações, dependências e tensões variáveis entre as diversas formas simbólicas, por força da imposição de uma lógica que lhes é exterior.

Tomada como solução absoluta (da questão política, do poder e do sentido), esta hipótese tem tanto de fantástico como de inverosímil, pois a sua aceitação equivale ao reconhecimento que a doação do sentido não é já um atributo do espírito humano, da sua actividade simbólica, mas uma mera condição funcional dos sistemas.

A actividade simbólica consiste no acto de doação de sentido ao mundo, com o qual o homem torna significante tudo aquilo que o rodeia e se torna a si próprio significante (para si e para os outros). É neste sentido que falamos de uma construção social da realidade , na medida em que a nossa relação com o mundo é sempre uma relação mediatizada (Berger e Luckmann, 1966: 35 e sgs.). Isto equivale a dizer que a fonte primeira do sentido é o próprio homem: o sentido nasce de uma relação, mas o acto de doação é sempre do homem para o mundo e não o inverso.

A hipótese sustentada pela teoria geral dos sistemas é precisamente  inversa. Aceita a especificidade simbólica da espécie, mas considera que, em resultado da evolução social, não é já o homem a fonte do sentido, mas a sociedade - os sistemas sociais, a partir dos seus dispositivos funcionais que são os media simbolicamente generalizados. Considera a simbolicidade do mundo um resultado de relações funcionais e não um produto da reflexividade do espírito humano.

A refutação desta hipótese passa, desde logo, pela contestação da sua pretensão absolutista: definir limites de validade mais restritos que impessam a sua transformação em imperativo supremo da vida social. Não se trata, pois, de uma refutação liminar da validade da lógica sistémica, mas de considerá-la apenas como uma tendência, entre outras, da vida social e da evolução; tendência que, aliás, nada indica ser a determinante. Em termos comunicacionais, isto significa a necessidade de desenvolver uma concepção mais abrangente do fenómeno da comunicação e não a reduzir ao protótipo informacional, espécie de dispositivo mecânico-behaviorista  de transmissão de complexidade reduzida.

O poder enquanto fenómeno de sentido é objecto de uma permanente elaboração simbólica por parte do homem: um trabalho sistemático, mas também contingente, fruto da tensão, do confronto e do choque de interesses humanos muito diversos. É um processo simbólico sujeito à heteronímia , dada a natureza própria das diferentes formas simbólicas, da tensão que entre si mantêm, por exemplo, as formas verbais e não-verbais ( cf. Watzlawick et all, 1967: 49-52 e 57-65).

A emergência do sentido ocorre a partir da estruturação das diferentes formas simbólicas, onde  há que ter em conta não apenas a especificidade de cada uma delas, mas também as suas relações de dependência - atente-se, por exemplo, nas simbolizações do tempo e do espaço, que dão lugar aos díticos do discurso e têm um efeito estruturante sobre a generalidade dos quadros simbólicos da experiência.

A noção do poder como medium simbolicamente generalizado não é falsa, mas é limitada: não contempla a totalidade das dimensões simbólicas do poder, e tem da política uma ideia muito restrita.

Sobre os despojos da velha Filosofia do Sujeito, a teoria sistémica preconiza uma solução radical da tensão sociedade/homem (cultura), mas por anulação do segundo termo (cf. Marramao, 1983: 155): a assimilação do universo simbólico pelos sistemas sociais. No limite, os processos sistémicos de reprodução deveriam substituir os processos culturais de reprodução, de integração social e de socialização;  e  a  integração  sistémica  (político-administrativa) absorveria tanto as relações de produção como as relações de comunicação (cf. Habermas, 1985: 417-20).

É, no entanto, uma superação da Filosofia do Sujeito apenas aparente. Tudo se resume, afinal, a substituir a noção de sujeito pela de sistema, a relação sujeito-mundo pela relação sistema-meio e a autoconsciência do indivíduo pela autoregulação (cibernética) dos sistemas.
 

A dimensão moral do poder e a força simbólica da comunicação

A crítica da teoria sistémica não põe em causa a articulação comunicacional do poder, mas tem da comunicação um entendimento muito diverso - segundo o princípio básico de que " a regulação e a intercompreensão representam fontes que não podem substituir-se infinitamente entre si; o dinheiro e o poder não podem comprar, nem obter pela força, tanto a solidariedade como o sentido" (Habermas, 1985: 429).

A tradição ocidental desenvolveu, desde a Antiguidade Clássica, uma concepção  que contradiz o ponto de vista mais comum, no qual a teoria sistémica se inscreve, que encara o poder em termos instrumentais e teleológicos (cf. Weber, 1956: 56). A concepção alternativa considera o poder uma directa emanação do apoio que um povo atribui às instituições e às normas que regulam a sua vida colectiva  (cf. Arendt, 1970: 22): não se reduz a uma mera prerrogativa da acção, mas é a própria expressão da condição humana - exprime o que há de mais genuíno na vida dos homens, a convivência, a união, a urgência de uma vida colectiva, em comunidade.

É com base nesta concepção do poder que a legitimidade surge directamente relacionada com o espaço público, entendido, em termos genéricos, como espaço social de encontro, no qual os homens definem colectivamente, pela palavra e pela acção, a sua vontade.

Este sentido colectivo do poder, expressão da vida em comum, é uma nova forma de conceber a relação entre o poder e a linguagem: "o poder só é actualizado onde a palavra e a acção não se separaram, onde as palavras não são utilizadas para velar intenções mas para revelar realidades, e os actos não são usados para violar e destruir mas para estabelecer relações e criar novas realidades" (Arendt, 1958: 200).

Para que a partir daqui se possa desenvolver uma  concepção do poder verdadeiramente alternativa e ajustada às condições do mundo moderno, é indispensável evitar a tentação de uma ontologização do pensamento. Interessa-nos o poder concreto que se materializa objectivamente na vida de todos os dias, não o poder como categoria ontológica, abstracto, espécie de essência remota e escondida da "condição humana". Do mesmo modo, a comunicação não deve ser idealizada e reificada, no sonho de uma praxis pura, em termos aristotélicos, totalmente autónoma, sem relação nem compromisso de qualquer espécie quer com o pensamento (os interesses), quer com o domínio da produção (o trabalho).

O poder nas sociedades modernas é, em si,  heterogeneidade racional : "a racionalidade       moral-comunicacional       coexiste   com   a   racionalidade     técnico-instrumental e estratégica" (Ferry, 1987: 91); e é a partir da tensão entre estas duas dimensões da política que se poderá definir, ao nível das práticas sociais quotidianas, um critério consistente de comunicação, bem como  a sua relação com o poder.

Falar em termos genéricos e abstractos de "comunicação"  é insuficiente, pois a linguagem é um recurso demasiado geral que pode servir tipos de acção muito diferentes. Para pensarmos a linguagem na sua plena força simbólica é necessário um critério de Razão que dê conta das diferentes dimensões da vida social e dos interesses humanos: uma racionalidade pluridimensional, potencialmente aberta tanto em termos temáticos como de participantes, que poderá ser apelidada, justamente, "razão comunicacional". A razão que deu lugar à emergência do espaço público moderno e , apesar das muitas contrariedades, o manteve vivo até aos nossos dias.

Além de racional, a comunicação assim definida assume também um carácter crítico. É uma comunicação que procura ser  rigorosa na formulação dos enunciados e exigente no juízo. "Crítica" tem aqui o sentido de controlo pragmático da verdade  exercido   ao   nível   do   discurso   e   que   se   estende   à   própria   linguagem   (auto-reflexividade).

É, ainda, uma comunicação que se desenvolve segundo o modelo argumentativo,  do debate e da discussão das diferentes opiniões, através do qual aspira a definir um acordo (consenso racional) que exprime a vontade colectiva.

Embora todos estes critérios sejam em larga medida de carácter formal, eles são, mesmo assim, suficientemente precisos para definir uma base normativa da comunicação que, por sua vez,  torna mais explícita a sua relação com o poder: a comunicação como base de legitimação do poder.

A caracterização da comunicação em termos críticos poderá sugerir, à primeira vista, um afastamento da realidade concreta, pois as formas fáticas do poder só por excepção apresentam a pureza moral sugerida neste modelo ideal. Mas é justamente o carácter contra-factual da comunicação assim definida que torna mais urgente a abertura à realidade, para que se possa constatar como na vida concreta, ao nível objectivo das práticas sociais, o poder e a comunicação se constituem, quais as contingências que os condicionam, as possibilidades que os favorecem e as contrariedades que os limitam.

Definir um modelo ideal de comunicação só tem, pois, sentido, se puder contribuir não para "normalizar" a realidade, mas, pelo contrário, para dar conta da sua diversidade e complexidade; incorporando um princípio crítico capaz de problematizar não só a realidade da comunicação, mas também, sempre que necessário, o "dispositivo de legibilidade" que ele próprio constitui.

Este é também o melhor caminho para uma correcta aproximação ao fenómeno do poder. Não o poder como  dispositivo unitário, propriedade exclusiva de uma única instância social, mas o poder subjacente à acção política em geral, que diz respeito à comunidade e à sociedade no seu conjunto. Deixamos, por conseguinte, de perseguir a entidade abstracta e ilusória que é o "discurso do poder", para nos confrontarmos com o discurso político, as diversas práticas discursivas da linguagem quotidiana que mediatizam a relação dos indivíduos com a política e dão forma a relações de poder específicas.

Este ponto de vista adopta os princípios de uma análise pragmática da linguagem e tem como primeira consequência a crítica  de alguns dos instrumentos científicos convencionais utilizados para estudar este tipo de problemas - os inquéritos de opinião e as entrevistas mais ou menos dirigidas. Estas técnicas revelam uma extrema dificuldade em compreender a noção de "público", dado pretenderem objectivá-lo como somatório (ou média) das opiniões individuais isoladas ( cf. Bourdieu, 1984: 231). Em termos de análise discursiva, estas técnicas ignoram por completo o contexto real de produção das opiniões e a forma concreta da sua apresentação - os elementos para-linguísticos, como sejam, a entoação, a gestualidade, a estilização, a ironia, etc., que são um factor essencial da produção do sentido.

É necessária, portanto, uma nova atitude científica, empenhada em reatar a noção de "público" e o discurso político entendido como discussão pública (cf. Eliasoph, 1990: 489). Um novo ponto de vista  acerca da relação do poder com a comunicação, que tem o homem como principal elemento de referência, o indivíduo enquanto membro de uma comunidade política e participante de um público.

O discurso político considerado ao nível das práticas sociais quotidianas constitui um medium de afirmação da individualidade, através do qual os agentes sociais constroem a sua identidade. O quadro de referência deste tipo de comunicação, que mediatiza as relações políticas e as formas de poder, é, pois, balizado pelos processos de socialização e de integração social.

Ao pensarmos o discurso político enquanto discussão pública descobrimos novas áreas de interesse para o estudo da comunicação. A par da interrogação convencional quanto ao conteúdo, surge agora também a preocupação com outros aspectos, à primeira vista marginais, como sejam o modo de apresentação dos discursos e as circunstâncias em que eles são apresentados. Como referiu Goffman, a "apresentação do eu" envolve sempre um certo exercício de teatralização, através do qual o indivíduo se expõe perante os outros, recorrendo a uma "expressão explícita" - basicamente construída com símbolos verbais - e a uma "expressão indirecta" - os "signos sintomáticos" das diferentes formas de comportamento (cf. Goffman, 1959: 12).

A aplicação realizada por Nina Eliasoph deste método de investigação é particularmente reveladora do modo como os indivíduos definem as suas atitudes políticas. Além de ter permitido estabelecer uma tipologia das atitudes políticas observadas ( cf. Eliasoph, 1990: 473-86), este trabalho tornou também muito claro como a produção do sentido no discurso político é sempre o resultado contingente de uma determinada articulação entre o conteúdo e a forma como esse conteúdo é apresentado. O sentido não obedece a uma codificação a priori , é antes o produto contingente de uma articulação com regras variáveis de elementos significantes muito diversos.

Mesmo que aceitemos a existência de um binarismo sistémico ao nível dos discursos políticos, o seu efeito "normalizador" cessa a partir do momento que os discursos tomam forma concreta, isto é, quando são assumidos por interlocutores e se tornam objecto dos seus investimentos pessoais. Não é uma comunicação em função do sistema que organiza politicamente as pessoas, mas a comunicação de pessoas que constróem a sua identidade social com base numa determinada atitude política assumida discursivamente perante outros interlocutores.

Este nível de relação do poder com a comunicação pode ser designado como dimensão dinâmica da política: quando o discurso político não é apenas sintomático de uma estrutura definida, de uma instituição imutável, mas antes se apresenta como investimento simbólico de expectativas sociais que aspiram permanentemente reconstruir a política à imagem das aspirações dos homens. É uma dimensão da política já não funcional, mas essencialmente moral - os problemas éticos e da justiça ao nível da organização geral da sociedade são determinantes.

Isto equivale a dizer que o discurso político não é apenas um dispositivo de transmissão do poder - de "marcação" dos indivíduos (ou outras entidades sociais) consoante o seu maior ou menor poder -, é antes o medium por excelência de formação do próprio poder. Em termos comunicacionais, é ao nível da participação de cada um no discurso público que, reflexivamente, os agentes sociais adquirem consciência da sua situação política, da sua posição perante o poder, definem expectativas e aspirações em relação a esse mesmo poder.

Velhos temas da Sociologia e da Teoria Políticas, como são a "consciência política" e a "mobilização política", dão conta destas preocupações, e o quadro comunicacional aqui delineado pode trazer novos contributos à sua compreensão.
Gramsci propôs o conceito de "hegemonia ideológica" para contestar o modelo marxista de uma relação causal linear entre a dominação económica e a ideológica. O conceito é de extrema utilidade para definir a  "consciência política" já que põe em relevo o papel das estruturas não-explícitas da dominação, relacionadas não tanto já com o "mundo objectivo", mas com o universo simbólico, os modelos culturais e as formas de subjectividade - o "senso comum da vida quotidiana", sem o qual nenhuma transformação da situação política pode ser concebida ( cf. Gramsci, 1971: 424).

Procurando uma aproximação deste raciocínio aos problemas da comunicação, a "frame analysis" proposta por Goffman é extremamente útil.

Por "frames" - quadros de experiência - podemos entender uma determinada definição das premissas da acção. Têm, por um lado, uma função estruturante dos fluxos comunicacionais: investem as situações de um sentido geral que antecede/condiciona os enunciados/discursos produzidos a partir dessas mesmas situações - "auxiliam o seu utilizador a localizar, perceber, identificar e classificar um número infinito de ocorrências aparentemente semelhantes" (Goffman, 1974: 21). Por outro lado, a "frame" tem uma influência determinante na formação das identidades sociais, na internalização de uma determinada consciência das situações: "todas as frames implicam expectativas de tipo normativo que revelam como o indivíduo está implicado de modo profundo e total na actividade organizada pela própria frame  " (Ibid.: 345).

É de acordo com esta dupla dimensão da "frame" que podemos utilizar esta noção no âmbito da análise política (embora Goffman nunca tenha explorado consistentemente esta via). O mundo político apresenta-se a cada agente social organizado segundo um determinado quadro de experiência, mas, simultaneamente, os próprios agentes sociais efectuam apropriações específicas deste quadro (cf. Gamson, 1985: 615). Os quadros da experiência definem as situações mas são também objecto de permanente definição e reformulação - operações que resultam de um trabalho simbólico sistemático sobre as próprias situações concretas de interacção, desenvolvido por todos aqueles que nelas participam.

Este trabalho, Goffman designa "reframing act" e significa, em termos políticos, a preservação de um espaço aberto à participação individual, à capacidade de inovação que cada um pode transportar ao universo político, através do discurso e das diferentes formas da sua apresentação pública. Trata-se, portanto, de um trabalho simbólico , ao nível das trocas comunicacionais (verbais e não-verbais), através do qual os interlocutores confrontam o poder e procuram melhor adequá-lo às suas expectativas e aspirações.

A definição de um novo quadro de experiência nestes termos tem sempre uma determinada consistência ao nível da "consciência política". Mas o seu resultado é contingente, depende da dinâmica da interacção, das performances individuais que não são fixadas a priori . Só assim se pode constituir um quadro de experiência partilhado. Ele resulta tanto da comunicação intencional , assumida geralmente sob a forma verbal, como da comunicação implícita, que flui imperceptivelmente nos gestos, nas entoações, nas expressões, nos comportamentos. Esta é, aliás, uma comunicação menos controlada e, por isso mesmo, com um significado mais profundo e maior capacidade de estruturação das situações (cf. Watzlawick et all., 1967: 60).

Mas o efeito estruturante que a comunicação tem sobre a política e o poder resulta, também, da sua especial capacidade de motivação dos indivíduos - que poderemos traduzir por capacidade de "mobilização política".

A mobilização é aqui encarada em termos micro-sociológicos: radica na forma mais elementar das relações sociais, a interacção face-a-face. E também aqui deparamos com a mesma enorme diversidade de formas significantes, que na multiplicidade das suas relações formam os universos simbólicos dos diferentes "encontros sociais".

Estes "encontros" são de extrema importância para a afirmação da identidade de todos aqueles que neles participam, pois  dão lugar a uma relação social intensa, em que a consciência do outro é mais aguda e, por isso mesmo, atraem um investimento social mais forte por parte dos interlocutores, com vista à produção de uma determinada "imagem de si" (cf. Goffman, 1964: 64). Criam, consequentemente, uma "micromobilização", que é a forma mais elementar de motivação para qualquer tipo de actividade social, como seja a acção política.

Nesta perspectiva, a relação com o poder joga-se sempre a este nível fundamental das relações sociais: "o poder que se exerce concretamente e em detalhe, com a sua especificidade, as suas técnicas e as suas táticas [... o poder que circula] de forma ao mesmo tempo contínua, ininterrupta e adaptada e 'individualizada' em todo o corpo social" (Foucault, 1979: 6-8).

É da própria natureza dos encontros sociais em geral, a restrição da conflitualidade. Entre os participantes prevalece um "consenso operacional"  (working consensus ), o qual está na base de todas as definições de situação e caracteriza o envolimento peculiar dos interlocutores no processo de comunicação - segundo uma atitude moral de respeito mútuo e aceitação, à partida, do outro (cf. Goffman, 1959: 18 e 21).

Esta característica dos encontros sociais tem uma directa consequência na questão do poder: revela a sua forte propensão estática, a tendência para criar formas cristalizadas e estigmatizar todas as forças de "transgressão". Evitar o conflito, não criar "cenas"  é condição de uma relação com o poder que é geralmente de submissão e de acatamento da ordem instituída; por outro lado, esta lei tem também um especial significado quanto ao modo como se organiza o fluxo comunicacional: apesar da diversidade das fontes, dos controlos e da extrema complexidade das relações simbólicas , prevalece uma força integradora e de homogeneização , apostada em fixar um sentido geral coerente com as regras de propriedade definidas pelas próprias situações sociais. Mas esta tendência não está garantida à partida e incondicionalmente. É um objectivo da interacção que os participantes devem perseguir e, por conseguinte, exige-lhes uma atenção e empenhamento especiais no que diz respeito à organização do seu discurso e do comportamento significante em geral.

A dinâmica do poder, que se joga nos encontros sociais, sugere determinados limites às práticas comunicacionais, mas a orientação definitiva destas práticas é sempre um resultado concreto do empenhamento dos indivíduos, da dinâmica da acção que adequa com algum grau de liberdade e criatividade o quadro simbólico estabelecido.

Isto equivale a dizer que o "consenso operacional" não é, apesar de tudo, um dado irrevogável: os quadros de poder definidos são sempre passíveis de questionamento e de transformação, embora sob condições especiais.

A relação do poder com a comunicação inicia-se, pois,  antes ainda de tocar a definição do próprio poder (ao fixar discursivamente as formas legítimas de dominação): na criação das condições que permitem pôr em causa uma determinada forma de poder. Contrariar o "consenso operacional" (ou o poder instituído) é um trabalho de "reframing" que envolve especiais cuidados com as práticas comunicacionais: planeamento e desenvolvimento progressivo, controlado, uma hermenêutica da recepção  perspicaz e rigorosa, por forma a que se possa efectuar uma avaliação regular da reacção dos outros. Existem formas de comunicação especialmente apropriadas para estas circunstâncias: a exploração criteriosa da diferença entre o papel e o indivíduo ("role distance"), a "evasão" como forma de despistar possíveis sanções (e evitar "cenas"), as conversas à margem ("rim talk"), que permitem subtilmente deslocar as fronteiras da interacção sem assumir com frontalidade um acto de violação (cf. Gamson, 1985: 610-3).

Todas estas técnicas de condução da interacção são práticas comunicacionais cujo êxito está dependente, em primeiro lugar, do modo como é conseguida uma  articulação apropriada entre os diferentes recursos simbólicos .
A refutação da teoria do poder como medium simbolicamente generalizado decorre, como procurei demonstrar, da crítica dos pressupostos comunicacionais desta mesma teoria, designadamente do seu princípio, pouco credível, de existência de um código funcional de poder que substitui a comunicação convencional como medium simbólico. Nesta crítica, a análise da comunicação acaba por partilhar uma preocupação política muito marcante: a relação poder-comunicação só adquire pleno sentido quando o poder tem dimensão humana e projecta um quadro simbólico da experiência definido em termos discursivos e permanentemente aberto a novas definições de situação .

A dimensão humana do poder é a imagem da sua grandiosidade, mas também da sua extrema fragilidade: o poder permanentemente em jogo nas relações sociais, no ímpeto dos desejos e das expectativas dos homens, na imponderabilidade da vontade colectiva - as incertezas que dão forma ao universo simbólico, que impregnam a comunicação humana e a tornam irredutível a qualquer tipo de "normalização" unidimensional.
 

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