Liberdade, comunicação e moral universal
 João Pissarra Esteves , Universidade Nova de Lisboa
 
 (in Revista de Comunicação e Linguagens , nº.s 15/16, Lisboa, Ed. Cosmos, 1992)
 
 

O reconhecimento do carácter social e da dimensão política das questões morais contribuiu para tornar mais evidentes algumas insuficiências  das teorias éticas convencionais.

A obsessão teórica das justificações - de preferência, a "justificação última - contradiz a situação concreta da ética, onde as justificações são tantas vezes obscuras e, regra geral, variáveis. Esta contradição atinge o limite quando a "necessidade" de justificação se sobrepõe e elimina mesmo a força vital sempre presente quando o homem se confronta com a pergunta inevitável - "que devo fazer?".

As possibilidades de resposta a esta pergunta são, como sabemos, extremamente variáveis - com justificações verdadeiras ou falsas, mais ou menos legítimas, mais ou menos conscientes. Mas o que sempre prevalece na necessidade de continuar a formular a pergunta e na possibilidade de a ela responder é um acto de liberdade. Liberdade sem a qual, refira-se, qualquer justificação seria desnecessária.

A ideia de uma "justificação última" parece  manifestamente pôr em causa a primazia deste princípio de liberdade.
A ética da comunicação é bastante modesta quanto às exigências de fundamentação que coloca, e neste aspecto distingue-se radicalmente das éticas convencionais. Mas nem por isso é menos importante questionar a partir do seu próprio interior o papel aí reservado à liberdade , entendida como condição indispensável á realização objectiva das discussões e factor que confere à teoria ética  uma verdadeira dimensão prática.
 

Paroxismos da liberdade

Ao assumir o princípio da liberdade, a ètica da discussão reconhece a permanente situação de insuficiência da moral (cf. Camps, 1988:95). Mas esta é, também, a possibilidade de a ética encontrar o seu sentido verdadeiramente humano.
Os valores expressam-se na linguagem moral de forma necessariamente imprecisa e inconstante. A linguagem  moral  é fluida porque as palavras variam na exacta medida  das coisas que nos tocam: não somos todos afectados do mesmo modo nem ao mesmo tempo. E só a liberdade pode garantir a manifestação destas diferenças. Mas, simultaneamente, ela garante também a possibilidade de as superar: através da discussão, do acto de vontade que é a interpretação e a compreensão do outro.

Com o processo de "desencantamento do mundo", próprio da sociedade moderna, a liberdade adquire uma importância crucial. As ambiguidades da ética adensam-se  e a resposta ao "que devo fazer?" deixa de ser linear. A todo o momento temos de ponderar o  imperativo dos fins últimos  e  o  imperativo dos actos realizados  (e suas consequências) -
- a ambivalência entre a ética da convicção (gesinnunsethik)  e a ética da responsabilidade (verantwortungethik) é um desafio se coloca não apenas ao político, mas também a cada um de nós quando nos confrontamos com a escolha da conduta correcta (cf. Weber, 1919: 85 e sgs.). A articulação destes imperativos opostos só é possível com a intervenção mediadora da liberdade, que recusa impor uma  solução definitiva, antes procurando respostas concretas, ajustadas aos homens, às situações e circunstâncias concretas.

Quando a ética já não pode ser justificada pela religião e a fé deixou de ser um recurso seguro para redimir os conflitos quotidianos (entre os cidadãos ou entre os Estados),como retemperar a esperança?

Quando se desvanece a confiança numa reconciliação final e a ideia da salvação se esbate no horizonte de vida, uma ténue centelha pode manter viva a esperança: a possibilidade de tornar visíveis as contradições e assumir os conflitos. Na urdidura da teia complexa que eles formam, esperamos encontrar um caminho, o fio de Ariana que dá sentido à existência.

Na ética não procuramos já o caminho de um Deus, mas apenas o alento para enfrentar as adversidades da vida e a confiança de a elas sobreviver. Esta energia vital só a liberdade pode transmitir: essa capacidade singular do homem que possibilita iniciar algo de novo no mundo e, nessa medida, constitui condição indispensável de toda a acção política e das questões práticas em geral - das leis, das decisões e até do juízo (cf. Arendt, 1968: 186). A liberdade como expressão da diversidade humana e que, mais que tudo, preserva esta mesma diversidade.

Por tudo isto se justifica uma preocupação especial com a liberdade. Nas sociedades modernas, o pensamento democrático visa a sua preservação através de garantias políticas e uma protecção específica. Perante os perigos que a ameaçam, a liberdade adquire um sentido mais concreto: um valor supremo que é o mais fundamental de todos os valores da moral.
Podemos, assim, pensar o conflito ético como aquele em que a liberdade se opõe sempre a qualquer outro valor, que por mais importante que seja (a igualdade, a paz, a felicidade, etc.),  não pode nunca pôr em perigo o mais fundamental: sem a liberdade, todos os outros valores se tornariam vazios e sem sentido para o homem.

O que há de mais essencial na ética é a possibilidade de exercício da liberdade. Exercício que é em certo sentido gratuito, no qual origem e fins coincidem: a liberdade como condição de possibilidade, prática corrente e o fim último da acção humana.

Este sentido próprio da ética,  em termos históricos e enquanto projecto espiritual, opõe-se ao dogmatismo e ao terror que as tentações proféticas tantas vezes encobrem: "a ética vem substituir a religião, mas a sua esperança é religiosa num sentido diferente do tradicional (...) é esperança na persistência e preseverança do próprio projecto ético" (Camps, 1988: 102-3).

A referência à liberdade a propósito da questão ético-moral torna indispensável que a consideremos na sua dupla dimensão individual e colectiva. Ela está presente na vontade, no juízo e no acto de cada homem, mas também no dialogismo próprio da relação de um homem com outro homem e com todos os homens, no "círculo da compreensão" que dá à ética a forma de projecto democrático, fundado no diálogo, na compreensão do outro e na discussão que antecede a deliberação.

A experiência democrática tem, por outro lado, sistematicamente posto em evidência a descontinuidade entre estas duas dimensões da liberdade, daí que as mais recentes teorias éticas e políticas tenham  com insistência procurado resposta, nem sempre com sucesso, para este problema. O debate entre "liberalismo" e "igualitarismo" cai facilmente numa situação paradoxal: o primeiro, ao fazer a apologia da liberdade individual chega naturalmente ao constrangimento do seu exercício colectivo; o segundo constata esta limitação e pretende impor mecanismos institucionais que protejam  a liberdade colectiva, mas assim cai muito facilmente numa situação de controlo administrativo que põe em causa a liberdade de cada um.

Estamos perante uma aporia sem solução no plano teórico. Mas na prática, no debate público político e no exercício quotidiano da cidadania, esta ambivalência pode ser mediada. A determinação do papel do Estado é crucial neste debate. A revitalização a que hoje assistimos deste tema nem sempre é muito clara quanto à dimensão ética aqui implicada, quando os aspectos sistémico-funcionais são predominantes. Na definição do papel do Estado - responsabilidades, domínios e formas de intervenção, dimensão, etc. - confrontamo-nos inevitavelmente com o problema da liberdade, na sua forma mais concreta, em situações objectivas, tal qual se apresenta àqueles que a exercem (ou não). A liberdade em situações contingentes que tornam o seu próprio sentido extremamente variável para os homens, ao ponto de poder tornar-se incompreensível e, até, ser sentida como nefasta.

Esta ambivalência da liberdade na sociedade moderna foi de há muito percepcionada, constituindo por isso especial motivo de preocupação. Depois de Kant, muitos outros autores adoptaram a distinção entre a liberdade negativa e a liberdade positiva. A sua caracterização foi variando ao sabor dos diferentes contextos sociais e históricos tomados como referência.
A reflexão  sobre este problema levada a cabo por Isaiah Berlin é marcante no que diz respeito à situação das democracias ocidentais no presente.

Retomando antigos temas kantianos, Berlin caracteriza a liberdade negativa como ausência de coerção, o conjunto das liberdades cívicas e dos direitos individuais que se opõem aos abusos de autoridade; que distingue da liberdade positiva, considerada a capacidade de cada um ser senhor de si mesmo, já não segundo uma concepção puramente individualista do ser humano, mas que procura, com base na capacidade de auto-governo de cada um, fundar um alicerce sólido da democracia (Berlin, 1969: 136-145).

Até aqui trata-se apenas de uma formulação mais ampla do princípio da liberdade já desenvolvido pelo pensamento liberal no final do século passado, com a defesa do individualismo como medida não só do "progresso individual ", mas também do "progresso social ", mas, simultaneamente, também o reconhecimento de limites objectivos à liberdade individual: "não prejudicar o seu semelhante " e não anular a diversidade própria da condição humana (cf. Mill, 1859: 81 e sgs.). Para Berlin, estes critérios foram sobretudo o pretexto para uma crítica política bastante sistemática das sociedades ocidentais, em particular ao alertar para os perigos do igualitarismo que está associado ao desenvolvimento da liberdade positiva.

Nas  condições   objectivas  de  desenvolvimento das  democracias  ocidentais, o auto-governo de cada um rapidamente se viu ameaçado por um Estado cada vez mais plenipotenciário, que se arroga de instância suprema da racionalidade e estende o seu domínio sobre todos os homens, por formas que, em variadas circunstâncias, chegam à imposição dogmática e  mesmo ao totalitarismo. Na versão extremista do Welfare State atingimos o cerne das aporias da liberdade e da igualdade, quando esta se torna a forma destruidora da primeira: uma "igualdade" imposta, arrogante e hegemónica que termina na sua própria auto-negação.  Mill  dava-lhe  outro  nome: simplesmente,  mediocridade - o domínio tornado imperceptível, que conta com a cumplicidade de todos os que se tornam passivos e "da humanidade que chegará ao ponto de ser incapaz de compreender a diversidade (se, durante algum tempo, perder o costume de a ver) " (Mill, 1859: 98).

No pólo oposto,  temos a exaltação do puro liberalismo. É o outro acesso paroxístico da liberdade.

Nas presentes condições, esta resposta não tem mais credibilidade que a anterior. De forma insuspeita, esta é também a tese de Berlin: uma ideia excessivamente liberal de liberdade, se o pleonasmo é permitido, que é incapaz de tomar posição perante o problema da igualdade e reconhecer a sua importância para a própria liberdade, esta ideia é a de uma liberdade basicamente injusta e  até falsa. Da sua prática, o que mais naturalmente resulta é o aniquilamento da própria liberdade - "mesmo nas sociedades mais liberais, a liberdade individual não é o critério único ou mesmo o critério dominante da acção social (...) a ampliação da liberdade de um homem ou de um povo escolherem viver como desejam deve ser pesada com as exigências de muitos outros valores, dos quais a igualdade, a justiça, a felicidade, a segurança ou a ordem pública talvez sejam os exemplos mais óbvios " (Berlin, 1969: 168).
 

A liberdade e a antinomia dos valores

Para definir com mais rigor o estatuto da liberdade, o seu contributo para a conduta ética e encontrar uma solução para a aporia referida, é útil questionar a relação que mantemos com os valores.

É uma relação complexa, atravessada por muitas ambivalências. O exercício prático da liberdade nasce do confronto que permanentemente mantemos com os valores e, muito em particular, da forma como a cada momento ultrapassamos as ambivalências que eles nos colocam. O que no plano teórico se apresenta como a mais radical das aporias, dilemas profundos sem aparente possibilidade de resolução, só muito raramente o são de facto: na vida de todos os dias, por vezes da forma mais surpreendente, encontramos sempre resposta para as diversas situações. Nem sempre, por certo, as respostas mais perfeitas. Mas sempre a resposta necessária a problemas concretos. Se o empenhamento ético é a preocupação permanente com a resposta correcta e a melhor conduta, este desejo de perfeição, no entanto, só em circunstâncias muito especiais (e raras) é inibidor da capacidade de resposta e de acção - quando assim acontece, isso é totalmente indesejável e não nos traz qualquer satisfação moral.

O que nos permite, então esta capacidade prática de decisão que o próprio pensamento parece desconhecer? Esta sabedoria prática que está além do próprio Saber?

Não será, assim, despiciendo considerar, a este propósito, o contributo objectivo da liberdade, entendida como dado insofismável da conduta humana e, muito em particular, da acção moral.

As antinomias presentes na relação que mantemos com os valores têm sempre por base uma vivência problemática da liberdade. Isto é evidente quer consideremos os valores como, por um lado,  expressão da autonomia (no sentido kantiano) e da liberdade - um poder de renovação e inovação, uma criatividade espontânea na base da qual os valores se contrapõem às coisas -, quer os consideremos, por outro lado, como um princípio de ordem - de acordo com a necessidade de definir uma hierarquia dos valores.

Um dilema similar em termos de liberdade coloca-se-nos quando pretendemos definir o acto de criação da moralidade: obra do génio (na criação de modos originais de avaliação das coisas), ou apenas a capacidade de reafirmação (de recuperar um mandamento antigo, cujo sentido e sentimento perdidos foram reavivados)?

Menos explícita  mas não menos efectiva, é ainda esta vivência problemática da liberdade que encontramos no dualismo individual/colectivo da acção moral: os valores como inspiração profunda da acção individual e os valores que promovem a obediência e consolidam um sentimento colectivo.

A hipótese de que aqui se parte é que todas estas antinomias encontram solução prática sempre que a liberdade se joga enquanto acto concreto. Como perceber, então, este movimento?

Às formulações apriorísticas e, regra geral, bastante abstractas  devemos tentar contrapor uma análise mais próxima da realidade, que tenha em conta o exercício quotidiano da liberdade, em estreita relação com os problemas mais comuns da vida.

Para trilhar este caminho, a reflexão de Ricoeur sobre a cultura parece-me muito útil e elucidativa no que diz respeito ao problema axiológico.

Ao questionar a nossa relação com a cultura, entendida como herança cultural que nos é transmitida pela tradição, descobrimos uma antinomia da mesma natureza daquela que referimos a propósito da noção de valor: por um lado, a valorização da tradição, considerada um dado primordial da própria existência da cultura, e, por outro lado, a avaliação negativa da tradição que a considera um exercício de autoridade, mais ou menos marcado pela violência e que é  sempre lesivo do livre exercício do pensamento e da maturidade do juízo.

Esta ambivalência é sentida de há muito no seio da cultura moderna. Esteve no centro da querela entre o Iluminismo e o Romantismo e, mais recentemente, motivou o confronto entre duas das mais importantes concepções da teoria da cultura do nosso século: a hermenêutica filosófica, que considera a tradição como a verdadeira dimensão da consciência histórica e o medium por excelência da herança cultural, e, no campo oposto, a teoria crítica (para recorrer à designação mais comum, embora bastante ambígua), para quem a tradição é vista sobretudo como um factor de distorções e alienação das consciências.

Este dualismo tem uma dimensão filosófica essencial (cf. Ricoeur, 1974: 249), mas no quadro da presente discussão procurarei apenas ter em conta  as consequências no plano axiológico.

De um lado, a ordem dos valores considerada como algo que deve ser (re)descoberto, com  apelo  à   mediatização   da  historicidade,   através   de   conceitos   como  os  de   pré-compreensão, juízo prévio, tradição e autoridade; de outro, a ordem dos valores entendida como liberdade de criação que resulta da crítica sistemática das distorções da comunicação - o desmantelamento das ilusões e dos sistemas ideológicos.

Na esteira do programa do Romantismo, autores como Heidegger ou Gadamer continuaram a fazer a apologia da tradição, no quadro de uma postura que definem como "participação". Os limites deste raciocínio nem sempre são muito claros, mas acabam invariavelmente por conduzir à ideia de uma plena soberania do passado.

A "participação" contrapõe-se à atitude de "distanciamento" que é adoptada pela crítica das ideologias. Deste ponto de vista, a ideologia consiste num efeito de sentido do qual o próprio homem perdeu o sentido: tem um carácter inconsciente e a sua superação apenas é realizável com recurso a processos exploratórios originais, na base dos quais se empreende uma reconstrução - uma prática que escapa, pois, à oposição simplista explicar/compreender definida por Dilthey. Há que levar a cabo uma recrição simbólica, a partir da qual será possível neutralizar  o sistema de distorções e para a qual o simples acto de compreensão já não é suficiente: a interpretação daquilo que permanece oculto não é só por si geradorada da "ressimbolização" que cria o novo.

No âmbito de uma teoria dos interesses, podemos identificar nesta posição, o interesse de emancipação. Ele é próprio da atitude crítica e procura destruir as distorções sistemáticas escondidas, a partir da ideia regulativa de uma comunicação ilimitada e sem constrangimentos - na formulação primitiva (e muito duvidosa) de Habermas, um interesse que se materializaria num acto auto-reflexivo do género da atitude psicanalítica (cf. Habermas, 1968: 233 e sgs.).

Em termos axiológicos, a atitude crítica e o interesse de emancipação aspiram concretizar a liberdade como valor fundamental, origem de todos os valores e, assim, reconhecem a estes um carácter eminentemente criativo.

A síntese das posições destes dois projectos teóricos quanto à questão axiológica pode ser assim formulada: a hermenêutica filosófica considera os valores um produto da tradição e, nesta medida, exteriores à liberdade; a teoria crítica postula o corte com o passado e defende que a origem dos valores é (ou deve ser) um acto puro de liberdade.

Estamos perante duas atitudes radicalizadas que dificilmente encontram confirmação   na realidade prática da vida moral. De forma simplesmente intuitiva, a experiência comum confirma-nos a todo o momento que os valores nunca chegam a eliminar a liberdade individual e, num certo sentido, não podem mesmo dispensá-la. E, ao mesmo tempo, os valores nunca podem assumir um carácter absolutamente arbitrário.

Em termos teóricos, estamos perante uma evidente contradição. Mas, na prática, existe de facto forma de mediação dos dois termos desta antinomia. Ricoeur utiliza uma metáfora feliz para explicar esta mediação: um "círculo de vida" que restitui os valores à sua condição real prática e dá da liberdade a imagem real da sua existência. Uma ideia que é também próxima da proposta habermasiana mais recente, de uma teoria geral da sociedade fundada no paradigma comunicacional, que retoma o projecto hermenêutico e procura dar-lhe uma dimensão crítica (cf. Habermas, 1981: 147-52), ao confrontar a crítica das ideologias  com a tradição ( a relação necessária com o passado e a possibilidade de regenerar este mesmo passado).

A realização deste programa passa por uma teoria original da interpretação, definida como "dialéctica de explicação e compreensão", na qual " a polaridade entre explicação e compreensão não deve abordar-se em termos dualistas, mas como uma dialéctica complexa a altamente mediada " (Ricoeur, 1976: 86).

Para neutralizar esta polarização temos também de pensar na superação da antinomia participação/distanciamento. Os valores, tal como a generalidade das formas simbólicas, apenas podem ser reconhecidos quando se tornam autónomos: em relação aos seus autores, à situação original de realização, ao destinatário original, assim como em relação a qualquer outro destinatário, mesmo ao actual, isto é, aquele que num determinado momento se confronta com a necessidade de interpretação. Esta autonomia é, efectivamente, um processo de distanciamento: "o princípio de uma luta entre a alteridade, que transforma toda a distância espacial e temporal em alienação cultural, e a ipseidade, pela qual toda a compreensão visa a extensão da autocompreensão " (Ricoeur, 1976: 55). Mas a partir do momento em que está em causa a compreensão, trata-
-se de um "distanciamento produtivo": prepara a participação de cada um nessa forma simbólica, num esforço de superar a alienação cultural; e, então, " a significação é 'resgatada ' do estranhamento da distanciação e posta numa nova proximidade, proximidade que suprime e preserva a distância cultural e inclui a alteridade na ipseidade " (Ibidem).

Esta dialéctica distância/proximidade (participação) está patente de forma muito viva na linguistícidade da experiência simbólica. A compreensão linguística apenas é possível quando os interlocutores conseguem um certo distanciamento do objecto falado (através da expressão linguística). Tal como na consciência histórica, cuja eficácia comporta também um momento de distância, no acto de tornar próximo o que está distante. É nesta dialéctica que tem lugar a transmissão da herança do passado e que a comunicação se torna possível enquanto processo de "fusão de horizontes".

O acto de comunicação requer um determinado distanciamento e objectivação, o que põe em causa a formulação mais simplista da hermenêutica: a explicação tem, pois, de ser considerada como uma etapa necessária da compreensão.

Mas estes ensinamentos valem também para a teoria crítica. Ao contrário do que sustenta a sua versão mais ingénua, a crítica das ideologias não pode ser entendida como pura explicação das distorções sistemáticas da competência comunicacional. É esta explicação, mas é também algo mais, algo que se continua enquanto compreensão, para que a competência deteriorada possa ser restabelecida.

Neste "explicar", a compreensão está presente em pelo menos dois momentos distintos e ambos fundamentais: na pré-compreensão de nós próprios e da situação (ideológica) em que nos encontramos, e na compreensão que a capacidade de comunicação reabilitada exige. Este segundo momento dá substância ao interesse de emancipação. Estabelece-o na imediata continuidade do interesse prático (de comunicação). O interesse de emancipação precisa de um conteúdo concreto que lhe é fornecido a partir do interesse prático na comunicação e da capacidade objectiva de reinterpretar de forma criativa as heranças culturais

" Apenas a conjugação da crítica das ideologias , motivada pelo nosso interesse  de emancipação, e a reinterpretação das heranças do passado animada pelo nosso interesse de comunicação pode dar um conteúdo concreto a este esforço. A simples crítica das distorções é apenas o reverso e a outra metade do esforço para regenerar a comunicação  e a acção comunicacional em toda a sua capacidade. Se não tivermos experiência de uma comunicação efectiva - mesmo que ela provenha da esfera restrita das relações interpessoais - a ideia regulativa da comunicação sem fronteiras e sem constrangimentos permanece uma espécie de desejo  (wishful thinking) , ou pior que isso uma erupção das reivindicações esquizofrénicas próprias das sociedades modernas " (Ricoeur, 1974:267).

Que ensinamentos traz, então, esta concepção original do acto de interpretação à questão dos valores e à caracterização do papel da liberdade na moral e na ética?

As condições culturais de realização dos valores colocam-nos perante uma ambivalência essencial. Por um lado, enquanto sujeitos éticos estamos conscientes da existência de um mundo moral que nos precede, um mundo assim construído e classificado por aqueles que nos antecederam, segundo leis que para eles foram da máxima reflexão, sabedoria e experiência. Mas se a criação de um mundo ético ex nihilo está fora do nosso alcance, resta-nos, no entanto e por outro lado, a possibilidade sempre aberta de reapreciar as avaliações que os nossos antepassados para nós construiram.

 Os valores não chegam a nós como coisas ou objectos fenomenais: interpelam-nos e convidam-nos a participar na sua simbolicidade. E para que tal seja possível , isto é, para que o valor adquira verdadeira existência para nós, precisamos de o assumir como nosso, participar nele, submetê-lo a uma reinterpretação. Assim potenciamos a "distância ética", tornando-a um factor produtivo: o passado que sobrevive para nós é apenas aquele que sabemos (ou somos capazes) de reinterpretar.

Um exemplo a larga escala desta situação está presente na nossa cultura com os primitivos cultos pagãos que sobreviveram depois de reinterpretados à luz dos valores cristãos; ou, ainda, nos cultos religiosos que se vão  adaptando aos valores profanos do mercantilismo e do hedonismo. As festas populares que se realizam por todo o país são um caso paradigmático destas situações, onde na mesma celebração se encontram entretecidos diferentes estratos epocais de valores: vestígios das ancestrais adorações pagãs da natureza, actos de fé cristãos e um cem número de diversões de carácter profano. Este sincretismo é o resultado de um prolongado trabalho do tempo, uma sedimentação que gerações e gerações construiram, numa constante reinterpretação do passado e  recriação da vida.

É neste processo de "transavaliação" que a antinomia dos valores é mediada, numa articulação positiva do interesse de emancipação com as heranças culturais.

Podemos falar, desta forma, numa relativa discrição da liberdade que se realiza no plano moral: "no acto de transavaliação  daquilo que já foi avaliado; a vida ética é uma permanente transacção entre o projecto da liberdade e a situação ética herdada do mundo das instituições " (Ricoeur, 1974: 269).

Esta discrição não é sinónimo, porém, de um papel secundário. O perigo mais ameaçador para a ética e para a moral é sempre a supressão da liberdade; e esse é o resultado mais provável de uma hermenêutica da tradição com propósitos restauracionistas, que vive apenas na nostalgia do passado e despreza a ideia regulativa da emancipação do homem.

Mas, suprema e mais dramática das ironias, a exaltação da liberdade pode também conduzir a um fim trágico: quando  a  liberdade  se  esvazia  no  puro  idealismo  da  auto-reflexão, ou se torna fanática ao ponto de negar qualquer possibilidade de mediação. Neste caso caímos no extremo oposto: a negação da tradição.

No rescaldo do "golpe de Agosto", muitos ficaram perplexos por terem visto desfraldadas  as bandeiras dos czares na Praça Vermelha e ao ouvirem de novo o nome de São Petersburgo. Sentem a gravidade da ameaça e logo com origem na própria pátria da liberdade, segundo o seu entendimento. São justificados os receios que os acontecimentos suscitam, mas o que os mais cépticos persistem em não compreender é que esta situação é  resultado da exaltação inconsequente da própria liberdade: é o ressoar da voz da tradição que uma estranha liberdade glorificada procurou calar sem êxito durante mais de 70 anos. Perante estes factos,  são poucas as certezas em relação ao que o futuro nos reserva e, nesta medida, todas as inquietações são justificadas. Mas sobre o que parece já não restarem dúvidas é quanto à possibilidade de construir a liberdade em aberta ruptura com a tradição e radical negação do passado. No rescaldo deste  projecto incongruente ficou-nos uma história de crueldades, de que a liberdade foi sempre a principal vítima; e não sabemos,  ainda, se é já chegado o momento da penitência cumprida.

Idealismo auto-reflexivo ou negação da tradição, em ambas as situações estamos perante  uma  exaltação  aporética  da  liberdade  que  tem   como   resultado  a  sua   auto-negação e, em última análise, a impossibilidade de um mundo ético e moral.

A forma concreta da mediação entre o projecto da liberdade e a memória das aquisições do passado não se pode determinar a priori , nem é redutível a uma fórmula teórica. A sua realização é eminentemente prática: resulta de um trabalho de avaliação que ocorre no plano concreto da vida quotidiana. Só a vontade dos homens, em cada momento e perante circunstâncias concretas, determina os limites desta mediação e a forma concreta da liberdade.
 

Liberdade e fenomenologia política

Este carácter prático da liberdade, a íntima referência que mantém em cada momento com as condições concretas do seu exercício coloca o problema da relação entre a ética e a política.

Com o pensamento moderno, esta relação passou a ser considerada como  continuidade necessária:
 "não há, objectivamente, nenhum conflito entre a moral e a política (...) A verdadeira política não pode dar um passo sem antes ter rendido preito à moral, e embora a política seja por si mesma uma arte difícil, não constitui no entanto arte alguma a união da mesma com a moral; pois esta corta o nó que aquela não consegue desatar, quando entre ambas surgem discrepâncias " (Kant, 1795-6: 162-4).

O vigor desta formulação foi entretanto posto em causa pelas visõas mais pessimistas que, em nome do niilismo ou do relativismo ético, negam qualquer continuidade entre a moral e a política.

A hegemonia de uma racionalidade técnico-científica a todos os níveis da vida social foi a principal responsável pelo descrédito que se foi instalando. Mas entre os que assumem a crítica da racionalidade instrumental existem diferenças fundamentais: de um lado, os que enveredam por uma crítica radical da razão e, assim, recusam liminarmente a hipótese de uma racionalidade no domínio da ética; de outro, aqueles que coinsideram que a moral política universal deve poder estabelecer-se com base numa racionalidade própria, distinta daquela que governa as relações com o mundo dos objectos físicos.

É nesta linha que o tema kantiano do Estado Mundial dá lugar, no novo transcendentalismo, à República Universal fundada já não nas leis da liberdade individual, mas na lei da comunidade - a comunidade unificada pela norma ética fundamental da comunicação, presente em todo o contexto socio-histórico e sempre subjacente à produção dos valores culturais (cf. Apel, 1972: 341 e sgs.). Mas a racionalidade ética assim definida como razão comunicacional  arrisca-se a apresentar um valor puramente metodológico: a partir do princípio supremo da não-violência, todos os conteúdos normativos podem aí ser acolhidos; e, deste modo, nenhum contributo significativo é adiantado quanto aos princípios constituintes do universo socio-estatal com ambições planetárias. Esta incapacidade em acrescentar qualquer dado relevante à determinação dos conteúdos normativos é o resultado de uma atitude céptica relativamente ao princípio da liberdade.

Perante estas condições adversas, a convicção de um "Estado de  cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão as disposições originárias do género humano"  (Kant, 1784: 35) dá hoje lugar à interrogação sobre as possibilidades da sua construção. Que condições poderão tornar possível este reino dos fins? Como realizar a federação da paz - "( foedus pacificum), que se distinguiria do pacto de paz ( pactum pacis), uma vez que este procuraria acabar com uma guerra, ao passo que aquele procuraria  pôr fim a todas as guerras e para sempre " (Kant, 1795-6: 135) -,  na qual o direito racional se tornará determinante não apenas ao nível das relações entre os indivíduos, mas também das relações entre  as nações e do indivíduo consigo mesmo (a reconcilciação do legalismo do cidadão e do cosmopolitismo do homem)?

Quando este tema surgiu, há dois séculos atrás, pouco mais podia ser que mero exercício especulativo, resultado de um raciocínio rigoroso sensível às questões da razão prática, mas sem qualquer realidade política significativa que o sustentasse . Hoje, a situação é  diferente, mas nem por isso menos equívoca quanto à possibilidade de uma convergência mundial dos Estados. Tanto no plano político, como no económico, presistem factores de divergência entre os Estados e a situação geral de instabilidade manifesta tendência a perpetuar-se. Todos os grandes  acontecimentos mais recentes da política mundial dão a perfeita imagem desta ameaça permanente.

Mas nem por isso o tema perde actualidade, seja em virtude das  formas concretas que o configuram, ao nível dos diversos dispositivos institucionais supranacionais (as organizações internacionais, o Direito internacional ou, simplesmente, a diplomacia regular); seja, ainda e sobretudo, em virtude do horizonte de sentido que cria - algo que a realidade factual ainda não materializa, mas que preenche o imaginário do discurso político com a discussão da "ordem mundial" (a sua necessidade e possibilidades).

Aprofundar este debate pode ser uma excelente oportunidade para o discurso ético, para o libertar da pura especulação filosófica e projectá-lo enquanto investigação da fenomenologia política: procurar a realidade sensível da ética, presente na forma política concreta das relações sociais, quer no interior do Estado, quer nas relações entre os Estados. É, também, a possibilidade de mobilizar os contributos das outras ciências sociais para reencontrar, no plano concreto da vida social, a liberdade enquanto princípio estruturante dos contextos comunicacionais, da acção humana em geral e das relações políticas, em particular.

Quando alguns dos mais ameaçadores sinais da instabilidade internacional tendem a esbater-se e, assim, torna-se mais concreta a possibilidade de uma ordem mundial de paz, convém no entanto não esquecer um obstáculo fundamental que continua a manter distante esse objectivo: as diferenças entre os homens. Diferenças que dizem respeito à especificidade cultural dos povos e, mais determinantes, as diferenças relativas às condições de desenvolvimento e às possibilidades de modernização.

O  modelo de desenvolvimento vigente proporcionou condições nunca antes igualadas, mas no seu património não podemos contabilizar apenas sucessos: a nível mundial, a diferença de condições de vida entre os povos nunca foi tão grande como na actualidade - e isto mesmo dando como seguro que todos terão entretanto recolhido algum benefício relativo.

Os contornos mais imediatos deste problema são , naturalmente, de ordem económica, relacionam-se com a gestão da dívida mundial e, muito em particular, com a sua lógica paradoxal. Mas a imposição desta lógica não depende apenas de factores económicos, é antes o resultado de um quadro institucional que governa as relações económicas mundiais, no qual prevalecem as políticas liberais, muito em particular no que diz respeito à administração do crédito.

Os ensinamentos que as democracias ocidentais recolheram da resolução das suas crises económicas internas nunca chegaram a encontrar aplicação no plano das relações mundiais. Não espanta, pois, que , nos nossos dias, os factores de crise mais ameaçadores do Mundo Ocidental já não se apresentem como ameaças de disrupção no interior de cada sociedade, mas antes reapareçam a uma outra escala, ao nível das relações internacionais.

Nas relações económicas mundiais, os países mais desenvolvidos, com posições de força neste domínio, não assumiram as vantagens do modelo político que internamente há muito adoptaram: o Estado Social. Este modelo constituiu a resposta política às condições de desenvolvimento menos favoráveis da economia capitalista, tendo possibilitado, nomeadamente, a transição do capitalismo liberal para o capitalismo organizado (cf. Habermas, 1973: 76-88).

A hipótese em discussão é pois a seguinte: a filosofia do Estado Social transposta ao nível das relações mundiais entre os Estados pode incorporar um princípio de responsabilidade capaz de responder às ameaças de instabilidade e, nomeadamente, ao problema mais urgente da dívida mundial.

Mas de que forma concreta se pode materializar esta filosofia? E até que ponto esta é uma verdadeira possibilidade de consagração da ética em termos cosmopolíticos?

Num momento em que a crise do Estado Social é um pouco por todo o lado reconhecida, mesmo que as intenções dos críticos não sejam concordantes, qual o grau de credibilidade desta hipótese? Quais as possibilidades  deste modelo no que diz respeito à realização de uma nova ordem mundial?

As dúvidas são tanto mais legítimas quando reconhecemos que o esgotamento do modelo do Estado Social se ficou em larga medida a dever à utilização indiscriminada do medium poder. Utilização perniciosa que, à custa da administração e burocratização generalizadas, procurou dar uma resposta unilateral às necessidades sociais de regulação, com o sacrifício da solidariedade e a repressão dos contextos comunicacionais de vida. Trata-se de um poder arrogante e expansivo, que assume a forma de controlo administrativo da vida social nas suas múltiplas dimensões e dá lugar a "uma nova 'economia 'de poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e  'individualizada 'em todo o corpo social " (Foucault, 1977: 8).

Não pode ser, pois, esta versão do Estado Social que se pretende reeditar no plano das relações internacionais. O seu princípio não é a liberdade nem uma ordem ética racional, mas, pelo contrário, a violência. Quase imperceptível, esta violência acondicionada e suavizada não é por isso menos real, pois se " as deformações de um mundo da vida regulamentado, desmembrado, controlado e protegido são certamente mais sublimes que as formas evidentes de exploração material e  empobrecimento, os conflitos sociais interiorizados e repercutidos sobre o espírito e o corpo  não são por isso menos destrutivos " (Habermas, 1985: 121).

O pleito em torno da liberdade que se faz ouvir no interior das democracias ocidentais tem assumido a crítica frontal do modelo de Estado vigente.  O interesse por certos temas políticos ainda há pouco tempo considerados esquecidos, como sejam a categoria hegeliana "sociedade civil" e a dicotomia público/privado, é sintomático da crise do modelo político vigente. Os apelos à "libertação da sociedade civil" são a voz de anseios e insatisfações em relação à politização acentuada da sociedade - a politização realizada como organização sistémica dos diversos domínios da actividade social, e que foi conseguida à custa da desintegração da sociedade civil.

É indiscutível que esta politização da sociedade civil, levada a cabo de forma consequente pelas democracias ocidentais após a última Grande Guerra, permitiu responder a problemas cruciais do desenvolvimento, constituindo nesta medida um marco assinalável tanto em termos económicos como políticos. Mas, a par destes sucessos, ela representa também um compromisso com elevados custos. O seu êxito não pode ser dissociado do esgotamento das energias utópicas, da inibição (e até repressão) de formas vitais de subjectividade e de um embotamento generalizado da capacidade crítica da sociedade: " ao pretender realizar as bases sociais da igualdade que o Estado Liberal apenas pressupunha, o Estado Social tende a fazer do indivíduo, do sujeito de acção política, um objecto de acção administrativa " (Ferry, 1987: 547).

Não é, pois, de estranhar que o apelo à sociedade civil que volta a fazer-se ouvir traga as ressonâncias de uma liberdade que se viu sacrificada. A liberdade que não se pode exprimir no quadro restrito da participação política muito formal das democracias de massa, onde " um poder organizado pré-existente se enquista  e bloqueia os componentes menos organizados ou os mais recentemente  organizados da sociedade civil " (Weiner, 1987: 269). É a liberdade que se pretende reabilitada para dar um novo sentido à prática emancipatória da sociedade civil, e que o Estado só por si nunca poderá incarnar.

Encontramo-nos em plena vivência de um processo com contornos  ainda muito imprecisos e cujas consequências são motivo de aberta discussão. Mas não será arriscado desde já adivinhar que nos encontramos perante um potencial factor de evolução da nossa modernidade, pois é em torno deste debate que se estão a definir linhas de rumo para o futuro, com profundas implicações nos diferentes níveis sociais e planos de existência.

Tudo isto torna este tema aliciante e justifica a sua extrema importância no âmbito da teoria da sociedade. Não é objectivo deste artigo cotejar as diferentes posições presentes neste debate, nem tão pouco explorar as implicações de cada uma delas.A partir do problema enunciado - a construção de uma ética universal com função política determinante na reestruturação das relações internacionais -, procurarei simplesmente, para concluir, avaliar em traços gerais um modelo alternativo de Estado Social, construído com base no princípio comunicacional e cujo sentido ético mais profundo lhe advém do respeito pela liberdade, que guarda como o seu bem mais precioso.

A viabilidade desta alternativa depende da sua capacidade em afirmar um princípio de responsabilidade ao nível das relações internacionais. A inspiração mais óbvia deste princípio encontra-se no modelo do Estado Social, mas a presente situação de crise deste modelo exige uma profunda reavaliação crítica: se o seu princípio é adequado, o mesmo não se poderá dizer da sua forma.

As aporias da actual forma de Estado Social são imediatamente transpostas do plano interno ao externo, com a ameaça de um conflito eminente entre o princípio da solidariedade das nações e o da soberanis dos Estados - tema hoje da maior actualidade no cenário europeu, quando se discutem, entre infindáveis hesitações, os próximos passos da unidade comunitária. A "ordem gerada" imposta pelo Estado Social - por oposição à "ordem natural" do Estado Liberal - tem por base um conjunto de "novos direitos" (solidariedade, cooperação, desenvolvimento) e mecanismos originais de intervenção internacional (políticas de crédito, distribuição de rendimentos,etc.) que resultam inevitavelmente num hipostasiar do princípio da solidariedade, realizado à custa e com o sacrifício da soberania dos Estados.

O conflito presente no plano interno dos dois grandes modelos políticos até há pouco vigentes - o "modelo ocidental" e o "modelo de Leste" -, o conflito entre a autonomia individual e a solidariedade colectiva que nenhum dos modelos conseguiu  solucionar satisfatoriamente (cf. Apel, 1972: 355-8), vê-se assim transposto ao nível das relações internacionais.

Como preservar, então, o princípio da responsabilidade nas relações entre os Estados sem sacrificar a soberania de cada um deles? Como estabelecer, ao nível das relações mundiais, uma articulação democrática entre as constelações do particular e do universal?

A possibilidade de uma ética da comunicação enquanto Moral Universal passa pela reavaliação da forma do Estado Social - o "Estado Social tornado reflexivo", cujo principal objectivo será reequilibrar os recursos disponíveis para satisfazer as necessidades sociais  de  regulação,  nomeadamente  através  do   desenvolvimento  da   " força   socio-
-integrativa da solidariedade  (...) contra a  'força ' dos outros dois recursos de regulação: o dinheiro e o poder administrativo" (Habermas, 1985: 126).

No plano das relações internacionais, este modelo de Estado Social deve poder afirmar um novo ideal de legitimidade para a ordem mundial. Já não uma "ordem natural" ou uma "ordem gerada", mas uma "ordem concertada" que se desenvolve segundo o modelo comunicacional e procura conjugar de forma positiva a solidariedade e a soberania (cf. Ferry, 1987: 549-53). Para tal ser possível não basta afirmar o carácter fundamental da norma ética da comunicação. É necessário acrescentar-lhe o valor insubstituível da liberdade: a liberdade humana que não é redutível a qualquer a priori, nem mesmo o comunicacional.

A superioridade da norma ética da comunicação não advém do seu pretenso valor transcendental, mas deve afirmar-se como uma vantagem concreta do exercício da comunicação. Uma prática contingente cujo sucesso não é independente da vontade dos homens e da sua capacidade de dar uma forma real à comunidade ideal de comunicação. E isto só é possível a partir de um acto de liberdade: o de experienciar na prática quotidiana uma nova forma de racionalidade, alternativa à racionalidade instrumental ou estratégica. Nova racionalidade que é também um modo original de encarar a realidade social  e cujas vantagens devem sempre poder ser confirmadas empiricamente.

É a liberdade que dá forma sensível à norma ética da comunicação: define as suas condições concretas de possibilidade, a sua realização objectiva a partir de conteúdos que projecta na discussão pública.

Encarada no plano individual, a liberdade é o testemunho da autonomia do sujeito. Sinal de vitalidade da esfera privada , sem a qual o espaço público não passa de uma quimera - torna-se um puro domínio de funcionalidade, " de cálculo instrumental, objectividade científica, causas e efeitos ", sem lugar para a acção moral e, assim, a imagem perfeita da  "crise de cidadania e dos valores humanos democráticos dos quais a cidadania é a expressão prática " (Brown, 1987: 38 e 40).

Mas, por outro lado, a liberdade não pode ficar agrilhoada à esfera privada e à pura intimidade, sob pena de perder o seu sentido ético, tornar-se apolítica e, assim, ser também um sinal da morte da cidadania. Deve poder assumir uma dimensão pública, um exercício colectivo que influencia nomeadamente as relações entre os Estados , para os quais a liberdade é a manifestação e a forma concreta do exercício da sua soberania. Por isso ela constitui um recurso indispensável da ética da comunicação: permite mediatizar o princípio da solidariedade, próprio da norma comunicacional, através do princípio da autonomia (do indivíduo ou da soberania dos Estados). A reconciliação do geral e do particular pode finalmente realizar-se sem o sacrifício de qualquer dos pólos, antes colocando-os em íntima relação, pressupondo-se mutuamente num exercício dialéctico de articulação que se joga na práxis quotidiana.

O valor fundamental da liberdade esconjura a ética da comunicação do espectro de um certo absolutismo que está associado à ideia de uma fundamentação última da razão. O perigo da neutralização do conceito de "homem" pelo de "cidadão", ou o de absorção do social pelo político, fica afastado quando o lugar  de uma esfera privada autónoma é preservado; e, como refere Ferry, isto não significa que a " Pragmática deve renunciar a  apresentar o seu objecto próprio: a comunicação como norma universal última  (...) a existência de uma esfera privada autónoma deve, ela própria, efectuar um reconhecimento público fundado discursivamente, de modo que o princípio da ética comunicacional se situe bem no centro da fundamentação  teórica  de  toda a legitimidade " (Ferry, 1987: 560).

Sem esta mediação prática da liberdade, a ética da comunicação permanece um princípio abstracto, sem possibilidade de influenciar objectivamente a acção social ou  contribuir para a realização de uma formação democrática da vontade em termos discursivos. Como mediatização racional da esperança, a liberdade humana salvaguarda a integridade do projecto de emancipação, dá um sentido reflexivo e crítico à acção social: a consciência de uma possibilidade de intervenção e da criação do novo a cada momento, sem os condicionalismos de uma relação abstracta com o tempo ( a apologia reificante do presente, a nostalgia do passado ou a escatologia do futuro).

A liberdade é, também, uma nova possibilidade para a razão. Permite superar o antagonismo entre a razão e o sentimento, criado por determinadas condições do desenvolvimento social - "quando a razão é pura racionalidade funcional  das instituições e quando a emoção é apenas o sentimento subjectivo dos indivíduos, então a razão e o sentimento divorciam-se não apenas entre si mas também dos elevados princípios que dão a cada um um sentido mais substancial " - e, assim, dá uma nova oportunidade ao projecto de emancipação, entendido " não como a libertação dos indivíduos da sociedade mas como a redenção da sociedade da atomização " (Brown, 1987: 52).

Para a ética da comunicação, a liberdade como princípio mediador da norma fundamental é, por último, um recurso da máxima importância para definir consistentemente uma alternativa política ao pensamento neo-conservador: reconhece a contingência e a imprevisibilidade do devir humano, as divisões e a conflitualidade intrínseca  do  tecido  social,  mas  daí  não  retira  qualquer   conclusão   quanto  à   não-racionalidade da acção do homem. Pelo contrário, este "princípio da realidade" dá um carácter de lucidez à fundação da esperança: à não-racionalidade do mundo, a acção humana poderá sempre dar uma configuração diferente, mais favorável aos desígnios da realização e da emancipação do homem.

A oportunidade da liberdade joga-se em todos os momentos da acção humana e, por isso mesmo, a sua exigência é mais intensa e decisiva ao nível da própria comunicação, na medida em que esta constitui o mecanismo fundamental (e mais democrático) de coordenação da acção.
 

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