Niklas Luhmann - Uma apresentação
 
 João Pissarra Esteves, Universidade Nova de Lisboa
  (in, N. Luhmann, A Improbabilidade da Comunicação, Lisboa, Vega, 1993)
 
- I -
 

Corria o já distante ano de 1960. Entre os estudantes estrangeiros que nesse ano chegam à Universidade de Harvard encontra-se Niklas Luhmann - cidadão alemão, então com trinta e três anos de idade. Para trás ficava uma carreira anónima e pouco entusiasmante de funcionário público, à qual tinha chegado após concluir os estudos de Direito em Friburgo.

O objectivo oficial da visita era uma especialização em Administração. Secretamente, porém, o jovem burocrata transportava  projectos mais ambiciosos, fruto do seu interesse ávido pela leitura e reflexão, que desde há alguns anos alimentava à margem dos gabinetes.

A passagem pelos Estados Unidos marcou uma mudança de rumo radical na vida de Luhmann: dá início a um percurso intelectual autónomo, prosseguido durante os anos  com enorme preseverança, até ao reconhecimento, na actualidade, como um dos mais importantes autores do  pensamento social deste século.

Regressado de Harvard, é ainda a carreira de Administração que o espera, mas então já ligado à área de investigação (Instituto de Spira). Em 1965, pela mão de Helmuth Schelsky, chega à Universidade - só as contingências da vida ( a começar pelas suas origens familiares) podem explicar que este desfecho previsível tenha ocorrido tão tarde. O "atraso" foi, porém, rapidamente recuperado: um ano bastou para concluir  todas as provas necessárias à obtenção da cátedra - primeiro na Universidade de Munster e,  a partir de 1968, em Bielefeld.

Mas foi, sobretudo,  em termos intelectuais que  a passagem por Harvard  marcou o percurso de Luhmann. No início da década de 60, a Universidade local era um dos mais importantes centros  das Ciências Sociais norte americanas, em particular da Sociologia, muito por influência de um autor então já consagrado, Talcott Parsons. Os seus seminários eram seguidos com enorme interesse por estudantes de todo o mundo, e Luhmann não fugiu à regra. Aí nasceu uma afinidade intelectual  que podemos hoje considerar a mais consistente do seu pensamento. Se quisermos arriscar uma caracterização geral da proposta teórica de Luhmann, podemos considerá-la na directa continuidade da Sociologia estrutural e funcional de Parsons; isto significa que ele toma essa proposta com ponto de partida, e apenas isso, para desenvolver um modelo intelectual próprio que, em múltiplos aspectos, se afasta da referência original.

No caso de Luhmann, esta "fidelidade" é verdadeiramente excepcional. Desde os seus primeiros escritos,  ficou   patente a  extrema   originalidade do  seu pensamento - qualificação que, no entanto, o autor nunca aceitou, por coerência com o seu próprio modelo teórico. Essa originalidade não dispensou um diálogo permanente  com outros pensadores, em particular os autores consagrados tanto da Sociologia como da Filosofia. Tratou-se de um diálogo  sempre muito vivo e polémico, difícil de compreender pela maioria dos seus contemporâneos  (mais habituados a evocar os "clássicos" em sinal de veneração): é uma relação heterodoxa,  própria de um verdadeiro iconoclasta, que apenas fala dos outros quando isso é absolutamente indispensável para  focalizar melhor o seu próprio pensamento.

Harvard ficaria ainda ligada à vida de Luhmann pelo conhecimento que ele aí travou com um  jovem  colega de curso: Jürgen Habermas. Neste caso, as razões são antagónicas às que o ligam a Parsons.

O pensamento de Habermas representou, nos anos que se seguiram e até hoje, a referência negativa, por assim dizer, da teoria de Luhmann: a versão contemporânea da tradição progressista do pensamento europeu, que Luhmann desde sempre refutou, com uma crítica radical à tradição emancipatória herdeira do humanismo das Luzes, que ele considera  totalmente desajustada à realidade complexa das sociedades desenvolvidas.

No ambiente muito particular do pensamento alemão, os dois jovens académicos decidiram  dar expressão a tão interessante conflito intelectual com a publicação de um livro conjunto e, assim, em 1971 saiu à estampa Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie . O trabalho mereceu diversas reedições nos anos seguintes e a editora (Suhrkamp) ampliou as suas repercussões dando início à publicação de uma série de volumes complementares, numa série   intitulada  Theorie-Diskussion, onde foram chamados a participar no debate muitos outros destacados cientistas sociais.
A polémica estava lançada e ficará, por certo, para a história como uma das mais importantes deste século. Ao longo dos últimos vinte anos, o confronto intelectual entre os dois autores radicalizou-se ainda mais, mas nem por isso as suas relações pessoais deixaram de ser as melhores...
 

- II -

A divulgação do trabalho de Niklas Luhmann fora da Alemanha está, ainda, muito aquém da real importância do autor no quadro do pensamento europeu contemporâneo.

Só a partir da última década esta situação se começou a alterar, com a tradução regular de alguns textos  na Europa (em especial na Grã Bretanha e na Itália), no Japão e na América Latina - neste caso com um interesse particular para o público de língua portuguesa, em virtude da aposta pioneira de certos editores brasileiros.

São múltiplos os factores que podem justificar esta descoberta tão tardia. O recato de Bielefeld não favoreceu, seguramente, a projecção internacional de Luhmann, embora tenha constiuído o meio ideal para o seu  trabalho:  uma  universidade   recém-criada, que aspirava assumir-se com alternativa às velhas academias, promovendo a flexibilização dos planos de estudo dos seus alunos  e a investigação interdisciplinar dos docentes.

O recolhimento que este meio académico proporcionava foi explorado até à exaustão pelo jovem professor que se entregou, em termos estritamente pessoais, à construção de um pensamento. Se no plano teórico, o seu esforço é, como já ficou referido, no sentido de refutar uma certa tradição intelectual europeia dominante, já no que diz respeito aos métodos de trabalho, Luhmann é o mais tipicamente europeu que se pode imaginar: máxima pessoalização em todos os planos de concepção da investigação, que é desenvolvida a partir da exploração de um velho ficheiro pessoal, cuja construção foi iniciada ainda nos tempos da passagem pela burocracia do Estado.

Mas a principal dificuldade à maior divulgação do autor está no seu próprio pensamento. Nada nele é propício a entusiasmos muito repentinos: a obsessiva procura da inovação, um quadro de referências desconcertantes (extenssíssimo, muito diversificado, leituras à revelia da "cartilha" consagrada, citações desconhecidas ou, simplesmente, desprezadas...), a preocupação constante de desenvolver uma perspectiva teórica global (mesmo quando os temas abordados parecem sugerir  grande especifícidade e um estilo de abordagem mais "prático") e, suprema dificuldade, a exploração minuciosa de campos bibliográficos imensos, numa intenção interdisciplinar que deixa desconcertados mesmo os mais eruditos.

Por último, as dificuldades inerentes à escrita. Um ritmo de produção alucinante, com algumas centenas de páginas regularmente publicadas todos os anos - pouco livros (pelo menos concebidos enquanto tal), mas mais de uma centena de artigos dispersos por inúmeras colectâneas e revistas científicas. Um plano de publicação aparentemente fragmentário e disperso, onde os temas se multiplicam, repetem ou encadeiam sem outra lógica que não seja a da coerência global dada pela integralidade do pensamento do autor. E há, ainda, a dificuldade da escrita propriamente dita, que está na razão directa da complexidade da teoria que pretende exprimir: um estilo muito pessoal e complexo, com criação de terminologia própria, recorrências sistemáticas (nem sempre evidentes), concatenação caótica de diversos planos de análise e a multiplicação torrencial das referências.

Todos estes factores são razões de sobra que fazem de Luhmann um autor pouco  "apetecível" dos agentes editoriais. Aos que se propõem conhecer o seu pensamento, é recomendável que tomem desde logo em devida conta as dificuldades que os esperam. A descrença que o próprio autor afirma quanto à originalidade da sua obra, ou a caracterização que dela faz como "simples descrição" da realidade social  não passam de mera ilusão de facilidades...

Mas, apesar de todas estas dificuldades, importa, neste momento, saudar o reconhecimento que, com toda a justiça, começa finalmente a ser atribuído. Infelizmente, nem sempre as políticas editoriais  têm correspondido da melhor forma aos critérios de rigor e coerência que a complexidade do pensamento deste autor exigiria. Opta-se,  com demasiada frequência, por trabalhos muito parcelares que parecem sugerir a ideia de especialização disciplinar - em domínios particulares como, a administração, o Direito, a pedagogia, etc. -, quando esse não é, de facto, o registo apropriado para captar a lógica desta proposta teórica. Outras vezes, pior ainda, joga-se abertamente na "lógica do mercado", com duvidosas estratégias de sedução de um público desconhecedor e só hipoteticamente "interessado" - neste caso, as opções tendem a  privilegiar textos   à primeira vista "sugestivos", mas que são realmente secundários.
 

- III -

A comunicação foi o tema escolhido para dar unidade à selecção de textos  aqui  apresentada. É um tema que permite uma integração bastante rigorosa do autor no quadro geral do pensamento sociológico contemporâneo e, muito em particular, permite explorar com grande clareza a relação, antes mencionada, com a Teoria dos Sistemas e as ideias de Talcott Parsons.

A Systemtheorie  de Luhmann tem, como o próprio nome indica, na noção de sistema o conceito-chave, o qual recolhe da Sociologia funcional e estrutural norte americana, mas do qual tem, também, um entendimento bastante diverso. O aspecto principal que marca a diferença entre as duas propostas é  a relação sistema-meio.

Na linha da tradição dominante no pensamento europeu, a primeira versão da Teoria dos Sistemas aplicada à realidade social concebeu a sociedade como uma espécie de sistema soberano, com capacidade ilimitada de   modelação   do seu  meio  ambiente -  segundo o modelo weberiano de uma racionalidade ideal-típica, normativa e optimal, na base da qual se deveria automaticamente instaurar uma relação harmoniosa do sistema com o meio.

A concepção de Luhmann do funcionamento da sociedade em termos de uma relação sistema-meio retoma, também, o pensamento de Weber - o dualismo racionalidade formal-racionalidade material: o meio ambiente do sistema (Umwelt ) poderá ser considerado o equivalente da racionalidade material ( a esfera emotiva e da experiência, das necessidades, desejos e paixões dos homens). Mas, do seu ponto de vista, o meio não se limita á função de municiador, por assim dizer, do sistema; define, também, os seus limites de racionalidade. Daqui resulta, por consequência, a redefinição da própria racionalidade sistémica (systemrationalität ): já não uma racionalidade hegemónica ( como Weber entendia a racionalidade formal), mas antes "defensiva", uma racionalidadem que pretende apenas acolher e neutralizar, tanto quanto possível, as ameaças provenientes do meio (sem nunca chegar a dominá-lo). Nesta medida, ela perde também o seu carácter normativo e ideal-típico; torna-se contingente e opera como uma espécie de rede pluridimensional e polimórfica.

Esta redefinição de termos e relações implica uma viragem radical relativamente ao pensamento político europeu dominante e tem, como última consequência, o abandono definitivo do modelo organicista  -  de  uma   relação    parte-todo, em que  a posição     central   estava   sempre    reservada  ao  indivíduo.      Em    termos     macro-
-sociológicos, ocorre uma desantropomorfização da noção de organismo , consequentemente, o homem deixa de ser considerado como parte (a fundamental) desse mesmo organismo social e torna-se-lhe exterior - passa a constituir um meio ambiente do sistema e, como tal, fonte permanentemente geradora de problemas, criadora de complexidade.

Alguns autores vêem nesta concepção da sociedade um pessimismo de cariz catastrofista, consequência da substituição da velha "identidade substancial" por uma "identidade funcional" e do reconhecimento do meio como fonte de instabilidade não neutralizável. Como refere Marramao, "o pessimismo de cariz catastrofista de Luhmann deriva directamente da axiomática prévia segundo a qual, entre 'formal' e ' material', 'sistema' e ' mundo', 'selectividade' e ' complexidade' não há relação linear, nem causal-transitiva, mas só contiguidade. O aumento da complexidade ambiente apresenta-se a Luhmann como uma constante evolutiva absoluta. A evolução do meio é para o sistema uma fonte de 'problemas' constante ( em termos de necessidade de desenvolver e alargar as suas prestações selectivas). Mas, ao mesmo tempo, a evolução é também independente das operações que o sistema empreende para resolver os problemas, i. e.. a evolução do meio possui um grau ilimitado, ou antes, impossível de determinar, de indiferença à 'redução de complexidade'. Assim, não podemos excluir  a priori que as medidas tomadas pelo sistema para fazer face ao aumento da contingência ambiente se acabem por revelar incapazes de se opor a esse processo de entropia que ameaça conduzir à morte. Pelo contrário, devemos ter em conta a própria eventualidade da catástrofe " (Marramao, 1988: 206).

Sem pôr em causa a pertinência desta observação, devemos no entanto ter em conta que, no quadro da Systemtheorie , "tudo isto" é considerado com a máxima serenidade, própria do acto da simples de "observação": trata-se apenas (ou supostamente?) da descrição do funcionamento objectivo da sociedade. E aos mais alarmados, Luhmann poderá sempre replicar que, nestas condições, está definitivamente afastada a possibilidade totalitária: como nenhum sistema pode incorporar por inteiro a identidade do homem, não existe, por isso, o perigo de se tornar totalizante.

O auto-entendimento que esta versão da Teoria dos Sistemas tem de si própria e da evolução social não parece, de facto, poder ser classificada de catastrofista, mas é também,indiscutível que não partilha o optimismo subjacente ao pensamento de Parsons. Ao eleger a integração como tema central do seu programa de pesquisa, o sociólogo americano reencontrou o velho problema  da legitimidade (recorrente no pensamento político moderno), para o qual propôs um novo tipo de  solução legalista: na aceitação da norma reconhece a observância de um consenso (implícito) relativo aos conteúdos de valor dos imperativos emitidos pelo sistema político. Esta redefinição da problemática do consenso deve ser vista a par da concepção do poder como medium de troca (não sujeito à logica da soma-zero) e de redistribuição permanente em todo o sistema (Parsons, 1963: 232 e sgs.), bem como do entendimento do Direito assim como espécie de "caixa negra" reguladora do sistema: filtra as expectativas sociais, transforma-as em exigências legítimas (segundo o padrão normativo vigente) e e dirige-as ao sistema político-administrativo, por um lado (input ), e, por outro lado (output ), confere legitimidade às decisões políticas e transmite-as de forma a poderem orientar os comportamentos sociais ( Parsons, 1971: 30-3). Parece evidente que esta reunião de pressupostos só se justifica em função de um extremo optimismo quanto ao rumo da evolução social e às capacidades ilimitadas de adaptação e aperfeiçoamento da democracia.

A afinidade de Lumann com  Parsons não inclui a partilha desta atitude perante a realidade e a evolução social. Pelo contrário. Não é inocente  a sua preferência pelo tema da governabilidade, que dá outro rumo ao programa de pesquisa e equivale, na prática, a uma mudança de paradigma. Só a título de exemplo, consideremos o modo como  ele   "resolve"    a  questão    da  legitimidade.  Em face  das necessidades  de   auto-programação do sistema , resultado da ameaça constante que ele sofre pelo crescimento da complexidade, a legitimidade é reduzida a um mero problema funcional: o aperfeiçoamento dos mecanismos de procedimento  institucionalizados  do sub-sistema administrativo, que assim liberta o o sistema social geral ( o processo de decisão) dos constrangimentos do "mercado político" ( o sub-sistema dos partidos e as suas leis de concorrência), conferindo-lhe maior autonomia e capacidade selectiva ( Luhmann, 1969: 29-35).

Esta forma de legitimidade responde    à característica dos sistemas das sociedades desenvolvidas que Luhmann designa "auto-poiesis": um mecanismo reflexivo do próprio sistema que lhe permite o desdobramento auto-reflexivo, de forma a poder satisfazer as necessidades de plasticidade e estabilidade das suas estruturas num contexto altamente complexo ( Luhmann, 1986: 172 e sgs.).

A legitimidade assim concebida - como mero operador sistémico que visa tornar o sistema social suficientemente flexível , se não ao ponto de ele poder aspirar a dominar integralmente o seu meio ambiente, pelo menos tornando-o resistente às variações que aí têm lugar -, faz da participação pouco mais que um ritual e dá da democracia uma imagem extremamente empalidecida.

Inevitavelmente,  a ousadia  custa  a  Luhmann ver cair sobre si o epíteto de neo-conservadorismo. Não há nesta reacção nada de surpreendente que, aliás e em termos mais prosaicos, encontra plena corroboração nas simpatias políticas do autor, desde há longa data ( tinha sido pela mão da democracia cristã que iniciou a promissora carreira administrativa, entretanto completamente esquecida...). Mas o que por enquanto ficará ainda sem resposta conclusiva é, em primeiro lugar, se o termo de classificaçaão utilizado ainda mantém propriedade (ou não passa já de mais um  arqueismo do pensamento político da "Velha Europa"...) e, em segundo lugar, se a classificação estigmatiza a teoria ou, simplesmente, é uma forma de resistência perante a própria realidade social...

Quando, entre nós, só agora este autor começa a ser melhor conhecido , talvez seja mais indicado refriar um pouco o desejo de encontrar respostas definitivas para todas estas dúvidas - tanto mais porque estamos perante um pensamento que parece longe de já se ter dado como concluído e, por outro lado,  reflectimos sobre a própria realidade do momento, que no seu permanente devir pode, a todo o momento, oferecer novos elementos mais elucidativos.

Mas, parece desde já indiscutível existirem virtualidades nesta ousada Teoria dos Sistemas Sociais que estão muito além do seu virtuosismo especulativo. A perspicácia das análises de Luhmann no que diz respeito à compreensão política das sociedades mais desenvolvidas é flagrante - as sociedades dominadas pela dinâmica da massa, mergulhadas numa crise profunda do velho sistema de partidos e espectadoras da emergência intempestiva de novas formas de conflito.

É isso que garante a Luhmann um lugar destacado na história do pensamento social contemporâneo, com relevo particular para a sua proposta de um novo critério da razão: a racionalidade sistémica, que regista a obsolência dos velhos critérios regulativos da "verdade" e da "justiça" ( ou, pelo menos, a sua crise profunda)e fica, para já, a constituir um derradeiro passo decisivo no processo de secularização ( do poder) e de positivização (do Direito). Mantém, assim, também algum significado a inclusão desta teoria no quadro do que se convencionou chamar "pós-modernidade" (Bednarz, 1991: 423-32) - a expressão, no entanto, não pertence ao vocabulário do autor e é mesmo objecto da sua ironia corrosiva (Luhmann, 1987: 231). A conotação surge em virtude do interesse prestado  à tendência deslegitimizante presente nas sociedades mais desenvolvidas, com a crise das "metanarrativas" ( do "Espírito" ou da "Humanidade"), que formavam o quadro teleológico de referência da política moderna, e a emergência de um critério puramente performativo  (auto-legitimante), de optimização da relação input-output , que em política equivale ao esvaziamento do processo de decisão e  sua arregimentação sobe controlo formalizado. Esta parece ser, também, a intuição de Lyotard quando  alinha a sua teoria da pós-modernidade por Luhmann e contra Habermas (Lyotard, 1979: 69-78).

O que permanece, por enquanto, muito discutível na proposta de Luhmann é o modo como ele dá por encerrado um determinado tempo histórico, a arbitrariedade com que postula uma nova realidade absolutamente diferente que, para todos os efeitos e em devido rigor, não pode ser identificada de outra forma que não seja a de uma tendência do presente ou uma possibilidade (entre outras) que se abre à evolução social. Marramao fala, a este propósito, de uma "idealização do processo de secularização", uma espécie de "história ex post ", com efeitos comprometedores: elimina as formas conflituantes de racionalidade, neutraliza o problema da reprodução social em sentido amplo e dá da política uma visão não apenas neutralizante mas, essencialmente, "improdutiva" - " a concepção sistémica dá solução ao  dramático dilema de Weber sobre a relação  entre o lado inovador e o lado adimnistrativo do político, mas só o resolve porque elimina de perspectiva  o primeiro termo do dilema  (...)o 'decisionismo' de Luhmann  (...) associa-se a essa sociologia do 'fim da política' que vê na hipertrofia da administração a consequência inevitável da atrofia dos 'fenómenos de dominação'  " (Marramao, 1983: 155).

O paradigma que Luhmann nos propõe ajuda-nos a compreender diferentes aspectos da realidade social e política contemporânea ( que outros paradigmas não entendem ou, simplesmente, ignoram), mas dele não devemos esperar mais do que nos pode dar. Do seu programa não constam as  respostas aos problemas da dinâmica social, das tendências inovadoras e da mudança estrutural.
 

- IV -

Na Sociologia estrutural e funcional, o paradigma sistémico equivalia a pouco mais  que uma intuição, A sociedade é considerada, em termos globais e na sua lógica de funcionamento, como um sistema, mas só muito parcialmente foram exploradas todas as consequências desta noção.

Luhmann propõe-se colmatar esta lacuna à custa de um plano de investigação ciclópico, que aspira não só renovar o pensamento sociológico, mas também a própria Teoria Geral dos Sistemas, nas suas possibilidades de aplicação a outros domínios do conhecimento. Não surpreende, deste modo, que a par da presença permanente da teoria parsoniana, Luhmann introduza com grande frequência recentramentos imprevisíveis (Dupuy, 1988: 72), deixando-nos preplexos quanto ao verdadeiro registo do seu raciocínio   -   sociológico, biológico, cibernético   -   ou ao autor de referência -
- Parsons, Wiener, Varela, Maturana...

O tema  comum aos textos reunidos neste livro - a comunicação - ilustra com rara felicidade o modo como estas duas linhas de investigação se entrelaçam.

O primeiro objectivo para Luhmann é dar da comunicação uma imagem destituída das habituais referências ontológicas e antropologizantes. Parsons tinha ainda permanecido prisioneiro deste modelo, por exemplo quando concebeu os "media simbólicos" á imagem da linguagem humana e segundo a articulação simples, símbolo-sanção;  isso valeu-lhe, aliás, contundentes críticas por sobrevalorizar o instituído e não compreender os fenómenos de desvio (Cartwright e Warner, 1976: 654-5).

A alternativa está em acentuar a relação entre comunicação e sistema, em particular os sistemas sociais, para os quais a comunicação constitui factor prioritário de afirmação da sua individualidade - por oposição aos processos estritamente informacionais de outros tipos de sistemas. Não são já, pois, os indivíduos, enquanto tal, que são considerados os sujeitos de comunicação, mas os próprios sistemas sociais; emergindo a sociedade, também considerada enquanto sistema (: o sistema de todos os sub-sistemas sociais constituídos ou a formar), como o universo de todas as comunicações possíveis.

A relação sistema-comunicação pode ser sintetizada em duas teses:

1. a comunicação é o dispositivo fundamental da dinâmica evolutiva dos sistemas sociais;

2. em função da própria evolução do dispositivo comunicacional ( com a formação dos "media simbolicamente
generalizados"), o seu referente são as agregações colectivas de carácter funcional que dão pelo nome de sistemas (e já não o homem considerado individualmente - o indivíduo, o sujeito).

A comunicação destina-se a produzir a eficácia simbólica generalizante que torna possível a regularização da vida social sob a forma de uma organização sistémica e, ao mesmo tempo, cria condições de estabilidade favoráveis a este tipo de organização social e ao  seu desenvolvimento.

À luz desta perspectiva, a comunicação é vista como um processo eminentemente selectivo - intrinsecamente selectivo, já que a própria comunicação é um processo de selecções que se desenvolve a três níveis: produção de um conteúdo informativo, difusão e aceitação desse mesmo conteúdo (Luhmann, 1981a: 137-8). E é ainda um processo selectivo, porque a própria comunicação desencadeia novas sequências  selectivas ,despoleta nos sistemas novas séries de selecções , com base nas quais estes operam a redução da complexidade com que se confrontam e criam condições de estabilidade. Encontramo-nos, por conseguinte, perante uma concepção muito peculiar de comunicação, entendida basicamente como dispositivo cibernético destinado a normalizar as relações sistema-meio.

O corte radical que esta concepção de comunicação  faz com o entendimento comum (mesmo no meio científico) está bem patente na refutação liminar que Luhmann apresenta da ideia de pan-comunicação positiva, proposta pela Psicossociologia sistémica  (Watzlawick, Beavin e Jackson, 1967: 45-7 e 72).

A perspectiva de Luhmann é a de uma abordagem problematizante da comunicação, que começa precisamente por questionar as condições de improbabilidade da própria comunicação - a questão da improbabilidade tem, aliás, um alcance teórico mais amplo, relacionada com o processo social de ajustamento de expectativas  e com a aceitação vinculativa de decisões sem exigência de motivação racional (Luhmann, 1981b: 995 e sgs.).

As condições de improbabilidade estão intimamente relacionadas com os níveis de selecção antes mencionados. Temos, por um lado, uma improbabilidade relacionada com a compreensão, que é  resultado de um certo solipsismo próprio dos contextos comunicacionais - o dado de partida não pode deixar de ser um determinado isolamento dos participamtes no processo de comunicação, um individualismo das consciências. Outra fonte de improbabilidade está relacionada com a capacidade de recepção, onde prevalece um pluralismo de situações e interesses. Por último, a improbabilidade relativa aos resultados pretendidos (com a comunicação): mesmo quando as dificuldades anteriores são ultrapassadas, resta, como derradeira, a de conseguir incorporar a comunicação ao nível do comportamento (do Outro), fazer adoptá-la (os conteúdos visados)  como permissa de acção.

Esta situação, como facilmente se compreenderá, é ameaçadora da vida dos sistemas: afecta a capacidade de decisão,  e de forma mais acentuada com o acréscimo geral da complexidade que, como já foi referido, caracteriza o processo de evolução das sociedades modernas. A comunicação, só por si, ou seja, enquanto recurso à linguagem convencional, não é uma garantia segura da normal performatividade dos sistemas. Por isso, a formação dos "media simbolicamente generalizados" - Parsons havia referido, o dinheiro, o poder e a influência, a que Luhmann acrescentou, o amor e a verdade, deixando ainda em aberto outras possibilidades. Eles operam como uma espécie de  substitutos da linguagem, em perfeita solidariedade com o funcionamento dos sistemas, de forma a garantir a sua operatividade e, ao mesmo tempo, a definir novos padrões do entendimento humano (compatíveis com os contextos altamente complexos das nossas sociedades).

A Teoria da Comunicação e a Teoria dos Sistemas apresentam-se a partir de agora profundamente solidárias, em contraste com o patchwork  que caracterizou os primeiros exercícios de aplicação do paradigma sistémico ao domínio das Ciências Sociais.

Dois aspectos onde este contraste é muito nítido. O primeiro, relacionado com os media sistémicos (funcionais ou "simbolicamente generalizados") : eles deixam de ser entendidos em paralelismo com a linguagem (como defendia Parsons) , e passam a assumir-se como verdadeiras alternativas à linguagem. Na dinâmica dos sistemas, eles vêm substituir o papel que a linguagem desempenhou nas sociedades convencionais. Se a sua lógica interna mantém um certo paralelismo com a linguagem, já a sua operatividade está muito além: tratam-se de mecanismos de regulação dos processos sociais que pretendem, precisamente, dispensar a linguagem - surgem como resposta às dificuldades que a linguagem já não consegue resolver, ao nível das relações humanas complexas das sociedades actuais.

Segundo aspecto: a comunicação perde a conotação de transmissão e um certo carácter     teleológico   (muito  evidente,  precisamente,    na   teoria   parsoniana) - consequência de ser considerada  anterior à formação dos sistemas e exterior ao seu funcionamento, o que obrigava estes a uma "adaptação". O desenvolvimento teórico levado a cabo por Luhmann elimina este abismo, daí ele falar de auto-referência do processo comunicacional: a comunicação está virada para si própria, isto é, para o sistema em que tem lugar, visa a sua auto-preservação, a regularização dos fluxos sistema-meio - resultado da intervenção dos media funcionais (criados pelos próprios sistemas) e da consequente possibilidade de descartar a linguagem como único recurso para resolver o problema da compreensão.

A ideia de auto-referencialidade da linguagem é suficientemente interessante para que nos ocupemos um pouco mais dela.

O carácter auto-referente da comunicação deve ser visto como  alternativa à ideia anterior da reflexividade da comunicação - de acordo com a diferença essencial introduzida por esta nova perspectiva, segundo a qual,  os agentes de comunicação não são já os indivíduos, mas os sistemas sociais. A comunicação é um dispositivo de auto-regulação dos sistemas: a partir dela (e na especificidade de que se reveste em cada medium funcional), cada  sub-sistema  social observa-se  a  si  próprio  e observa os outros sub-sistemas (e demais contexto, mesmo os mais distantes, do seu  meio ambiente). Toda a dinâmica do processo de comunicação é virada para o seu próprio interior: as várias operações de selecção referidas, em resultado das quais se produz a informação, são o horizonte último da comunicação.

Auto-referencialidade não deve aqui ser tomada como sinónimo de fechamento. O processo de comunicação deve preservar sempre um certo grau de abertura, pois só assim pode ser garantida a produção regular de informação - resultado, por conseguinte, de uma determinada permeabilidade do sistema em relação ao  meio exterior. A auto-referencialidade "trabalha" a partir desta abertura inicial e consiste, em última instância, na forma de acentuar o carácter sistémico da comunicação: dá a ver como a sequência das operações selectivas que permitem chegar à comunicação são, todas elas, nas suas diferentes fases, orientadas  pela lógica, conjunto de imperativos e necessidades dos sistemas sociais. Exemplo, a todos os títulos brilhante, deste tipo de "funcionamento" da comunicação é o texto presente nesta colectânea sobre a Opinião Pública, onde Luhmann analisa o processo de comunicação do sistema político.

A ideia subjacente é que a sequência de operações selectivas do processo de comunicação ocorre com perfeita autonomia relativamente a qualquer tipo de influência exterior ao sistema - as fontes de sentido não participam/controlam o processo de produção do sentido. É, com toda a evidência, uma ideia suficientemente polémica para acicatar outras teorias da comunicação - mas este é também um mérito muito próprio de Luhmann...

Antecipando críticas previsíveis, é apresentada a caracterização deste processo de comunicação  como  "auto-referencialidade dinâmica", para sublinhar a abertura já referida e, também, a orientação para a diversidade que sempre está presente no processo comunicacional ( Izuzquiza, 1990: 208). Auto-referência não deve, por conseguinte, confundir-se com tautologia: a comunicação não se destina a reproduzir o mesmo, antes trabalha sistematicamente com a diversidade - daí consistir num processo selectivo a múltiplos níveis. A diversidade criada pela própria dinâmica comunicacional (os participantes, os conteúdos, as selecções, etc.) e a diversidade que a dinâmica dos sistemas cria. É claro que, deste ponto de vista, a "diversidade" situa-se sempre nos limites de uma determinada lógica unitária - a lógica dos sistemas sociais.Como já sabemos, esta lógica, isto é, o funcionamento dos sistemas sociais não dispensa a diversidade: se o tipo de problemas que se colocam são basicamente sempre iguais, já as respostas encontradas são muito diversas - de acordo com a própria diversidade dos sistemas, dos respectivos meios exteriores, bem assim como das relações que se estabelecem entre uns e outros.
 

- V -

O ímpeto de renoção teórica a este nível atinge o plano conceptual relativo aos elementos constituintes do processo de comunicação.

Trata-se de um reordenamento, nuns casos, e reinterpretação, noutros casos, dos elementos básicos identificados pela Teoria da Comunicação convencional. A observação sob uma nova luz destes elementos,  há  muito identificados, confere-lhes novos contornos e redefine a sua importância no contexto global do processo de comunicação.

Neste domínio, a nota de maior originalidade é dada pela "expectativa de êxito",  considerada o elemento ordenador da totalidade do processo, do conjunto das operações selectivas ( Luhmann, 1982a: 265-6).

A expectativa de sucesso da  comunicação deve ser interpretada como enfatização do carácter funcional deste processo: não é uma expectativa gratuíta (ou espontânea), antes obedece a determinadas necessidades funcionais. Deve, por outro lado, ser considerada em estreita relação com a auto-referencialidade da comunicação: a probabilidade de sucesso será tanto maior quanto o próprio processo comunicacional tenha possibilidade de se desenvolver de um modo autónomo (auto-referente) e de controlar todas as influências exteriores que inevitavelmente o ameçam ao longo do percurso selectivo.

Falar de expectativa, recordemos, significa desde logo admitir o carácter contingente do sucesso. Em última análise, permanecem sempre em aberto tanto a possibilidade de aceitação como a de recusa das mensagens - o processo de comunicação preserva até ao limite um indispensável grau de abertura, que é, simultaneamente,  condição do seu sucesso, mas, também, a eventualidade  do fracasso.

Tão ou mais problemático que este elemento em si do processo de comunicação - a "expectativa de êxito" -  é o critério utilizado para definir "êxito". A originalidade do pensamento de Luhmann trilha percursos sinuosos que têm tantas portas de acesso como de fuga;  e só o confronto com os próprios textos do autor pode ajudar cada um, por si próprio, a  descobrir qual a direcção a percorrer...

Continuando o elenco dos elementos básicos do processo de comunicação. O elemento nuclear é a informação (ou conteúdo informativo). É, como sabemos, o resultado de uma determinada selecção e, por outro lado, subentende uma determinada intencionalidade. A informação é o produto de determinado trabalho sobre as formas simbólicas - elas próprias já resultado de uma operação de selecção; é o produto de uma outra selecção entre alternativas , que retém determinadas formas simbólicas ( e não todas as disponíveis), para integrá-las no processo de comunicação e, assim, as transformar em informação.

Claro que a operação selectiva constituinte da informação é aqui considerada de acordo com a sua pertinência para o sistema ; assim, também, a intencionalidade, antes referida, obedece ao mesmo critério.

O quadro apresentado ajuda-nos a compreender alguns movimentos significativos ao nível dos conteúdos informativos. Por exemplo, no discurso político, como determinados temas entram em agenda, depois de períodos mais ou menos prolongados de letargia (em gestação ou em adormecimento): o problema ecológico, a questão militar, a "qualidade de vida", a corrupção, etc. . Estes exemplos deixam perceber dois momentos  na gestação da informação: uma primeira elaboração simbólica (ainda irrelevante para o sistema político) e a posterior integração no discurso político regular ("agenda"), quando determinadas( e só determinadas) formas simbólicas se cristalizam sob a forma de mensagens políticas, informação relevante para o sistema político.

A mensagem é, em última instância, aquilo que, na prática, objectiva a informção. Materializa-a e coloca-a à disposição dos interlocutores para que eles a possam partilhar. Se quisermos insistir numa visão formal e esquemática do processo de comunicação, poderemos considerar a mensagem como um novo passo (outra etapa selectiva) do processo da comunicação.

Ao falarmos em "interlocutores" estamos ainda a utilizar o quadro de referência das teorias da comunicação convencionais.  As designações  utilizadas  por  Luhmann - "Ego" (aquele que comunica) e "Alter" (o que recebe a informação) - podem, por isso mesmo, tornar-se equívocas. O seu objectivo é destituir os agentes da comunicação de um carácter antropologizante: tratam-se de agentes que intervêm como elementos de um sistema ou, em determinadas circunstâncias, são os próprios sistemas que actuam enquanto agentes no processo de comunicação. Mesmo quando identificamos pessoas individuais , a sua participação no processo é sempre encarada como a de elementos que assumem o estatuto de agentes de um determinado sistema social.

Ainda quanto a estes agentes do processo comunicacional, e para remarcar o corte com as teorias convencionais, eles são considerados em termos de homogeneidade: "Ego" e "Alter" são já um resultado do processo, pertencem, à partida, a um mesmo universo de referência (contexto de relação), que dispensa, assim, qualquer exercício  destinado a colocá-los em contacto (preocupação hermenêutica). A ideia, tão ousada quanto discutível, é que os sistemas funcionarão para os indivíduos como referente fenomenológico absoluto, uma cultura própria que vem ocupar o espaço anteriormente reservado à cultura de um modo de vida multifacetado e polissémico - esta não terá propriamente desaparecido, mas a sua existência deve ser mediada pela primeira. A vulgarização ao nível da linguagem comum de expressões com "cultura das organizações", "cultura de empresa" , "cultura política", etc. é sintomática - se não da total transparência da tese radical luhmaniana, pelo menos de um certo tour de force  no sentido de  favorecer determinadas possibilidades de desenvolvimento  (com portagonistas, aliás, bem identificados e com interesses inequívocos).

A comunicação considerada no quadro da Teoria dos Sistemas apresenta um carécter eminentemente técnico, e o elemento onde isso é mais evidente é o código.

O código tem um papel crucial na dinâmica do processo de comunicação: é o elemento que, em última instância, ordena a totalidade do processo, em torno do qual os outros elementos gravitam e estabelecem configurações variáveis. Para Luhmann, o código  é, só por si, já um modo de comunicação: um esquema que permite ao sistema processar o seu meio ambiente sob a forma de informação, segundo os parâmetros de satisfação de uma determinada função - refere a propósito, " a forma do código define o princípio segundo o qual o código, apesar das suas diferenças internas, estabelece  uma unidade no campo que regula; determina o que pode ser comunicado através do código e, por outro lado, as transformações das capacidades de comunicação, consequentemente, também aquilo que cada época considera o seu centro de sentido (...) a unidade do código começa por ser um ideal, depois um paradoxo e, por último, é uma função " (Luhmann, 1982b: 43).

A tecnicidade do código é dada, em primeira instância, pelo esquematismo elementar da sua construção  interna: tem por base um esquema muito geral e simplificado, de tipo binário, com uma função eminentemente performativa - marca a realidade contingente, extremamente diversificada e caótica com que se confrontam os sistemas, criando diferenças a partir das quais os elementos são rapidamente ordenados. O código, por conseguinte, reveste uma forma extremamente abstracta e está destituído de qualquer cunho ontológico. É uma espécie de imagem ideal do mundo, de tipo dualista, a partir da qual podem ser assinaladas e ordenadas diferenças: a partir de uma diferença primária ou directriz, o código, desde o seu próprio interior, ordena os elementos do mundo sob a forma de informação, que ele se encarrega também em  canalizar para as redes das relações sociais.

Aparentemente, o código encontra-se também destituído de qualquer traço ético, pois o binarismo da sua forma elementar equivale a renunciar à afirmação de qualquer valor único como critério de selecção: o código está programado para operar fluentemente com qualquer das alternativas do binário, aceita tanto as "afirmações" como as "negações"; o que ele não tolera é um "terceiro factor", isto é, tudo aquilo que escapa à bipolaridade do próprio código e que constitui, para o sistema, ruído.

 O binarismo do código dá um cunho específico à auto-referencialidade (da comunicação) e à auto-poiesis  (dos sistemas), atrás referidas: introduz no funcionamento dos sistemas um nível de assimetria que impede a criação de paradoxos e de tautologias inúteis. Daí, também, o seu carácter eminentemente funcional e a estreita conotação que cada código estabelece com um determinado sub-sistema social (de acordo, pois, com a função primária deste).

Em suma, o código é para Luhmann um puro operador: aquilo que simplesmente possibilita a comunicação, isto é, produz informação e identifica o ruído - tudo isto sempre a partir de uma posição de pretensa neutralidade face ao mundo. E como operador, o código limita-se a responder às contingências que o real lhe coloca. Quando isso já não é possível, significa então que está criada uma nova necessidade social, para cuja satisfação haverá que criar um novo código, com capacidade de processar  um  novo  tipo  de  informação,  destinada  a  ser  trabalhada  por um novo sub-sistema, nascido da individualização de uma nova função social. Não temos, por conseguinte, uma perspectiva de evolução do código - todas as mudanças internas são adaptações em torno de uma mesma função reguladora; mas uma perspectiva mais geral de evolução dos códigos no seu conjunto: a criação de novos códigos que é sinal da progressiva diferenciação funcional da sociedade.

A tecnicidade do código é um factor crucial do êxito da comunicação. Torna factível aquilo que, à partida, é altamente improvável: a compreensão.

A compreensão não é objecto de avaliação em termos semânticos, como em geral acontece. Adquire antes uma conotação eminentemente pragmática que, de certo modo, está já para além do processo de comunicação propriamente dito, é uma consequência deste mesmo processo. Apesar de tudo, uma consequência ainda assim contingente, ao ponto de se poder considerá-la como o derradeiro nível de selecção. Esta contingência depende em larga medida dos resultados obtidos nos anteriores níveis de selecção: quando estes são positivos, então, o grau de probabilidade de se chegar à compreensão será mais elevado.

Em termos sistémicos,  a avaliação semântica é  apenas importante  nas  implicações ao nível da complexidade social que resultam da compreensão, as suas consequências na ordem social - passíveis de uma avaliação segundo o critério redução/aumento da complexidade social. Não significa isto que os aspectos linguísticos da comunicação estejam completamente ausentes do pensamento de Luhmann. Pelo contrário, é mesmo muito frequente a preocupação com questões semânticas relacionadas com os temas objecto de estudo; mas a perspectiva que o autor tem da semântica, como está bem demonstrado na sua análise da formação do conceito moderno de tempo, é a de uma espécie de intermezzo , ao nível da elaboração da experiência, entre dois momentos fortes de transformação das estruturas sociais que, por isso mesmo, exigem uma mais perfeita especificação dos códigos por forma a normalizar (no plano simbólico), tanto quanto possível, a descontinuidade(material) das estruturas sociais  (Luhmann, 1980: 233 e sgs.).
No fechamento do processo de comunicação reencontramo-nos, assim, com a complexidade do mundo. Mas este tinha já sido, recorde-se,  o ponto de partida, a razão constituinte da comunicação, o factor que faz despoletar o processo comunicacional.

 Não se trata, portanto, verdadeiramente de um "fechamento", mas tão somente de um ciclo de auto-referencialidade que se completa,  para, em movimento contínuo,  novo ciclo se iniciar.

A complexidade é eterna.
 
 

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