Cultura e industrialização / Racionalidade e instrumentalismo
 João Pissarra Esteves, Universidade Nova de Lisboa
 (in, Raul Antelo et all (org.s), Declínio da Arte, Ascensão da Cultura, Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1998)

O tema que motivou esta reunião científica e que figura no seu próprio intitulado evoca explicitamente um conceito e uma das teorias sociais mais marcantes do nosso século: a indústria da cultura e a Teoria Crítica da Sociedade. Aqui perpassa a evocação do ilustre círculo intelectual constituído a partir dos anos 30 em torno do Instituto de Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung ) e celebrizado, entre outros motivos, por um trabalho laborioso e de grande originalidade sobre os problemas da cultura. Este círculo veio a ficar conhecido por Escola de Frankfurt e dele se destacam dois nomes principais: Theodor Adorno e Max Horkheimer - cabendo referir que a notabilidade  tanto de um como do outro transcendeu largamente a sua dedicação à temática cultural.

Mas a realização deste evento que aqui nos reune - neste momento, neste local e com os propósitos enunciados - sugere-me ainda outras evocações. Desde logo, a do percurso sinuoso e pleno de vicissitudes do próprio conceito «indústria da cultura», ao longo de todos estes anos até aos nossos dias: as suas múltiplas derivas, enquanto influência determinante de escolas e autores os mais diversos, que não o deixaram inalterável - permaneceu mas transformou-se, adquiriu novos contornos, mais ou menos distintos dos originais consoante os casos e as circunstâncias.  Por outro lado, ressoa também aqui uma profunda interpelação crítica do conceito: esta uma  deriva com um sentido bem preciso - a reapropriação crítica da noção de indústria da cultura nos nossos dias, isto é, nas condições contemporâneas de produção, de  difusão e de apropriação simbólica dos bens culturais.

Se a tudo isto juntarmos o facto de agora se completarem 50 anos da publicação do célebre texto «A indústria da cultura: o esclarecimento como mistificação das massas» 1,   temos   reunidas   as  condições  necessárias  que  permitem   fazer   deste
encontro um acto comemorativo pleno de significado. É a este desafio que me proponho: retomar a «velha» ideia da indústria da cultura para ajuizar da sua vitalidade no limiar do séc. XXI. Quais as suas virtudes e limitações para pensar o fenómeno da cultura na actualidade?
 

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A ilustração do auditório dispensa qualquer recapitulação, mesmo que sumária, do argumento explanado pelos autores sobre a indústria da cultura e permite que me situe desde já no desafio que acabei de enunciar.

É do conhecimento geral que o êxito da Teoria Crítica está associado, em grande medida, à sua extraordinária capacidade de influência, durante longo período, sobre as mais variadas escolas e autores; a partir dos anos 60, porém, ela tornou-se um foco praticamente incontornável das grandes polémicas do pensamento social. A partir de então, todas as vertentes da Teoria, incluindo a  concepção de cultura, ficaram sujeitas a um cerrado fogo crítico.

Se a ponderação e a «justa medida» constituem referenciais inquestionáveis do trabalho científico, todos sabemos, porém, que a história está repleta de contra-exemplos. Temo que a situação presente da teoria da cultura seja um  destes casos: o impulso que até há bem pouco tempo promoveu a apologia quase cega da ideia de indústria da cultura parece dar lugar, nos últimos tempos, à sua impiedosa rejeição. Do meu ponto de vista, a apreciação em termos críticos desta teoria é indispensável, mas isso não significa (nem implica) a sua refutação liminar. Pelo contrário, a primeira apreciação que se me oferece neste momento em que as «indústrias culturais» tanto parecem entusiasmar a nossa sociedade (mesmo os meios intelectuais e académicos) é de reconhecimento da validade em termos gerais e do grande rigor da teoria frankfurteana da cultura. Esta apreciação respeita a tudo aquilo que na nossa cultura se inscreve com as marcas de componente industrial e, em particular, de uma «industrialização pesada», isto é, toda a cultura que se encontra associada ou é mesmo directamente comandada pelos grandes interesses económicos e empresariais.

Duvidosa, muito duvidosa mesmo parece-me já a pretensão de reduzir a cultura nos nossos dias a uma mera indústria da cultura - aqui parece-me que a Teoria Crítica assume uma abstractização e procede a um nivelamento grosseiro da experiência.

Apresentarei de seguida, ainda que sumariamente, três considerações reflexivas que se destinam a reponderar a teoria da indústria da cultura nos seguintes aspectos: as suas conclusões (que considero excessivas), o diagnóstico da situação presente (que peca por irrealismo) e o prognóstico quanto ao futuro que se avizinha (pouco plausível).
 

A indústria da cultura nos enlaces da história

A primeira consideração põe em evidência uma limite da teoria da indústria da cultura que resulta do que podemos considerar um equívoco histórico. Esta teoria teve a sua génese, como é sabido, nos anos 40 e as marcas particulares dessa época impregnam-na profundamente. Por um lado, o facto da industrialização da cultura então e pela primeira vez assumir proporções esmagadoras - correspondentes a transformações cruciais de ordem geral das economias ocidentais (o capitalismo desenvolvido). Por outro lado, o facto de estas novas indústrias despontarem numa situação de praticamente total dependência ou do poder político (para o que muito contribuiu a situação de guerra na Europa) ou do sistema comercial capitalista - duas realidades que tanto Adorno como Horkheimer conheceram de perto entre a fuga da Alemanha e o exílio americano. Tanto a absoluta novidade da industrialização da cultura, quanto estes contornos particulares que o fenómeno assumiu parecem ter pesado de uma forma esmagadora na consciência dos teóricos de Frankfurt, influenciando determinantemente as suas ideias.

O pensamento não pode suspender por completo a temporalidade da sua  existência, mas deve ser capaz de assumir com desassombro os riscos desta sua própria limitação. Mas não é isso o que acontece com a marca temporal da teoria da indústria da cultura: o seu grande equívoco político está, precisamente, na absoluta elisão épocal, no facto de se apresentar com um carácter transhistórico ou mesmo ahistórico - correspondente, aliás, a uma secreta hostilidade de Adorno para com a história, que hoje em dia é amplamente reconhecida pela grande maioria dos seus comentadores. Se tivermos em conta o longo período da vida dos dois autores e o facto de que durante o mesmo nenhuma reconsideração significativa da teoria teve lugar, aquilo que à primeira vista poderia simplesmente ser atribuído a uma certa excitação teórica, passa a assumir contornos mais claros de algum dogmatismo.

Esta limitação da teoria da indústria da cultura adquire,  nos nossos dias, maior nitidez, em resultado das grandes transformações que tiveram lugar nesta área ao longo dos últimos anos. É certo que nem todas estas transformações puderam ser observadas por Adorno e Horkheimer em vida, mas muitas houve que foram do seu conhecimento e, apesar disso, não mereceram a mínima consideração, nada pesaram no seu pensamento. Sobretudo a partir dos anos 60, com múltiplas manifestações expressivas a que habitualmente se dá a designação de  fenómenos de «contra-cultura», assistimos à explosão de uma miríade de diferenciações, de múltiplas ambivalências e contradições nas formas e nos conteúdos dos bens culturais oriundos dos media modernos (aí directamente gerados ou por eles postos a circular)2. Estamos, portanto, perante uma realidade do mundo da cultura que contradiz, afinal, a suposta homogeneização absoluta postulada pela crítica da indústria da cultura: nem toda a cultura se industrializou e, sobretudo, não se industrializou nos moldes uniformes que a primeira versão da Teoria Crítica imaginou. A linha de fronteira entre «arte» e «cultura» está longe de ser tão nítida como Adorno e Horkheimer imaginaram, assim como o «império da negação» não é também um  absoluto da arte.
 

Cultura e mediação tecnológica

A segunda consideração diz respeito às lacunas da teoria da indústria da cultura em termos de uma concepção consistente dos media. Como é evidente, o fenómeno de industrialização da cultura corresponde basicamente à mediatização da cultura 3, isto é, ao seu processamento através de dispositvos tecnológicos de mediação simbólica. Porém, este facto não foi tomado em devida conta pela teoria: os media são  aí  considerados  como  uma espécie de «black box» que mecanicamente opera a
transformação de inputs  em outputs  - da arte os media fazem «cultura» e da contestação produzem resignação. O funcionamento propriamente dito dos media não é objecto de questionamento, nem tão pouco se chega a constituir uma concepção consistente da sua economia política -  embora esta seja, à primeira vista, a única dimensão considerada pelos autores.

A dependência dos modernos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica em relação aos dois principais media funcionais de troca das sociedades desenvolvidas - o dinheiro e o poder - condiciona fortemente a sua existência e todas as suas capacidades performativas, mas não as esgota. Estes dispositivos, designados em geral por «mass media», tal como a indústria da cultura, a comunicação e a cultura de massa em geral dispõem de potencialidades e recursos que não se esgotam no espartilho (económico-político) dos media funcionais referidos. Isto não implica negar uma marca de homogeneização profunda que hoje em dia percorre o universo simbólico das nossas sociedades (e que a crítica frankfurteana muito bem sublinhou), mas deve também deixar lugar ao reconhecimento de que, a par desta tendência, a cultura dos nossos dias continua a evidenciar os vestígios contraditórios do universo simbólico da modernidade, persistindo em exprimir uma cultura autónoma que se afirma como irredutível aos imperativos sociais próprios das outras esferas de validade da vida social e da experiência simbólica - sejam elas a economia, o trabalho, a política ou a ciência 4.

Isto significa que, hoje em dia, não é aceitável uma teoria da indústria da cultura ignorante (ou negligente) da realidade dos media, em termos não só da sua economia-política, mas também da sua realidade simbólica de ordem mais geral. A economia-política dos media é indispensável, mas só por si não constitui uma teoria geral dos media.

Fenómenos   como  os  momentos  de  desejo  ambivalentes  que  atravessam   as formas simbólicas em circulação na nossa cultura, as articulações complexas de esperança e de ansiedade, as formas utópicas de rebeldia e de resistência que impregnam os bens culturais de uma forma geral; todos estes fenómenos só poderão ser compreendidos na sua plenitude por uma teoria da cultura que se encontre convenientemente sustentada por uma teoria dos media. A ausência deste suporte essencial condenou Adorno e Horkheimer a uma espécie de autismo teórico que os impediu de dar conta destes fenómenos (ou sequer de reconhecer a sua existência). É a partir de uma concepção da mediação social que o fenómeno da cultura pode ser pensado para além da estrita lógica da industrialização: no contexto essencial do universo simbólico de um Mundo de Vida racionalizado em que a própria cultura tem o seu enraizamento.

Como veio a reconhecer um dos últimos discípulos de Adorno, o diagnóstico que estabelece o desenvolvimento linear de um público de «debate de cultura» a um público de «consumo da cultura» é demasiado redutor 5, subestima grosseiramente o desenvolvimento de capacidades críticas que se encontram associadas às novas manifestações culturais - de um público que é mobilizado por estas manifestações de  forma muito complexa, não apenas de acordo com os padrões de uma recepção conformista (submissão à estrutura da oferta), mas também através de outras estratégias mais afirmativas, interpondo as suas próprias interpretações ou combiando umas e as outras de forma imprevisível 6.

Se cabe aqui falar de um novo equívoco político da Teoria Crítica, isso deve-se tanto ao desconhecimento de determinados desenvolvimentos entretanto registados no mundo da cultura (com os quais, no entanto, os autores conviveram), quanto a uma atitude apriorística da sua parte de rejeição in limine  de toda e qualquer forma desta nova cultura. Assim se auto-exclui a possibilidade de um conhecimento mais específico e rigoroso dos bens culturais, das suas características intrínsecas e das condições sociais concretas da sua existência. Terão sido as paixões estéticas de Adorno   -   que   ele   proclama   como   «arte  autêntica » ,   nomeadamente  as  suas preferências  musicais  e literárias (Schonberg, Kafka, Beckett)  -  a par da nostalgia de uma carreira artística precocemente abandonada em Viena que, mais que tudo o resto, deram forma à Teoria Crítica da Cultura. Como o próprio veio a confessar: «qualquer ida ao cinema deixa-me, contra toda a minha vigilância, estúpido e pior do que era antes 7» - estado de espírito bem revelador de uma relação puramente temperamental e emotiva com os novos produtos culturais, incompatível com uma  reflexão serena ou  com um trabalho de análise rigoroso.
 

Cultura e práticas de recepção  - a teia dos efeitos

O problema da recepção, já antes aflorado, merece uma consideração mais detalhada, dada a  sua posição determinante (embora essencialmente implícita) na teoria da indústria da cultura. Quer as considerações sobre a intencionalidade industrial dos bens culturais, quer as ilações quanto aos efeitos destrutivos destes mesmos bens sobre o público assentam numa concepção precisa e peculiar do acto de recepção: uma prática puramente passiva, de supremacia absoluta dos emissores («Indústria») sobre os receptores que, em última análise, conduz à própria desintegração destes enquanto público e à completa neutralização da sua força crítica.

À luz do que hoje conhecemos sobre o problema, que entretanto conheceu desenvolvimentos muito significativos por parte de diferentes áreas de pesquisa, o mínimo que podemos dizer quanto à posição defendida por estes teóricos alemães é que estamos perante uma mistificação: a  ideia de recepção  é, porventura, o aspecto mais frágil da sua teoria da indústria da cultura, num nível que se poderá considerar mesmo impróprio da justa dimensão que esta teoria adquiriu. A questão da recepção dos media liga-se directamente com a problemática dos efeitos, que é recorrente nas pesquisas sociológicas da comunicação ao longo das últimas décadas; neste quadro, o lugar que cabe à primeira versão da Teoria Crítica é o de  um nível de análise muito primário, no âmbito do que ficou conhecido como uma teoria hipodérmica dos efeitos dos media: recepção das mensagens estritamente individualizada e ausência  total de autonomia por parte de cada um dos membros  das  audiências,  ou seja, a sua impotência absoluta perante os efeitos da propaganda 8.

Já no texto de 1947, dado à estampa por uma discreta editora de Amesterdão, a Querido, e assinado pelas duas figuras mais eminentes da Escola de Frankfurt 9, esta concepção singela da acto de recepção está presente e perpassa por todas as ideias aí explanadas sobre a questão da cultura nos nossos dias. Mas é num outro texto posterior, este assinado apenas por Adorno, que de forma mais explícita a questão da recepção e dos efeitos da comunicação é apresentada claramente dentro dos «parâmetros da hipodermia», tendo como referência (e isso é sintomático) a televisão; a dado passo é referido que «as várias camadas [de significados] sobrepostas em diferentes graus de manifestação ou ocultação são utilizadas  pela cultura de massa como meio tecnológico de "manejar" o público » e, precisando melhor, «a indústria cultural apropriou-se do conceito psicanalítico da personalidade formada de muitas camadas e utiliza-o para apanhar  o consumidor no laço tão completamente quanto possível e colocá-lo psicodinamicamente ao serviço de efeitos premeditados  10». As referências à indústria da cultura como propaganda já não eram nenhum segredo, mas aqui explicita-se definitivamente a  lógica da manipulação que passou a presidir ao funcionamento da cultura :  «A  [sua] mensagem oculta pode ser mais importante que a evidente, visto que a primeira escapa aos controlos da consciência, não é "trespassada com o olhar", nem desviada pela resistência das vendas, mas tende a penetrar a mente do espectador  (...) Isto coaduna-se com a suspeita amplamente partilhada, embora difícil de ser confirmada por dados exactos, de que a maioria dos espectáculos de televisão [e a indústria da cultura em geral] objectiva produzir ou, pelo menos, reproduzir, a facticidade , a passividade intelectual  e a ingenuidade  que parecem ajustar-se aos credos totalitários 11 ».

O estudo das práticas de recepção de mensagens começou por tomar forma como continuidade da antiga tradição académica vocacionada na interpretação de obras literárias, mas a partir de determinado momento o seu âmbito alargou-se: passou a contemplar o vasto campo das mensagens dos media e, além disso,  centrou-se na própria figura do receptor (cujo estudo passou a ser objectivamente possível nestas mensagens, ao contrário do que se verifica em relação às obras do passado 12).
Por outro lado, as pesquisas sobre a problemática dos efeitos registaram também um desenvolvimento significativo ao longo dos últimos anos (sobretudo no âmbito da sociologia da comunicação e dos media), sendo  de assinalar a mudança de paradigma que teve lugar na década de 70 e que proporcionou o aparecimento de diferentes propostas inovadoras13. Todos estes desenvolvimentos vieram colocar em situação difícil a teoria da indústria da cultura (na sua versão original), constituindo uma clara refutação dos seus pressupostos simplistas quanto aos efeitos dos media, à forma de relacionamento que os receptores estabelecem com as suas mensagens e aos mecanismos simbólicos envolvidos no acto de recepção.

Hoje em dia, mais que nunca, a posição da Teoria Crítica a este nível apresenta-se insustentável, em resultado não só dos conhecimentos científicos entretanto adquiridos ,  mas  também  da  própria  realidade  cultural  presente .  No  limiar   da
viragem do século, se por um lado é indiscutível o peso extraordinário de uma  indústria da cultura «à moda antiga» (que podemos mesmo considerar que se terá reforçado, a par do desenvolvimento da economia capitalista organizada), haverá também que reconhecer a presença marcante de um debate vivo em torno dos media, da comunicação e da cultura em geral.

Não é apenas conformismo o que hoje em dia se gera à volta da cultura. Mesmo que sob expressões minoritárias ou muito intermitentes, o universo da cultura contínua a constituir-se como um espaço agonístico fundamental, onde se confrontam experiências simbólicas muito diferentes, quer ao nível da recepção dos bens culturais, quer ao nível da sua produção e usos, possibilitando a constituição de formas originais e enriquecedoras de sociabilidade e de agregação dos indivíduos (novas políticas de identidade e de reconhecimento). Apesar de muitas contrariedades e constrangimentos, a sentença capital que a Teoria Crítica ditou para a resistência social esbarra com as novas experiências simbólicas mobilizadas em torno da cultura, oriundas não apenas dos novos media emergentes (as redes informáticas em diferentes escalas, as novas tecnologias de televisão, video ou rádio), mas também dos media mais convencionais, que são objecto de reapropriações simbólicas muito diversas e por vezes imprevisíveis por parte dos indivíduos.

O equívoco político essencial contido nesta sentença traduz uma posição dogmática e racionalmente insustentável da Teoria Crítica (Dialéctica Negativa) em relação à própria Razão. A subtileza, a originalidade e a perspicácia da análise da racionalidade moderna levada a cabo pela Escola de Frankfurt não disfarça, contudo, a perspectiva unilateral (e nessa medida redutora) que ela tem do problema: a razão considerada numa única dimensão (teleológica, instrumental ou técnica) e esquecendo outras vertentes essenciais da modernidade cultural 14.

É este universo complexo, repleto de ambivalências e  tensões, em permanente mutação, apreendido pela Teoria Crítica de forma tão limitada, que fica a constituir para nós o grande desafio em termos de reflexão. Um desafio dirigido também à própria Teoria Crítica (e a todo espírito crítico que persiste em manifestar-se) e que nos permitirá reencontrar o problema crucial da reificação da consciência: não, agora, de uma forma abstracta - a reificação como mera categoria classificatória - mas  a reificação como um caso singular da racionalização do mundo, própria de determinados processos sociais concretos que importa destacar e compreender na sua especificidade.

Ressoa nestas preocupações e neste novo posicionamento face à cultura dos nossos dias uma outra voz proeminente do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (embora oficialmente nunca tenha chegado a ser reconhecida como tal) : a voz lúcida de Walter Benjamin. A sua posição perante as novas formas de arte que então emergiam colide frontalmente com o dogmatismo predominante: às certezas contrapõe inquietações, à condenação sumária prefere a preplexidade. Ao dar conta da alteração objectiva verificada na situação da arte, a sua preocupação é indagar as novas possibilidades que a partir daí se abrem à experiência humana: de que forma «a liquidação do valor de tradição na herança cultural» pode criar oportunidades mais favoráveis de «renovação da humanidade 15»?
 
 

Notas

 1. M. Horkheimer e T. Adorno, Dialéctica de la ilustración , Madrid, Ed. Trotta, 1994, pp. 165-212. A primeira edição sob a forma de livro teve lugar em 1947, embora o texto tenha tido uma publicação anterior fotocopiada de quinhentos exemplares, em 1944.

2. Cf. D. Kellner, «Critical Theory and the culture industries: a reassesment», Telos , nº42, 1985, p.203.

3. Podemos dizer que a indústria da cultura é «parte de uma totalidade abrangente que é a "cultura" dos mass media [..., disseminada] pelo mundo na esteira da difusão do modo de produção do capitalismo tardio» e cuja determinação nos seus aspectos mais essenciais cabe à publicidade - cf. W. Gomes, «Duas premissas para a compreensão da política-espectáculo», Revista de Comunicação e Linguagens , nº 21-22, Lisboa, Cosmos, 1995, pp. 302 e 307.

4. Ao contrário do que a versão radicalizada da Teoria Crítica sugere, «cultura» e «arte» não se excluem nem se substituem uma à outra. O que a racionalização simbólica própria da modernidade inaugurou foi exactamente o contrário: uma mediação complexa entre ambas, em que a arte se assume, por um lado, como uma vertente específica da racionalização cultural geral e, por outro, enquanto recurso próprio dessa mesma racionalização - cf. J. Habermas, Théorie de l'agir communicationnel , vol.I, Paris, Fayard, 1987, pp. 174-176.

5. Cf. J. Habermas, «Further reflections on the Public Sphere», in C. Calhoun (org.), Habermas and the Public Sphere , Cambridge, The MIT Press, 1994 (orig. 1992), pp. 438.

6. Cf. S. Hall, «Encoding / decoding», in S. Hall el al (orgs.), Culture, media, language , London, Hutchinson, 1980, pp. 128 e sgs.

7. T. Adorno, Minima  moralia , London, New Left Books, 1974, p.25.

8. Cf. M. Wolf, Teorias da Comunicação , Lisboa, Presença, 1987, pp. 18 e sgs. Em boa verdade, as concepções dos efeitos totais dos media não chegaram verdadeiramente a constituir-se como uma teoria, em virtude uma certa dispersão intelectual, por assim dizer, e da sua falta de rigor científico; de um modo geral partilhavam um ponto de vista conservador ou saudosista. Se neste aspecto não tem cabimento estabelecer qualquer afinidade substantiva com a Teoria Crítica, pois os pressupostos políticos desta são muito diversos (senão antagónicos), já quanto à lógica de raciocínio, a estrutura é constituída basicamente pelos mesmos elementos: a massa como paradigma da sociabilidade, a explicação psicologizante, a manipulação como referente único dos efeitos e a comunicação como propaganda.

9. Embora a fixação do texto tenha sido baseada em notas pessoais de Gretel Adorno, a partir de conversações dos dois autores e que contaram ainda com a participação de outros membros da Escola, então reunidos na Califórnia (Santa Mónica); no texto sobre a cultura que aqui se discute, sobressai o contributo de Leo Lowenthal - cf. M. Jay, L'imagination dialetique , Paris, Payot, 1977, p. 245.

10. T. Adorno, «A televisão e os padrões da cultura de massa», in B. Rosenberg e D. M. White (orgs.), Cultura de massa , S. Paulo, Cultrix, 1973, pp. 553 (os sublinhados são meus).

11. Ibid. , pp. 551-552 (os sublinhados são meus).

12. Cf. E. Véron, «Les médias en reception: les enjeux de la complexité», Médias Pouvoirs , nº21, Paris, Bayard Press,
1991, pp.166 e sgs.

13. Para uma perspectiva global do novo paradigma, ver: E. Saperas, Los efectos cognitivos de la comunicación de masas , Barcelona, Ariel, 1987.

14. É sintomático que seja um dos autores da actualidade mais directamente comprometido com o projecto crítico (apostado na sua revitalização em novas bases) a apresentar um mapeamento alternativo da racionalidade moderna e a insurgir-se com a perspectiva puramente instrumental e técnica da razão, a qual não faz justiça: «à dinâmica própria da teoria, que não deixa de conduzir as ciências - e a sua auto-reflexão - além  da produção de um saber técnico objecto de exploração; aos fundamentos universalistas do Direito e da Moral que, apesar de tudo , tomaram forma (mesmo que  distorcida  e imperfeita)  nas  instituições dos Estados constitucionais, nos modos de formação da vontade democrática e nos modelos individualistas de formação da identidade; e, por último, à criatividade e à força explosiva das experiências estéticas fundamentais que uma subjectividade libertada dos imperativos da acção teleológica e das convenções da percepção quotidiana retira do seu próprio descentramento» - J. Habermas, Le discours... , op. cit. , p. 136.

15. Cf. W. Benjamin, «A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica», in W. Benjamin, Sobre arte, técnica, linguagem e política , Lisboa, Relógio d'Água, 1992, p. 79