(TESE DE MESTRADO EM FILOSOFIA)
JOSÉ MANUEL VASCONCELOS ESTEVES, UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
1997
1. 1-
Ironia, ma non tropo: definição de ironia
2. 2-
Ironia, dialéctica, retórica e argumentação-os três mosqueteiros, que afinal
também são quatro
3. 3-
Ironia e Negação: -Se non è vero è bene trovato
4- Do celibato à poligamia: ironia e interracionalidade
5- Sujeito e ironia - philosophia certa in re incerta
cernitur
"Je ne sais pas ce que mes pensées pensent"
Francis Jammes
O título
deste trabalho coloca-nos automaticamente na incandescência da questão que ele
pretende abordar: como acoplar ironia e teoria de argumentação? Se é este
macro-objectivo que o anima e o habita, é também nele que se encadearão todos
os aspectos que lhe são implícitos. Deste modo, explorar a relação entre ironia
e argumentação, perpassando, se não mesmo resvalando, para outros aspectos nela
articuláveis, tais como interrogatividade, retórica e dialéctica, é querer
esconjurar uma relação que foi sempre precária, menor e neglicenciada,
voluntária ou involuntariamente, quer na abordagem de uma teoria da
argumentação quer, por igual medida, na de uma concepção da ironia. As razões
para esta desvirtuação são sobejamente conhecidas e prendem-se todas, grosso modo, com a hegemonia asfixiante
imposta por um modelo de racionalidade, invocado por uma auto-fundamentação
rigorosa, que se tornou emblematicamente monograma e monarquia do pensar
filosófico, o que conduziu a uma progressiva desvalorização e secundarização de
todos os domínios do saber que não correspondessem à linhagem desse saber
proposicionalista, hiper-verificado logicamente, garantindo um grau de
consistência sólida a toda a prova. (1)
Na orla
desse núcleo endurecido e petrificado, dispunham-se todos os saberes
secundários, que sobreviviam nas penumbras inquietas da inquisitorial
actividade de um pensar filosófico, augustamente desenvolvido, perante o qual
se exerciam subditamente sub-racionalidades, que traziam no seu seio a
fragilidade e a inconsistência de um pensamento incapaz de se guindar a essa
solidez. De facto, o exercício paradigmático de uma racionalidade cujo
movimento auto-constituinte se dá na própria oposição e degradação gnoseológica
da noção de argumento, cuja probabilidade
deve ceder à provacidade, como é o caso da concepção platónica, faz
inscrever na filosofia uma ilusão, uma cegueira da qual se alimentará até à
exaustão e que só poderá ser acompanhada pela respectiva degradação ontológica
do sensível e do contingente, devido à hiper-valorização extasiante e mística
do metafísico.(2)
É no
âmago deste estigma, rapidamente alastrante e congenitamente permeável nas
múltiplas posturas filosóficas, cuja última evidência ainda é o positivismo
lógico, e que se traduz nas sucessivas e obsessivas "eugenias" de
pensamento fundamentante e fundamental e, por tal, exclusivo de todas as outras
formas, metodologica e contextualmente, de pensar, reduzidas a passos em falso
e a miniaturas acessórias, quando não inúteis e, por isso, des-filosóficas de pensar; é portanto, no seio deste estigma que se
vêm incluir a ironia e a argumentação.
No
fundo, todo este modelo animado e mortificado por uma fustigante ambição de atingir
uma dimensão essencial, fundamental e
universal, da qual constantes e ininterruptas réplicas se sucederam, numa
herança interminável, traz, na sua medula, a sua própria desmesura. A limite
todas essas filosofias vinham e vêm eivadas de um único e absoluto projecto:
acabar com a própria filosofia; anular a renovada, e cada vez mais reaberta,
incisão entre o pensamento e o pensamento, entre o homem e o mundo. É por isso
que todas elas soçobraram nas ruínas apressadas e doentias da sua megalomania
faraónica, como se fosse possível permanecerem embalsamados os conceitos,
subtraídos ao contágio degradante com o mundo do tempo e do sensível.(3)
Ínsito a
isto desenvolveu-se e apregoou-se um modelo epistémico, cuja infalibilidade foi
diversamente pontificada e associada a uma responsabilidade ética global (4),
gerando a monocórdica ideia de que a objectividade, o método e a lógica
garantiriam um saber incólume a todos os embates e combates, na cristalina, e
ainda assim dura, estrutura do diamante. O que se verificou, nos tropeções
múltiplos de uma lapidação do diamante, é que o mesmo foi delapidado e temos
que nos preparar para dizer adeus (5)
a essa racionalidade laboriosamente arquitectada e unificada, descobrindo que
mesmo na sua estrutura se revelam brechas, tensões, dissensões anunciadoras de
uma impossível cooptação vedante e hermética. É evidente que esta orfandade do
paradigma de uma racionalidade da exclusão, que erradicava ou, mais
iluminadamente, ostracizava todos os saberes informes e incapazes de almejar
essa consistência a toda a prova, resultante da pretensa mimesis entre a filosofia, as matemáticas e as ciências da natureza
–a scientia universalis–, mimesis
tendente a uma adaequatio a more
geometrico, que não mais deixou de habitar e alimentar as grandes
filosofias da idade moderna, levou a uma espécie de emulação criadora de
impasses e auto-esgotamentos, que têm o seu desfile nessa série de despedidas
cultivadas às vezes com alguns laivos de ironia.(6)
É dentro
deste contexto, que a ironia desponta sempre nas comissuras mais leves de uma
racionalidade enredada numa lógica que a coloca entre Cila e Caríbdis. De
facto, o que esta racionalidade extremizou foi o seu próprio impasse numa
lógica de opostos e contrários incompatibilizados, gerando permanentes
oposições e contradições entre universal e
particular,abstracto-concreto,verdadeiro-falso,sujeito-objecto,consciência-linguagem
e muitas outras nas quais, patibularmente, todos os sistemas filosóficos
acabaram por se entregar e decapitar. É em consequência disto, da própria
auto-voracidade intrínseca a essa Razão majestática, capaz de debelar todas as
deformidades, banindo, numa engenharia lógica, tudo o que fosse da ordem do
provável e do contingente e garantindo a apoteose da prova e do demonstrativo
conclusivo e, consagradamente, concludente, que a questão da ligação entre
ironia, argumentação e retórica regressa ao foro, e quão apropriada é esta
designação, público do pensamento, expondo-se nessa relação o solo fértil, e
não ácido e árido pela presença da ironia, de uma revitalização e tonificação
da própria ironia, que tinha sido encolhida e reduzida à escala milimétrica e
liliputiana de uma figura de estilo, pretensamente limada de todo o furor
argumentativo que nela se exerce, pois ironizar é sempre argumentar.(7)
Assim, a
partir do azímute destas questões, delinear-se-ão, nesta dissertação, alguns
dos meridianos da relação intrínseca entre ironia, argumentação e retórica,
explorando, por acréscimo, e nos bastidores inevitáveis do problema, a concepção
de linguagem a ela subjacente. Por isso, pretende-se fazer retornar a ironia à
sua verdadeira pátria da qual foi, em certa medida, expulsa, evidenciando que,
neste momento, a ironia só ganha nova pensabilidade na sua verdadeira força e
ímpeto argumentativos, tal como ela assumiu no seu momento inaugural, o
socrático, e do qual, autêntica ironia do destino, nunca mais se recompôs, no
enquadramento de uma racionalidade argumentativa, que não se encandeie numa
alucinante miragem de uma anulação e pacificação do problemático no pensar e no
dizer.
Consequentemente,
já não podemos decifrar a realidade de uma forma sistemática, nesse cismar
obsessivo do racionalismo, mas temos que estar face a nós próprios e ao mundo
de uma forma precária e problemática, da qual a ironia é apurado exemplo.
Perante esta situação, há que reconhecer que o que se perdeu, nessa aposta
(pari) pascaliana, que animou a filosofia, foi muito; mas que só agora
poderemos aprender o gosto de ganhar pouco e de nesse pouco obedecer aos rumores
esquecidos e abusivamente silenciados, que uma racionalidade entregue ao
precário do que pensa ainda pode captar, na dificuldade extrema de entender-se
a cada momento de si mesma na intersecção entre linguagens que já não obedecem
ao modelo autoritário e mono-fundamentado em si mesmo.
Se as
grandes ideias começam por ser escritas em letra maiúscula, passam a ser
escritas em minúscula e acabam entre aspas (8) é porque nesse processo
corrosivo irrompeu um permanente contacto com a minusculidade do argumentativo
assente em validades não formais, que enfraqueceram e impregnaram a
racionalidade e a lógica de uma radicação oscilante e problematológica.
Deste
modo, e perante uma retórica esvaziada da argumentação, como a que foi
cultivada ao longo de séculos (9), a abordagem da ironia tem que ser articulada
a partir da reintegração da teoria da argumentação na retórica, em prol de uma
análise retórica e argumentativa da ironia.
Deste
amplo terreno promanam alguns veios de referência, capazes de delimitar a necessidade
de uma nova concepção da ironia, na sua interligação à argumentação; de
rastrear vários percursos conducentes a essa concepção; de polarizar a ironia
de uma forma ampla, extensiva e intensivamente, com uma racionalidade aberta,
precária e contingente, da qual a racionalidade irónica seria um exemplum e de redefinir a ironia,
passando do seu estado apopléctico subjectivo, exponenciado pelo romantismo,
para uma dimensão intersubjectiva, no jogo entre logos e pathos e enquanto presença de sujeitos a sujeitos.
A
suportar estas linhas de força, intenta-se cartografar alguns dos passos
fundamentais do percurso da ironia, na sua interligação com a retórica e a
argumentação, embora não num sentido histórico-cronológico, o qual se enredaria
nesse labirinto sempre superficial e epidérmico do sucessório, mas projectivo,
ou seja, enquanto integrador e anunciador de um problema ainda em questionação.
Portanto ,mais do que ficar prisioneiro de uma visão globalizante e
pretensamente erudita, arriscar-se-á na elaboração deste trabalho uma
metodologia retórica, argumentativa e, por vezes, irónica, capaz de trazer ao
espírito a própria letra. Alinhado com isto, pretende-se a partir de uma
perspectiva genealógica estabelecer a passagem de uma tropologia à argumentatividade,
sublinhando-se que nela se exerce a retoricidade de toda a linguagem e da qual
a inventio, quer de tropos quer de
conceitos, é a pedra de toque .Assim, e socorrendo-se da sempre intensa
concepção nietzscheana, evidenciar-se-á que por detrás da vertebração dos
conceitos se encontra a relação antitética entre metáfora e ironia, mostrando
que ela é a voluta, a nervura clara da relação entre identidade e diferença.
Deste leit-motiv introdutório e apelatório, a
tessitura do trabalho reflectirá a tentativa de conceber a racionalidade
irónica como o espelho, mais ou menos polido, de uma racionalidade, onde a
discursividade se tricota com o comunicacional e o conversacional, explorando
alguns roteiros, cujas insistência e premência são ineludíveis, tais como
Perelman, Habermas e Rorty. No interior deste trajecto, apontar-se-á para a
necessidade, o apelo de uma nova racionalidade, que dê conta de uma razão como
simulação,–ironia, hipótese e argumento–, e desdobre no seu exercício o sentido
conjectural e conjuntural da validade, a qual será designada como interracionalidade.
Na órbita deste problema, e dentro desta intenção, tentar-se-á explorar a
concepção do problematológico de Michel Meyer, a partir do problema da
inferência problematológica, e explicitar a possibilidade da existência de uma
inferência irónica como exemplo daquela, mediante um jogo de negação e
contradição irónicas, que se pretenderá conceptualizar como contradução.
A coroar
a questão da interracionalidade, na qual qualquer análise retórica da ironia se
tem que alicerçar, assiste a necessidade de conceber essa interracionalidade no
âmbito de uma relação entre sujeitos, por onde ondula não só o discursivo mas
também o passional, onde a linguagem e a ironia, por inerência, são sempre redescrições
do subjectivo, ou seja, presença do precário e do contingente entre os
sujeitos.
Em jeito
de caução final, se esta tese caminhar sempre no periclitante do que afirmar e
negar, é porque na linguagem nada permanece anónimo. E é assim, dotado
deste incómodo, que se olhará para o seu tema, na esperança que sobre ela não
desça o olhar demasiado metálico da própria ironia, quase sarcástico, e nela
não se solidifique o que queria ser flutuante e aquático, nesse estado em que a
matéria ainda hesita na solidez de si mesma. É dessas hesitações que ainda se
reivindica o que nesta tese se formula e que originarão a inevitável praga de
insuficiências e deficiências que, por certo, a assaltarão e cuja
responsabilidade é integralmente de quem quis ir mais longe do que, talvez,
podia.
1. Ironia, ma non
tropo: definição de ironia
Der Intellekt, jener Meister der Verstellung
Nietzsche
A
consulta de qualquer manual de retórica (10), essa cinzelagem ancestral, dá-nos
a visão da ironia como um tropo (tropoV) e um dos magnos
(12), definindo tropo como o "voltar-se" (trepesqai) da seta semântica
indicativa de um corpo de palavras ou de pensamentos. Esta definição, aceitável
pelo aparente grau zero de problematicidade que encerra, é, analisada à lupa,
já uma indicação perfeita dos imensos alçapões que toda a concepção retórica
encerra. De facto, este movimento que os tropos desencadeiam na linguagem é o
sinal evidente e complexo da questão do literal e do figurado, onde o que está
em questão é, fatalmente, o jogo permanente, a incisão que toda a linguagem
exerce entre o homem e o mundo.
Decerto,
uma linguagem absolutamente literal seria tudo menos uma linguagem e uma
linguagem absolutamente figurada seria uma meta-linguagem. No entanto, é
difícil evitar a necrose que uma e outra concepções podem aditar à questão,
porque é inevitável interrogar-se sobre este tropismo inerente à linguagem,
pois ele exprime um dos seus mais perturbantes e inflamados usos, o de
estabelecer relações. De facto, toda a linguagem é uma rede de relações
determinável por uma combinatória de substituições permanentes de domínios
semânticos por outros domínios semânticos, o que leva a esse movimento
expansivo e labiríntico da linguagem, a essa dilatação incessante, onde o
próprio se transfigura e se multiplica numa redescrição de si mesmo. Há assim
um excesso da linguagem, um furor dionisíaco, um ser a mais, um sobre-dizer-se
que incorre no uso pleonástico e, por vezes, rebarbativo da linguagem, do qual
alguns lógicos desejariam, almejariam livrar-se em absoluto, pois o consideram
inquinador de uma intelecção pura, categorial e categórica da natureza lógica
da linguagem.
No
entanto, pretender expulsar, esconjurar da linguagem o seu próprio excesso, o
movimento camaleónico da exploração sistemática de relações de semelhança e
parentesco de imagens, figuras e palavras que os tropos implicam, seria querer
encontrar o idílio e o paraíso de uma linguagem total e divinamente pura, uma linguagem
universal e essencializada, jamais filtrada pelas circunstâncias contextuais e
totalitariamente auto-referente. Neste sentido, haveria uma translucidez
radical da qual a turva luz do uso quotidiano da linguagem seria brutal sombra
e ineficiente e ambígua aplicação, ignorando-se, aristocraticamente, que a
linguagem, enquanto excesso, é a presença de conflitualidades e paixões, de
consensos e razões, de incertezas e indeterminações, de certezas e
determinações, num permanente desvio de si mesma, por vezes labiríntico, mas
numa relação onde o radical determinante é o carácter multi-factorial do uso da
linguagem (12). No limite, há, em toda a linguagem, sempre Alguém e Algo e, por
conseguinte, nunca o mesmo enunciado, "eu vou hoje ao restaurante",
dirá o mesmo, repetido indefinida e eternamente por todos os sujeitos e em
todas as circunstâncias. Este simples enunciado pode ser construído através de
diversos e heterogéneos contextos interpretativos que aumentam a complexidade
problemática que lhe está subjacente, na inesgotável tarefa da sua
inteligibilidade. Toda a linguagem configura estas dificuldades e, em
coerência, intromete em si própria um grau de possível e de incerto que não é
decidível a não ser a cada momento, refazendo o seu sentido circunstancial.
"Eu vou hoje ao restaurante " tanto pode ser a conclusão-desabafo de
um longo processo de discussão como a cândida-premissa da impossibilidade de
conclusão, sendo isto só dois dos entre muitos factores conjunturais de
interpretação.
É isto o
uso empírico da linguagem, o exercício premente do particular, que não se
compadece com uma visão descarnada da mesma, onde não houvesse implicações
subjectivas e intersubjectivas, onde não houvesse mundanidade. Em absoluto, a
linguagem é sempre presença de uma relação, um encontro entre sujeitos e
realidades que se faz e desfaz sempre nela própria.
Na linha
disto, nenhuma filosofia da linguagem pode enclausurar-se monasticamente numa
perspectiva insular, seja ela logicista, estruturalista, desconstrucionista,
etc. , mas terá que deixar respirar nas suas análises o inevitável problema dos
múltiplos usos da linguagem, dos quais o empírico é, em si mesmo, um dos mais
complexos de determinar. E se, em certa medida, de modos diversos, todas as
filosofias se deixaram encantar por arroubos místicos de uma linguagem incólume
às contradições, às incoerências, às flutuantes indeterminações de sentido, a
esse movimento múltiplo, fraccionante e friccionante da linguagem consigo
própria, acabaram também por ceder, às vezes fácil e simploriamente, à tentação
de escarnecer da dimensão de fundo que determina e atravessa toda a análise da
linguagem: o seu carácter problemático.
Na
esteira destes pressupostos, os tropos não escapam ao processo de
problematização que atravessa, medular e modularmente, a linguagem, acabando
por ser rematados exemplos do mesmo. O que cada tropo exerce é (13),
imediatamente, a experiência do múltiplo da linguagem ,uma abertura precária ao
sentido e à interpretação, essa relação indómita entre o problematizar e o criar (14),
ou seja, o trazer e acrescentar indefinição e mesmo surpresa à linguagem. De
facto, os tropos pretendem sempre gerar o efeito retórico do estranhamento (to xenikon) do inusitado,
ruptura de sentido que perturba e dá sempre nova voz ao que se diz, ao que se
exprime, tentando provocar efeitos do delectare
ou do movere, revelando a linguagem como permanente relação e intromissão
de algo que só nela se pode experimentar.
Laboratório
imenso, a linguagem é assim a permanente abertura do homem a si mesmo, na
experiência dos seus limites e, por isso, nela se ensaiam problemas cujas
formulações são sempre provisórias. Daí que os tropos são parte integrante da
transição clara de uma concepção da linguagem como mero inventário para uma
linguagem como invenção. Associativamente, toda a retórica é a expressão desse conatus essendi da linguagem: a sua
permanente inventabilidade (15). A inventio
é , de modo indefectível, o movimento original de toda a linguagem e os tropos
exprimem esse movimento basilar em todos os planos. A ars inveniendi é , por razão de sobra, o proto-movimento da
linguagem, onde o discursivo se organiza pela e a partir de uma presença
relacionada de imagens e conceitos, que se auto-edificam e auto-inventam nesse
movimento.
A capacidade
heurística – de heurésis (euresiV),o termo grego para
a inventio –, ou inventiva da
linguagem abrange todos os domínios da linguagem e todos os seus usos. Ela
implica e debate-se com uma multiplicidade de questões, explanando-se pela
determinação dos termos a investigar, passando pela elaboração dos conceitos
lógicos ou avaliativos e pela construção de argumentos verosímeis (eikoi), numa
racionalidade com um grau de probabilismo onde o nível de contraste entre
certeza e incerteza espelha a inteligibilidade atingida, e que assenta na
plausabilidade da argumentação aduzida.
A
valorização da inventio e a sua
proeminência é garantia de uma retórica que não perdeu a ligação à
problematicidade/argumentação, raiz presente em todo o esforço da linguagem,
seja ele retórico ou filosófico, escapando, deste modo, à amputação da retórica
do estilo, mais chegada e próxima da dispositio
e da elocutio ou, mesmo, ainda que
num outro contexto, a retórica do grupo m, de Liège, a qual não foge
a uma teoria do texto e difere para longe a questão da inventabilidade da linguagem.(16)
A
inventabilidade ou invenção é esse debate primordial da linguagem retórica e
filosófica com o problema da originalidade. No fundo, a inventio, enquanto procura e pesquisa, confere à retórica e à
técnica da argumentação o sinal evidente de uma confrontação que é o perfil
básico da argumentação. Deste modo, a inventio
é hesitação e confronto permanentes entre a realização de modelos retóricos e
argumentativos, que podem escudar e nobilitar a série de conceitos e argumentos
apresentados (17) ou, então, a partir desse modelo gerar uma superação e
inovação através de anti-modelos, processo que se poderia designar por ruptura
retórica.(18)
Infiltrados
desta perspectiva, os tropos são muito mais do que uma mecânica esdrúxula,
super-organizada, elaborada minuciosamente ao longo dos tempos, gerando uma
cartilagem complicada e mergulhando a retórica no efeito retórico dum trompe d'oeil classificativo,
pretensamente científico e normativo, cultivado mais por uma retórica de
estilos e seus derivados do que por uma análise retórica da linguagem.
Por
isso, mais do que se embrenhar nessa floresta cerrada de correlações entre
metáfora, ironia, metonímia, sinédoque e essa ramagem fina entre ironia
perifrástica, alegórica, litótica, etc., cujo grau diferencial é manifestamente
indiscernível, o que se pretende , neste primeiro ponto, é auscultar o que nos
tropos linguísticos se exprime de problemático e o que neles se auto e
hetero-funda: a relação profunda e por isso inacabada do homem com a linguagem
e do que nela para ele se torna constante problema. Postulando, por estas
razões, uma simplicidade que deve determinar a nova retórica, limpando-a desse
burilado maneirista e fastidioso que a animou ao longo dos tempos, o que há de
substancial desde já a reter é a antagonização entre metáfora e ironia (19) que
se exprime, por oposição ,no salto
semântico ou na reviravolta que o tropo exerce; na metáfora pelo simile, expressão por comparação (20),
que opera uma translação amplificante de sentido (21), e a ironia, simile per contrarium ou antífrase (antijrasiV), que opera uma
rotação perturbadora, se não mesmo ruptora de sentido. Decididamente, esta
tensão antagonizante entre metáfora e ironia, que devem ser considerados os
tropos-limite de qualquer retórica e, por inerência, de toda a linguagem,
exprime a oposição problemática da própria formação dos conceitos em filosofia.
Em abono da questão, e nos recortes que ela pode assumir, há que reconhecer que
esta afirmação dualizante, esta tensão cardinalizada pode deslizar para um
dogmatismo que escamoteia a diversidade de concepções em relação a este
problema. No entanto, e em bruto, se aproximarmos a retórica dos estilos a uma
retórica dos conflitos, o conflito estilístico entre metáfora e ironia
alicerça-se no conflito retórico entre identidade e diferença, tal como o
sugere Michel Meyer.(22)
Identidade
e diferença são aqui a própria explosão da linguagem no que ela tem de mais
precário, ou seja, na sua incessante inventabilidade. De facto, se
"a linguagem é um labirinto de caminhos" (23), é porque nela se
exerce constantemente o possível, na presença de uma potencialidade
inesgotável, da qual a identidade e a diferença são limites opostos, mas
geradores e potencializadores da própria linguagem.
Verdadeiramente,
não há linguagem aquém do conflito com ela própria, conflito de identidades e
diferenças. Pretender redimi-la, salvá-la disto é pretender desvitalizá-la,
debilitando-lhe essa ferocidade intrínseca
de ser arena de posições e oposições, dicções e contradições, argumentações e
contra-argumentações que são, na realidade, a respiração intensa do próprio
homem, numa expressão potente e potencial de si mesmo. É nesta correlação de
forças entre identidade e diferença que se renova a questão do esforço
conceptualizante e tropológico da linguagem, e no qual se institui e se instala
a necessidade de passar a considerar a formulação de conceitos (24) como
indissociável da própria elaboração dos tropos retóricos. Se a retórica foi
entendida como a arte de inventar, enquanto não confinada à especificidade de
uma inventio, mas albergando a dispositio e a elocutio, então a retórica é a arquitectura inevitável da invenção
dos conceitos e da sua formulação temática, inscrita igualmente no ordenamento
e na coerência dos pensamentos e na sua respectiva forma expressiva, o que nos
conduz à inelutabilidade de ser impossível desirmanar a retórica da filosofia,
como foi ensaiado na voluntarista e radical concepção platónica.(25)
Em
congruência com isto, os tropos são em si a projecção de algo mais do que o
simples exercício estilístico ou mesmo de uma estrutura linguística indemne, ao
manifestarem já e sempre o perturbante e indeterminado impulso para uma
conceptualização, que se exerce na perversão e no desvio interno (26) que toda
a linguagem revela e que se condensa na sua incontornável dimensão retórica.
Toda a
linguagem é sempre desvio, não a uma realidade ou a uma essência exterior a ela
própria, da qual ela fosse um ser menor ou uma epifântica/epifenoménica
manifestação e que, por isso, servisse de mediadora e calçasse as sandálias
voadoras de um Hermes incumbido de transportar mensagens entre soberanos
deuses, mas, bem pelo contrário, a linguagem é sempre desvio a ela própria, mediando-se
a si própria. Ora, neste sentido, o problema da identidade e da
diferença não se constitui em razões exógenas à linguagem, mas é a fulgurante
experiência da linguagem como desvio potenciado e inventado de si mesma, de que
os tropos e os conceitos são expoentes indesmentíveis e inextricáveis, no
sentido em que representam, pela figuração, a actualização de uma dynamis que arrebata a linguagem e a
amplifica permanentemente. Em última instância, é esta configuração de
possibilidades que faz com que a linguagem se medeie a si mesma e se inscreva
numa sempre renovada rede de circunstâncias, contextos, conjecturas,
conjunturas que despoletam novos sentidos de inteligibilidade e racionalidade.
Municiados
destas ideias e desta perspectiva, não se poderá cair ingenuamente numa visão
inocente da linguagem, desprovida de uma dimensão retórica, entendendo-se aqui
retórica de modo bifronte, como Janus, ou seja, teoria dos tropos e da
argumentação (27). É neste sentido indissolúvel que toda a retórica é
argumentação, todos os tropos são argumentativos, quer dizer, transportadores
de uma probabilidade de persuasão e convicção, geradoras e ordenadoras de um
modo de racionalidade.
É do
enquadramento destas questões que decorre precisamente a relação entre ironia e
metáfora, enquanto relação entre diferença e identidade. Com este pano de
fundo, não se quer trazer ao teatro das operações o problema clássico da
identidade e da diferença, que percorreu solenemente as filosofias e cuja
hesitação ontológica e lógica pairou dentro delas. Seria supérfluo referir, –e
quantas vezes o pensamento filosófico tornou supérfluas questões!–,que
não se deseja aqui vertebrar todas as questões adjacentes e subjacentes à
relação identidade e diferença, quer como ela foi entendida na ontologia quer
na lógica. Permanecer nelas seria indiferenciar tudo, mergulhar na viscosa
concepção de que tudo se equivale, traindo a missão-mor dos conceitos, num
sentido pragmático, como é advogado por Wittgenstein, quando, no seu estilo granítico
afirma que "os conceitos levam-nos a fazer investigação–são a expressão do
nosso interesse e guiam o nosso interesse."(28)
Mais do
que rediscutir esta questão, o que se pretende é determinar como ela pode
surgir numa concepção retórica e argumentativa da linguagem e o que dela se
apodera da e na relação entre metáfora e ironia. Sabemos que toda a linguagem é
o exercício de identidades e diferenças, que a própria linguagem é a
precipitação dessa problemática relação (29), no sentido em que toda a linguagem
é um jogo de identidades na diferença e de diferenças na identidade. O uso
argumentativo e retórico da linguagem coloca-nos no cerne da própria
contradição intrínseca a ela, pois é nele que se configura o debate permanente
do homem consigo mesmo, no que há de mais indeciso, provável e verosímil nos
seus discursos e decisões. Por isso mesmo, falar de identidade e diferença não
é querer colocá-las num colete de forças de uma lógica formal, muitas vezes
enredada numa entificante subtileza algébrica, que não dá conta da vibração e
oscilação permanentes do inteligível na linguagem. Decorrente disto, há que
então encarar a questão sob a égide de uma lógica não formal, e muito menos
formalizada, que determine o uso mais evidente e amplo da linguagem e a deixe
respirar, na plenitude de todas as suas dimensões, que se entrecruzam como
soluções complexas de um mesmo domínio.
A
montante destes pressupostos, encontra-se a ideia de que há tanta mais
linguagem e logicidade quanto mais problemático se enfrenta , o que se dá sem
sombras de dúvida no conflito entre identidade e diferença. Reduzir estas a
definições lógicas, entregá-las à angélica analítica lógica é sugar-lhes o
sentido crucial e vital : a relação questão/resposta que sub e sobredetermina
todo o uso retórico e argumentativo da linguagem e que intensifica, num
expressionismo vivaz, a diferença
problematológica, tal como foi designada por Michel Meyer (30). A diferença
problematológica é a própria experiência de nós na relação com o outro,
experiência feita, desfeita e refeita na linguagem, acabando esta por ser
sempre uma diferença no problemático e razão de fluidez e impermanência de
todas as razões. É com e na diferença problematológica que todo o pensamento e
a linguagem se articulam, nessa presença de alguém perante quem nos exprimimos
por uma diferença ou por uma identidade, onde se encaixam problemas que podem
ter desde um nível mínimo de diferenciação, próximos de uma consensualidade,
até uma amplitude total e irreconciliável, onde a ironia e o sarcasmo são
formas possíveis da sua concretização.
Definitivamente,
a presença do problemático na linguagem é a abertura de sujeitos a sujeitos, na
multidão de diferenças e identidades que se podem estabelecer entre eles, que
garantem a diversidade de inteligibilidade e de comunicabilidade, nunca
anulando a diferença de base que é, para Michel Meyer, quase a fundação de uma
diferenciação de sujeitos. Se a linguagem é a multiplicação de sentidos e todas
linguagens são abertas, então ela é a multiplicação de problemas e, por
conseguinte, a multiplicação de diferenças entre sujeitos, o que significa
quase a consagração de um novo humanismo retórico. Por este motivo, a linguagem
é a consolidação da possibilidade de sermos sujeito, não como detentores de uma
realidade, mas como transfiguradores de
uma realidade que nos escapa permanentemente, num ponto de fuga ,
simultaneamente convergente e divergente, que é a linguagem, e que
nos
torna sempre recém-chegados ao seu domínio , através do qual nos
inventamos como seres problemáticos.
Dessa
forma, a linguagem não se estrutura a não ser neste conflito, onde a identidade
e a diferença são contextos e formas de um inesgotável trabalho da configuração
do possível e do provável, em que a relação entre tropos linguísticos e conceitos
é passível de uma análise e leitura retóricas geminadas, e nas quais a relação
ironia/metáfora é uma expressão exemplar do problema retórico identidade e
diferença, duplicando, reduplicando e multiplicando sentidos e níveis de
compreensão.
A articulação
identidade e diferença exprime, numa gradação interna, o próprio escalonamento
dos tropos linguísticos sob uma grelha, bastamente evidenciada por M. Meyer
(31). É neste contexto, nesta estruturação dos tropos, ou seja e nas palavras
de M. Meyer "au départ, on l'a vu tout concept est conjonctif et
disjonctif." (32), que se pode estabelecer nos limites opostos dessa
grelha, a metáfora como a expressão da identidade máxima e a ironia,
inversamente, como expressão da diferença máxima, devendo-se considerar, neste
caso, não só pelo plano da concretização do sentido e da tensão entre o próprio
e o figurado, como também pela relação entre sujeitos, na qual o sentido se
integra e se imbrinca, como é ponto assente no esforço da análise retórica da
linguagem.
Não vale
a pena agora exprimir mais argumentos do que aqueles que se subentendem e
implicitam nas asserções anteriores. É na polarização entre identidade e
diferença que residem, em definitivo, as várias análises das interrelações e
cambiantes a estabelecer entre os tropos linguísticos. Este duplo movimento
antagónico da linguagem traz nele o sinal global de um contraste inesgotável e
permanente, ao qual não escapam a criação conceptual ou a criação tropológica,
o que requer a presença de uma concepção retórica, capaz de acoitar no seu seio
uma visão da linguagem não determinada a
priori por padrões limitados e limitativos, mas que seja capaz de ordenar
critérios mais amplos e menos formais de verificação, ou seja, de registo de
verdades para além das verdades lógicas, ampliando e amplificando uma
racionalidade estrita e reduzida a uma verificação e comprovação
metodologicamente limitadas, para uma pensabilidade, que aumente a
inteligibilidade dos problemas e sugira novos meios eficazes de os argumentar,
proporcionando o aparecimento de verdades
metafóricas, como defende Paul Ricoeur (33) ou a existência de verdades irónicas, onde metáforas ou
ironias acabam por assumir papéis de evidência e perspectivação filosóficas,
ultrapassando o quadro cerrado de uma lógica formal, derivada de princípios e
processos consistentes de certificação, mas condenados sempre a um alcance
reduzido. E, de facto, a grandes e esplendorosas metáforas determinantes do
sentido e da verdade filosóficas sucedem sempre grandes ironias (34), que
determinam, numa espécie de cirurgia final, o desencanto e a decepção que, por
vezes, liquidam a expressão iluminada das macro-metáforas, no pensamento
filosófico.
Este
mesmo problema transporta-nos de imediato para a necessidade de uma concepção
genealógica dos conceitos, dentro de uma metodologia encetada por Nietzsche,
descortinando o que na formação, elaboração e invenção dos conceitos é também
processo de formação, elaboração e invenção dos tropos, aparentando, por esta
via, o uso literário e filosófico da linguagem, num tronco comum, com o uso
retórico. Em relação à ironia há que fazer o mesmo esforço genealógico
produzido, por Nietzsche, em relação à metáfora : também por detrás e no início
e génese de cada conceito há uma ironia, enquanto
interrogação e expressão dissociante de problemas. Nenhum dos magnos
conceitos, na sua majestática racionalidade, se estruturou na ausência de uma
simulação contraditória e numa metátese entre identidade e diferença,
associação e dissociação, metáfora e ironia.(35)
De um
modo bem nítido, o que Nietzsche realça bastante bem é que a realidade é uma
criação da linguagem, que é sempre a presença marcante de uma criação constante
de imagens e metáforas, que jazem soterradas na campa rasa dos conceitos.
A célebre definição do dicionário como uma espécie de obituário de metáforas
esquecidas liga-se, estreitamente, a uma concepção da linguagem, na qual a
retórica reentrou pela porta principal (36). Na verdade, e como afirma Paul de
Man, assim como se pode extrair de textos de Nietzsche, designadamente o Livro do Filósofo e as Lições Sobre a
Retórica, o tropo é aquilo que caracteriza a linguagem enquanto tal,
erradicando a possibilidade de uma linguagem "natural",
representativa de uma identidade aproblemática, lógica ou psicológica, entre
enunciado e referente (37). Toda a linguagem é figurada, distância introduzida
que aumenta a perplexidade e determina as possibilidades de concepção, a partir
da qual se estruturam os conceitos numa imbrincação entre conjunção e disjunção,
inclusão e exclusão, na associação e caracterização de traços específicos e
definidores, que só são possíveis através de uma oposição que os determina.
Desta
forma, e irrevogavelmente, cada conceito, enquanto abstracção e aproximação a
uma definição unificativa, apoia-se numa concepção onde a oposição
argumentativa ,a divisão e a implicitação de sentidos diferenciais estão
presentes. Este foco de contradições e contrastes diferenciais é,
simultaneamente, a linha de horizonte da invenção dos conceitos e dos tropos e
a base da miséria e grandeza da filosofia, quando se debate internamente com a
tensão entre a rarefacção conceptual e a densidade populacional de problemas ,
que cada conceito arrasta, porque "todo o conceito remete para um
problema, para problemas sem os quais não haveria sentido e que por sua vez só
podem ser isolados ou compreendidos ao mesmo tempo que a sua solução : estamos
aqui dentro de um problema que diz respeito à pluralidade dos sujeitos, à sua
relação, à sua apresentação recíproca." (38)
O
conceito não é assim a superação do problema, mas o internamento no problema e a filosofia não é mais do que essa
actividade que nos faz internar conceptualmente nos problemas. Internar
não é aqui vir de fora para dentro, mas tão só ir mais para dentro, quer dizer,
pensar mais problematicamente.
É sob a
égide desta perspectiva que, sendo a ironia uma implicitação de negações e
oposições , nenhum conceito escapa à tensão contrastante entre metáfora e
ironia, como formas extremas de uma perspectiva de identidades e diferenças,
que dinamiza a própria linguagem. Nietzsche deu-se bem conta de todo este
problema e se há nele "um modo retórico radicalmente irónico", como
afirma Paul de Man (39), então é porque Nietzsche considerou que a única forma
de superar uma filosofia da consciência, dominada pela luta titânica do
idealismo alemão, representada na antinomia radical entre um eu e um não-eu, é
através de uma filosofia retórica da linguagem, onde a maior ilusão seria a de
confundir as metáforas originais, as imagens e tomá-las pelas próprias coisas
em si, isto é, essencializá-las.(40)
No
fundo, se a advertência nietzschiana é ainda a de ultrapassar o colapso do
idealismo alemão, enredado no conflito entre a esfera do sujeito e a esfera do
objecto, para usar expressões do próprio Nietzsche, ela só pode ser cumprida
pela presença da ironia, que não é um mero cepticismo linguístico ou
retórico, mas é a própria revelação da contingência no interior da
linguagem e da elaboração de multiplicidades, num referencial de diferenças,
que esgarçam a possibilidade de um topos
de acesso a uma unidade, quase sempre enlutada, pois nos é oferecida ora como
perdida ou irreferenciável.
Em
função disto tudo, não será abusivo lançar a suspeita de que a ironia poderá
ser o próprio método genealógico, apregoado por Nietzsche, ao inverter e
escavar no "cemitério" de algumas filosofias, cuja perenidade aparece
como lápide, onde o laconismo do biográfico, quer dizer, do conceptual, rarefaz
e esquematiza a vitalidade insondável que enforma a própria elaboração dos
conceitos, suspeitos de terem uma vida oculta. E se de igual modo alguns
pensamentos e filosofias são acusados de negarem a vida, também os conceitos
desvitalizam a linguagem, na sua ascensão ao essencial, criando assim a última
e mais anónima máscara, a que renega mais absolutamente o rosto grosseiro, rude
e disforme do exército de tropos que , quais sátiros à solta, exprimem uma vontade de poder da linguagem.
Sobrevoa
toda esta questão, a concepção de um conflito entre uma linguagem apolínea,
desoxigenada e quase anémica, face ao seu jejum e dieta , in nomine Dei et alii, e uma linguagem dionisíaca que brota na
força violenta do que exprime retoricamente, como excesso e como fúria. De
certo modo, a linguagem é uma forma de ser possuído, de furor, de demência, num
jogo de sombras e claridades que nos aproximam do trágico, no sentido em que
nele se revela a própria mutabilidade
dos destinos e das palavras sem destino, pura errância. À beira disto tudo, a
ironia também tem algo de dionisíaco e nela também a linguagem se descobre
enlouquecida, num furor de argumentatividade que atinge em cheio a própria base
da sua identidade, ao compatibilizar a negação com a afirmação, geminando de
tal forma uma com a outra que quase parece desvanecer-se o sentido do que é
afirmado. Através dela é como se, no fundo, acedessemos multiplamente a nós
mesmos, na configuração não de uma fragmentação e subtracção (41), mas de um
acréscimo, de um multiplicar de sentidos retóricos e racionais. Assim, os
tropos linguísticos, entendidos na sua realidade argumentativa, inventam mais
e diferentes perspectivas, rasgando cada vez mais soluções conjunturais
e, naturalmente, mais problemáticas.
Encastrado
nestas questões, aparece todo o exercício brilhante que Nietzsche faz do método
genealógico dos conceitos, nessa minuciosa descida aos seus subterrâneos, onde
se cruzam sentidos e inteligibilidades geneticamente dinâmicas (42). De todos
eles, e pela supremacia inevitável que assume no discurso filosófico, é a
verdade que ele mais ilustra como concretização suprema da ilusão e da
dissimulação e o que ele mais arrasta para a desconstrução tropológica (43),
numa paródia de associações, onde a metáfora é ironia e vice-versa, como acaba
por ser o famoso início de prefácio ao Para
Além do Bem e do Mal, "Vorausgesetzt, dass die Wahrheit ein Weib ist
-, wie? Ist der Verdacht nicht gegründet, dass alle
Philosophen, sofern sie Dogmatiker waren, sich schlecht auf weiber
Verstanden?".(44)
Na linha
disto, o conceito de verdade, como qualquer outro, esculpido e dominado lógica
e racionalmente pelas filosofias, não pode escapar às tensões que o originaram,
e mesmo no seu esgotamento e enquanto presença residual das imagens originárias, está sujeito ainda à abertura
retórica, à suposição e à comparação, ainda que a mais inesperada, integradas
na cadeia de associações–a verdade como mulher–que percorrem metaforica e
ironicamente essa imagem que traz um suplemento de sentido e absurdo ao
conceito. A ironia , subentendida e implícita, é ainda uma súbita reductio ad absurdum (45), num falso e
encapotado silogismo (46), endividado a uma conclusão cujo efeito e eficácia
são retóricos e nunca lógicos, porque
trazem no seu seio mais problemas do que resolvem e nada nos garantem da
própria verdade, porque exigem uma racionalidade de adesão, enxertada na
conjugação entre sentidos e sujeitos. Se
a verdade é mulher então os filósofos pouco perceberam as mulheres significa, pelas portas das traseiras do que
é dito, que os filósofos pouco perceberam da filosofia e vaguearam na ilusão de
julgarem como verdade o seu próprio erro. É assim que, em definitivo, a
filosofia não escapa à ironia de ter tomado a sério, em si própria, o que era
pura ironia, ignorando, algo olimpicamente, que só a ironia nos coloca para
além do problema epistemológico no qual o céptico se debate, pois só ela
ultrapassa essa dimensão, centrando o problema da negatividade como um problema
retórico e argumentativo, fazendo explodir, num tecido múltiplo de relações e
associações, novos horizontes do problema em causa.
A
afirmação nietzscheana, "Se a verdade é uma mulher...", exemplifica
nitidamente a perspectiva apontada, focalizando a questão da negatividade no
conceito de verdade numa dimensão retórica, argumentativa e negativa, pelo quadro
irónico, e não num cepticismo epistemológico, que paralise definitivamente o
pensamento na sua própria aporia. A ironia é a sugestão de uma pensabilidade
por fazer, e não a sua exaustão.
É por estas
razões, que Nietzsche entendeu bem que se nos quisermos livrar do cepticismo a
ironia é a única forma de o garantir, pois só ela acrescenta, para além da pura
negação céptica, uma nova interrogação e uma nova problematização, conferindo
maior densidade racional e conceptual em relação ao problema, quer recriando
quer aumentando esse problema.
Decorrente
disto a ironia introduz uma diferença
problematológica, que nos garante um crédito considerável na abordagem
frontal das questões filosóficas e da própria questão da filosofia. Só que
nesta tarefa ela não está sozinha, mas vem na companhia dos tropos
linguísticos, que restauram, no palimpsesto conceptual, não só a origem do
problema que o conceito anestesiou mas, igualmente, a abertura à invenção de novos
problemas, numa transitividade permanente, que não é passível de ser estancada.
2. Ironia, dialéctica, retórica e argumentação-os três mosqueteiros, que afinal também são quatro.
"La simulation tend à une limite qui est la contradiction. Or toute pensée étant de la nature d'une simulation, il en résulte que toute pensée pressée et poussée à l'êxtreme, dans le sens de sa précision, tend à une contradiction."
Paul Valéry
Simulação
e contradição são os dois termos que revestiram sempre a concepção da ironia,
quer enquanto tropo linguístico quer enquanto metodologia interrogativa. E foi
sempre em torno da conjugação entre ambos que as diversas definições de ironia
se organizaram, ao longo de toda a sistematização da filosofia e da retórica. Desde
o "piparote" inicial dado na República
(47), que a ironia se apresentou mediante esse passe de magia que é o de
exprimir a negação, pelo contraste contextual do que afirma. O contexto é
determinante, visto que ela introduz um jogo permanente entre o sentido e o
não-sentido raiando, aflorando, em função disso, o absurdo e até a contradição
oximorizante. Esta dimensão contextualista, presente na linguagem, cria e
amplia os sentidos e os significados, problematiza e argumenta, numa direcção
sempre precária e, inevitavelmente, interpretativa.
Com toda
a propriedade, alguns exemplos, recolhidos avulsamente, podem ser indicadores
fiáveis do que se afirma:
a)
"O homem casado é um quadrúpede." (48)
b) "Le supérieur à Itzig, soldat intelligent mais
indiscipliné: "-Itzig, ta place n'est pas parmi nous. Je te donne un
conseil: achète-toi un canon et établis-toi à ton propre compte." (49)
c)
"Noel Coward, escritor e actor inglês, encontrou uma novelista americana,
Edna Farber , que usava um fato de homem: "Você quase parece um
homem!", disse-lhe ele. "Você também.", respondeu-lhe ela."
(50)
d) "Je n'ai rien, je dois beaucoup, je donne le
reste aux pauvres." Testamento de aristocrata francês. (51)
Nesta estreita relação entre o dito espirituoso, o gracejo humorado,
até ao sarcasmo quase cínico, pelos quais sempre se definiu a ironia, numa
relação íntima com o humor (52), qualquer destes casos é determinável como
ironia por um quadro de referências e de contrastes, mais ou menos explícitos
ou implícitos, gerando qualquer deles um aumento retórico de inteligibilidade
no dito ou no escrito e, por isso, um empolamento multiplicativo do
argumentável.
Apesar do puzzle complexo de
ironia da palavra e do pensamento e na misceginação entre os diversos tropos, o
que leva à ironia de hipérbole, de perífrase, de alegoria, de sinédoque, etc.,
até a essa bifurcação, na ironia do pensamento, entre simulatio e dissimulatio,
num processo excessivo de entificação, onde se calhar os entes
são já meros enteados e exercícios de tédio, todas as formas de ironia
são a expressão de uma reversabilidade argumentativa, pela situação de inversão
subjacente à linguagem irónica.
A reversabilidade e a inversão são características intrínsecas e
maiores da ironia. Através delas, o próprio reverte-se em figurado e este no
próprio, numa situação de especularidade invertida, que dissemina uma
simultaneidade tópica e lógica entre afirmação e negação, certo e incerto,
provável e improvável. Em absoluto, a ironia é a esgrima mais rebuscada de uma
estratégia que só é resolúvel na decifração, contextual e probabilística, que
indefine e equivale sentidos mas, simultaneamente, insere a necessidade de uma
pesquisa interpretativa, que só é determinável em níveis privilegiados de descodificação, isto é, na clarificação
de sentidos cruzados e interrelacionados. A reversabilidade argumentativa
irónica começa por ser o desdobramento de um sentido, em oposição, que
transfigura e determina uma teia de sentidos relacionais. Por conseguinte, a
ironia, como todos os tropos, é uma lupa que, por leis e feixes retóricos,
amplia ao pormenor o sentido do que é enunciado.
É mesmo este estado de contradição, de afirmar pela negação e negar
pela afirmação, que faz da ironia o tropo dialéctico (53), e que materializa a
complexidade e a relatividade do antagónico,
como se com a ironia a linguagem
excedesse a fronteira lógica da negação e absurdizasse o princípio da não
contradição. Ao fazer isto, a ironia empurra-nos sempre para uma
amplitude estratégica que já não encaixa no reducionismo lógico, impondo, ao
invés, uma contrastante polemização da enunciação, a qual só tem sentido
interpretativo numa aplicação circunstancial e contextual (54), em que fervilha
a visão da linguagem como enunciação de problemas, que insuflam volume à
linguagem, tridimensionando-a, multidimensionando-a e anulando-lhe , por isso,
a platitude procurada, por vezes, pela dita decantação e depuração lógicas.
Aliás, a passagem a uma teoria da linguagem argumentativa e retórica pode ser
equiparada, sem rebuço de maior, à passagem de uma geometria euclidiana para
uma geometria multi-dimensional ou, noutro contexto, a introdução da terceira
dimensão pictórica operada como resposta à secura bidimensional da pintura
medieval, como se com aquela o etéreo se corporalizasse e mundanizasse.
Em decorrência de tudo isto, e em apertada conotação com a definição de
ironia, se há tropo mais especializado na problematização e o que é, pela
densidade problemática que contém, mais difícil de interpretar e de contextualizar
e ainda o que corre mais riscos de ser obscuro, é, precisamente, a ironia.
Na verdade, a ironia, em vez de pressupor uma semelhança ou valorização
de uma parte em relação ao todo, remete para a negação e para uma desidentificação, o contrário do
operado na metáfora, o que lhe gera riscos de má interpretação e ambiguidade
que são, apesar da sua dimensão negativa, elementos constituintes e necessários
à ironia. Enquanto a metáfora é um símil, e por isso expande-se pela
assimilação e pela mimetização, a ironia é desconstrutora, criando uma
redescrição e refiguração pelo negativo, cuja captação e compreensão exigem um
excesso de inteligibilidade
descodificadora em comparação com os outros tropos. Em última análise,
quase se poderia dizer que a ironia é um tropo que põe em jogo múltiplos
códigos de linguagem, o que sempre vincou a sua dificuldade, a sua raridade e,
até, as suspeitabilidades e susceptibilidades com que foi encarada ou recebida,
provocando disfunções e perigando, pateticamente, a sociabilidade.
Não é de estranhar então, que sendo a ironia um jogo, é um jogo que
leva ao limite o próprio conceito de jogo, ao introduzir uma regra suspeita,
que se reveste dum estilo próximo do bluff. Em última instância,
poder-se-ia dizer que a ironia é, em certa medida, a perda da inocência da
linguagem, dessa "virgindade" de uma linguagem que dissesse só o que
diz, numa cooptação indescolável, sem diferenciação e problemas e, a contrario, a descoberta da
possibilidade da diferença e da cisão da linguagem consigo própria, como se uma
máscara invadisse e negasse a frontal nudez do rosto.
É esta descoberta, este jogo alucinado que a ironia introduz, que
sempre a transformou num rastilho de pólvora incómodo e sobre o qual, muitas
vezes, incidiram palavras condenatórias e o anátema da moral (55). A ironia é o
tropo da diferença e da negação e, por consequência, aquele que leva a
linguagem ao ponto mais extremo de si mesma, precipitando-a na dificuldade de
tornar o sentido próprio na figura negativa de si mesmo. Deste modo, a ironia é
o jogo do subentendido, do sub-inteligido, do que só é visível a contra-luz, o
que fomenta mal entendidos que obscurantizam o seu reconhecimento.
O jogo de inteligibilidade que a ironia suscita torna-se ainda mais
apurado pelo facto dela poder ser exercida por um mero desvio decimal no
discurso, quase imperceptível, uma pequena torção, inflexão capaz de perturbar
e subverter profundamente; uma infiltração pelo mínimo, capaz de fissurar toda
a coesão argumentacional, provocando perplexidade, contradição, controvérsia,
paradoxalidade e até mesmo aporia. É esta reduplicação mínima de sentido e de
inteligibilidade que faz da ironia um jogo de negação do referente, pois
com ela o que é dito, o que é EXPLÍCITO não é mais do que uma pequena "dobra"
redobrada do que é IMPLÍCITO.
Toda a ironia é uma mini-dialéctica entre o implícito e o explícito, o
dito e o contra-dito, o texto e o contexto, o enunciado e o referente. Numa
sequência de análises, e desembocando no problema pretendido, a ironia introduz-nos
na contradição, na interrogatividade que aceleram e projectam a
inteligibilidade da linguagem. Mais do que um movimento retráctil, uma espécie
de cãibra acerada, a ironia é antes a projecção do interrogativo e do
problemático e, naturalmente, um tropo que ultrapassa a "leitura"
meramente figurativa, para nos instalar no próprio conflito da linguagem e,
nesse sentido, como estilo do conflitual, determinar, elevando a parada, formas
múltiplas, projectivas e englobantes de racionalidade.
Imbrincado nisto, coloca-se então a questão de saber se a ironia não é
por definição a própria negação da figura, a aporia total da linguagem consigo
mesma, nesse extremo de, ao atingir a diferença máxima, se aproximar
perigosamente de uma descontinuidade radical, oferecendo-se já não como
figuração, mas quase desfiguração
(56). Desta forma, a ironia é uma espécie de
figura-limite, figura da não figura, que a algema a uma negatividade pela
qual foi sempre condenada.
Dos pressupostos acima referidos, decorre inevitavelmente a necessidade
de desenvolver e explanar alguns dos aspectos que se enunciaram anteriormente,
para melhor apreender a variedade de inteligibilidade que a retórica e as suas
figuras aditam à linear concepção de uma linguagem desretoricizada. O primeiro ponto a destacar, e dentro do
entrelaçado já devidamente referido, é o da ironia como uma infiltração pelo
mínimo. Na clareza disto, há
que asseverar que entender as figuras retóricas é no fundo dimensionar toda a
linguagem e as racionalidades que nela se constróem como a presença de
inteligibilidades mínimas, numa aproximação a uma demarcação de problemas cuja
formulação não engloba mais do que a sua enunciação e o respectivo uso.
Portanto, é dentro de um contexto de pressupostos e regras restritas que se
geram conclusões compreensíveis e, destarte, operacionáveis. Este minimalismo
não pode ser confundido com um pontualismo e com uma limitação lógica do
alcance e do sentido das questões. Bem pelo contrário, ele é a perspectivação
de uma globalidade de problemas num contexto demarcado, enveredando-se assim
por uma procura de clarificações e compreensões que tragam no seu seio a
determinação do que nelas e só nelas é pensável.
Como foi já visto, se a metáfora, devido à sua densidade de identidade,
fornece ainda a ilusão óptica de uma expansão é porque ela foi o instrumento
retórico e estilístico de uma metafísica, que se envaideceu nas belas e
intensas metáforas, espelhos férteis de similitudes, feixe encadeado de tudo
querer dizer; ao invés, a ironia, onde o problemático e o interrogativo nunca
se anularam ou anestesiaram, como pôde acontecer na metáfora, foi a permanente
vigilante e carrasca da grandiosidade e imponência metafórica e racional,
talhando e retalhando em sentidos antagónicos e contraditórios e intumescendo
de compreensabilidade e inteligibilidade os problemas filosóficos
É por esta característica que a ironia provocou a minimização da racionalidade, empurrando-a inevitavelmente para uma
renovação de perspectivas, mais acanhadas, mais escassas, mas ainda assim mais inteligíveis, o que fomentou um
pouco a ideia de que a ironia mais do que a arte da guerra seria a arte das
escaramuças, da guerrilha. É dentro de um critério de racionalidades mínimas, aplicadas em contextos e circunstâncias
específicos, onde há factores determinados, mas instáveis, que a ironia tem o
seu habitat: ela não é uma
Anti-Razão, uma Des-Razão (57), uma espécie de razão ao contrário, mas é o
movimento precário e instável de uma racionalidade que apela permanentemente à
clarificação de problemas que assumem contornos, inapelavelmente, entre zonas
de sombra e de luz, entre inteligibilidades e ininteligibilidades, embora
sempre num campo específico e minimamente determinado e determinável.
De modo evidente, e tendo em conta as questões anteriormente solevadas,
a filosofia já não pode ser o pensar muito
ou o pensar Mais do que os outros
pensares: ela é tão só o pensar entre outros pensares e o configurar de
problemas, que não sendo equivalentes e muito menos iguais em relação a outros
domínios, são os que a singularizam e a tornam cada vez mais singular no conflito de se pensar como
problema. Dizer isto é rejeitar a enfática universalidade, para se aproximar do
particular, não como aquilo que é parte ou à parte, mas como o que se determina
num contexto de regras próprias e consente uma articulação com problemas
filosóficos, cujas premissas, virtualmente enunciáveis, acompanham e
nuclearizam a sua própria explanação.
Em sintonia com isto, a ironia, enquanto argumentação contextual produz
inteligibilidades complexas, embora singular e minimamente determináveis. A
ironia não pode ser uma espécie de solução negativa absoluta para a filosofia,
uma ironia global, cósmica ou de destino, capaz de, causticamente, nos conduzir
ao nada de todos os nadas dos argumentos e problemas filosóficos, mas tão só a
expressão de ironias particulares, habilitadas a suscitar a tensão específica
de cada problema e argumento na linguagem filosófica. Isto é conseguido pela
relação, sempre de oposição, entre explícito e implícito e pela perfeita e
rebuscada forma de implicitação que a ironia põe em campo. Argumentar
ironicamente é, sem sombra de dúvidas,
implicitar para além do argumento a sua própria negação; é exprimir mais
através de diferentes e opostos sentidos no que é enunciado e, por isso,
multiplicar os efeitos retóricos pretendidos.
Em consequência disto, e no horizonte de uma análise retórica e
argumentativa da linguagem, há que substituir a relação lógica instituída pela
implicação, pela relação argumentacional da implicitação (58).
Acresce a isto que o processo irónico da implicitação não sucumbe a uma relação
de mero antecedente e consequente, mas desdobra e diverge a relação num sentido
de probabilidades, onde se jogam simultaneamente identidades e diferenças, numa
graduação de interpretações e validades, cujo sentido só é possível pelo
contexto, circunstancial e situacional.
No limite, a implicitação amplia a possibilidade relacional de
inteligibilidade e acresce o grau de probabilidade argumentativa, sugestionante
e convincente, abrangendo formas de argumentação que ultrapassam e excedem as
fronteiras determinadas e militarizadas de uma validade formal e lógica. O
critério que sustenta a sua aceitação já não é lógico-demonstrativo, mas
retórico, ou seja, gerador de anuências que são, por si próprias, manifestações
de uma inteligibilidade e racionalidade que se reconhecem implicitamente nos
problemas. Ao invés de uma evidenciação ou de uma demonstração, a implicitação
lida, como toda a retórica, com o verosímil (59), numa cadeia de argumentos,
cuja textura é indeterminável, o que garante inferências múltiplas e abertas.
Na linha disso, implicitar não significa, liminar e estranguladamente, uma
inferência particular, uma relação linear logicamente verificável, mas é a
abertura a uma complexidade inteligível de relações e associações possíveis e
que permanecem virtualmente determináveis, nos múltiplos factores presentes na
linguagem, que não é só o organigrama ou o circuito integrado de uma máquina,
mas também a abertura diversa às heterogéneas perspectivas dos problemas.
Globalmente, o que diferencia profundamente a implicação lógica da
implicitação retórica é que a primeira é exaurível, nas suas determinações do
possível, enquanto a segunda é inesgotável nas relações que estabelece e, por
isso, comporta uma potencialidade superior do racional e do retórico, uma
dimensão alastrante e expansiva, que vai à revelia do sentido redutor e
verificador, inerente à lógica.
O que se exprime de implícito e, por conseguinte, na relação de
implicitação proporcionada por uma metáfora ou uma ironia, mesmo as mais
simples, é de uma densidade de combinações possíveis que aumentam
excruciantemente o poder argumentativo e de verosimilhança das mesmas, lidando
com relações e associações que não se esgotam numa estrutura lógica, mas só têm
foros de cidadania numa perspectiva argumentacional.(60)
Partindo desta base, pode-se afirmar que toda a linguagem é um processo
crescente de implicitação, do qual quer os tropos quer os conceitos são nítidos
exemplos. A ironia, enquanto argumentativa, é uma forma peculiar e particular
de implicitação, visto que é o implicitar o seu contrário, a sua negação, numa
cadeia de associações e relações, cuja verosimilhança ou inverosimilhança é
determinante.
Inelutavelmente, a ironia, como tropo, lida muitas vezes não com o
verosímil, mas com o inverosímil, ou seja, com a incompatibilidade contextual e
circunstancial do que é dito. Nos meandros disto, há que reconhecer que esta incompatibilidade é, naturalmente, a
base do problema irónico, que se nucleariza na contradição e a sustenta. Desta
forma, a ironia distorce o sentido até a um limite insuportável, que causa
inverosimilhança, que é o meio de determinar o verosímil que lhe é
implícito.(61)
No novelo destas questões, ressalta claramente a pertinência de uma
concepção irrestrita do processo de implicitação, que modele a diversidade e a
contingência do racional, numa multiplicação das possibilidades do pensável e
argumentável. O implícito não é desta forma a sombra e o correlato do
explícito, mas é a pluralidade de associações a estabelecer e que medem o
próprio explícito, que ganha tão mais sentido plural quanto o que nele se implicita é
também a antífona de graus heterogéneos de sentido, cujo desvendamento
é determinado pelo efeito retórico no auditório. Toda a linguagem tem efeitos
retóricos, não no sentido de um artificialismo rebuscado e enviesado, numa
espécie de show off das palavras e
dos argumentos, como efeitos especiais, imagem peregrina de uma retórica de
salão de beleza (62), cuja futilidade é venial e capitalmente condenável, mas
no sentido que nela algo se excede e um novo grau de inteligibilidade e
racionalidade se atinge.
É neste ponto, neste cruzamento que a ironia, perplexidade entre o verosímil
e o inverosímil, intersecção nítida entre o sentido e o absurdo, entre a
certeza e a dúvida, activa todos os processos conducentes à constante
problematização filosófica, sem a qual a filosofia cede à nodização de si própria, na contemplação beatífica de um ponto de
fuga perdido num horizonte nulo. Por adveniência, a ironia é o
que torna incompleto todo o pensável e que desfoca a tentação de uma
concepção holística do pensamento. Determinada por aquilo que nega e
indeterminada por aquilo que afirma, a argumentação irónica é a que mais nos
aproxima da dialéctica, quer dizer, da pluralização dos problemas e da sua
perspectivação numa comunidade de interesses ou relações. A dialéctica irónica
exprime-se não como uma técnica ou metodologia, mas como uma relação
problemática que dá conta, adequada ou inadequadamente, das dificuldades da
linguagem, do homem e do mundo. A polemicidade
(63) é o espírito fulgurante da ironia, a manifestação constante de uma
argumentatividade que lhe é co-natural.
Em consequência disto, poder-se-á falar de uma ruptura problematológica provocada pela ironia, o que se subentende
na noção de que a ironia causa dois efeitos fundamentais : por um lado,
institui uma nova dimensão e perspectiva sobre o tema, que resulta directamente
da tensão e da oposição; por outro lado, prepara a reordenação global do
problema, no sentido em que figurando a contradição imprime uma nova
inteligibilidade do problema, que advém da abertura a uma nova possibilidade de
argumentação e pensabilidade que só é concretizável após a ironização.
Na linhagem destas questões, a ironização (64) é o método, instável e
assistemático, de simulação de todos os possíveis, na formulação do hipotético,
que é percorrido na contingência implícita à hipótese, que não é mais do que uma simulação
do possível (65), o que nos aproxima fortemente da análise do
verosímil, como uma possibilidade e hipótese de validade e veracidade. Deste
modo, a linguagem, e aqui deve residir a perspectiva retórica da mesma, é uma
formulação do hipotético, sendo este a convergência entre o possível e a
simulação. Esta convergência não nos empurra cegamente para uma teoria da
representação, como de imediato e com excessiva pressa se poderia ilacionar a
partir da ideia de simulação, que está conotada com uma mediação e
representação, com um desdobramento entre real e aparente, entre mundo e
linguagem mas, bem pelo contrário, provoca-nos e convoca-nos a uma unidade
inteligível entre mundo, homem e linguagem, como simulação permanente do
possível, através do qual se alarga a compreensão de um e de outro que é,
afinal, a mesma.
Radicar-se a linguagem, e todas as formas de racionalidade, na
simulação fará, com certeza, despoletar todo um coro trágico de vozes,
esgrimindo o problema da autenticidade face à inautenticidade, no brilho divino
e na sombra demoníaca de uma consciência juíza de si mesma. No entanto, este
coro açulado de protestos só tem actuação pela ideia de um dualismo fatal, que
faz da linguagem uma forma secundária da presença do homem perante si mesmo e o
mundo. Esta dualidade, tipificável na maioria das filosofias da consciência,
esbate-se de imediato se se conceber a partir de uma unidade a linguagem, o
homem e o mundo e em que cada um é uma construção e uma simulação dessa
unidade. Assim, e sem sobressaltos e pesadelos, a simulação é a própria
possibilidade dessa unidade e toda a linguagem realiza essa simulação, na
materialização de hipóteses verosímeis e prováveis, que clarificam a nossa
intelecção dos problemas e a nossa auto-compreensão.
Interligada aos quesitos anteriores, a ironia, a par de todos os
tropos, intensifica brutalmente a possibilidade da negação ou do inverosímil,
como um limite não manietante e esfaqueante da inteligibilidade, mas como
exigência de uma contingência, passe a contradictio
in terminis , que dinamiza e multiplica a compreensão racional do homem.
Ao contrário do célebre hypotheses
non fingo, a simulação irónica, metafórica ou outra é a expressão do hypotheses fingo , onde a linguagem é a
existência de uma realidade virtual,
cujo sentido só é inteligível no jogo de virtualmente o expressarmos: mais do
que isto é postular a essencialidade de algo, para o qual estaríamos, em
definitivo, desarmados e incapazes de lhe acedermos.
Em conclusão, ironizar é conquistar uma forma de possível, explorando
hipóteses plausíveis, aumentando a compreensão dos problemas. E nesse jogo do
possível da linguagem a ironia é a mais lúdica e lúcida; a que nos leva através
da inversão racional, que constitui
a simulação irónica, a uma ambiguidade inovadora e problematizadora entre o
sério e o a brincar (66) É a seriedade que potencia o irónico e é
o irónico que potencia a seriedade: esta complementaridade reflecte
perfeitamente a própria relação umbilical entre o racional, a simulação e o
irónico.
Acaba também por ser na ambiguidade irónica que se perfila o jogo de
palavras, que vai de par com a criação de palavras, com a inventio já destacada no primeiro capítulo, cujas relações
polivalentes infiltram múltiplos e contrastantes sentidos, criando efeitos
diversos, determinando reacções específicas no/s auditor/es.
De todas as maneiras, a ironização é um processo argumentativo que
parte de premissas que são, indirectamente, implicitadas nela e que são contrastadas
com a conclusão possível. No fundo, esta operação apoia-se no que se pode
chamar, com propriedade, uma argumentação
indirecta, não havendo uma demarcação explícita e ostensiva dos argumentos
e da sua relação quase lógica, argumentação essa feita através de comparações,
analogias, incongruências, absurdos, etc., que provocam a impressão do cerco
irónico, desse perifrástico e hiperbólico enunciar, desse dizer pelo não dizer e do
não dizer pelo dizer.
Se é difícil, num sentido lato, destrinçar ironia de humor é porque
nela está presente o conflito entre seriedade e humorismo, conflito que a
própria ironia alimenta e atiça, num aumentar de equivocidades para melhor
exprimir a sugestão de um piscar de olhos ao auditório, na cumplicidade
comunicante de quem ironicamente se compreende a si próprio na relação com os
outros. E neste jogo, a ironia é a descoberta da teatralidade da linguagem, não
só como um cenário do possível, mas como happening
de múltiplas e inesperadas contingências, já que toda a linguagem é uma abertura ao
inesperado, que irrompe como uma ironia.
3. Ironia e Negação:
-Se non è vero è bene trovato.
" The protoplasm of philosophy has to be in a liquid state in order
that the operations of metabolism may go on."
Charles Peirce
Na inteligibilidade significativa e na racionalidade díspar que a
ironia, porosa e multiplamente, estabelece, não é de admirar a associação que
se fez entre Proteu e a ironia (67). Proteu, para além do dom da profecia, era
conhecido pela capacidade ilimitada de metamorfose, de adaptação e perfuração
de todos os estados, num bailado interminável de formas.
Também a ironia é o exercício de uma racionalidade multiforme, que se multiplica
em associações e relações, em que a inteligibilidade é precariamente
determinante e determinada dum contexto, embora inaugurando uma pesquisa
permanente e inquieta dessas associações e relações, cuja textura interna é
problemática, quando não polémica. Daí se poder dizer que a ironia, pelas
características já apontadas, nos mergulha no próprio movimento interno à
argumentação: toda a argumentação é já e sempre uma contra-argumentação, quer
dizer, a ironia é o exercício ambulante de uma constante virtualidade, que se
manifesta numa cadeia de associações e relações, onde o hipotético prevalece e
cuja intensidade argumentacional depende da maior ou menor solidez relacional e
contextual.
Se a retórica clássica foi vista, na suspeição anatemizante lançada
pela filosofia, como um expressionismo
da linguagem, uma espécie de gesticulação, excessiva e furiosa, foi porque se
pretendeu elidir a inteligibilidade
contrastada que toda a linguagem determina e da qual a ironia é paladina e
protoplasmática. É esta inteligibilidade contrastada, determinante de níveis e
de perspectivas, que a ironia, enquanto lídima representante de um pensar
argumentacional, desenvolve e explana de modo claro.
Assim, mais do que um jogo metafísico, como aplopecticamente foi
exaltado pela ironia romântica, nesse jogo abissal entre nada ser e ser nada
(68), num brilho de estrela cadente, capaz de alucinar o sentido do que se diz
até à exaustão, a ironia é a refracção de uma inteligibilidade, nos seus
contrastes internos e externos.
Enquanto argumentativa, quer na modalidade de tropo da palavra quer,
primacialmente, de pensamento, a ironia é a verduga que conduz a Razão
hipostasiada e substancializada aos seus limites, aos seus muros e a expatria
da verdade demonstrada e certificada intra-muros,
o que leva a gerar uma racionalidade de conflitos, de contradições e de
multi-incertezas, que pode ser auto-fágica, no sentido em que toda a linguagem
só noutra linguagem é linguagem (69). Toda a linguagem irónica é um alastrar
voraz de perspectivas e uma crescente ramificação das possibilidades de
inteligir problemas, que criam um novo grau de perplexidade e de
problematização racionais.
Por estas razões, a ironia, e parafraseando Nietzsche,
"despotencia o intelecto do adversário" (70), obrigando-o a uma
recontextualização que pode ser, metaforicamente, um problema de táctica,
mediante uma capacidade de réplica à própria ironia. Daqui decorre que a ironia
introduz um efeito surpresa e ensaia uma táctica de contra-ataque que coloca o
adversário contra a parede, numa situação aporética, que imprime e
impele a uma redefinição de posições, condição imperiosa à reavaliação crítica
e aberta dos argumentos.
A ironia, no subtil e quase etílico movimento argumentacional que
exerce, desembainha o mordaz e acutilante estilete da negação implícita, como
forma de sugestionar novas e diferentes perspectivas sobre o problema, fazendo
incidir nele a reverberação intensa de uma pensabilidade expansiva, extensiva e
ostensiva, mas qualitativamente diferenciada e gradativamente explorada. No
confronto ou escaramuça que a ironia comporta e transporta, o que está em causa
é sempre uma racionalidade que não se apazigua na indiferenciação unívoca de si
mesma; propondo-se, em alternativa, uma racionalidade de comensuráveis perspectivas,
cujas regras se organizam na sua própria prática, pela eficácia operacional que
permitem e pelo alcance perspectivista que desencadeiam.
Devido aos argumentos focados, a ironia não é meramente um estilo, uma
figura discursiva prète-à-porter, mas
há uma racionalidade irónica ou, mais adequadamente, nunca a racionalidade pode
deixar de ser irónica, sob pena de ser incompleta, o que é configurado e
garantido em dois trabalhos de base operados pelo raciocínio irónico e
imbricados um no outro, ao ponto de através deles se poder estabelecer o perfil
exacto do impulso argumentativo da ironia, sufragando-a como forma suprema de
exercício argumentacional.
Dos dois aspectos acima aludidos, o primeiro a ser referido enquadra-se
no que se passará a designar pelo trabalho de desconceptualização
imprimido pela ironia e a tensão permanente ensaiada por ela entre
conceptualização, desconceptualização e reconceptualização (71), numa
plasmática contradição, como se nela se ensaiasse um estado não sólido da
argumentação, deixando fluir a viscosidade de possibilidades equivalentes,
ainda que opostas e contraditórias.
De facto, o raciocínio irónico que, per
se, se articula na oposição, na conversão dos enunciados nos seus
contrários e contraditórios, é um súbito e incómodo rasgar do encadeamento
conclusivo e, por vezes, pretensamente concludente do raciocínio. Por via disto
e inevitavelmente, a ironia retira à conceptualidade a sua densidade,
mostrando-a incompleta e inseminando-lhe uma virtualidade de perspectivas, que
a sua clausura definitória lhe pretendia sonegar (72).
A conceptualização, essa aproximação sistemática e perspectivada a um
problema, só tem sentido na desconceptualização irónica; na multiplicação do
problema na sua própria negação e na insinuação irónica de que esse problema é
relativo e não portador de um absoluto sentido. Só este preceito, que é
garantido pela ironia, permite escapar ao dogmatismo e à sua versão negativa e
desiludida, o cepticismo, criando vias de problematização e de inteligibilidade
integrada e integrante do problema, que de outro modo ficariam anestesiadas e
hipnotizadas na auto-suficiência da conceptualização. Consequentemente, a
ironia não gela e esteriliza a argumentação, mas desenvolve nela um novo
impulso que é sempre enriquecedor da multiplicidade problemática que qualquer
conceito alberga e arrasta.
Decididamente, a desconceptualização não é um mero e tacanho exercício
crítico que, pela negação, infiltra de inconsequências o conceito, mas uma
declinação de várias argumentações possíveis perante um mesmo problema, já que
todo o conceito ensaia problemas, numa estrutura e relação irónicas, isto é,
insinuante de probabilidades e simulações, que o renovam permanentemente.
É óbvio que a desconceptualização não é uma simples negação do
conceito, mas a densificação, a conceptualização problemática dele, o que lhe
garante não uma sempiterna actualidade, numa visão perene da filosofia, cuja
exaltante embriaguez foi advogada nas mais diversas e, por esta razão, irónicas
formas, mas uma efémera actualidade, efemeridade necessária ao distanciamento
propício para enfrentar uma nova maneira de sobre ele argumentar.
Na senda disto, a desconceptualização acaba por ser também o
desencanto, a decepção que uma visão argumentativa dos problemas e dos conceitos
concebe no seu seio: uterinamente, todo o conceito é um problema irónico, mesmo
quando é uma ironia falhada ou, por isso mesmo, soçobrou na negação
problemática de si mesmo. E enquanto problema irónico, o conceito aparece como
o desafio ao que se poderá e deverá chamar uma inteligibilidade integrada, onde
se graduam e organizam diversas perspectivas, ainda que polemicamente
contraditórias, mas cujo grau de possibilidade e verosimilhança resulta da
própria expectativa irónica que nelas se instala, pois só a ironia desenvolve
nitidamente uma racionalidade de expectativa, uma abertura ao que de mais
insolente e insólito perpassa pela linguagem, a saber, que nela todos os problemas são jogáveis, não por
todos se equivalerem, mas por todos aí encontrarem as regras diferenciadas,
ainda que precárias, para um resultado eficaz da sua validade.
No extremo, e enquanto problema inicial, também o conceito de filosofia
se apresenta e interroga ironicamente e é talvez o mais insolente, e por que
não, insólito problema irónico. É por isto que na filosofia e no seu conceito o
trabalho de desconceptualização é ainda maior, mais perigoso, provocando que a
filosofia se reflicta tão mais problematicamente quanto mais ela se
desconceptualiza e se aproxima da visão irónica de si mesma.(73)
É esta mesma desconceptualização, na sua orgânica relação à
conceptualização, que constitui o líquido protoplasmático da filosofia,
mencionado por Peirce, no qual se configuram possibilidades permanentes de perspectivas,
que são inevitavel e dinamicamente, metamorfoses de relações de conceitos, nos
seus usos teórico e prático. A ironia, só por si, não é um estado determinado
do raciocínio e muito menos o seu enquistamento e apoplexia, mas o proteiforme
material da sua formação, pois é nela que o conceito atinge a sua inversão, a
reviravolta de contexto e sentido, que abala a sua estrutura e introduz uma
dimensão paroxística da sua interpretação.
Mais do que servir para uma salvação, para uma escatologia do conceito,
como era a metodologia socrática, o raciocínio irónico e desconceptualizante é
o que potencia o problema, numa perspectiva de divergências que garante a sua
inteligibilidade e a sua pensabilidade. Ao contrário da suposição dialógica
socrática, que procurava o repouso, a parousia
do conceito, a ironia deve ser sempre entendida como o que articula
perspectivas complexas e inesgotáveis do problema e que viabiliza uma multi-pensabilidade
do problema. É entranhado nisto que se encontra a desconceptualização
irónica, como uma forma de semear contradições, dúvidas, hipóteses, numa
partida fantástica de lances cujas consequências são indetermináveis, mas que
garantem uma prospecção suficiente no acréscimo introduzido e nas alterações
provocadas, fazendo e refazendo novas formas de conceptualização e
problematização.
No fundo, a ironia é ,a cada momento, uma prospecção no indeterminado de
cada problema, introduzindo o efeito surpresa e fazendo aceder o
inesperado à ordem do inteligível. No entanto, se, para algumas filosofias, a
razia e o saque eram brutais, era porque viam na filosofia a lucidez do eterno,
da qual os conceitos eram lídimos representantes e demonizavam a ironia como
uma espécie de Anti-Filosofia, numa dicotomia quase maniqueísta. Pelo contrário,
e como já foi várias vezes reafirmado, a ironia é a fotossíntese entre luz e
sombra, crescimento e decrescimento, identidade e diferença, conceptualização e
desconceptualização, metáfora e ironia, em que se radica toda a precária
invenção e construção da inteligibilidade dos problemas filosóficos. E em cada
problema estamos tão mais problematicamente quanto mais o pensamos
ironicamente, o que nos garante a diversidade conceptual de o abordarmos, de o
resolvermos, de o perspectivarmos, mas sempre integrado num contexto de
soluções e perspectivas cujo uso é condicional e, sucessivamente, interrogado,
no enquadramento de relações e regras sempre marcadamente instáveis.
Assentando nisto, decorre a condição prospectiva da ironia, o
que nos conduz à interrogatividade como prospectividade. A prospectiva irónica emerge da referenciação negativa e do
contexto, o que demarca o problema filosófico, não só pelo conjunto de
dimensões que lhe são inerentes, –a perspectiva–, mas, e num tour de force, sugere propostas, arriscando
perder-se naquilo que é prematuro, ou seja, a renovação do problema no
pensamento e na linguagem.
Toda a filosofia vê-se assim mergulhada num dilema irónico que a faz,
enquanto abertura ao problemático, balancear entre a concepção perspectivística e a prospectivística. A ironia é a que
introduz e cauciona o acréscimo prospectivo ao perspectivismo, preparando a
génese e o metabolismo necessários à mutação de perspectiva de valores e de
conceitos, mostrando a inevitável inter-conceptualidade
entre todos os problemas filosóficos, não para os equivaler, igualizar ou
consolidar numa perspectiva fora de contexto, parente pobre do perene, mas para
os integrar na diversidade e heterogeneidade de contextos, mutantes e mutáveis.
Na derivação destes aspectos, a ironia, forma apurada de
problematização e interrogatividade, é a que prospectiva os conceitos e os problemas que lhe estão integrados,
remetendo-os a um novo contexto e a uma nova possibilidade de pensabilidade, e
preserva, ao mesmo tempo, o carácter marcadamente prospectivo da filosofia, ou
seja, a capacidade de antecipar, de anteriorizar o inteligível, o que converge,
mais uma vez, com a ideia da linguagem como um imenso laboratório do possível e
da simulação. Desta forma, toda a linguagem é prospectiva, visto que ela
antecipa sempre algo que só nela se pode revelar e, por tal, como antecipação,
joga no imprevisível e arrisca uma inteligibilidade, que não está toda dada nem
esgotada nela.
O acesso natural a essa imprevisibilidade faz-se pela problematização,
que sobrevive constantemente na figura da ironia que, ao invés das outras
figuras, onde a problematização se pode anestesiar ou até esvanecer-se, mantém
viva a chama agónica, combatente dos
problemas, que são manifestação de dificuldades e de conflitos.
O prospectivismo irónico
acaba por ser o movimento basilar de desconceptualização, mediante a negação e
inversão irónicas, que desenham os contornos de uma probabilidade e
verosimilhança, cernes da retórica e da figuração da linguagem. E todo o
conceito, enquanto presença de expectativas, alude não ao inteligido mas ao por
inteligir e prepara a possibilidade de uma nova perspectiva conceptual e
valorativa, direccionando-a para um contexto próprio, que se constitui ou não
como um grau de inteligibilidade dos conceitos e dos problemas.
Na borda destas magras e esqueléticas questões está a afirmação, ela de
si tão alusiva, de Deleuze e Guattari, "A filosofia como gigantesca
alusão" (74). Também a ironia é um jogo de alusões que se exprime por meio
de relações de problemas e conceitos e que são só formas alusivas a algo que
permanece profundamente indirecto.
Na outra margem da questão, acena com um pequeno lenço branco o
problema do tempo, ao qual Deleuze e Guattari atribuem uma presença
incontornável na abordagem da virtualidade conceptual e da relação inteligível
que ela marca (75). De algum modo, também o tempo é contínua alusão, enquanto
sugestão metaforizante ou ironizante, conforme o ponto de vista, que prospectiva uma possibilidade de
inteligibilidade. Se, na concepção clássica e epistémica da filosofia, ela
aparecia como uma reflexão posteriorizada de uma Erlebnis, forma entardecida de tempo, e abrigue-se aqui a célebre
coruja de Minerva, emblema da filosofia de Hegel; e se todo o pensamento
filosófico era algo sempre tardio, desdobramento e duplo de um original
inatingível, já na concepção retórica da filosofia, esta tem que ser encarada
como o que antecede, antecipa e previbiliza, o que lhe garante automaticamente
um carácter de jogo e de risco que a perspectiva reflexionista/reflexiva
escamoteava, na segurança de quem fala como espectador, mais ou menos atento ao
naufrágio. (76)
Retoricamente, toda a filosofia se enquadra numa ética do risco e do
contingente, ou seja, é sempre uma proposta problemática de inteligibilidade,
cuja aceitação é apelativa a uma relação de sujeitos, na pluralidade manifesta
e transitiva de pressupostos, sempre instáveis. Não é de admirar então que todo
o esforço oratório e retórico da filosofia seja um lance inevitável de um jogo
cruzado de possibilidades, que só tem sentido no prospectivismo do auditório a que se dirige, não no sentido de um
teleologismo determinista, mas numa polarização de possibilidades e de relações
inteligíveis. Por isso, a ironia é uma
inteligibilidade arriscada e o maior risco de todo o pensamento e,
consequentemente, o mais contingente.
Se a desconceptualização constitui o primeiro aspecto estruturante do
raciocínio irónico, capaz de propiciar uma rarefacção do pensamento, levando-o
à sua regeneração, não é, no entanto, o único, pois há um outro trabalho de
base operado pela ironia, que poderia ser designado por contradução.(77)
Para entender esta proposta é necessário recorrer à nova concepção de
inferência problematológica, tal como a defende Michel Meyer (78) e, por outro
lado, equacionar o problema que reside na interconceptualidade
existente entre dedução, indução e abdução, referindo-se nesta o olhar
privilegiado que sobre ela lançou Peirce, para tentar a partir dessa
interconceptualidade esculpir o que se pretende pensar por contradução, como
conceito, ainda que eriçado de problemas e de dúvidas, apto a responder à
inferência realizada pela ironia.
Ora, desde os seus alvores, desde a ironia socrática, que a ironia
pressupõe a inferência problematológica, como explicitação a partir de e para
uma questão, onde a questão se mantém como hipotética e presumível (79). Para
esse efeito, basta analisar o sentido do diálogo socrático para se perceber bem
este problema. De facto, todos os diálogos começavam na negação da definição
proposta, o que não era ainda uma contra-definição ou uma definição contrária,
mas tão só uma negação expressa mediante uma asserção particular negativa que,
por subalternização, permitiria eventualmente inferir a universal negativa, embora
usando, muitas vezes, uma falácia de
oposição, pois da veracidade das particulares não se pode deduzir nada sobre as universais. Aliás, no
fundo, Sócrates usava o célebre quadrado de oposições de Aristóteles sem, no
entanto, o formalizar (80), e por via desse cruzamento permanente de relações
lógicas intensificava a questão inicial, como se problematizar fosse, na
verdade, o destino trágico do
pensamento, pois através dele se acederia a uma ordem de inteligibilidade
absoluta.
Em convergência com tudo isto, e num processo dialéctico/dialógico,
ficaria demonstrada a impossibilidade formal e material da definição
inicialmente servida pelo interlocutor, que ia sendo reformulada e redefinida
sucessivamente, graças a repetidos saltos
lógicos, de definição em definição, superando aporias parciais e
parcelares, mas sempre no seio da tensão crucial entre universal e particular,
definição e contra-definição, afirmação e negação. Todavia, neste método
socrático ainda se encontra encapotada, camuflada a inferência problematológica,
e a inferência irónica, por inclusão, pois é um dos seus modos, podendo-se até
dizer que a ironia socrática ambicionava a sua própria anulação e o
apaziguamento do problema inicial. Na verdade, mais do que o problema o que
interessava era a solução do problema (81), desvirtuando a concepção
argumentativa e retórica da ironia e o que toda a ironia revela,
fundamentalmente enquanto tropo do pensamento, ou seja, a contingência de todos
os argumentos e respectivas enunciações, já que todos eles suportam uma tensão
irónica, podendo vir a tornar-se em argumentos irónicos, desde que inseridos e
integrados noutro contexto e, por conseguinte, pensados a contrario.
É esta virtualidade que faz da ironia uma inferência argumentativa, que
não se compadece com a definição de inferência dada nos Primeiros Analíticos (I,1,24 b 18), por Aristóteles (82), e que
passou a constituir matriz de múltiplas inferências sobre a noção de
inferência, e na qual há mais do que uma mera contradição, equacionável numa
estratégia limitada e estreita de verdade e falsidade, restrição essa que é o
selo de garantia do êxito de qualquer processo de formalização, como à
saciedade foi evidenciado por Hofstadter.(83)
Perante a inferência problematológica e, por inerência, a irónica, há
que apelar a outros critérios mais amplos, menos precisos, mais plásticos,
aptos a ultrapassar o "mecanicismo" lógico e a infiltrar o pensamento
e a argumentação dessa tensão, em toda a intensionalidade e extensionalidade,
da problematização. A racionalidade não é o exercício de um simples combate,
mas a manifestação polémica, no sentido etimológico da palavra, de infindos
processos de exercício metafórico, irónico, analógico, antilógico, etc. do
pensamento.
A ironia não é verdadeira nem falsa, nem postulado de uma ou doutra:
ela é a manifestação de um problema e a sugestão permanente de soluções
problemáticas para ele. Cada ironia transporta uma carga explosiva de
problematização só activável e resolúvel por uma reformulação do problema,
igualmente irónica.
É em função disto que a ironia só é argumentável, contradutivamente,
por outra ironia, como redescrição e recontextualização, que nos coloca numa
inferência contradutiva e problematológica, visto que algo de diferente resulta
da ironia, que é a nova questão explicitada no implícito que é ironizado.
O problema de fundo é que na ironia o raciocínio não se faz por
analogia, mas sim por contraste, que já está inserido, como que em
baixo-relevo, no próprio enunciado irónico. Assim mesmo, a ironia arrasta a co-possibilidade
do afirmativo e do negativo, num jogo intenso onde um se disfarça no outro e
vice-versa, pelo que é bastante difícil inserir o raciocínio irónico, tout court, num processo de negação ou
de contradição ou sequer num processo lógico-formal de inferência. Assim, o
problema fulcral a destacar de toda esta constelação de questões, e aquele que
desenha o perfil argumentativo da ironia, é o de saber como se responde a uma ironia,
na diametralmente oposta concepção de quem a vê como um golpe baixo na jugular
argumentativa, uma espécie de K. O., que é a de quem a encara como a
solicitação a uma reproblematização, que ensaie novas perspectivas de
pensabilidade.
Esmiuçando mais em pormenor as linhas cruzadas do tema em análise, é
fácil constatar, perante qualquer ironia, que ela constitui um desafio: a quê,
é a questão! Numa análise mais superficial, parece que o que determinou a
valorização ou desvalorização da ironia, empreendidas nos mais diversos
momentos da história do pensamento, foi que ela era tão mais eficiente quanto
mais silenciasse a possibilidade de resposta; que ela era tão mais brilhante e
suprema quanto raio cáustico fosse, como manifestação de uma inteligência perfeita.
Ora esta visão idolatrada ou amaldiçoada da ironia cegou sempre uma sua análise
mais consequente, que procurasse desentranhar a sua efectiva função.
Efectivamente, a ironia só tem sentido como um convite, um desafio, uma
sugestão, uma sedução ao diálogo conivente, convivente, cúmplice, num partida inter pares de debate de argumentos.
Nenhuma ironia, mesmo a mais literária, o é sem o mínimo quanto baste
de diálogo, de sugestão de cumplicidade, de aproximação dentro de um desafio,
na paradoxalidade que a modula e que compele à procura do que, em abono da
verdade, é a ideia central do problema que se está só ainda a aflorar: a réplica.(84)
Entre os exemplos avulsos já citados (85), é possível colher alguns de
réplicas, tais como o "Noel Coward, escritor e actor inglês, encontrou uma
novelista americana, Edna Farber, que usava um fato masculino: "Você quase
parece um homem!", disse-lhe ele. "Você também", respondeu-lhe
ela."; ou acrescentar a célebre troca de "galhardetes" entre
Bernard Shaw e Churchill. Shaw, ao convidar Churchill para a estreia de uma das
suas peças, enviou dois bilhetes, dizendo: "Um para V. Ex. ª e outro para
um amigo...se tiver algum!". Churchill disse não poder estar presente, mas
perguntou se podia ter bilhetes para o dia seguinte, "no caso de haver
segunda representação!". Verifica-se, nestes exemplos, que a simples
concepção lógica da contradição, enquanto oposição entre verdadeiro e falso,
universal e particular ou outras modalidades, não é suficiente, visto que estamos
perante dois enunciados que, formalmente similares, se inferem
contradutivamente, problematicamente, não sendo nenhum deles mais verdadeiro
que o outro, relacionando-se por uma negação
irónica que, como réplica, produz uma inferência de conversão de sentidos e
inteligibilidades, numa aparente sequência linear formal.
Se a réplica e a replicação é a operação que determina a resposta à
ironia e se é através dela que, ironicamente, toda e qualquer ironia é
argumentada, há então que explicar mais detalhadamente o que se entende por
réplica.
Implicar e replicar são duas palavras que têm uma etimologia de
afinidade e cuja sugestão etimológica é já bastante aliciadora. De facto,
implicar provém do verbo latino implicare,
que significa enlaçar, entrelaçar, ligar, unir; e, por sua vez, replicar deriva
do verbo replicare, que significa dobrar
para trás, curvar em sentido contrário; tendo ambos como étimo o verbo plico, plicavis ou plicui, plicatum ou
plicitum- dobrar, enroscar.
Vê-se, assim, que na própria inocência da etimologia, corre já a seiva
de algo que se afigura fundamental na destrinça a estabelecer entre implicação
e replicação: a primeira desenvolve um raciocínio de ligações que se
entrelaçam, numa cadeia lógico-argumentativa, embora sedimentando uma coesão e
uma unidade, o que se afasta da noção de dobra
ínsita à ideia de réplica, ou de curvar em sentido contrário.(86)
Numa geometria simbólica, a réplica é a resposta, a inferência do
contrário, mas num sentido formal e problematologicamente circular, de um
retorno ao ponto de partida, não como um eterno retorno que descobre o
original, mas como reactualização da questão e reabertura incisiva do seu
insolúvel. Deste modo, replicar não é constranger-se a uma fórmula canonizada,
através de regras que disponham da sua sintaxe, mas é submeter-se a uma
trajectória de assíndota, em que a uma ironia se converge divergindo numa nova
ironia que procura naquela o ponto de partida e que a repete, quase a
parafraseia, mas ampliando-a e retorquindo-lhe.
Este mesmo efeito, quase aerodinâmico de boomerang, é bem perscrutável nos exemplos anteriormente
referenciados, onde num jogo de subentendidos e de negações das negações,
implícitas e explícitas, o que sucede é que a réplica reabre, como um círculo,
o que na outra já parecia encerrado. Mais minuciosamente, no primeiro exemplo,
a ideia de homem, no seu contexto social e de valores, é ricocheteada por entre
a negação que lhe subjaz, numa sugestão do contrário, o que também se verifica
no segundo exemplo, ainda mais flagrante do que se pretende enunciar como
réplica, pois facilmente se constata que a resposta de Churchill se limita a
copiar a fórmula de Shaw, introduzindo-lhe uma alteração do conteúdo explícito,
mas garantindo o contexto implícito.
Impressivamente, mas ainda de uma forma difusa, o que se apresenta
nesta modesta análise é que a intensidade prolemática da ironia não se
compagina com regras pré-determinadas de inferência, dado que não há regras
específicas de inferir a partir de uma ironia uma outra, pois, e desde logo, a
ironia é já uma inferência implícita, que só é inteligível enquanto tal quando
inferida como ironia.
Perante esta situação, e admitindo que uma ironia se mede pela sua
eficácia, há que procurar uma nova forma de entender o raciocínio irónico, onde
operações como dedução, indução, abdução e critérios de contradição se revelam
escassos para reter e promover correctamente a inferência irónica e dar--lhe a
consistência adequada à sua sobrevivência para além do delgado e ressequido papel
de uma figura de estilo. Esta nova abordagem conceptual subsume-se no que já
foi designado por contradução, e é no quadro contrastante com as operações
anteriores que se pretende, a partir de agora, moldar e asseverar que toda a
perspectiva retórica e argumentativa da linguagem, no seu esforço de construção
de tropos e conceitos e das relações problemáticas entre eles, requer uma
reapreciação dos diversos modos de inferência até agora, lógica e
filosoficamente, explanados.
A primeira ideia a reter é que a ironia não é uma simples contradição,
o que já foi delineado anteriormente. Efectivamente, a inversão operada pela
ironia implica logo uma negação interna entre o conteúdo explícito e o contexto
implícito, o que gera um enunciado bivalente e aflorando a paradoxalidade. No
entanto, imediatamente perante esta inferência sugestionada de um enunciado que
se revela irónico se coloca o problema de que ela não pode ser nem dedutiva,
nem indutiva, dado que opera através de uma ambiguidade, que extravasa qualquer
relação meramente formal.(87)
Por consequência, não sendo uma simples contradição, pois a ironia
introduz uma contingência de sentido, que escapa ao despotismo iluminado e
iluminista de uma função de verdade por contradição; quer dizer então que a
ironia lida com o verosímil e acede a si mesma por uma probabilidade de
interpretação, que só um auditório pode determinar (88). A ironia é, deste
modo, um jogo com a própria negação e contradição, compaginando-as, tornando-as
permissíveis, procurando através delas revelar e fazer adivinhar algo que deve
ser um laço de perplexidade e de acréscimo excessivo de sentido. Donde que ela
seja quase como uma adivinha, na qual o sentido literal das palavras se
metaforiza e se ironiza, o que obriga o leitor ou o auditor a perceber a
contradição e a aceitá-la como um acréscimo de sentido e de oportunidade.
Assim justificada, a contradição irónica não é uma incoerência ou uma
impossibilidade lógica e formal, mas uma forma de sublinhar o que se diz,
acrescentando-lhe novas dimensões e intensificando o efeito retórico que se
pretende, desestabilizando a coerência para se ganhar em inteligibilidade e
problematicidade, como reconhece Perelman: –"L'assertion,
au sein d'un même système, d'une propsition et de sa négation, en rendant manifeste
une contradiction qu'il contient, rend le système incohérent, et par là
inuitisable. Mettre à jour l'incohérence d'un ensemble de propositions, c'est
l'exposer à une condamnation sans appel, obliger celui qui ne veut pas être
qualifié d'absurde à renoncer au moins à certains éléments du sistème.
Quand les énoncés sont parfaitement univoques,
comme dans des systèmes formels, où les seuls signes suffisent, par leur
combinaison,à rendre la contradiction indiscutable, on ne peut que s'incliner
devant l'évidence. Mais cela n'est pas le cas quand il s'agit d'énoncés du
langage naturel, dont les termes peuvent être interprétés de différentes
façons. Normalment, quand quelq'un soutient simultanément une proposition et sa
négation, nous pensons qu'il ne désire pas dire quelque chose d'absurde, et
nous nous demandons comment il faut interpréter ce qu'il dit pour éviter
l'incohérence."(89)
Não é então de espantar que, por maioria de razão,
a negação irónica, subtil, equívoca, multi-interpretativa imprima, forçosamente,
ao raciocínio uma complexidade que não é legível pela lupa da concepção da
negação lógica, cuja validade se esgota em si mesma e nada responde ao apelo e
desafio da linguagem. Embora, na maioria das vezes e numa canónica estilística,
a ironia tenha sido definida, apoiada nas ideias de contrário e negação, essa
definição não pode exaurir-se em si própria, como se ela não provocasse
problemas e não pudesse levar-nos à necessidade paradoxal de definir
ironicamente a ironia, num jogo burlesco e viciado, onde a definição de ironia
fosse uma ironia...
Em consequência disto, a negação irónica implicita no seu seio uma
multiplicidade de associações, analogias e de dissociações, contrastes que só
são apreensíveis e pensáveis num contexto rico, onde o que se diz se exerce
retoricamente, quer dizer, no limite do possível e da inteligibilidade, no
sentido em que nela se corre o risco máximo e retórico da incompreensão (90),
não num sentido incontinente, de má-formação total e absoluta, mas como risco
inerente a toda a linguagem, e perante o qual a lógica pretende criar
anti-corpos e vacinas eficazes.
É na esteira do anterior, que a negação irónica acaba por ser uma forma
emblemática da dissociação de noções (91), que está presente não só no esforço
analítico e crítico do pensamento conceptual filosófico, mas também, na
perspectiva que se tem vindo a subscrever ao longo deste trabalho, em toda a
linguagem e seus usos e que pode até ser a dissociação de uma metáfora feita
ironicamente. Por razões de sobra, a negação irónica é uma forma dissociante de
noções e da própria linguagem, que ao desnuclearizar,
imprime uma fulgurância de sentidos, englobando-os numa perspectiva, porém sem
abandonar a tensão paroxística.
Dentro deste enquadramento, a dissociação é uma operação mais complexa
que uma negação lógica, podendo-a até englobar, já que ela actua por contrastes
e conflitos que amplificam e ampliam a dicotómica experiência da contradição e
cria uma rede de conflitos que revigoram o efeito da ironia e da linguagem. Dizer
que " O homem casado é um quadrúpede.", como o faz Lichtenberg,
arremessa-nos para uma complexa aventura de associações e de contrastes entre o
literal, o metafórico e o irónico, que pouco, se não mesmo nada, já têm a ver
com a verdade, no sentido estrito dela, e que aumentam gradativamente as
possibilidades de inteligibilidade da afirmação.
Privilegiando uma das muitas linhas de inteligibilidade do exemplo a
montante, "ser quadrúpede"
é aqui uma metáfora, mas uma metáfora que deve ser encarada literalmente para,
por sua vez, ser irónica, o que quer dizer que a identidade do verbo ser
extrapola a dimensão lógica e se coloca numa dimensão retórica e,
implicitamente, argumentativa, dado que é a pressuposição de que há uma
multiplicidade de asserções invisíveis,
inexprimidas, problemáticas entre si, que condicionam o sentido da quadrupedia
de um homem casado como algo que sendo, aparentemente, factual, –dois bípedes
juntos = quadrúpede, a não ser que haja algum manco–, não o é realmente, pois o
homem casado não passa a ter literalmente quatro pés para se locomover.
Apesar disto, ou por isso mesmo, a ironia está lá, subjacente e
alusiva, pois a inferência que a afirmação estabelece é que a vida a dois de um
homem casado retorna a esse estado bestial
da quadrupedia, a esse hermafroditismo dos pés, que faz do homem casado um
estado regressivo da humanidade, na leitura mais apologética deste aforismo, e
que seria absolutamente nulo se tivesse esta formulação: "O homem casado
tem duas cabeças.". Uma autêntica cabeçada...
O que este parco e modesto exemplo mostra à saciedade é a complexidade
que toda a análise retórica da linguagem enfrenta e como a fronteira entre
metáfora e ironia é uma pequena e móvel linha, facilmente transponível, no
contrabando permanente da linguagem, e na qual se apresentam e anicham
perturbantes e exigentes problemas, que só são esclarecidos no seu uso e
contexto, correlativos entre si. Mais estulto seria considerar que uma qualquer
ironia tenha o condão de atingir o que seria uma eventual ironia universal e que, por tal, haja um modelo certificante da
ironia, a partir do qual se possam estabelecer parâmetros adequados da sua
análise. Como o próprio exemplo analisado ilustraria , nem em todos os
contextos e usos ele seria considerado como uma ironia e encaixado nalgumas
perspectivas mais restritas, ou seja, contextos muito consistentes, pela
redução formal de princípios, que geram uma ambição teórica de coerência, como
uma teoria moral ou feminista, ele seria visto como uma piada de mau gosto ou a
manifestação de um machismo serôdio. E, no entanto, são mesmo estas
classificações que lhe granjeiam alguma eficácia, porque indiciam, que mesmo
não sendo entendido como uma ironia, é entendido como um problema e algo
polémico, o que preserva o carácter argumentativo. No fundo, mesmo uma ironia
falhada ou não aceite mantém sempre presente o carácter problemático.
Baseada nesta visão, na ironia a analogia e o contraste intersectam-se,
contradizem-se, criando relações e associações complexas, onde se interligam
determinações de sentido retórico, cujo espectro de aplicação é bastante amplo,
tão amplo como o exercício da linguagem, o que nos conduz mais uma vez à
necessidade de tentar procurar uma forma diferente de entender a relação
retórico-argumentativa presente na ironia, como algo mais que uma simples
negação ou contradição.
Procurando precisar e alvejar cada vez mais o problema que a ironia
suscita, numa análise do que será uma inferência problematológica, há que
procurar avizinharmo-nos do que poderá constituir a diferença real entre o
argumento lógico e o argumento retórico, no seu modo irónico. Nesta distinção,
não se pretende criar uma antagonização valorativa, mas tão só assinalar uma
tensão que seja reflectora do problema. Assim, o raciocínio lógico privilegiou,
na sua arquitectura inferencial, a indução e a dedução, cuja conjugação esteve
por detrás de múltiplas concepções epistémicas, das quais os êxitos ou os
fracassos constituíram muitos dos momentos altos do pensamento filosófico.(92)
Para além destas duas modalidades e integrado nos pressupostos já
explanados, parece claramente oportuno procurar se residirá na abdução qualquer proveito a uma melhor
compreensão do que poderá ser a contradução
irónica. É sobejamente conhecida a ressureição
imprimida por Peirce ao conceito de abdução de Aristóteles, e o desenvolvimento
que lhe vai conferir. O que a abdução garante é a inferência conjectural de
hipóteses, processo que leva à descoberta e construção de uma conjectura ou
hipótese (93). De imediato ressalta que Peirce procura uma "lógica da
descoberta", fazendo dela a âncora fundamental de uma análise da ciência e
condensando o problema na lógica
inventiva que deve vivificar a ciência e à qual ela não pode fugir.
A importância da inventabilidade
abdutiva da ciência parece, sem forçar a nota, fazer-nos já aproximar da inventabilidade retórica e tentar-nos a
procurar se há ou não aqui um terreno comum de problemas e de analogias, que
consolide uma visão específica sobre o tema.(94)
Não é por acaso que Peirce relaciona abdução com o que ele chama
"being in futuro" (95).
Este ser no futuro, projectivo, inventivo e argumentativo, só tem sentido
através de uma iconografia da analogia
(96), mas que só per se nada garante
de positivo, ao contrário da indução.(97)
Visualizam-se já, desta forma, algumas das características integrantes
da concepção da abdução, as quais, de algum modo, nos fazem inclinar
abdutivamente para a hipótese de elas poderem trazer um contributo para
o esclarecimento do que se pretende designar por contradução irónica.
Inquestionavelmente, a ironia como inferência só é inteligível pelo
carácter de inventabilidade hipotética
que a abdução contempla na lógica da descoberta que anima a ciência, só que na
ironia através de uma negação interna e na lógica
da inventabilidade do problemático
que determina a retórica e a teoria da argumentação.
Transitivamente, a ironia projecta uma possibilidade de negação que só
pode ser negada ironicamente, como hipóteses que problematizam
permanentemente as conclusões, o que nos torna a
remeter à réplica, como capacidade inventiva de argumentar. A invenção de
argumentos não pode ser, do mesmo modo que Peirce perspectiva a abdução, um
processo psicológico, determinado por regras imprecisas ou aleatórias,
codificadas numa escatologia de inspiração, mas uma relação com o problemático,
que o irónico ou o metafórico exprimem, através do contraste e da analogia. É
desta maneira que tem de se entender a contradução, como uma iconografia da diferença, isto é, a
possibilidade de um argumento ser negado não logicamente, mas metaforica ou
ironicamente, numa relação de imagens e figuras que se estruturam associativa e
dissociativamente.
O que uma ironia, ou até uma metáfora, indicia sempre é uma hipoteca no
que nela se relaciona ou diferencia. Tomando este aspecto como base, a ironia,
enquanto negação e contradição lógicas, é mera aparência, pois ela é a
conjugação diferencial de contrastes internos do que nela se enuncia. Pode-se,
de uma forma paradoxal, dizer que ela não é uma inferência mas uma di-ferência, uma diversificação contrastada de
sentidos, que não são mais do que possibilidades, suposições e hipóteses, que
exigem a formulação inventiva de uma conjectura. Assim, a ironia não contradiz,
não dicotomiza, não binariza hipóteses,
mas provoca graus de diferenciação, que não são mais verdadeiros ou falsos, nem
mais demonstráveis ou indemonstráveis, mas que se exprimem verosimilmente, numa
co-probabilidade argumentativa. A ironia é a introdução e a inferência de
diferenças que não são só lógicas, mas que se endividam a perspectivas,
argumentos , associações, relações, que se exprimem multiplamente nos mais
diversos mecanismos da linguagem, desde os mais elementares até aos mais
complexos. Portanto, a ironia explora virtualidades e mostra que a negação é um
processo bem mais amplo que o faz crer o modo lógico da negação, evidenciando,
por acréscimo e suplemento, que as inferências, imediatas ou mediatas que nela
se manifestam, socorrem-se de negações e oposições bem mais latas, que podem
ser sumariadas na ideia já invocada da contradução.
Não admira portanto, que a ironia só seja argumentável
contradutivamente, como se só se completasse e concluísse noutra ironia. A
contradução amplia a ironia noutra ironia, replica, cloniza a ironia noutra
ironia, explorando a virtualidade hipotética que a primeira já contemplava e
aprestando a conclusão inferida pela ironia inicial, esmerando a sua
inteligibilidade, o que faz da réplica irónica uma das inferências mais
complexas e a qual se torna no exemplo mais portentoso de um processo de
oposição e negação que nada tem a ver com a lógica, e é inquestionavelmente
contradutivo.
Qualquer réplica irónica aproveita o que na ironia, ou mesmo no
argumento não irónico, é ironizável, destacando uma nova hipótese de
argumentação, que é contradutiva, porque esta também é a negação de hipóteses
retóricas e argumentativas; que é inferida e concluída por uma relação complexa
de associações, explícitas e implícitas, o que gera um maior risco de
inteligibilidade, mas que, em compensação, torna mais contrastado e
diferenciado o argumento inicial, irónico ou não. Em síntese, a ironia é uma
forma de potenciação do argumento, ao submetê-lo à lógica dos contrastes, que
inclui o próprio contraste lógico da negação.
Em correlação estreita com este figurino, compreende-se claramente que
daqui não decorre qualquer lógica inferencial de uma conclusão, conforme regras
e métodos coesos, mas uma lógica inventiva, que propõe algo a
pensar, a argumentar, mostrando oposições entre metáforas, associações,
contextos, ênfases, perífrases, argumentos e perspectivas, quer dizer,
contrastando, diferenciando dentro de um mesmo plano.
A contradução é, face a este horizonte, a única salvação para uma
ironia, a arte de laçar, na qual os ironistas são exímios. Perante uma ironia,
ou uma metáfora, ainda que de forma diferente, a única maneira de
contra-ironizar é aproveitar a sugestão contradutiva a que ela nos convida,
como quem acena, e só assim, de um modo precário, podemos escapar ao veneno da
ironia e prolongar a sua racionalidade precária.
Os exemplos que se analisaram, entre outros possíveis, são perfeitos
figurinos do que se disse: nenhuma ironia é uma contradição e querer reduzi-la a
isso, a uma interpretação lógica da contradição, seria submeter-se ainda mais a
ela e testemunhar-lhe vassalagem, realçando o seu efeito. Responder com
seriedade analítica a uma ironia é o mais fatal sinal do seu êxito e pôr, em
definitivo, a cabeça no cadafalso. Daí que a ironia é uma mistura de
associações e diferenças cuja inteligibilidade requer uma ampliação irónica,
uma potencialização permanente da ironia original, mediante um contraste que
aproveita, quase mimeticamente, a estrutura da ironia original. A réplica,
irónica ou não, é, consumadamente, uma mimesis
argumentativa, uma formulação analógica de diferenças, aptas a propor uma
visão e compreensão intensificadoras do problema.
Na formulação disto, a contradução é um processo argumentativo onde,
por inversão, se opera uma dissociação, não lógica, mas problematológica, bem
patenteada no seguinte exemplo: -"I can't be there in spirit, so I'm
coming in person." (98). A dissociação presente, que não exprime nenhuma
contradição lógica, mas, através da inversão da fórmula habitual e
convencional, opera uma contradução problematológica,
realizando uma negação irónica da fórmula convencional e gerando, na
determinação do contexto em que é dito, inferências particulares de problemas,
aos quais só é possível replicar e nunca solver numa análise lógica.
Na realidade, a ironia não é um problema lógico, nem uma habilidade
gramatical ou sintáctica, mas a invenção de uma possibilidade e probabilidade
de inteligibilidade. A contradução irónica contempla a negação e o inverosímil
subjacentes a toda a ironia, pelo desenquadramento existente entre o que sendo
dito explicitamente se nega implicitamente e nessa negação propõe,
inferencialmente, conjecturas cuja validade é precária, mas que resulta
fortemente da plausibilidade nelas
introduzida.
No caso anteriormente referido, –"I can't be there in spirit, so
I'm coming in person"–, há uma cadeia de inversões e de inferências que
multiplicam, espantosa e ironicamente, as possibilidades argumentativas do que
é dito: a primeira inversão resulta, imediatamente, da alteração da fórmula
convencional, que provoca uma ruptura problemática de sentido e propõe um
distanciamento e um beliscar do literal e do factual, deslizando rapidamente
para o problemático e ensaiando simultaneamente uma diáspora de relações
possíveis de inteligibilidade. De facto, o literal, que por vezes se reduz a um
uso habitual, –não posso estar presente fisicamente, mas estarei em espírito–,
é negado, não por uma questão de verdadeiro ou falso, mas pela inferência de um
problema, que evidencia e inventa uma nova hipótese de argumentação,
precarizando o sentido formal e formalizado do que é enunciado, e que faz da
ironia sempre algo anti-formal.
A partir desta inversão inicial, todas as relações e problemas que a
análise desta ironia solicita, mergulham-nos, definitivamente, no problema da
contradução irónica, visto que esta frase não nega logicamente a fórmula
convencional; não é, de igual modo, uma dedução, indução ou mesmo uma abdução
e, mais do que isso, na relação de factos e associações que ela engloba o que
dela se conclui é um conjunto de conjecturas, que desenvolvem e promovem
relações possíveis de inteligibilidade, pelo que a negação operada por esta
asserção seja uma pura contradução, uma inferência de problemas, numa lógica de inventabilidade do
problemático, como é a da retórica, e que assenta na ideia de que as
negações implícitas e explícitas que nela estão contidas, não procuram uma
solução ou conclusão, mas sugerem hipóteses ainda não exploradas, hipóteses
cujas virtualidade e virtude são a pedra de toque de uma abertura ao
problemático.
Portanto, e à laia de conclusão, a contradução é uma negação complexa,
numa rede plural de associações e de problemas. A contradução é a negação e a
incongruência inerentes à ironia, quando ela contrasta o dito e o contexto,
quando conflitualiza o explícito e o implícito e, por isso mesmo, só há ironia
quando é possível realizar a inferência contradutiva que ela nos sugere
Os que não percebem uma ironia como tal são os que não conseguem captar
esta tensão contradutiva e, por essa razão, são incapazes de realizar a
inferência mínima, subtilmente complexa que a ironia desenvolve. Para além
deste aspecto básico, toda a ironia, na rede de associações e problemas que invoca
e provoca, imprime, numa correria louca, a necessidade de sucessivas negações
contradutivas, como no exemplo anteriormente mencionado, onde à inversão da
fórmula convencional, se sucedem hipóteses múltiplas de inteligibilidade da
ironia, na demarcação de contextos que, por sua vez, engrenam contrastes e
conflitos não linearmente resolúveis.
O que a ironia oferece, em definitivo, é uma lógica da descoberta e da
invenção, em que numa relação do plausível e do implausível, surgem hipóteses
argumentativas, que tornam ou não mais inteligível, quer dizer, mais
problemático o que é dito.
Não é de admirar então que a ironia surja na surpresa inesgotável de
toda a linguagem, já que ela é o rosto e rasto da surpresa e do surpreender-se
infindamente: o ironista é tão só o que nos surpreende a surpreendermo-nos, por
entre as frinchas que a linguagem abre e nas quais despontam inteligibilidades
mínimas, ranhuras de sentido que se organizam em perspectivas.
Através da ironia, a linguagem torna-se um campo minado de problemas,
onde nem todos os detectores nos salvam em absoluto de uma explosão
imprevisível, que acaba por fragmentar a perspectiva inicial e nos obrigar,
como Ísis, a procurar os pedaços decepados de Osíris.
4.
- Do celibato à poligamia: ironia e interracionalidade.
"All things
seem mention of
themselves
And the names which stem
from them branch
out to other referents. "
John
Ashbery
No itinerário até agora feito em torno da questão da ironia e da sua
ampliação para uma racionalidade argumentativa parece configurar-se, nos
diversos momentos já analisados e numa metátese de concepção, que o que a
ironia provoca é a necessidade de encarar, de um modo diferente, o que desde
sempre se apelidou como racionalidade. O que a ironia nos propõe, no seu
exercício retórico e argumentativo, é um novo enquadramento da racionalidade,
vista à luz de uma perspectiva que a determina num contexto de problemas
filosóficos, que já não se compadecem com a concepção geral e habitual de
racionalidade. É claro, e meramente como precaução e preceito operatório, que
dizer a racionalidade, nessa
singularidade insular e unificada é, desde logo, colocar um problema que já
teve diversas e heterogéneas formulações e cujo percurso se confunde,
maioritariamente, com alguns dos mais determinantes pensamentos filosóficos.
Face a isto, seria fastidioso cumprir o calvário de percorrer o que cada um
deles encerra e abre, no entreabrir que é sempre uma nova proposta
argumentativa e filosófica, para a partir daí procurar uma intencionalidade
universalizante, apta a solidificar uma síntese.
Ao invés, bem mais importante, numa perspectiva pragmática, é procurar,
a partir de uma noção vaga, difusa de racionalidade, argumentar em prol de uma
nova concepção, que atente aos problemas suscitados por uma compreensão
retórica e argumentativa da linguagem e da filosofia.
É devido a estas razões e no alinhavado de argumentos já aduzidos, que
a ironia é a expressão clara da concepção de uma nova racionalidade
argumentativa. Tradicionalmente, ela foi vista precisamente como actividade
suspeita e subversiva de uma razão parousiada
e em estado de asseidade, encontrando
em si o seu próprio auto-fundamento e sendo fundamento, se não mesmo essência,
de tudo; sendo, cumulativamente, os filósofos ironistas vistos como filósofos
menores. Baseado neste conflito entre razão e ironia, o que se pretende aqui
iluminar é que a ironia é o testemunho mais forte da eventualidade de uma nova
racionalidade, que substitua a visão de uma razão inclusiva, assente numa
ontologia da pertença, ou seja, uma razão sem contexto, que excede e transcende
todas as circunstâncias e contingências e que se auto-tutele como fundamento
ímpar de si própria.
Na árvore genealógica dos racionalismos, se há um tronco comum, seja a
razão considerada essência universal do real, fundamento ontológico e
antropológico ou simples faculdade, o que desde logo se destaca é a categorização
da razão como quase monodológica, um
absoluto que se exerce numa relação de inclusão permanente e que tende a
dissolver todas as diferenças, contrastes, num processo de homogeneização e
pasteurização abafador de uma lógica argumentativa contextualizada.
A esta racionalidade contextualizada arriscaria chamar Interrazão,
tentando, com este neologismo, indiciar essa racionalidade que, no caso da
ironia, só tem sentido na relação com um contexto e auditórios. Marcadamente,
esta interracionalidade seria a manifestação de uma racionalidade relacional, cuja marca incisiva constituiria a
necessidade de conceber qualquer argumentação sempre integrada num conjunto de
referências, do qual a sua inteligibilidade é iniludível para perspectivação
racional e argumentativa.
Deste modo, nenhum argumento tem sentido fora de um contexto, a não ser
que o fora de contexto se torne o contexto, o que impede a concepção grátis de
uma razão de geração espontânea,
habilitada a atingir uma universalidade
que lhe fosse ínsita e natural. A exaltação de uma razão universal ou de uma
universalidade racional torna longínquo e estranho o mundo do particular, do
contingente, do sensível e passional e produz um dualismo, que se torna numa
doença congénita e incurável (99). Parece assim inevitável considerar que
nenhum argumento atinge o universal e nenhuma razão, no sentido mais comum do
termo, atinge a Razão, como totalidade unificadora e inteligível de ideias e
pensamentos.
De facto, a interracionalidade seria, e abusando inocentemente das
metáforas, a passagem de uma razão celibatária a uma razão talvez
contingentemente poligâmica, dotada da capacidade de exprimir as
multi-racionalidades que a constituem e esteiam. Dentro deste horizonte, a
ironia é "o flagrante delito" de uma racionalidade impregnada de um
novo perspectivismo, levando-nos a mergulhar no mundo movediço da
possibilidade/contingência, que faz da argumentação e da ironia uma relação
inteligível entre sujeitos, na particularidade de cada um deles e não o acesso
codificado e, eventualmente, secreto a uma qualquer universalidade; assim como
é também uma relação inteligível entre argumentos, o que significa que o
racional é sempre argumentativo e que este não é a contingência, a experiência
particular e incompleta de uma Razão entificada ou de uma res cogitans, de uma substância, que seja um ens per se subsistens, como a define a escolástica. Desta forma,
toda a racionalidade, enquanto argumentativa, expressa-se na precariedade e
particularidade dos argumentos, numa teia de relações que os tornam viáveis ou
não nas mais diversas perspectivas de abordagem.
É claro que há uma diversidade de usos dos argumentos, –lógico,
epistemológico, retórico, literário, político, etc.–, e cada uso desses se
encobre de um grau de probabilidade inferencional e verificacional que é
determinado no seu contexto, interno e externo, mas que não obedece a uma
canonização e a um esperanto de
regras que transcendam o seu uso específico e limitado.
O que se destaca indefectivelmente é que já não se pode invocar uma
racionalidade que, de algum modo, exprima e albergue uma ideia de
universalidade e, por isso, transcendente ao particular e ao contingente, mas
tão só uma interracionalidade que dá conta que todos os argumentos são inter-relações inteligíveis, numa
equação de contextos e circunstâncias; e que cada argumento não transporta uma
insularidade, seja universal ou singular, mas uma pluralidade e polaridade de
relações. No fundo, o que se pretende acentuar, através deste conceito de
interrazão, é a necessidade de entender a racionalidade como uma cadeia de
argumentações, onde cada argumento se insere num contexto de inteligibilidade e
pensabilidade e se dirige a uma rede de relações, mediante a qual ganha sentido
e eficácia. Decerto, e embrenhado nisto, a razão deixa de ser a epifania de um
transcendência do sujeito, passando a ser, enquanto interracionalidade, a
execução de relações precárias entre sujeitos, configurando-se e moldando-se no
seu próprio exercício.
Na verdade, a interracionalidade é a descoberta do múltiplo, da
presença inevitável do plural, do que se diz de várias maneiras, que se baseia
no argumentativo e que desencadeia uma perspectiva provisória de todas as
inteligibilidades alcançadas.
A ironia, enquanto extremo de inteligibilidade, exemplifica,
acentuadamente, a interracionalidade, no sentido em que cada argumento é já um
contra-argumento, onde se revela uma distância constante da pensabilidade em
relação a si própria, o que garante uma suficiente contradição amplificante
para sugerir e constituir um espaço de manobra a um inter-essere ( estar entre = interesse). Nesse sentido, a
interracionalidade é a expressão de um interesse, não no sentido puramente
ético, axiológico ou ontológico, mas no de uma inteligibilidade que manifesta
uma presença contextual das identidades e das diferenças com que se defronta.
Em suma, todo o argumento é interessado e, como tal, é interracional.
Contrariamente ao culto épico e heróico de certos romances, onde o
herói era auto-criado e com progenitores desconhecidos (100), a razão não é
passível desse heroísmo solitário, inatista ou apriorista, mas é a constante
tensão de interesses, que condicionam posições e relações não só de sujeitos,
mas também de comunidades. Entendida assim, a razão não é o que isola ou
universaliza, mas o que torna comum e por isso ela é interrazão.
Numa postura inequívoca, argumentar é, precisamente, a presença de uma
possibilidade de algo comum, na demarcação das diferenças e é expor-se a uma
dimensão retórica, enquanto aproximação ao público, numa relação inteligível.
Cada argumento torna-nos públicos, isto é, torna-nos susceptíveis de uma
relação interracional e não nos entroniza numa intimidade alheia à diversidade
e à presença do outro, como se a linguagem se encerrasse num êxtase místico de
levitação até à sublime experiência do não-linguístico, seja ele divino, real,
matéria, etc.
Assim, a interracionalidade é uma redistribuição de argumentos, numa
conversão polarizada de uma simultaneidade racional, onde cada um deles só é
inteligível na rede de relações que estabelece e não surge na insularidade e na
monodologia aditiva de uma razão que debitasse, monocordicamente, raciocinemas e linguistemas, aos quais
corresponderia uma espécie de "harmonia pré-estabelecida", seja ela
lógica, ontológica ou mesmo metafísica. Por conseguinte, a razão é uma cadeia
de razões, que exerce uma simultaneidade argumentativa, que
explicita e implicita contextos (101), que lhe dão forma e conteúdo, numa
espécie de gestaltismo argumentativo,
onde o fundo e a forma se inter-determinam e estabelecem um espaço de
reconhecimento.
E se atendermos a alguns dos aspectos ligados, na actualidade, às redes
múltiplas de informação, que se expandem para além de um mero miradouro informativo, associadas às
novas tecnologias de informação, mais verosímil se torna procurar uma nova
discursividade racional e o que seria uma retórica
informática, exemplificada na Internet, onde o auditório universal de
Perelman parece mega-virtualmente realizar-se (102). Até esta dimensão, desde
sempre potencialmente inscrita na retórica, vem configurar cada vez mais a
racionalidade como uma interracionalidade, relação de saberes e de opiniões
dinamicamente instáveis, mas mais enriquecidos, e na qual o que é decisivo é a
rede de relações e de circunstâncias inteligíveis que nela se inscrevem. A
racionalidade e argumentação já não são a realização de uma essência ou
natureza racionais, mas a presença de uma simultaneidade de problemas, que
condensam numa cadeia interracional e exigem uma perspectivação e prospectivação permanentes, capazes de os
enquadrar num sentido de pensabilidade e de lhes granjear probabilidades
diversas de verosimilhança.
Postulando todos estes aspectos, a interracionalidade é a expressão de
uma racionalidade circunstancial e circunstanciada, no âmbito da qual a teoria
argumentativa só tem sentido quando ela se insere numa rede de argumentos e
contextos, em que a validade é conseguida pela própria capacidade de ampliar
essa rede, mediante contextos associativos, o que leva a que cada argumento
seja tão mais eficaz quanto ele gere, em espiral, argumentação e
contra-argumentação; quanto ele arrisque o esforço retórico de persuadir, não
só como expressão de uma adesão mas igualmente, e sem qualquer cabotinice, de
recusa.
De modo basilar, a interracionalidade é assim a determinante de uma
concepção retórica, argumentativa e, sem sacrilégio, pragmática da filosofia.
Intimamente associado a isto, a interracionalidade apresenta-se como a única
forma de perspectivar uma dimensão consistente da linguagem, pela sua realidade
reticular, que afirma e confirma a linguagem como interracional, ao ser uma
rede de inteligibilidades e possibilidades de argumentação, pelas quais passam todo
os seus exercícios opinativo, conversacional, dialogante, lógico e filosófico.
Em definitivo, não é possível conceber a linguagem, enquanto rede
(103), a não ser numa relação permanente e amplificada de cruzamentos de
razões, na particularidade de cada relação, onde conflui e se expressa não só
uma dimensão binária de alternativa, mas confluências
polinárias de sentidos e hipóteses. Na verdade, em cada momento, na
linguagem incorpora-se o ilimitado, propondo-se um processo de
interpretabilidade que se prolonga de modo incansável. Argumentar
filosoficamente é tão só privilegiar um momento e conferir-lhe a expressão
máxima de razões possíveis, numa conjugação entre hipótese e verosimilhança, na
inventabilidade de modos conceptuais, enquanto simbioses de todos os modos
retóricos de expressão, que reflictam, de modo pujante e até pungente, a rede
de relações suscitadas pelo problema.
Tem-se aqui uma perspectiva da interracionalidade como uma rede
inteligível de possíveis, equivalente à rede da linguagem, numa unidade que é a
junção entre o potencial e o actual, onde a inteligibilidade é o enredar-se
cada vez mais na rede, passe o pleonasmo, de analogias/dilogias,
identidades/diferenças expressas em cada perspectiva e problema, o que explica
o perpetuum mobile e o movimento
parodoxal da linguagem e que cada argumento reinicia : a pluralidade
inquietante e laboriosa das consequências que dele são extraídas, como das
areias tumultuosas dos rios as pepitas de ouro.
É neste quadro de interracionalidade que devem ser entendidas e
integradas algumas das concepções filosóficas gravitantes em torno do problema
da retórica e da teoria da argumentação e cuja elucidação parece enraizar
naquilo que se indicia através deste neologismo conceptualizante. De facto, a
retórica e a teoria da argumentação são expoentes inquestionáveis da
interracionalidade, cujas propriedades se exprimem logo, na intensa e eriçada
de problemas concepção de auditório que lhes é correlativa (104). A
argumentação, enquanto aposta no provável e no verosímil e na qualidade de
probabilização de opiniões traz, no seu seio, uma necessidade de adesão
intersubjectiva, preparada para despoletar um nexo racional, no qual estamos
todos integrados e, portanto, interracional.
É neste contexto, que a nova retórica e a teoria da argumentação
relançam, definitivamente, uma nova concepção do sujeito e uma nova
intersubjectividade, que poderá ter a sua matriz longínqua na conexão entre logos, pathos e ethos, apresentada por
Aristóteles e configurada por Perelman (105), para quem o logos é sempre
problemático e se mantém na esfera do particular, ordenado numa redescrição
sensível e individual (106), e, por isso, gerando uma ética do contigentemente
interrelacional. Na perspectiva da interracionalidade, todos os argumentos são
expressão de uma relação, cujo sentido se revela no alcance particular que eles
produzem, na eficácia que provocam face à capacidade de suscitarem uma adesão
problematizante.
É na amplitude máxima desta concepção, que a retórica, desde a sua
fundação, implica uma visão centrada sobre as relações inter-humanas e explana
o racional como presença de uma inteligibilidade partilhada. A retórica é, desta forma, o exercício
de uma abertura ao outro e ao que no outro se apresenta como inteligível, na
tríplice dimensão lógica, passional e ética, e de modo algum um fechamento
sobre o outro, no seu real particular, como recriminava a filosofia platónica,
que via na retórica uma manipulação objectivante do outro. A teoria da
argumentação desenvolve e endossa a uma inteligibilidade aberta e permeável à
presença do outro como pólo de interracionalidade, ou seja, de uma
discursividade que só tem eficiência num círculo retórico e argumentativo
(107), que está contido na interracionalidade, como factor da sua estruturação.
Com efeito, nenhuma argumentação, nenhum discurso escapa à interacção conatural
à linguagem e pode-se até dizer que a potencializa até ao limite crítico da sua
inteligibilidade.
A argumentação medeia um processo de relações racionais, numa
negociação contínua de possibilidades de entendimento, cujas validade e
aceitabilidade decorrem e emanam da força intrínseca dos argumentos e da
superação das conclusões que eles sustentam. Apesar de a noção de auditório ter
aqui cabimento, ela não esgota o sentido interracional mesmo, no tour de force proposto por Perelman, com
a noção de auditório universal
(108), que pretende atribuir ao filosófico a expressão duma universalidade
racional, embora num grau fraco e condicionado pelos juízos dos auditórios
particulares, que espelham nas suas circunstâncias uma possibilidade ou não de
universalização.
Pelo contrário, a ideia de Perelman de que "(...)
les auditoires ne sont point indépendants; que ce sont des auditoires concrets
particuliers qui peuvent faire valoir une conception de l'auditoire universel
non défini qui est invoqué pour juger de la conception de l'auditoire universel
propre à tel auditoire concret, pour examiner, à la fois, la manière dont il a
été composé, quels sont les individus qui, suivant le critère adopté, en font
partie et quelle est la légitimité de ce critère (...)" (109), e que é, no
fundo, uma proposta de uma interdependência de auditórios, já se aproxima, mais
fosforescentemente, da ideia de interracionalidade, no sentido em que desvela
a ideia de que as relações de inteligibilidade são apuradas por relações
complexas e em permanente reestruturação, numa constelação de sentidos, de
enunciados e de argumentos que só têm acolhimento numa arquitectura plural de
perspectivas, cujas conjugação e conciliação são sempre problemáticas.
É a partir daqui, deste ponto, que merece saliência o esforço imprimido
por Michel Meyer, na elaboração da inevitável e complementar consequência que a
nova retórica de Perelman exigia, a problematologia,
que pretende refocar a retórica na densidade problematológica do racional e,
por outro lado, garantir-lhe uma abertura "à sistematicidade dos
princípios do pensamento", como aparece enunciado, paradoxalmente, e, por
isso , "instigador da pensabilidade", na Nota Preliminar da Problematologia. (110)
Recolocar a argumentatividade e a retórica na problematologia é
restaurar, no palimpsesto filosófico das múltiplas filosofias sobrepostas e, de
algum modo, ininteligíveis nos seus pressupostos, a fraqueza do que sendo
argumentativo, é ainda interrogativo e problemático, experimentador do falível
e, às vezes, do falacioso, do que abriga e obriga a "um sistema de
dúvidas", como afirma Witgenstein, não como um cepticismo, mas como
reabertura de questões que tonificam a sequência argumentacional e modelam cada
vez mais respostas diferenciadas e, em consequência, mais problemáticas.
Qualquer retórica esvaziada do questionamento, como esforço de uma
racionalidade aberta, seria algemá-la a uma techne,
uma lógica do literário, e impor-lhe um figurino que acabaria por ser o de
uma lógica de segunda, a que, nalguns aspectos, o esforço titânico de
reabilitação da retórica por Perelman acaba por não escapar, pelo menos na
totalidade.(111)
Deste modo, a problematologia encorpa
a logicidade retórica, dando-lhe um volume e imprimindo-lhe uma densidade
decisiva. Como diz Michel Meyer : –"Partimos da interrogação do logos para
deduzir a sua tripla articulação: hermenêutico-semântica,
retórico-argumentativa e dialéctico-dialógica. Estamos longe do modelo clássico,
semântica, sintaxe, pragmática, do qual nunca será demais dizer que encarna o
proposicionalismo que descobre outras realidades linguageiras, que se esforça
por reduzir ao seu modelo unificador."(112)
É a mutação anterior que amplia a racionalidade para uma simultaneidade
argumentacional e a obriga à expressão de uma articulação que não é só lógica,
ao propor sentidos e configurar propostas, de dimensão dialéctico-dialógica e
que, por conseguinte, exprime relações inteligíveis e verificáveis para os seus
intervenientes. Parece perpassar por aqui a sombra de Habermas e a sua teoria de um agir comunicacional, que
poderia expor-nos à necessidade de uma investida numa ética da argumentação e
de uma certa subordinação desta última àquela, de uma racionalidade capaz de
trazer explicações e justificações, o
que remete a uma fundamentação de tensão, que é sempre a coalescência de uma
concepção ética do racional (113) endividada a uma prospecção do fundamento e
de uma esperança messiânica de nele fazer assentar uma unidade, tangente
absoluta de todos os relativos e particulares. Se Habermas procura "uma
ética que tenha mãos", ou seja, se no caminho que percorre envida sérios
esforços na elaboração de uma "ética comunicacional", embora redimida
num desacordo argumentativo que faz com que a "razão comunicacional se
expressa num entendimento descentrado do mundo" (114), ainda assim ele
introduz o problema ético pelas portas das traseiras da abordagem da
racionalidade argumentativa, fazendo focar nesta o dilema ainda mortífero de
uma racionalidade à procura de um fundamento, quase extra-racional, de si
própria. Desta forma, a ética, ainda que esbatida, apressa a solução do problema onde ele permanece intacto e faz-nos
deslizar, inadvertida mas aliciantemente, para a teoria de um sujeito conflitual, que tem de dissolver esse
conflito algures, racionalizando o irracional (Kant) ou irracionalizando o
racional (existencialismo).
Não se pretende, nestes pontos, que a elipse fornecida por Habermas de
uma "razão encarnada, à partida, em contextos de agir comunicativo como em
estruturas do mundo da vida" (115), não faça adivinhar sugestões
merecedoras de uma leitura mais fiel e intensa, mas o seu núcleo duro expõe
ainda a ferida grave de um conflito entre o universal e o particular (116),
subordinando e credibilizando esse conflito numa dimensão pré-racional, cujo
ponto nevrálgico é ético ao ser uma aproximação ávida a um sentido total e
fundamental, ainda que submetido a um processo argumentativo, que radica
numa práxis comunitária.(117)
Embebido nisto, há ainda a procura do que se poderia designar por uma
perspectiva legitimista, uma
sub-forma, mais moderada, de uma perspectiva de fundamentação, que aplana a tentação
transcendente, na visão irénica de um sistema, cuja modulação já não advém de
modelos fornecidos, exuberante e pletoricamente, pelas ciências da natureza
(mecânica, bioquímica, neurofisiologia, etc.), mas que resvalam para sistemas
sociais da linguagem, que são a própria comunidade enquanto mundo vivo.
Emparedado nestes considerandos (118), sente-se que Habermas pretende
salvar a face a uma filosofia da racionalidade, que se transfigurou
multiplamente, ao desejar garantir intacta uma possibilidade legítima de
reconstrução "do conceito hegeliano da totalidade do contexto ético da
vida" (119), como aproximação a uma experiência do ser e do viver, que se
hipnotiza na sua própria mediação (120), numa dialéctica cada vez mais
precária, apesar de restaurante de uma coordenação de acções, cujo
reconhecimento é o de um interagir racional. A retórica seria, neste âmbito,
quase indiscernível de uma práxis, da qual o último arrebatamento seria ético.
É nesta tese que algum do pensamento de Habermas se refugia, trincheira de
recurso para a preservação de uma racionalidade, ainda como uma unidade de
contextos e sentidos, cuja configuração é resolúvel em sistemas de vida, ainda
que socialmente determinados.
Em abono da questão, o que Habermas sublima, e nesse sentido exorciza,
é o fantasma da retórica como proliferação do possível e do que se apresenta
contingente, nas relações que nela se constituem, e enquanto probabilidade de
sugestão, persuasão e convicção, conceitos de algum modo inauditos ou até
malditos para uma certa racionalidade, enfeudada ainda a uma perseverante e
quase obstinada fundamentação de si própria. Apesar disto tudo, não é que, na
plêiade e constelação de problemas que a filosofia de Habermas dissemina, não
haja convites a uma inteligibilidade partilhada
ou, mais adequadamente, "comunicada", o que, aliás, parece
perpassar, de modo bem notório, pelo destaque dado à "razão
comunicacional", ainda que enredada no falibilismo
que já de algum modo tocou e parece ter apodrecido
a filosofia.(121)
Assim, e resignadamente, a uma crítica forte da razão (iluminismo) sucedem-se críticas fracas da razão,
inseridas na sua própria fabilidade, na construção de inteligibilidades
contingentes, como o são todas, constituindo momentos adequados da construção de
um campo de possíveis. A uma filosofia vigilante da razão (122), nessa
vigília da atenção de quem desperta e fica de olhar hirto, quase alucinado, na
força e no voluntarismo de se manter acordado, vigília encomendada por uma
filosofia que, ainda que na penúria, quer recuperar e salvar a face perante
"a ameaça de declínio" (123) que a assombra, abandonado que está,
definitivamente, o dilema exaltante entre epopeia e tragédia, entusiasmo e
decepção, abdicando-se da visão messiânica da filosofia, ideia que, tortuosamente,
a leva à sua própria desvirtuação, já que a filosofia não pretende converter, mas sugerir pensabilidades,
cuja exiquibilidade resulta da confrontação com o problemático, quer dizer, o
permanente exercício do provável e do que se afigura potenciador de contextos
de inteligibilidade e que, por conseguinte, se exprime interracionalmente;
portanto, a esta filosofia, vigilante da razão, sucede uma filosofia que
abandonou a sua missão, de guardiã de um tesouro jamais encontrado, e se expõe
à humilde tarefa de se dedicar à pesquisa artesanal de pequenos e esquecidos
objectos.
No entanto, e na filigrana precária da perspectiva que aqui se entalha,
não se recorre à magia dissolvente dos neologismos que, pela sua novidade,
resgatariam imediatamente problemas antigos: um neologismo só tem sentido
quando torna mais problemático o que através dele se pretende designar!
Portanto, a interracionalidade não é o santo e a senha capaz de abrir e
desbravar soluções mais ou menos miraculosas. Ela é tão só a proposta para uma
complexidade que se interliga directamente à análise do poder argumentativo da
ironia e a criação deste neologismo reflecte ainda a imprecisão inteligível que o torna intenção conceptualizante e
conjectura retórica.
A interracionalidade garante-nos, por um lado, que a ironia é a
expressão duma arte de conjecturar, forma determinante do raciocínio e da
expressão retóricos (124) e, por outro lado, da arte de construção de
conceitos, derivada de um conjunto argumentacional que procura esgotar a probabilidade
inferencial de cada um deles, num jogo de suposições e alusões, que têm ou não
incidência no contexto e no conjunto elaborados.
Com efeito, solicitar, num recurso de última instância, a presença de
um neologismo, para reforçar argumentativamente um problema, não é considerar a
falência retórica ou argumentativa dos conceitos anteriores, mas tão só dar
conta da ligeira torção e desvio argumentativos que todas as perspectivas
inauguram. Verdadeiramente, o recurso à interracionalidade decorre da exiguidade de inteligibilidade que a
relação entre ironia e teoria de argumentação evidenciava, num primeiro
momento. E, por consequência, a ironia desdobra-nos, perante a sua análise e o
seu uso múltiplo (literário, filosófico, etc.), um conjunto de questões que
impelem à elaboração de conjecturas e desenvolvem um campo
argumentacional.(125)
Representando cabalmente estas questões, respingue-se mais um exemplo
colhido nesse pomar inesgotável que é o livro Le comique du Discours, de Lucie Olbrechts-Tyteca: "Dans un restaurant de second ordre, le patron vient demander à un client s'il
est satisfait du repas.
- Notre cuisinier, précise-t-il, était autrefois
au service du roi de Suède. Quant à notre sommelier, il fut longtemps le
dégustateur exclusif du roi Farouk.
- Hum...
- Quel joli chien vous avez là!, poursuivit le
patron déçu par le manque d'interêt que le client prête à sa conversation.
C'est un basset, n'est-ce-pas?
- Non, c'est un ancien saint-bernard."
Nesta réplica primorosa se vê mais uma vez o que
se pretende dizer por interracionalidade: a argumentação que percorre a estrutura da
réplica é integrável num quadro de suposições e alusões conjecturais que
demarcam probabilidades de entendimento da ironia. Numa lógica de multiplicação
de possibilidades que a ironia gera, a conclusão demonstrativa, que corresponde
à tirada final do cliente e que do inverosímil ou do absurdo sugere um
encadeamento de conjecturas, que vão desde a definição de um ethos do cliente,
–pessoa pouco sociável, etc.–, até à suposição de um descontentamento com a
atitude lustrosa do patrão ou com a comida, ao arrepio da exaltação laudatória
e propagandista do dono do restaurante.
Deste modo, a interracionalidade é, bem visivelmente, um defrontar-se
com razões interligadas e não com a Razão e, complementarmente, um cruzamento
de razões múltiplas que geram um efeito em cadeia, que só é deslindável na pluralização argumentativa, que é
transformação de pontos de vista em argumentos, numa relação a outros
argumentos, fomentando, por esta via, relações inteligíveis que são
interracionais.
É na linha máxima deste horizonte, que se organiza a necessidade de
conceber a ironia como amostra acabada do interracional, enquanto convocação de
uma relação inevitável de argumentos, numa correlação de perspectivas que se
afrontam ironicamente. A ironia, ao instalar um grau de ridículo e exalar o
vapor inebriante de algum humor, propõe um excesso, uma tensão
hiperbolizante,–e alguma da ironia mais mecânica e infrutífera é exercida
através de uma hipérbole, para melhor realçar o inverosímil–, que desdobra a
argumentação inicial em múltiplas hipóteses, na visualização de contrastes e
diferenças de razões, que só têm sentido nas suas relações.
A ironia, no meridiano do que se tem vindo a desenvolver, exprime uma sobre-dosagem
argumentativa, que decorre do facto de todos os argumentos só serem
inteligíveis num quadro de referências, numa sucessão contínua de posições e
perspectivas, cuja sustentação seria absurdamente solipsista se encarada de um
modo atómico. Assim, o que na ironia se desabriga é uma racionalidade
verticalmente fundamentada, capaz de encontrar todas as razões que a
justificam, e o que nela se prefigura é uma retórica como encontro de sujeitos,
onde o discursivo se encorpa do ethos e do pathos. Nesta trindade, enunciada
por Aristóteles, permanece uma noção de razão que foi, em geral, um nado-morto,
e que foi submergida pelo esmagamento e trucidação que o individual sofreu em
relação ao universal.
Efectivamente, com a anestesia da retórica, o que se perdeu no
pensamento filosófico foi a capacidade de pensar o individual, numa sufocação
na qual Aristóteles comparticipou: a célebre afirmação de que não há ciência do
individual constitui-se como o requiem para toda e qualquer possibilidade de
admitir uma inteligibilidade do individual, a não ser mediante o olhar
totalitário do universal; e o extrair à retórica a eventualidade de
sobrevivência como presença do que, no individual, é particular e se exprime
num cortejo de opiniões, argumentos, conceitos, linguagens, paixões, atitudes
que se contratam e contrastam numa discursividade de metodologia dialéctica e
dialógica, como o viu Aristóteles.
É enraizado nisto, que a teoria de argumentação, intra-uterina à
retórica, desenvolve uma interracionalidade, que não é mais do que uma relação
de indivíduos e do que através dela se afirma ou nega, numa relação de razões
que se integram num conjunto de circunstâncias e que só nelas se tornam
inteligíveis. A interracionalidade parece ser a garantia de que a retórica não confirme
o próprio anátema que sobre ela foi lançado, como um discurso de opiniões, num
atomismo subjectivista, bordejando o irracional e incapaz de ultrapassar a
relatividade das posições a partir das quais se elabora e se edifica; ao
permitir a expressão de diferenças individuais, na comunhão de problemas que se
expõem publicamente, num esforço retórico de os fazer entender, ou seja, na
retórica a opinião torna-se comum e pública, isto é, argumentável e
interracional, numa inteligibilidade aberta de razões do próprio, do outro ou
de vários.
A ironia aparece então como uma forma de inteligibilidade dos outros,
uma forma que deforma razões, para mais facilmente as tornar comunicáveis e nos
"interracionalizar" com os outros. Por isso, somos e pensamos sempre intersticialmente
e falar de interracionalidade é propor o exercício de um logos incrustado, embutido numa rede de circunstâncias e,
sobretudo, numa ligação constante e umbilical consigo próprio e com outros logoi e argumentações.
A teoria da argumentação poderá ser, perfilhando-se estas ideias, a
arena para a reabilitação de uma racionalidade de conflitos, destrancendentalizando uma Razão
entificada e mostrando-a numa relação auto- e hetero- fundante: de facto,
pensar é pensar com e contra, colocando-se
numa encruzilhada de possíveis, na expressão visível de uma relação
intersubjectiva, onde argumentar é ensaiar e experimentar a pluralidade e a
multiplicidade dos outros e de...nós próprios.
5. Sujeito e ironia - philosophia certa in re
incerta cernitur.
"Ut a dubitatione philosophia sic ab
ironia
uita digna, quae humana uocatur, incipit."
Kierkegaard
A interracionalidade, como matriz da realização de uma
multiplicidade de relações argumentativas e inteligíveis, na qual a ironia se
inscreve, aponta-nos, desde logo, para uma pesquisa do retórico como uma
relação entre sujeitos, em todas as suas manifestações. De certo modo, a lição
imediata a extrair de tudo o que foi visto até aqui é que uma concepção
retórica e argumentativa da ironia não se enquadra numa filosofia do sujeito,
tal como ela foi explanada por diversas filosofias modernas, nem numa filosofia
do Hiper-Sujeito, cultivado e apregoado por algum idealismo romântico, mas numa
filosofia dos sujeitos, que introduz no seu seio problemas plurais, na forma de
conceber as relações inteligíveis entre sujeitos, quer no exercício de uma
argumentatividade quer de uma discursividade e de uma passionalidade.
O triângulo logos,
pathos e ethos exprime logo, na Retórica
de Aristóteles, um problema fundamental com que se depara toda a análise
desenvolvida da retórica, a saber, o sujeito
retórico não é uma natureza, substância, essência ou consciência, prévia e
fundamental, mas a expressão de modos
problemáticos de ser, por onde irrompe aquilo que poderia ser designado
como o sujeito problemático, enquanto sujeito de logoi, pathoi e ethoi (126), que colocam o sujeito no âmago de uma
relação problemática do necessário e do contingente, do universal e do
particular e do verdadeiro e do provável, cuja elucidação é dada nas relações
inter-humanas que determinam a retórica.
Na sequência directa disto, o discurso retórico é o
que "trai o sujeito" (127) numa relação com os outros e o expõe a uma
relação múltipla, nos planos lógico-racional, passional e moral. A retórica não
é só um exercício argumentativo, dialecticamente provável e verosímil, que
garanta uma inteligibilidade partilhável, mas a presença de uma relação inter-humana,
que habita subjectivamente, numa dimensão de carácter e passional, o orador e
os ouvintes.
Revelar-se por inteiro, expor-se à contingência de
si mesmo, numa realidade cruzada de inteligibilidades é, por excelência, a
manifestação de uma forma precária de estar perante os outros e de neles
procurar a convergência de todos os possíveis, como experiência inacabada e
múltipla de nós próprios.
A retórica, ao convocar o sujeito no seu todo, evita
o reducionismo de algumas concepções do sujeito, valorizadoras ora da dimensão
espiritual, racional, passional, corporal, etc., ao mesmo tempo que o revela na
sua multiplicidade, por vezes esfacelada, não ficando refém de nenhuma delas e
evitando a escassez do individual,
acusação, várias vezes e de modo soberbo, lançada sobre o opinativo
(doxístico), que a retórica encobriria e promoveria; criando, de modo oposto,
uma abundância
do sujeito, que assenta na ideia básica de que o discurso retórico e
argumentativo implica o sujeito na sua totalidade, em todas as suas dimensões,
não só como um indivíduo, que não é mais do que uma dessas dimensões do
sujeito, mas como ser relacional, onde convergem relações sociais, passionais,
morais, políticas, etc., num leque inumerável de cambiantes e ângulos.
A retórica, tal qual como ela foi configurada por
Aristóteles, é a reserva natural de existência de um sujeito, que não se
expressa por uma unidade obtida a ferro e fogo algures, mas por uma
multiplicidade de si próprio, já que ele só existe na permeabilidade aos
outros, nos sentidos ramificados de uma argumentação interracional, em que as
razões se cruzam e se constituem como apelos aos outros, como sugestões de
inteligibilidade que tornem os outros visíveis. Toda a retórica e teoria de
argumentação são uma forma de tornar o outro visível, de facializar o outro (128), como presença de uma relação racional e
argumentativa, geradora de probabilidades cada vez mais complexas de
interpretação e indutora de efeitos vários de inteligibilidade não só da
discursividade mas também da passionalidade e eticidade que enriquecem e
adensam, de modo tremendo, os sentidos do que se argumenta.
Demonstração lídima destes mesmos pressupostos é o
exemplo do argumento irónico. O argumento irónico injecta paixão ao lógico, recria
subjectividades e expõe o ético. Nenhuma ironia, aliás como todas as figuras de
estilo, na sua intencionalidade argumentativa, escapa à manifestação do
passional e do ético, enquanto reveladora da presença de sujeitos e da sua
relação consigo próprios, com os outros e com o mundano. Por excesso, e
enquanto negação, a negação irónica é também negação de sujeitos, de paixões e
modos éticos de viver o que, por isso mesmo, vem mais uma vez justificar o
facto de a contradição irónica ser muito mais ampla que uma contradição lógica
e de nos forçar a encará-la como uma relação de negações, em múltiplos planos,
cuja elucidação requer uma nova designação, como ela foi ensaiada, ainda que
talvez de um modo fruste, como contradução.
Nenhuma ironia, como nenhuma argumentação, pode
apagar os vestígios do passional que a anima, e a retórica é a expressão vívida
de uma argumentação geradora de formas vivas, oposto, de alguma maneira, ao
amorfismo lógico. A retórica, enquanto ensaio vivo de pluralidades, reabilita
as paixões e o ético, não como prólogo do absoluto ou de uma intimidade directa
e imediata com o real, a vida ou uma consciência, mas como determinação de
relações e presença de contingências, que se apuram numa perspectiva
interracional dos sujeitos, detentores de discursos, paixões e atitudes. A
paixão e a ética não são o que divide a razão (129), no sentido de conflitos de
faculdades ou de actividades, mas o que exprime retorica e pletoricamente a
diversidade do argumentativo, como relação de sentidos e inteligibilidades
múltiplos.
O argumento invadido de passionalidade e eticidade é
um argumento retórico, ou seja, despoletador de um relação interracional, em
que se cruzam formas e contextos que só são apreensíveis na transversalidade
dos problemas que animam, num dado momento, um determinado conjunto de sujeitos
que se interrelacionam. Deste modo, a retórica propõe-nos sempre a ideia de sujeitos explícitos e de sujeitos implícitos,
o que faz com que a inteligibilidade retórica se organize às custas dessa
relação inter- e intra-subjectiva, que condiciona, explicita e implicitamente,
a discursividade retórica, na qual, não o podemos ignorar, se pretende também a
exortação à acção, como renovação de perspectivas e intentos ou como adesão
activa, quando o contexto é moral e político.
Ao perspectivar-se a retórica como uma relação de
sujeitos e face à complexidade de relações, contingentes e polígamas, que se
podem estabelecer entre eles, obrigatório é colocar sob a alçada desta
perspectiva a relação irónica, como um dos seus modos, procurando-se, a partir
de agora, reter, através de um trabalho de sapa, as formas plurais do seu
entendimento.
No cumprimento imediato deste objectivo, ressalta,
desde logo, uma certa ênfase dada à denominada retórica-dialéctica,
representando a aproximação parental entre a retórica e a dialéctica, que
animou a ironia desde sempre, mesmo no seu momento fundacional, o socrático. É
claro que, nas vulgatas da história da filosofia, falar de ironia é falar de
Sócrates. Aceite-se ou não o cliché
desta certidão de nascimento (130), o que é certo é que a ironia socrática,
deixando-nos estarrecer pela dificuldade de estabilizar efectivamente o que
esta expressão significa, arrasta-nos de imediato para a relação íntima entre
dialéctica, diálogo e ironia, na qual se subjuga o jogo fantástico entre o que
seria uma ironia como incitação à negação
do saber e o passo em falso, da comédia (131), ironia monstruosa que se
trucidaria a si própria, pois de algum modo a ironia está mais do lado do
trágico que do da comédia, embora entre ambas ela opere uma profunda
unidade.(132)
Entre a ironia e o seu extremo, a comédia, olhemos
de perto a célebre imagem iconoclasta de Sócrates, perorando em cima da nuvem.
Sócrates e a nuvem, quer dizer, a ironia, visto que a ironia encontra-se ainda
em estado nebuloso, como todos os momentos inaugurais, –e resta saber se cada
momento não é inaugural em si–,sendo, por isso, larvar e indistintamente
interrogatividade, problematização, argumentatividade, retórica, dialéctica
e...lógica da definição. Dentro desta nebulosa, nesta matéria plasmática, a
ironia socrática é já o prenúncio tumultuoso de todas as concepções posteriores
e, extasiadamente, de todas as suas sobrevalorizações.
Aliás, a própria etimologia da palavra lança-nos, de
igual modo, no centro desta nebulosa: eironeia
(eirwneia) vem do verbo eironeuomai (eirwneuomai), derivado de eromai (eromai) que significa perguntar,
interrogar, da mesma raiz que eiro (eirw), ou seja, dizer alguma
coisa a alguém. Ora eromai é a
conjugação passiva e média de eiro, o
que significa que o que pergunta está numa posição passiva perante o que responde,
sendo isto o bastante para nos revelar para onde vai pender o sentido do
racional dos gregos: a resposta é sempre mais racional do que a pergunta!
No entanto, a descoberta da interrogatividade como
forma de perturbação do racional e do jogo de relações contraditórias que se
determina na equação pergunta/resposta gera já um sentido complexo de
interracionalidade, na medida em que essa equação apresenta-se, inapelavelmente,
como uma relação entre sujeitos que, numa estrutura de diálogo, forjam e
superam hipóteses e probabilidades inteligíveis. E, se ainda, por acréscimo,
como de igual modo a etimologia nos mostra, este perguntar, esta
interrogatividade não são co-naturais a uma razão proposicional, definitória,
mas é uma interrogação simulada, um jogo que, na verdade e aceitando a
interpretação mais incaracterística de Sócrates, é um anti-jogo, pois um dos
jogadores não sabe que está a jogar e o outro, porque tem a vantagem de ser o único que sabe que está a jogar
(Sócrates), também acaba por não estar a jogar, numa simulação de tal maneira
perfeita que se acaba por se simular que se está a simular, então o diálogo
irónico socrático brinda-nos com a paixão
fingida do ironista, que assola as razões do outro até à tragédia de o
deixar sem razão, nesse desdobramento luciferino de quem argumenta como quem
brinca muito a sério.
Se Sócrates, no baile de máscaras interpretativo
que a sua figura suscita, aparece ou desaparece por detrás de si próprio,
escondendo-se na sua própria sombra e tornando-se invisível na própria
luminosidade do sorriso irónico, é porque ele, como ironista, é Proteu, isto é,
aquele que se nega para ser mais e se multiplica activamente, como
se a subjectidade irónica fosse uma multi-subjectividade (133), não por
causa de a ironia ser a constituição de uma subjectividade, à laia da concepção
romântica, mas porque ela desencadeia um excesso de possibilidades, que
intensificam argumentativa e passionalmente a racionalidade que se institui
entre os interlocutores.
Parece, deste modo, claro que a ironia socrática,
enquanto descoberta de uma sucessão de negações, numa equação de
perguntas-respostas, aliás na vizinhança do que nos diz a etimologia da
palavra, é, igualmente, a descoberta de uma interrogatividade simulante, cujo
propósito é retórico, ao querer suscitar persuasões e convencimentos e que,
como tal, retira à razão a candura e a inocência de uma autenticidade
intrínseca, que fosse incapaz de se auto-negar, como acontece na negação
irónica.
A ironia, desde a socrática, é a descoberta de uma
negação que se instala na razão, que não é meramente ontológica ou lógica, mas
aparece como uma probabilização de si própria, uma negação positiva, em que,
simulando-se, se pode expor a novas possibilidades de pensamento, que não são
estritamente racionais, e fomentar uma irradiação de problemas, num
encadeamento de dúvidas e interrogações que têm, assim, um estatuto fundamental
na própria lógica interna da racionalidade argumentativa.
Deslumbrar-se com este poder simulante e
interrogativo da razão é o tributo que a figura socrática exigiu, no risco
consanguíneo entre a sua capacidade simulante e um uso dissimulante capaz de,
num teatro de sombras, trair a própria confiança na figura e no pensamento
socráticos. Numa esfera diferente, bem pelo contrário, a ironia, enquanto
simulação, limita-se a exprimir um campo de hipóteses, que não são mais do que
simulações do possível, como já foi visto, enquanto como dissimulação exclui hipóteses,
reduz o espectro da probabilidade argumentativa e prepara uma situação de
contradição incompatível e insuperável, que impede a partilha inteligível de
perspectivas por pensar. De certa maneira, a dissimulação, entendida num
sentido estrito, abre, se não mesmo escancara, a porta ao problema moral,
perspectiva da qual comungaram muitas das grandes filosofias e à qual não
permaneceu imune o próprio Aristóteles. No fundo, analisar a ironia como
dissimulação é não percebê-la e colocá-la no cárcere da hipocrisia, tornando-a
definitivamente ininteligível.
Apesar de tudo isto, a ironia socrática coteja já,
ainda que de uma forma não clara, o problema da interracionalidade, no sentido
em que ela se revela como uma estrutura dialógica, numa tensão hetero- e auto-interrogatividade,
isto é, numa expressão de relações de sujeitos, permeáveis a uma multiplicidade
de problemas, que só no seu exercício se revelam, no esplendor de todas as suas
consequências. Se a ironia socrática é a procura e o levantamento topográfico
de uma racionalidade que se auto-supere nas suas contradições opinativas e que
permita gerar o vazio criativo de uma
pesquisa, é porque ela assenta numa ideia de uma racionalidade partilhada, duvidando e sugerindo onde
a certeza campeia, preparando através das negações e da dúvida, lucida e
ludicamente expressadas, a abertura a uma inteligibilidade inovada de si
próprio e dos outros (134). Assim, ao sublinhar o dialógico e o dialéctico, a
ironia socrática evidencia a dimensão incontornável de uma relação entre
sujeitos, determinável discursivamente, não exclusivamente enquanto
consciências ou entidades autónomas e auto-suficientes racionais, mas como
co-presença de conflitos e consensos racionais, passionais e éticos.
Habitada por esta perspectiva, a ironia socrática é
uma arte de simular possibilidades, enquanto mobilidade de argumentos, não como
expressão sabática de uma irrisão, mas como equalização diferenciada de
perspectivas, na circularidade de argumentos que se cruzam e, assim, constituem
uma inteligibilidade argumentativa. O diálogo, na sua dupla tensão dialéctica e
conversacional, sublinha a presença de sujeitos que, nas mutações inferenciais
dos seus diversos momentos, podem até trocar de papéis e, ironia das ironias,
concluirem pelo contrário do que começaram, quase atingindo a suprema farsa,
como é o caso do Protágoras (135).
Se, a dado momento, Protágoras acaba "socrático" e Sócrates
"protagoriano" é porque entre eles, e na oposição que os afasta, se
intercala a ironia, como possibilidade interracional de procurar, nesse
substituto de última hora, melhor providenciar para o desenlace final
de uma conclusão que, ainda assim, está contida no sorriso quase imperceptível
de Sócrates, na linha do jogo com o imperceptível que o ironista
pratica.
Legitimamente, poder-nos-íamos interrogar se
Sócrates é o que persuade ou o que se persuade, já que a ironia, como arte da
alusão, é também a revelação de uma nova possibilidade de nós próprios, pois o
ironista, mesmo quando aplica "a estocada final", é o que se torna
cúmplice de si próprio, no sentido em que ele se vê como ironia também de si
próprio.
Neste prisma, Sócrates é o pseudónimo irónico de um
Sócrates que tomou a nuvem por Juno, na versão de Aristófanes, ou Juno pela
nuvem, na versão de Platão. Ao fazê-lo, num e noutro caso, a ironia socrática
perdeu-se incipiente no estado nebuloso donde veio, alienando uma
potencialidade que, decerto, por a assemelhar ao poder corrosivo-crítico dos
sofistas, alardeando fulgores de sofismas que lembravam, desagradavelmente,
numa certa óptica, o malabarismo retórico dos sofistas, pelo que era forçoso
amordaçá-la e açaimá-la, desvitalizando-a e retirando-lhe a dimensão ímpar e
sobressaída que Sócrates lhe conferira.
É perante esta virtualidade, logo atrofiada, de a ironia
socrática propor a descoberta de uma racionalidade simulante, que constitui o
seu ex-libris, a qual, no seu
alastrar, acaba por se confundir com a própria racionalidade, numa
identificação que desvela também o poder dialéctico-argumentativo da razão, que
Aristóteles, na sua ambição de estabelecer sistematicamente um mapa-múndi dos
saberes, o qual vai servir de paradigma quase per omnia saecula, vai separar a Lógica, a Dialéctica e a Retórica,
em estado siamês em Sócrates, ordenando e hierarquizando os diversos saberes e
desterrando a ironia para o seio da retórica, embora com um pé na poética,
reduzindo-a a uma dimensão anã, ora como quase figura de estilo, ora mero
figurino retórico. (136)
Aristóteles acabará por ficar sempre hesitante na
apreciação que faz da ironia, quer na Poética
quer na Retórica, remetendo o
ironista para um meio termo entre o inculto, inimigo de gracejos (agroikos-
terreno não cultivado) e o bobo (bomolochos), que procura ter graça a todo o
transe. O ironizador é o gracejador de bom gosto ou espirituoso (eutrapelos) e,
por isso, mais virtuoso, pois é o meio termo (mesotes) entre ambos. Por outro
lado, a ironia assenta na huponoia,
na alusão indirecta, numa contenção de linguagem que faz da ironia uma
insolência não bárbara, mas civilizada, aferindo-se a civilização por esta
capacidade de exprimir o humor ironicamente (137). No extremo, a ironia
cataliza esse poder da linguagem que se substancializa na capacidade de dizer
alusivamente, forma educada de dizer. O ironista é o sugestor, o que sugere e
seduz, numa referenciação indirecta do que diz e, num lance espirituoso, capaz
de criar conivências, cumplicidades.
Assestando baterias para uma determinação
humorística da ironia, embora não a restringindo a isso, Aristóteles
despotencializa a ironia socrática, confinando-a a um exercício de civilização e de sociabilidade. De
facto, se a ironia socrática, na sua febre extrema, se poderia apresentar como
insociável, ao gerar rupturas e agudizar conflitos, Aristóteles, de modo
oposto, explora um dos aspectos que marcam a ironia como forma de organização
de uma comunidade e destaca nela a superior característica da civilidade. O ironista, ilusionista e
alusionista, confere à sua atitude uma intenção de relações que se exprimem numa
cumplicidade, que assenta numa inteligibilidade partilhada, já
vista como uma das dimensões fortes da interracionalidade, numa sugestão de
problematicidade, mas sem lesar a simpatia básica de quem conversa, o pathos difuso que predispõe a uma
conversação ou a um diálogo.
Abrangendo tudo isto, a ironia passa a ser o factor
de coesão entre os sujeitos, sem abdicar de
citar as diferenças, e de fortalecimento das relações entre os sujeitos, ao
permitir-lhes identificações e diferenciações, sem expor chagas virulentas,
nesses ligeiros golpes da arte do florete, fomentando o diálogo e a
perspectivação dialéctica, como xadrez de hipóteses, como formas de construção
de sociabilidades.
Na verdade, a ironia é, para Aristóteles, e à boa
maneira dos gregos, a manifestação de uma relação entre sujeitos, não como
indivíduos, mas como polidamente
habitantes da pólis. O que a pólis
não suporta não é a ironia, mas o bobo ou o bárbaro, os que, no seu limite, não
revelam capacidade de interracionalidade, porque um desloca o humor para o
absurdo e a pantomina, espécie de promiscuidade total, enquanto o outro coloca
o humor na bestialidade e perversidade das relações, como se ambos acabassem
por ser uma forma bruta de ininteligibilidade.
É nesse mundo
polido que é a pólis que a
retórica e a dialéctica se interligam e se ocupam daquilo que diz respeito a
todos (138), sendo ainda no âmbito desta interracionalidade difusa e múltipla,
deste exercício quotidiano de argumentos informais e informalizados, que a
ironia aparece como índice esclarecedor de relação de sujeitos, aludindo a
possibilidades e situações, verosímeis ou inverosímeis, que condicionam uma
forma de sociabilidade que torna a retórica "(...) une branche de la dialectique et de l'étude morale qui mérite la dénomination de
politique." (139)
Aristóteles acabou por civilizar a ironia e a retórica, medianizando-as nas relações
educadas entre sujeitos, mas, ao mesmo tempo, sacrificou a potencialidade de excesso
que, de alguma forma, a ironia tinha em Sócrates e que a retórica tinha nos
sofistas. Desfundamentalizando uma e outra e estabelecendo uma distinção
hierarquizada entre a Lógica, a Dialéctica e a Retórica, conseguiu estabelecer
os princípios da Retórica Clássica e deu ensejo, mediante a hierarquização
subordinante entre as três disciplinas, à futura exclusão da retórica dos
saberes, identificados, doravante e em definitivo, com o proposicionalismo e o
verificacionismo. A partir de Aristóteles, a ironia tem, em geral, um destino
gémeo ao da retórica e fica acantonada a um apêndice da Retórica que, por sua
vez, já era um apêndice, situação da qual a ironia só emergiu por momentos de
apendicite aguda.
De facto, a oposição entre uma ironia como forma
dialógico-dialéctica, presente na concepção socrática, e uma ironia que se
aproxima perigosamente de uma figura de
estilo, como acaba por ser a concepção aristotélica, apesar de haver um
certo grau de injustiça neste juízo, é a oposição e a hesitação que vai
percorrer, ao longo dos tempos, as várias perspectivas sobre a ironia, umas
vezes desenvolvendo-a dentro de uma economia da análise literária, outras vezes
explodindo em erupções violentas, porém desencontradas e quase indomáveis,
reabilitando-lhe a dimensão dialéctica inicial (140) e ensaiando através dela
uma visão excessiva que, é indubitável, a figura de Sócrates, primacialmente,
continha.
Entre estas duas cicatrizes, sempre mal saradas, a
ironia aparece como fórmula de relação entre sujeitos e como indiciadora de uma
multi-subjectividade,
que vai permitir a progressiva afirmação de uma concepção do sujeito.
Se a retórica e a argumentação, enquanto territórios
das relações inter-humanas, contêm, ab
initio,, uma concepção ampla e plural do sujeito, não só como sujeito do
racional/logos, mas do pathos e do ethos, e se, enquanto tal, ambas dão asilo à contingência e ao
particular, então é por demais evidente que a ironia, ressalvando as nuances havidas, foi decisiva na
possibilidade da formação das diversas concepções do sujeito e das relações
entre sujeitos, já que ela, mesmo na fase de maior restrição retórica, nunca deixou, como figura de estilo, de
exprimir o problemático, o passional e o ético.
A ironia, e numa relação imprevisível o humor em
geral, foi uma das formas privilegiadas da constituição do moderno e do
contemporâneo, porque nela pulsou sempre um suficiente caudal de atitude de
dúvida e crítica, capaz de fomentar renovações e inovações. Isso mesmo está
patente na construção da modernidade, e que no seu momento mais remoto, o
século XVII e seguintes, aparece nesse outro paradigma fundamental na
constituição da modernidade, que é o paradigma do ficcional.(141)
Muitas vezes, na análise da fundação da modernidade,
tende-se a sobrevalorizar o paradigma científico, emblematicamente associado à
revolução copernicana, a par do paradigma filosófico da concepção de sujeito,
expresso fulgurantemente na filosofia cartesiana, negligenciando-se o paradigma
ficcional, cujo momento iniciador é o D.
Quijote de la Mancha (142), e que nos dá um sujeito como leitor de livros
(143), entrando num mundo virtual recheado de simulações verosímeis, que
revelam o real como um romance. Complementarmente, o romance desencadeou novos
modos de relações entre os sujeitos e uma nova forma de ser sujeito, passando a
ser o palco de uma nova intersubjectividade, a do autor e do
leitor, e de uma nova interrealidade, a do real e do
ficcional, mesclando-se uns nos outros, numa diluição de fronteiras, típica da
modernidade.
Manifestamente filiados nesta perspectiva, o humor e
a ironia do D.Quijote são o desafio
permanente de possibilidades contraditórias entre o sentido e o absurdo, que
constitui o nicho perfeito para a emergência do problemático que, mesmo num
figurino literário, evidencia um olhar retórico e argumentativo. D.Quixote, na
sua epopeia discursiva, é um orador retórico dirigindo-se às mais estranhas
assembleias e o romance passa a ser assim, enquanto mundo de prováveis, a
descoberta literária do retórico, mediante a negação irónica e anti-romanesca
do D.Quijote. Sob um certo olhar,
depois dele, todos os romances já são anti-romances, propondo-se inventar
permanentemente o romance e pretendendo fazer o romance dos romances, como
acaba por ser o D. Quijote.
É este estado de sítio, inaugurado pelo
"cavaleiro da triste figura", que se constitui na presença da ironia
que o atravessa, na simulação em que se toma o real por ficção e a ficção por
real, ironia que aparece não só como uma técnica literária ou, de modo esparso,
nalgumas figuras de estilo, mas como
logos, pathos e ethos de todo o romance. Desta forma, e em consequência
disto, a formação do sujeito moderno decorre claramente da tensão irónica que
todos nós, simulantes e simulações de quixotes, apreendemos e que nos faz ser,
a partir dela, o que há de mais diverso e problemático em nós. Pensar e viver
ironicamente é tornar-se personagem imaginário de si próprio, potencializar
as hipóteses de ser; contrabandear realidade, fingindo-a, e legalizar
ficções, realizando-as. O homem moderno é, por isso, o que já não pode
coincidir consigo e com a realidade e, doravante, já não tem um destino
esperado ou anunciado, como na tragédia clássica, mas todos seus destinos são
desconhecidos e imprevisíveis : a ironia é fingir que se os conhece e
inventá-los, na multiplicidade de os tornar inteligíveis na retórica do real
que é o romance.
Assim, o longo percurso e processo de redução da
retórica às figuras de estilo e dentro destas a hiper-valorização da metáfora
em detrimento da ironia, acabou por produzir o efeito contrário, ao tornar a
ironia num capital excelente para a entrada
na modernidade, no sentido em que a sua relegação para um plano secundário
e, de algum modo, quase anti-social, acabou por lhe imprimir uma potencialidade
acrescida de ser utilizada e concebida como uma forma e atitude provocatórias
de novos modos de pensar, de ser e de dizer e de através deles induzir e
introduzir novas relações entre sujeitos, numa perspectiva que confirma a
interracionalidade de que se tem vindo a falar. Mesmo quando desvalorizada e
escorraçada, mesmo quando vista como um jogo de salão (144), cultivada através
de uma inteligência mundana e frívola, que se manifesta em aforismos
contraditórios, apotegmáticos, de sentença breve, ou epigramáticos, pequenos
poemas satíricos ou gracejos mordazes, assim como trocadilhos de sentido e de
som, num jogo de cabra-cega entre o sério e o lúdico; mesmo então a ironia,
pelo seu espírito de dúvida, de contradição, de suspeição, de instabilidade e
pelo multiplicar de sentidos das relações entre sujeitos, nunca deixou de ser o
sinal possível e intenso de uma interracionalidade, desenhando e recortando
relações variadas de inteligibilidade e deflagrando, por via da dúvida e da
interrogatividade, novos modos de recriar e perspectivar problemas.
Embora na constituição da modernidade, e enquadrando
esta na "descoberta" do literário, a ironia acabe por ser, sobretudo,
uma ironia da e na literatura, convém lembrar que não se restringe a uma
simples perspectiva literária. Em autores tão díspares e referidos de modo
aleatório, Swift, Lichtemberg, Wilde, Gogol, Camilo, etc., a ironia e o humor
são métodos plenos de reestruturação de ideias e manifestações polémicas de uma
argumentação, quer por via do romanceável quer pelo ironizável.
E se, nesta prospecção apressada, lembrarmos a visão
irónica com que Voltaire brinda o optimismo leibniziano, desmontando-o com a
precisão e a cirurgia típicas da ironia, assim como, por arrasto, a inocência natural rousseauniana (145),
vemos que a ironia não foi por certo uma mera figura de estilo ou um
malabarismo de salão, mas continuou a ser o crisol argumentativo de uma
racionalidade aberta, precária, plural e, acima de tudo, uma racionalidade de
relações de pessoas e de argumentos. Relacionado com isto mesmo e apoiado nessa
figura magna de uma ironia militante, cuja fama alastrou por toda a Europa,
poder-se-ia até dizer que a ironia de Voltaire é um modus operandi do iluminismo e que, em alguma dimensão, o
iluminismo e o racionalismo crítico se produziram através de uma negação que
foi, pela sua aproximação ao incongruente e ao absurdo e pelo lado lúdico,
irónica.(146)
Ironizar é, destarte, uma estranha forma de
iluminar-se, de arrancar máscaras, dogmas, crenças e preparar uma tolerância,
que brota directamente de uma libertação, como já vira Sócrates, proporcionada
pela ironia. Toda a ironia é uma forma de libertação e uma das formas mais
acabadas de liberdade de pensamento e de linguagem. Donde a sua estreita
ligação ao iluminismo e o seu inesgotável papel de transformação dos modos de
relacionamento entre os seres humanos.
A ironia revela ser assim uma forma de tolerância do
outro, no sentido em que, dando conta das diferenças e dos conflitos, não os
absolutiza ou fanatiza, mas implica e implicita os outros, mesmo os ironizados,
dando-lhes uma inteligibilidade negativa. O conflito irónico, pela sua
contingência, é o do diálogo e o que civiliza, como vimos em Aristóteles, o que
integra numa pluralidade de opiniões, de argumentos, de atitudes e emoções. Ao
contrário do humor, que cria uma unanimidade e do sarcasmo, que fanatiza e
torna o outro "vítima", a ironia, mantendo as diferenças, convoca a
inteligência do outro, do ironizado e mesmo daqueles que comungam da ironia e
do ironista, criando uma inteligibilidade partilhada.
No fundo, a adesão ou a réplica a uma ironia impõem
uma subtileza de inteligibilidade, que não se compadece com o pseudo-unanimismo
que o humor pode provocar, nessa sociabilidade imediata e efusiva de algo que
não é questionante e problemático e do qual a anedota é exemplo ímpar, nem com
a virulência do sarcasmo, cujo despotismo e violência é excluidor do outro e
das suas razões. A ironia é o que, na preservação das diferenças e dos
problemas, aproxima os que se opõem, reconhecendo no outro um diferente inter pares, alguém que participa na
abertura a novos níveis de pensar e argumentar; alguém que é convidado a
participar na inteligibilidade irónica do problema. Gerindo conflitos,
demarcando perspectivas, o ironista não encerra o opositor num gueto, mas
sugere-lhe possibilidades de réplica; fomenta, na inteligibilidade precária que
enuncia, uma multitude de réplicas possíveis, já que toda a ironia ficaria
incompleta se se auto-esgotasse em si própria e servisse unica e exclusivamente
para a concretização de uma subjectividade absoluta, de um hiper-sujeito, de um hiper-eu,
que ensaiasse na ironia o absurdo de todo o mundo e o infinito de si próprio,
como o fez a ironia romântica.
Neste processo de delinear e caracterizar, nalguns
momentos e concepções mais relevantes da ironia, o que se poderia designar por
uma matriz de interracionalidade, cuja dimensão é múltipla e engloba relações
entre sujeitos, em todos os aspectos, lógicos, passionais e éticos,
deparamo-nos com uma subjectividade relacional implícita à ironia, que a tornou
marca decisiva e notória nas diversas concepções de sujeito, que se
reivindicaram, como vimos, da distância que a ironia interpõe em todos os
olhares que incidam sobre a realidade, distanciamento e estranhamento propícios
à simulação do negativo, criador de uma liberdade e libertação que exaltariam
uma consciência fulgurante de si.
É sob o jugo desta perspectiva, que a ironia
romântica é o corolário inevitável da concepção moderna do sujeito, que se
apresenta impregnado absolutamente de si mesmo, e que se afirma nas constantes
negações, fornecidas pela ironia, num nihilismo militante como raiz de uma
absoluta liberdade criadora, pois só o nada e os nadas exibem a possibilidade
de uma plenitude criadora. Na ironia romântica, a concepção de sujeito
extremiza-se, violentando a perspectiva retórica da linguagem, distorcendo a
ironia, concebida como uma inteligibilidade partilhável e partilhada, ao querer
sustentar uma Hiper-Linguagem que cotejasse e avassalasse todas as paixões do
sujeito, embriagado de si mesmo.
O eu romântico é esse esquálido fantasma que paira
no além de todos os aléns e que dissolve todas as determinações, para melhor se
aproximar do nada de si próprio, aflorando as sombras que habitam todos os
sonhos (147). Ser é então negar-se e dissolver-se no nada que a negação cria:
tentação de suicídio, a ironia é assim a extrema-unção de tudo, mundicídio
e eucídio, no sentido de uma liberdade infinita de espírito, tão
infinita que rivaliza com o nada pois, verdadeira e romanticamente, um infinito
absoluto seria uma máscara carnavalesca do nada.
A estética romântica desenvolvida, entre outros, por
Richter, os irmãos Schlegel e Solger, faz da ironia a manifestação absoluta e
infinita da negatividade (148). Nesse sentido, fascinado pelo negativo, o
romântico vê na ironia a dissolução de tudo e a manifestação de um nihilismo
esfuziante onde, como disse Solger, "é preciso conferir ao nada uma
aparência de existência, a fim de o aniquilar mais facilmente." (149)
Com efeito, encontramos, na ironia romântica, a
infinitização de todas as oposições, em que o sublime kantiano se transforma em
ironia e o trágico é cómico e vice-versa. Nesta diluição operada por um manobra
de contrastes do sujeito romântico, que se auto-parodia, a ironia é o único
equilíbrio entre os extremos do êxtase e do desencantamento; entre as emoções
vulcânicas, geyseriadas e as emoções glaciais, icebérguicas; entre o ideal e o
real, num livre jogo capaz de dar ao ironista, como diz Kierkegaard,
"(...) o flutuar, o entusiasmo, na medida em que ele como que se embriaga
na infinitude das possibilidades de si mesmo."(150)
O abalo sísmico provocado pela ironia romântica na
visão séria do mundo,– e, como diz Jankélévitch, o sério é o que encara "
o tempo na sua totalidade ", na sua máxima duração, e por isso não conhece
a aventura (151)–, é o empurrão que conduz a uma nihilização metafísica, transformando deste modo a ironia em
"impertinência satânica", como pretendem os românticos, e
desenvolvendo uma concepção do sujeito em vórtice e vertigem, que se canibaliza
a si mesmo, na voltagem violenta de uma consciência e de um sujeito que
asfixiam por excesso de liberdade.
A visão romântica da ironia, que Hegel tenta
contrariar, apesar de ele próprio não lhe resistir ao falar da dialéctica como
"universal ironia do mundo" (152), conduz-nos à vertigem do
precipício e à embolia da auto-refutação, pois se nada é para levar a sério,
então ironizemos a própria ironia e mergulhemos no eco grotesco de nós
próprios, enquanto mutantes de uma liberdade de intermináveis negações.
Entontecidos por este hino romântico à ironia,
parece já pouco restar da perspectiva que se tem vindo a desenvolver e corre-se
até o sério risco de aniquilar a própria ironia! De facto, o romantismo, ao
absolutizar e incensar a ironia, contribuiu, de modo inestimável e positivo,
para a voltar a colocar como problema filosófico e não como tique
estilístico e, não menos importante, para paradoxalizar a concepção de
sujeito, a ponto de abrir as condições a uma reperspectivação renovadora, que restaurasse e reabilitasse a
matriz inicial da qual ela emergira.
É este trabalho que Kierkegaard empreende na sua
tese de habilitação, intitulada O
conceito de Ironia, Constantemente Referida a Sócrates, que Booth (153)
considera um dos mais importantes livros, alguma vez escrito sobre a ironia.
Várias das últimas linhas deste livro, depois de terem sido passadas em revista
as posições de Schlegel, Tieck e Solger, debruçam-se sobre uma ironia que, como
exercício de subjectividade, já não corresponde ao delirium tremens da ironia romântica, mas aparece como uma forma de
expressão limitada e restrita da subjectividade: " A ironia foi assim dominada,
imobilizada na selvagem infinitude, em que avançava tempestuosa e
devoradamente, mas daí não se segue, de maneira nenhuma, que ela deva
perder a sua significação ou ser totalmente deposta. Muito pelo
contrário, quando o indivíduo está correctamente orientado, e ele o está quando
a ironia foi limitada, é então que a ironia adquire a sua justa significação,
sua verdadeira validade. No nosso tempo, tem-se falado frequentemente na
importância da dúvida para a ciência; mas o que a dúvida é para a ciência, é a
ironia para a vida pessoal. "(154)
A ironia que não desmesura o sujeito, aparece
definitivamente como um retorno a uma subjectividade precária, na qual a ironia
é um instante negativo (155), no
sentido em que cada momento da existência não é absolutamente adequado e, por
isso, se torna precário. No entanto, é esta subjectividade precária que aparece
como a forquilha que levanta o indivíduo da existência imediata
(156), que o liberta do sistema e o obriga a redescrever-se, na medida
em que a ironia, o que era adstringente igualmente no modelo socrático, é um
perguntar exaustivo, não arbitrário, mas numa correlação de perguntas e
respostas, cuja determinação de diálogo e de espiral impõe e expõe uma
estrutura de interracionalidade. Todavia, se a ironia coloca a tónica sobre o
indivíduo versus o sistema, sobre a existência versus a ideia, então ela já não
é a sobredeterminação de todas as condições, enquanto negações relativas, de um
absoluto em realização dialéctica, mas a exploração de possibilidades que se
imprimam numa realidade e numa existência (157) e que sobressaiam como modos
irónicos, isto é, distâncias cruzadas de pensar e vivenciar o que acontece.
A subjectividade irónica kierkegaardiana, ainda que
caminhe em pontas no palco fascinante da ironia romântica, despede-se já desta,
preparando uma abertura a um sujeito existencial, cujo destino inapelável é
aproximar-se de forma contingente da realidade, não encarada como uma essência
fenomenica e dialecticamente explanada, mas como o atrever-se à singularidade
e à presença do indivíduo, na diferenciação de instantes e estádios. Na linha
disto, Kierkegaard amanha alguns dos terrenos importantes da filosofia
posterior, apesar de, e ao contrário da sua inquestionável presença no
existencialismo, a sua concepção de ironia acabe por se tornar difusa,
reconhecendo-se, porém, que algum existencialismo se proteja na sombra de um
certo espírito irónico, no sentido em que ele foi, ao longo dos tempos, a
ruptura com o sistemático e com um racionalismo proposicionalista,
fundamentalizador e verificacionista e, por estes motivos, desse ensejo e
cobertura a uma concepção mais rica e plural do racional e do sujeito, retendo,
nos seus pulmões, o ar inicial de um sujeito que não é só logos, mas por igual medida pathos
e ethos.
Interligado com os aspectos anteriores, é claro que
a integração do passional, o que mais fora excluído no sujeito cartesiano, no
racional e a reabertura desta relação passam, ainda que numa perspectiva
generalizante, pelo contributo de Kierkegaard, enquanto reperspectivação do
indivíduo, nesse extremo de paixão ou de paixão ao contrário que é a solidão.
Se a ironia não é solidão, embora influa distâncias, não mais também a solidão
é a absoluta ironia de um sujeito arrebatado pelo nada, na ascensão de furacão
que é a ironia romântica. A solidão kierkegaardiana, cujo avatar e figura é o
Isolado, seja ele D. Juan ou Abraão, extremos e limites de uma ironia que se
transfigura e desfigura no absurdo, desenha--se e decalca-se fortemente na
prioridade do indivíduo, como teatro do existir e como inteligibilidade
permanente de si próprio, cuja determinação provável é ainda razão da ironia e
ironia da razão. A ironia, proposta de absurdo, aparece assim como a reductio ad absurdum do indivíduo que,
mostrando a impossibilidade de se fundamentar, se expõe nas negações em que tange
no que há de mais absurdo e incomum.
O indivíduo kierkegaardiano é, por esta via, cisão,
perturbação do Absoluto, rasto cadente de uma visão que já não suporta a luz
violenta e desabrigada do que pensa ou sente, mas que redime num único
instante, estético, ético ou religioso a probabilidade díspar de existir-se. Por
consequência, o ironista, para Kierkegaard, vive numa volaticidade e
fragilidade, pois está e existe sempre de modo hipotético e conjuntivo, na
redescrição intensa e fulgurante de si mesmo. A subjectividade kierkegaardiana
já não é um processo cognitivo de uma consciência, em franca assunção de si,
mas é a debilidade intrínseca de um modo de vida que se aproxima da realidade
pelo lado mais perigoso, mais incerto e que, por tal, começa a viver quando se
descobre infectado de ironia e se consegue determinar apurando hipóteses de
ser. A ideia de que a ironia não é a verdade mas o método,
embora enraizada na apologética socrática, parece, por um lado, libertar-se
definitivamente do engodo e da fascinação especulativa da ironia, que o
romantismo apregoou sabaticamente e na qual Solger foi voz pontificada (158);
e, por outro lado, parece destacar uma função de mediação e de preparação para
uma inteligibilidade a descobrir ou, ainda de uma subjectividade que é um
espelho imenso de instantes, não porque a sua vida seja uma mera fileira de
sucessos fragmentários, mas porque nela se exprime uma inteligibilidade
sucessivamente redescrita e, por essa razão, sucessivamente mais inteligível. A
ironia é, deste jeito, uma forma de apropriação do mundo e de si mesmo, suscitando
desafios ou problemas, alternativas, numa policroma escolha de possíveis, onde o
modo conjuntivo prevalece sobre o modo indicativo, inseminando-se um no
outro, no sentido em que a ironia é uma forma de liberdade imprescindível ao
sujeito.
É na linhagem desta concepção que, aparentemente em
contra-mão, se vem instalar e projectar o olhar invocador de Rorty, ao
recentrar alguma da perplexidade filosófica actual na figura do ironista liberal, que surge como
corolário deste processo de entronização de uma subjectividade que, mais do que
um esgar ou um olhar vesgo sobre o real, se apresenta como uma rede de relações
inteligíveis, dadas em campo aberto e contingente, condição eminente do
"ironista".(159)
No entanto, e sem forçar a nota, é notório que a
figura do ironista liberal parece relevar ainda da própria visão que
Kierkegaard vai desenvolvendo da ironia como "vida autocriada e
autónoma" de um sujeito, nas palavras de Rorty sobre Kierkegaard (160). O
problema, alheio a Kierkegaard, e que Rorty pretende esclarecer, é a ligação
entre o privado e o público; o individual e o social; a ironia e a
solidariedade, garantindo por este meio, uma distensão entre a ironia,
exponenciação do indivíduo, e o liberal, expoente do social e do solidário.
Desta conjugação, e dos seus riscos e consequências, se iluminam as ideias
centrais do livro Ironia, Contingência e
Solidariedade, que regressa a uma concepção de ironia que, inevitável é
dizê-lo, se invoca de um socratismo-light, assente na ideia de que a ironia é
um problema da relação com as suas próprias crenças e saberes e, por outro
lado, é um problema de relação com os outros, sendo assim público, social e
ético-político. No fundo, Rorty encerra o ciclo da ironia socrática ao agendar
a ironia como uma forma de liberalismo, no sentido em que este conceito, apesar
de estranho a Sócrates, impende como proposta de organização e relação do
privado com o público e, por isso, retém, e torna-se talvez refém, do problema
socrático de uma aretê, como
expressão do individual no público.
Na verdade, a primeira ideia base, e que resulta da
inusitada adjectivação proposta por Rorty, é que só há verdadeiramente um tipo
de liberalismo, o da ironia, que é
sempre liberal. A ironia e o liberalismo são assim, estreitamente, a
contingência de todas as perspectivas, na medida em que cada uma delas não
exprime "uma outra realidade", pelo que o nome de cada coisa é a
própria coisa, na perspectiva em que a linguagem não é a roupagem indevida de
uma qualquer essência colocada metafisicamente alhures, utopica ou
atópicamente, na mesma forma que a história não é o percurso ou o calvário de
um absoluto. Este nominalismo não se restringe a um flatus voci, o que seria reduzir a linguagem a uma materialidade
mínima, mas contém uma inteligibilidade expansiva, que se multiplica e
probabiliza nos diversos contextos e nos seus heterogéneos usos. O nome não é uma entidade ou uma película
aderente, mas um possível, uma hipótese de inteligibilidade, determinada numa
rede de razões e perspectivas que desencadeiam a interracionalidade,
incorporada em horizontes amplos de relações entre indivíduos, co-presentes e
contemporâneos de um conjunto de sociedades, crenças, costumes e perspectivas,
sempre encaráveis de uma forma hipotética e conjuntiva, o que constitui a possibilidade
permanente de redescrição dos
fenómenos e da sua inteligibilidade, indiscerníveis entre si.
Se a redescrição é, por excelência, o método do
ironista é porque ela é uma porta aberta para o inteligível (161) que se
apresenta num contexto de ideias, argumentos, em suma, linhas cruzadas de uma
caligrafia complexa que conscreve uma descrição
possível do mundo e da realidade, não como única, plena e hieraticamente
verdadeira, mas como passível de derivações, variações e contra-variações que a
tornam, de modo emblemático, contingente. (162)
Apoiadas nesta base, a ironia e a metáfora são
formas excelentes de redescrições, no sentido em que toda a redescrição se
torna uma reapropriação de sentidos, decorrentes do jogo permanente entre
metáforas e ironias, num vaivém incessante de metáforas que abundam e
sobreexcedem de inteligibilidade um determinado problema, num dado momento; e
de ironias que as antagonizam, num contexto de argumentatividade e
problematicidade. Desta forma, a redescrição é, mais uma vez, o sinal impresso
da interracionalidade, já que falar-se de redescrição é dizer que nenhuma
descrição do mundo é original, essencial e absoluta, e que todas são já
integradas e integradoras duma dinâmica de relações feitas como formulações
possíveis de uma inteligibilidade partilhada, que se renova incessantemente.
Não admira, por conseguinte, que Rorty afirme que : "A forma de argumento
preferida pelo ironista é dialéctica no sentido em que considera que a unidade
de persuasão é um vocabulário e não uma proposição. O seu método é a
redescrição e não a inferência. As ironistas são especialistas em redescrever
gamas de objectos ou de acontecimentos em jargões parcialmente neologísticos,
na esperança de incitarem as pessoas a adoptar e alargar esse jargão."(163)
O ironista é o que convidado a mergulhar numa
determinada linguagem e vocabulário descritivo do mundo o
"caleidoscopoliza", gerando surpresas, instaurando problemas,
tornando contingentes noções e crenças, reimprimindo uma nova inteligibilidade
à questão. Visto sob um certo prisma, o ironista é o que sabe que cada palavra
é, a cada momento do seu uso, potencial neologismo, potencial revisão do seu
uso e significado e, por tal, se aqui e agora, algo nela se torna literal e
morto; ali e depois, algo nela se tornará figurado e inovador. O ironista é um
dos que mais penetrou no jogo de sombras da linguagem, o que mais apreendeu a
sua mobilidade, as perturbações e os desarranjos que ela provoca; o que mais excede a literalidade, ao ponto de a
distender até ao limite e de nela atrever-se quase ao absurdo, já que a ironia
é a forma mais extrema da linguagem, na medida em que nela o que se afirma e se
nega coincidem, num paroxismo teatral de um actor que representasse dois papéis
contraditórios ao mesmo tempo.
O ironista, dervixe da palavra, é o que experimenta
até ao mais ínfimo, até ao mais fundo a impossibilidade de uma linguagem final,
alucinação de uma mente absoluta, e por isso reconhece a instabilidade, não
como forma de relativização ou subjectivação, pontos de fuga externos e nós
cegos de todas as descrições, mas como problemas num determinado contexto, cuja
organização e inteligibilidade já é resultado de um conjunto de relações e
argumentos, dados sempre em campos de contingência, que são
sempre descrições de e na linguagem (164). Por certo, o que Rorty pretende
enfrentar, ao invocar a ironia como método privilegiado da contingência, seja
da linguagem, da individualidade ou de uma comunidade, é a obsessão metafísica
que engendra uma efectiva realidade relativa e secundária, ao criar hierarquias
e sistematizações, metodica e logicamente organizadas, na tentação monodeísta e
monoteísta de uma verdade. A ironia é a impossibilidade de um sistema, assuma
ele os cambiantes que assuma, sonegando-se, deste modo, o que se poderá chamar
"a imperial teorização da vida e do mundo." (165)
O ironista, herdeiro directo da contingência, abre
assim uma clareira de possibilidades, que emana das sucessivas redescrições dos
problemas, que surgem empoladas das múltiplas dúvidas que o uso e exercício da
linguagem suscitam. Na linha e em íntima relação com isto, a linguagem e as
comunidades com os seus vocabulários são o que se poderá designar como campos
de contingência, que encerram em si interrelações racionais, éticas e passionais,
exprimidas difusamente num conjunto e não num sistema, conjunto esse que não é
mais do que a probabilidade de uma interracionalidade argumentativa de vários
sujeitos.
Enraizado nesta perspectiva e alinhado em alguns
pontos somente, a figura do ironista liberal parece dimanar da própria visão
que Kierkegaard vai desenvolvendo como egofania, numa volaticidade e
fragilidade que advêm do facto de o ironista viver sempre de modo hipotético e
conjuntivo, o que se aproxima tangencialmente da contingência rortiana.
Kierkegaard reteve, ainda deslumbrado com a ironia romântica, o problema da
ironia como um problema do eu e da subjectividade; da não coincidência do eu
consigo próprio, na perspectiva de que a ironia, como jogo e simulação, inventa
jogos de espelhos na consciência do indivíduo, criando perspectivas em
profundidade e fomentando duplos e, ao fazê-lo, aflorou a ironia como uma forma
de contingência do eu e da subjectividade.
No entanto, o que afasta incomensuravelmente a
ironia kierkegaardiana da rortiana é que a primeira desemboca na figura do
isolado, vendo a contingência como insularidade entranhada de solidão, enquanto
a segunda pretende assentá-la na solidariedade, perspectivando uma contingência
do relacional. A este propósito basta citar a frase de Kierkegaard, "Mas
há tão pouca unidade comunitária num conjunto de irónicos quanta honestidade
num Estado de ladrões." (166), para imediatamente percebermos que a
filosofia kierkegaardiana da ironia vê nesta um problema metafísico do
indivíduo, o que não se concilia com "o nominalismo e historicismo"
advogados por Rorty.
Apesar desta divergência de fundo, há uma linha
chave comum a eles, apoiada na definição de Rorty do método do ironista, isto
é, a redescrição, linha que resulta do facto de ambos verem a ironia, para além
da metáfora, como uma forma importante e talvez a única redescrição possível,
para um, da subjectividade, para o outro, da contingência. Em síntese, o
ironista não pode ter, como diz Kierkegaard, nenhum an sich, o que nos coloca num errático existir e pensar, que nenhum
vocabulário terá o condão de finalizar ou solidificar.
Assim, a redescrição, metafórica ou irónica,
produtora de uma auto-criação, como o sublinha Rorty, é uma estranha
transumância de sentidos e contrastes que facilmente perfuram a solidariedade
se " o que liga as sociedades são vocabulários comuns e esperanças
comuns." (167) Perante isto a pergunta que mais carece de resposta é a
seguinte: entre o público e o privado, como é que se faz o comum?
Se é este o problema que anima as linhas várias da
argumentação rortiana, ele é também o que permanece, ainda assim, mais incomum, na periclitante e contingente
argumentação apresentada. Facilmente encantatória, a ligação entre a ironia e
liberalismo procura exaltar uma utopia liberal, como forma
contingente de relação entre o público e o privado, numa ética do precário, em
que o humano surgiria, não como Atena da cabeça de Zeus, mas como fruto de um
experiência de si próprio, engrossada pela contingência múltipla e plural dos
possíveis de si mesmo.
A ironia será então o aproximar-se ao que há de mais
humano, como " uma rede de pequenas contingências que se interanimam"
(168) e que, "no pequeno de si próprios", encontram a escala de
grandeza necessária à presença fértil e viva de uma comunidade. O que Rorty
pretende dizer é que nunca o metafísico ou o teórico se ocuparam com o pormenor
e criaram uma ciência do pormenor, como pretendia Flaubert; que nunca falam ou
falaram do indivíduo, –Fulano, Sicrano–, ao invés do romance, o que faz com que
a ironia só se consuma definitivamente quando ela exprime "o pequeno
romance" de um indivíduo, sendo assim condição de todos indivíduos,
enquanto personagens de uma realidade, que não é mais do que uma teia de
pequenas contingências e coincidências.
Submeter-se a esta perspectiva, e invocar o
"território poético" do romance como derradeira forma de inventar
soluções, é desviar-se de uma ironia argumentativa para uma ironia existencial,
que releva directamente de um problema de existência e que invoca uma solução irracional onde pretende
racionalizar. A ironia não é a escatologia de um qualquer desespero ou
ameaçante paralisação, mas continua a ser tão só uma das formas de procurar
descrever problemas, não garantindo um conhecimento ou vida extras, nem trazendo,
por si própria, a garantia de estar mais próxima de uma solução ou de uma
posição certa, como um brinde e um bónus finais. A ironia expõe
modos e possibilidades de argumentar e não nos prepara para a beatitude de uma utopia
da contingência, ideal de convergência de todas as possibilidades de
ser e de pensar, generosamente equivalentes, profeticamente equidistantes.
O equívoco central de Rorty é o de focar a figura do
liberal ironista como interessado na perfeição (169), correspondente a um
trabalho de auto-criação de uma subjectividade, o que restringe, em diversos
aspectos, a ideia de interracionalidade subjacente à teoria da argumentação e à
ironia que, embora fonte de uma longa concepção do sujeito, só aparece
nitidamente como argumentação, quando se insere numa perspectiva
inter-racionalista, em que a racionalidade é a rede fina de argumentos que se
imbrincam uns nos outros, não só através da malha estreita das inferências
lógicas, mas também, e sobretudo, das inferências retóricas e das suas múltiplas
e contraditórias formas. O homem é, por consequência, um ser de relações e o
humano a expressão sublinhada de uma vaga e maré de situações de
inteligibilidade, em aberto e problematicamente, partilhável.
Não é de admirar que do "eu" ao
"nós" a ironia seja um caminho eriçado de armadilhas, onde alguns
acabam por perecer, pois a ironia não fornece energia e munição suficientes a
uma qualquer autonomia do sujeito e do eu, embora já saibamos o poder que ela
teve na elaboração e reelaboração das concepções do sujeito, prenunciadoras do
seu próprio esgotamento, porque incapazes de abrir os pulmões na sua totalidade
à noção de um sujeito relacional e interracional,
O ironista é, por fim, o que multiplica a
possibilidade de ser "nós" e o que nos mostra que temos de partir dos
vários sítios onde estamos, pois onde estamos é uma pátria enorme de múltiplos
e diferentes estares, inteligivel e argumentavelmente, partilháveis. E como
para um peixe o mar não é mar e a terra é o mar, o ironista é o que baralha
essa inteligibilidade para voltar a compreender e jogar.
Nesta cartada, considerar-se a ironia bluff ou
batota é ter mau perder e violentar a generosidade e a abundância do possível,
esse piscar de olho e convite à realidade que nos espera impacientemente.
Todos os viajantes, ao longo dos seus périplos, já alguma vez sentiram
o apelo de uma estrada secundária que se perfila, no horizonte, como sugestão
de um percurso novo, que se perde na linha imprecisa do poente. Também esta dissertação,
na sua cartografia incipiente, projecta veredas de outras possibilidades de
análise, que ficam ainda assim como promessas sugestivas e hipnotizantes, face
ao caminho principal efectivamente trilhado e que, por isso mesmo, já se
tornou, decerto, pobre e indigente, na paralisia com que pouco a pouco o
esquecimento se apodera das coisas.
No entanto, se todos os viajantes são imprevidentes, e mais o serão
quão mais longínquo e desconhecido é o país para onde viajam, também este
trabalho reflecte as imensas imprevidências de quem partiu cedo demais ou
chegou tarde demais às questões que a ironia suscita. Por certo que a bússola
usada,– o conjunto de objectivos enunciados na introdução–, pretendeu garantir
sempre o mínimo de orientação e, como extra, não impedir também alguns
olhares mais descansados sobre as paisagens entretanto aparecidas.
No fundo, e ironicamente, todas conclusões correm o risco de serem
expressões do inútil, pois ou reiteram e bisam o que já foi desenvolvido ou
exploram a confissão de um agonizante que pretende salvar-se à última da hora
de uma longa vida de pecado. Não sei, em absoluto, em qual dos modelos deveria
incorrer nesta, mas até agora ela ainda não se libertou da própria hesitação
que a anima, pois, realmente, a conclusão é, por excelência e contradição, a
arte da hesitação. Hesitação porque ela evidencia a síndroma do fim
que afecta profundamente todas as conclusões e marca dolorosamente todos os
princípios e intenções. Deste modo, e sob a influência dela, esta hesitação, preâmbulo
de todas as conclusões, mesmo inconclusivas, mostra à saciedade o precário de
tudo o que foi feito, dito e defendido nesta dissertação, aparecendo, sem apelo
nem agravo, como incompleto, restando saber se incapaz...
É no enredo destas hesitações que a ironia espreita como forma de
argumentação e de exploração retórica da linguagem, já que antes de todas as
formas de linguagem, lógica ou outras, está a linguagem,–espécie de truísmo
retórico–, e o uso que fazemos dela, acrescido do brilho que está na
própria etimologia da palavra argumento já que, nas pequenas mitologias que as
etimologias instituem, argumentum, i
não parece deixar o assunto por mãos alheias, pois este substantivo neutro
latino provém de argus, us,
significando brilho e aparenta-se ao célebre Argus, que tinha cem olhos. De
algum modo, e numa metáfora alada, argumentar é esse brilho de cem olhos, que
centuplicam o que dizem. Neste sentido, toda a linguagem é sempre
situada e, potencialmente, controversa, mas ainda assim iluminante, já que
fosforesce de inteligibilidade todos os contextos em que a usemos.
Brilhar é, finalmente e aceite isto, a apoteose de todo o argumento,
como expressão plena de um inteligível problemático, brilho esse pelo qual
perpassa uma leve, aérea e aquilina sombra, como sobre uma presa incauta: a
sombra da ironia.
Assim, o que mais poderia ser grato a este trabalho e às ideias nele
defendidas, seria elas merecerem o olhar, aparentemente longínquo, de uma ave
de rapina e provocarem esse voo a pique de quem argumenta e contra-argumenta,
por se ter deparado com questões dignas de serem ironizadas.
(1) A moldura destes
problemas está suficiente e adequadamente feita. No entanto, há que referir que,
num delta de tendências, muita da filosofia do século XX se dedicou e
consagrou, de um modo ou de outro, à refutação de um paradigma filosófico que,
de alguma maneira, foi solidificado e exaltado pela sua pretensa
intemporalidade. Todavia, e por inerência de razões, é na teoria da
argumentação e na sua articulação à denominada nova retórica, que se
exerce a soberania de um questionamento de uma racionalidade, que já não pode
ser entendida no espaço de uma auto-justificação e auto-fundamentação, selos de
garantia de uma excepcionalidade, acerrimamente propagandeada. Nesta dimensão,
há a destacar o fluxo crescente destas correntes que teve o seu início, quase
em simultâneo, nas obras de S. Toulmin e C. Perelman, simultaneidade que acaba
por indiciar a falência e o esgotamento conducentes à necessidade de uma nova
concepção.
Acresce
ainda que a chamada linguistic turn
trouxe também à ribalta problemas filosóficos e disseminou-os por uma
diversidade de vias convergentes, de certa maneira, com as mutações para uma
racionalidade argumentativa. É para a foz desses problemas que concorrem de
igual modo alguns aspectos do pragmatismo e a revitalização dos estudos
retóricos que, apesar de partirem de pressupostos diferentes, ensaiam eficácias
afins, ou seja, aproximam-se de uma perspectiva multi‑racional,
enfraquecendo a presunção de uma unidade do logos.
(2) Em consequência e
coerência, todo um projecto destes conduzirá a uma meta‑racionalidade,
derrapando para uma dimensão mística, da qual o platonismo é a semente
germinada definitivamente em Plotino. Refere-se aqui o célebre epekeina thV ousiaV (República, 508 b) e o to en(Eneiades, VI, 9, 3).
Este
essencialismo depurado deixou inevitavelmente a discursividade racional às
portas de uma meta-racionalidade, aflorando a intuição teórica, global e
fundamental da própria realidade. O culto da intuição e da evidência anatemizou
todas as outras formas de filosoficidade.
(3) Apesar de se focar aqui
a filosofia platónica, enquanto matriz explícita desta concepção, o que é certo
é que o determinante desta visão são as múltiplas "máscaras" com as
quais a filosofia fundamentalista se revestiu e que alternam entre o essencialismo extasiante platónico, o
evidencialismo essencial cartesiano, o essencialismo dinâmico hegeliano e o minimalismo
essencialista do positivismo lógico. Pode parecer, nesta etiquetagem
apressada e redutora, que se pretende caracterizar ou, pior, caricaturar todos
estes pensamentos! Mas não é disso que se trata: o que se pretende é, através
da denúncia daquilo que é consanguíneo entre eles, abrir o espaço, a clareira
para o problema de uma nova racionalidade que adira à argumentatividade
precária, limitada, circunstacial e particular e que não desfaleça na
claustrofóbica hegemonia de uma racionalidade proposicionalista e
verificacionista. Nesse sentido, comentar e criticar cada uma destas grandes filosofias
seria ainda cair no seu magistério e render-se, sem condições, à sua almejada
totalidade.
Aliás, e
citando Alexis Philonenko, num recente artigo sobre Schopenhauer: “en philosophie les heures passées à la réfutation ne sont que du temps
perdu.", in Magazine Littéraire,
nº 328, Janvier, 1995, art. De la liberté,
p. 37.
(4) Sublinhe-se ainda a
solenidade hierática de Husserl, ao afirmar: “Nous
sommes donc–comment pourrions-nous l'oublier?–les Fonctionnaires de l'Humanité. La responsabilité tout à fait
personnelle qui est la nôtre à l'égard de la vérité de notre être propre comme
philosophes, dans la vocation personnelle intime, porte en soi la
responsabilité à l'égard de l'être véritable de l'humanité (...).” Husserl, E., La crise des sciences européennes et la
phénoménologie transcendentale, s. l., Gallimard, 1993, pág. 23. Mesmo
neste livro, que anuncia a crise da filosofia como ciência de rigor, ressoa e
traz ainda o vestígio, o resquício de uma majestade abandonada.
(5) É claro que, na
cordilheira de referências apresentadas, ecoa aqui essa maneira irresponsável
de falar de Feyerabend, nas belas palavras com que ele termina o Farewell to Reason (trad. port., Lisboa,
ed. 70, 1991, pág .370).
De certo
modo, seremos sempre irresponsáveis quando falar é, inevitavelmente,
despedirmo-nos. É este abandono, este adeus que impede o absolutismo de
"a razão sou eu" ou "depois de mim o dilúvio", que todas as
filosofias, seraficamente, ensaiaram.
(6) "Os filósofos
contemporâneos também celebram as suas despedidas. Enquanto uns se
auto-intitulam pós-analíticos, outros consideram-se pós-estruturalistas ou
pós-marxistas. O facto de os fenomenólogos ainda não terem engendrado o seu
“pós” torna-os quase suspeitos!", Habermas, J., O Pensamento Pós-Metafísico, trad. bras., Rio de Janeiro, ed. Btu,
1990, p.11.
Este
movimento desagregador e pulverizador é ainda um sinal de uma abertura a várias
racionalidades, que se exercem na permeável e contaminada presença de uma
argumentação plural.
(7) Decorrente da própria
definição, a ironia lida com o contrário e, naturalmente, introduz de imediato
um desvio de sentido e de interpretação que é, per se, argumentativo. De facto, e mesmo pelo seu momento inaugural
filosófico, a ironia socrática, a ironia só tem sentido na fragilidade lógica
que introduz, pelo lado da interrogatividade e problematização, das quais os
diálogos socráticos são consumados exemplos, pela errância de sentidos
múltiplos no constante problematizar.
(8) Parafraseia-se , de modo
livre, a frase de Ernesto Sábato, "Observa, de passagem, que as palavras
costumam começar com maiúscula, a triste experiência as rebaixa à minúscula, para
acabarem finalmente, outras tristes experiências depois, entre aspas ", Abadão, o Exterminador, trad. bras. de Cristaldo, S. Paulo,
Francisco Alves Editora, 1981, pág 75.
Este
jogo entre decepção-concepção, esta passagem entre as duas é também a força
motriz da ironia.
(9) Acode-se aqui ao célebre
texto de G. Genette, providencialmente chamado a Restrição Retórica, in Recherches
Rhétoriques, org. C.B., s. l., Seuil, 1994, mas que outras obras elucidaram
segundo vários prismas.
Num
lote, ele também restrito, a mencionar, para além da evidente e natural
presença de Perelman e da baptizada escola de Bruxelas, há que referir algumas
vozes algo mais esparsas e isoladas, tais como Barilli, com a sua Retórica, tradução port., Lisboa,
Presença, 1985 ou Florescu, La Rhétorique
et la Néorhétorique, Bucuresti, Academici, 1982.
No
entanto, a partir de Perelman, alea jacta
sunt, e não mais pararam de rolar.
(10) Neste caso, elegeu-se
paradigmaticamente os Elementos de
Retórica Literária, de Heinrich Lausberg, Lisboa, ed. Gulbenkian, 1993,
pelo seu carácter epigonal e revelador, numa época já de reabilitação da
Retórica e da Teoria da Argumentação, do estreitamento de uma retórica vista
quase monocularmente como estilística e exercício florentino de subtis
diferenças, artificialmente desenvolvidas. Na verdade, a estilística acabou por
ser a época Bizantina da Retórica, dando desta a imagem negativa e inútil
que foi proclamada ao longo dos tempos e que levaria Renan a afirmar que a
retórica foi "La seule erreur des Grecs". No entanto, com esta
escolha não se quer escamotear a densidade problemática que determinou sempre a
organização da Retórica como saber e as sucessivas rupturas, os rombos que nela
se deram. O que se pretende é, agarrando numa obra lidimamente clássica e
aparentemente mais neutra, explorar e demonstrar, quase ironicamente, no
sentido em que toda a ironia é de algum modo uma demonstração por absurdo e
toda a demonstração por absurdo é de algum modo irónica, como a
retórica estilística, definitivamente expurgada de uma qualquer relação à
argumentação e anestesiada na pacífica e irénica visão dos tropos e da
linguagem, é ainda o vestígio inevitável do problema central que toda a
retórica coloca: o da linguagem e o do seu uso.
(11) A discussão, quase non
stop, em torno da hierarquia dos tropos tem proporcionado uma avalanche de
obras. A consideração de uma grelha de tropos fundamentais tornou-se um dos
aspectos preferenciais de alguma retórica e espraiou-se por uma multiplicidade
de obras, com figurinos bem diferentes e que vão desde os manuais clássicos de
retórica, casos de Fontanier e Dumarsais, até análises mais contemporâneas,
próximas dos estudos literários retóricos, como a obra de K. Burke ou
adjacentes a uma linguística estruturalista, como é o caso do Groupe m.
Já
Quintiliano se debatia com esse problema e afirmava: “Tropus est verbi vel
sermonis a propria significatione in aliam cum virtute mutatio. Circa quem
(tropum) inexplicabilis, et Grammaticis inter ipsos, et Philosophis pugna est:
quae sint genera, quae species, quis numerus, quis cuique subjiciatur”,Institutionis Oratoriae, VIII, VI, 1-2,
London, Loeb Classical Library, 1961, pág. 300-301
(12) Quase se poderia, por
um raciocínio analógico, afirmar que seria de aceitar o célebre princípio de
indeterminação heisenberguiano, aplicado à física quântica, na linguagem. De
facto, todo o acto linguístico não é absolutamente determinável em todas as
suas coordenados e quando uma das suas posição é definível há sempre um grau de
incerteza que ela introduz, que desdobra a linguagem nos seus próprios
excessos. Assim, a uma topologia local, mecanizada e determinada, ensaiada pela
Retórica clássica, há que entender a nova retórica como explorando uma
topologia geral, aberta e indeterminada, onde a problematização é a condição sine qua non para entender a linguagem.
(13) Independentemente da
discussão agreste e, algumas vezes, estéril do número de tropos e da sua árvore
genealógica, o importante é realçar em cada um deles a pressão problemática e a
rede de inteligibilidade lançada e inserida por cada um deles na linguagem.
(14) É evidente que ecoa
aqui a célebre e consagrada definição ciceroniana da retórica como tópica, ou
arte de inventar: “(...) inveniendi artem quae topiké dicitur”, Cicero, De
Inventione, De Optimo Genere Oratorium et Topica, I, 6., London, Loeb Classical Library, 1993.
Este
carácter inventivo/criativo da retórica, invenção de conceitos e de expressões
é a questão determinante e incontornável da linguagem.
(15) A própria retórica de
Aristóteles (vd. Liv. I e III e Organon-
Tópicos, Liv. I), enquanto heuresis dos
argumentos comuns (topoi) e das expressões (lexis), retém este aspecto
marcante. A retórica não é um simples exercício de habilidade, de uma techné mecânica, mas a descoberta da
potencialidade inesgotável da linguagem, a sua inventabilidade. De facto, na
trilogia clássica, inventio, dispositio e
elocutio, a primeira acaba por ser a primacial e a sobre-determinante.
(16) Como ressalta desta
citação : "La fonction rhétorique a pour effet de réifier le
langage", Rhétorique Générale,
Groupe m,s. l., Seuil, 1982,
pág. 27.
A este
propósito ver toda a introdução de Poétique
et Rhétorique. A reificação da linguagem assenta na noção do texto como
"Une Totalisation en mouvement ", Rhétorique
de la Poésie, s. l., Seuil, 1990, pág. 21; aproximando-se da lexis e afastando-se da heuresis, o que cede ao avatar da
formalização.
(17) A Ars poetica de Horácio é o exemplo da tese perfilhada de uma recusa
da inovação radical, conservando os modelos retóricos, para os diversos
géneros.
(18) Veja-se o prescrito de
Quintiliano, op. c., X, II, 6, pág. 76, que aconselha o "usus aliarum
rerum ad eruendas alias".
(19) A tensão entre metáfora
e ironia é uma das mais explícitas da própria tensionalidade, intensiva e extensiva, da linguagem.
(20) A polaridade
semelhança/dissemelhança; posição/transposição evidencia a própria transfiguração
da linguagem.
(21) Lembra-se que a
etimologia de metáfora e os significados do grego contemplam o movimento das
fases da lua, como sinal de uma transfiguração oposta a desfiguração,
compulsada pela relação metáfora e ironia. Aceite-se também a célebre
simbologia da lua que simula e dissimula a sua verdadeira face, pela sua
figura.
(22) Confira-se a este
propósito todo o elenco da questão fornecido por Michel Meyer em Questions de Rhétorique, Paris, Le Livre
de Poche, 1993.
(23) Wittgenstein, L., Investigações Filosóficas, Lisboa,
Gulbenkian, 1987, pág. 203.
(24) Recorre-se, neste
passo, ao determinante e enérgico livro, escrito a duas mãos, de Deleuze e
Guattari, O que é a Filosofia, trad.
port. de Barahona e Guerreiro, Lisboa, Presença, 1992, o qual se embrenha
lapidarmente na visão da filosofia como criadora
de conceitos, num esforço retórico e inventivo, numa composição e
recomposição integrantes e auto-posicionadas, (vide a incisiva introdução desta
obra).
Isto é,
no fundo, uma bela cilada à qual o filósofo não pode escapar, dado que ele já
não é o que, privilegiadamente, acede a "céu estrelado" de conceitos,
mas
o que se torna modesto operário que enfrenta a singularidade do que faz, em
permanente crise. No global, o que esta perspectiva nos dá é ainda a
interrogação precária de em cada conceito, válido ou inconsistente, o filósofo
arriscar mais do que pode e perder sempre mais do que podia e devia. O
conceito é, portanto, o risco de toda a pensabilidade.
(25) Refira-se o exemplo
flagrante do Górgias, que se tornou o
cânone da incompatibilidade entre filosofia e retórica. Vislumbra-se nele o
julgamento sumário que relegou a retórica para o baralho popular e mundano
da persuasão e da própria adulação, sintomas na medicina convencional da doença
demagógica.
(26) Explora-se aqui o
insolvente aforismo de Karl Kraus, "na retórica chama-se metáfora a algo
que não é utilizado em sentido próprio. Logo, metáforas são perversões da
língua (...)",in Ditos e Desditos, trad.
bras. de Fischer, S. Paulo, Brasiliense, 1988, pág. 20.
(27) A inseminação da teoria
da argumentação na retórica é a condição da nova retórica delineada por
Perelman. Vd. Traité de l'Argumentation
ou, ad libitum, O Império Retórico. Voltar-se-á a este assunto, num contexto mais
adequado e desenvolvido.
(28) op. c., pág. 570
(29) No horizonte,
perfila-se aqui a cortante e agreste crítica de Wittgenstein à filosofia como obsessão
pelas generalidades, o que constitui o húmus de um certo essencialismo, ainda
que meramente indutivo. De todos os modos, o conflito é inevitável e mesmo uma
concepção diferencialista tem que encontrar critérios precários, por
certo, mas eficazes para a linguagem, sob pena de ela se reduzir a uma
casuística coleccionável e de ser incapaz de voar para além de uma descrição
interminável de casos.
(30) Michel Meyer expressou
estas questões de uma forma intensa. Destaque-se o desenvolvimento a elas imprimido
nas Questions de Rhétorique e na Prolematologia, trad. port. de Fitas,
Lisboa, D.Quixote, 1991.
(31) Em função deste assunto
ver em Questions de Rhétorique, o
ponto 3 do cap. IV, chamado Métaphores, Métonymie, Synecdoque et Ironies, pág
105-114.
(32) op. c., pág. 106
(33) Mencione-se, sem mais,
o desenvolvimento atribuído a esta questão por Paul Ricoeur, no seu livro La Métaphore Vive, Paris, Seuil, 1975, e
sobretudo o oitavo estudo constituinte da obra, denominado Métaphore et
Discours Philosophique; ou ainda, numa diversidade de campos de aplicação, os
variados textos do livro colectânea de Ortony, A., Metaphor and Thougt, Cambridge, Cambridge University Press, 1981,
onde sobressai o texto de Kuhn.
(34) Não é ambição desta
tese fazer o percurso alado destas metáforas e da sua versão pedestre irónica.
Cumpre lembrar, como exemplo, a metáfora do Sol na ontologia, gnoseologia e
psicagogia platónicas, no contraste com a assombrada caverna e as consequentes,
e por vezes irónicas, inversões desse dualismo. Pródigo seria certamente o
resultado duma prospecção sistemática das metáforas e ironias que determinaram
e invadiram o discurso filosófico ao longo dos tempos. Um contributo sui generis é a obra de Blumenberg, H.,
da qual destacaria a Naufrágio com Espectador,
trad. port. de Loureiro, Lisboa, Vega, s. d., que recolhe a metáfora da
navegação e dos seus perigos existenciais.
(35) Enquadre-se a afirmação
de Nietzsche, "Jeder Begriff entsteht durch Gleichsetzen des
Nichtgleichen", Le Livre du
Philosophe, ed. bil., trad. fr. De Marietti, s. l., Flammarion, 1969,
pág.180.
(36) Reconheça-se, neste
âmbito, o artigo de Paul de Man, A Teoria
da Retórica de Nietzsche, in Crítica, n º 9, Lisboa, Nov. 1992.
(37) "Temos, assim,
dois pontos a reter das ideias nietzschianas: o da retoricidade da linguagem,
que estabelece que a linguagem é de índole retórica, ou seja, que esta não é um
suplemento de uso que se acrescenta a uma suposta linguagem
"natural", antes releva de uma dinâmica que atravessa todos os
seus usos; o da raiz retórica do perspectivismo, dado que a
multiplicidade das interpretações é ilimitada porque, precisamente, o uso da
linguagem não se compadece com nenhum tipo de constrição formal que lhe fixe o
sentido. É no carácter retórico da linguagem que radica, em princípio, a infinitude
das interpretações, como é para ele que remete, de facto, o carácter combinatório
do perspectivismo." Carrilho, M. M., Jogos
de Racionalidade, Porto, Asa, 1994, pág. 16.
(38) Deleuze e Guattari, op.
c., pág. 22
(39) op. c., pág. 59
(40) Emoldure-se a frase : "Der Philosoph in den Netzen der Sprache
Eingefangen.", Nietzsche, op. c., pág. 116.
(41) Nos bastidores desta
afirmação volteia a célebre frase de Schlegel, "a ironia é uma genialidade
fragmentária", citada por Jankélévitch em L'Ironie, s. l., Flammarion, 1979, pág. 94.
(42) Veja-se o caso da
abordagem retórica e irónica da verdade,
feita por Nietzsche, exprimindo o movimento originador da conceptualização :
"Was ist also Wahrheit? Ein bewegliches Heer von
Metaphern, Metonymien, Antropomorphismen, kurz eine Summe von menschlischen
Relationen, die, poetisch und rhetorisch gesteigert (...)", op. c., págs. 180/1.
(43) A par deste,
poder-se-ia acumular uma diversidade ampla de exemplos relacionados com a
verdade, em que encontraríamos este jogo de luzes e sombras entre metáfora e
ironia, na sua relação com a conceptualidade.
(44) Nietzsche, F., Jenseits von
Gut und Böse, München, de
Gruyter, 1988, pág. 11
(45) A ligação e a visão do
argumento irónico como um possível caso de argumentação por reductio ad absurdum é, claramente,
consolidado num artigo de Tindale, C. W. e de Cough, J., in Philosophy and Rhetoric, vol. 20, n º 1,
1987, publicado pela Pennsylvania State University Press. Ver, sobretudo,
pág. 11 a 13.
(46) "Alle rhetorischen Figuren (d.h. das Wesen der Sprache) sind
logische Fehschlüsse. Damit fängt die Vernunft an!", Nietzsche, F. , Le Livre du Philosophe, ed. c., pág.
132. É
evidente que se poderia transformar a afirmação nietzschiana num juízo
condicional e garantir numa estrutura formal a sua veracidade.
(47) "Ao ouvir estas
palavras, desatou num riso sardónico e exclamou:- ó Hércules! Cá está a célebre
e costumada ironia de Sócrates! Eu bem o sabia, e tinha prevenido os que aqui
estão de que havias de te esquivar a responder, que te fingirias ignorante, e
que farias tudo quanto há para não responder, se alguém te interrogasse.",
Platão, República,337 a, trad. port.
de Rocha Pereira, Lisboa, Gulbenkian,1990.
A partir
desta afirmação de Trasímaco sucederam-se as definições variadas e as réplicas
desta primeira concepção, apurada por Aristóteles, esmerando-a mais como uma
figura de retórica. Cícero, Quintiliano e o anónimo, outorgado pela tradição a
Cícero, Ad Herennium
aperfeiçoaram-na, limaram-na, definiram-na e definitizaram-na. A partir daí,
ela propagou-se pela normativa da retórica e, entre outros exemplos,
encontramo-la definida como a expressão do sentido contrário em Dumarsais, Des Tropes ou des Differents Sens, s.
l., Flammarion, 1988, pág 156/7; e em Fontanier, Les Figures du Discours, Paris, Flammarion, 1977, pág. 145 até 148.
Em todos eles ressalta a questão da contrariedade e do contraste, como base de
argumentação e que liga a ironia, como já foi referido, à antiphrasis (antijrasiV). Tudo isto é bem visível, neste
excerto da Rhetorica ad Herennium,
onde é feita a definição da eironia (eirwneia) ou illusio, como foi chamada por Quintiliano e pela retórica latina:
–"Permutatio (allhgoria) est oratio aliud verbis
aliud sententia demonstrans. Ea dividitur in tres partes: similitudinem,
argumentum, contrarium.(...) Ex contrario sic, ut si quis ominem prodigum et
luxuriosum includens parcum et
diligentem appelet.". Rhetorica ad Herennium, IV, XXXIV, 46,
London, Harvard University Press, 1989, pág. 344
(48) Lichtenberg, Aforismos, Lisboa, Estampa, l974, pág.
12
(49) Freud, S., Le mot d'Esprit et
ses Rapports avec l'Inconscient, s. l., Gallimard, 1978,, pág 89 e 90
(50) Referido em Introdução à Filosofia - Um Outro Olhar
Sobre O Mundo, de Abrunhosa e Leitão, Porto, Asa, 1994, pág. 153.
(51) Sloterdijk, P., Kritik der
zynischen Vernunft, II Band, Frankfurt, Suhrkamp, 1983, pág. 422
(52) Não é esta a questão
que anima o presente trabalho, já que ela só por si mereceria uma tese
autónoma. A relação entre humor, ironia e sério constitui um dos mias férteis
temas possíveis. Mencione-se, a talhe de foice e enquadrado neste problema, os
livros de Olbrechts- Tyteca, L., Le
comique du Discours, Bruxelles, Editions de l'Université de Bruxelles,
1974; e de Jankélévitch, V., L'Aventure
l'Ennui le Sérieux, Paris, Aubier-Montaigne, 1963
(53) Esta associação entre
ironia e dialéctica foi detectada primorosamente por K. Burke, no seu Grammar of Motives, University of
California Press, 1969. Considere-se o capítulo Four Master Tropes, pág 511 a 517, onde ele enuncia a correlação
daquilo que encara como os quatro tropos fundamentais, no que é também seguido
por Michel Meyer, asseverando: "The
literal or realistic applications of the four tropes
usually go by a different set of names. Thus:
for metaphor we could substitute perspective; for metonymy we could substitute
reduction; for synedoche we could substitute representation; for irony we could
substitute dialectic. ", pág. 503
(54) A importância do contexto
veio a ser cada vez mais apregoada e teve cada vez mais sentido no próprio contexto
de uma filosofia pragmática e nas diversas obras circunvizinhas. Assim, "True, we are now getting out of this; for some years we are
been realizing more and more clearly that the occasion of an utterance matters
seriously, and that the words used are to some extension to be explained
by the context in which they are designed to be or to have actually been
spoken in linguistic interchange. ", Austin, J. L., How to do Things with Words, Oxford, Oxford University Press, 1976,
pág. 100.
Cumulativamente, refiram-se ainda as seguintes obras:
Searle, J. R., et alii, The Philosophy of
Language, Oxford, Oxford Universty Press, 1974 e Os Actos de Fala ,Coimbra, Almedina, 1984; Ayer, A. J., Language, Truth and Logic,
Harmondsworth, Penguin, 1976.
(55) Aristóteles, para além
da abordagem retórica da ironia e de tentar preservar uma dimensão positiva
dela, encaminha-a também para uma apreciação negativa na Ética Nicomaqueia (II, 7, 1008a,20-3), onde ele a aponta
como vício contrário à sinceridade e ficando aquém da verdade, o que
contribuirá para a radical observação de S. Tomás de Aquino de que a ironia não
é mais do que uma vaidade subtil e uma maneira "dissimulada",
escondida de se vangloriar, opondo-se por esta circunstância à jactância, forma
aberta de vanglória (Summa Theologica, II
ª-II, q. XC, a 3,ad. 4).Isto levar-nos-ia à questão da relação da ironia
com a moral e o cinismo, o que na textura capilar de problemas levantados pela
ironia seria um dos aspectos a desenvolver, mas que não cabe na latitude
estabelecida para este trabalho.
(56) Desde sempre que a
retórica se debateu com a noção de figura, que aparece em múltiplas
perspectivas, como estrutura sensível, imagética, explicitação de uma
actividade de imagens. Esta discursividade da imagem, rente a um impressionismo
sensorial , não respeita a variedade de inteligibilidade que as
figuras retóricas determinam e o que nelas se consolida, quer na estrutura quer
na sua forma e no seu uso, como distinção inteligível da linguagem.
A organização subjacente às figuras retóricas é, inquestionavelmente, o sinal
de uma complexidade relacional, que não é consentânea com a visão monadológica
da linguagem, em que cada palavra fosse a representação insular e unívoca de
uma qualquer realidade ou essência.
(57) Como foi proclamado
pela ironia romântica, cuja exaltação da ironia passou pela ideia de ela
aparecer como a Irrisão da Razão, o nihilismo racional, se esta adjectivação
é suportável! Esta concepção da ironia como negação absoluta, fá-la tocar na
noção de absurdo, como co-impossibilidade de todos os argumentos e de todas as
questões.
(58) A noção lógica de
implicação foi desenvolvida ao longo dos tempos e tornou-se uma das
fundamentais, desenvolvendo-se por associação um conjunto de regras canonizadas
em relação à sua validade formal. Ao êxito dessa noção corresponde, de modo
inverso, a pobreza da análise referente à noção de implícito e de implicitação,
bastando, para esse efeito, referir que o implicite/(vs.
explicite) equiparava-se, no vocabulário escolástico, ao confuse- confusamente.
(59) Considere-se o
desenvolvimento dado a este tema por Aristóteles nos Tópicos, Livro I, 1 e na Retórica,
Livro I, XV, 1357a.
(60) A recolher, como exemplo
trivial, a pequena e não totalmente esgotada análise de implicitação que uma
singela metáfora pode conter, ou seja, de processos e relações implícitas,
feita por Dumarsais, op. c., pág 135/6: "Par exemple, quand
on dit que le mensonge ce pare souvent des couleurs de la vérité, en
cette phrase, couleurs n'a plus sa signification propre et primitive; ce
mot ne marque plus cette lumière modifiée qui nous fait voire les objets ou
blancs, ou rouges, ou jaunes, etc.: il signifie les dehors, les apparences;
et cela par comparaison entre le sens propre de couleurs, et les dehors
que prend un homme qui nous en impose le masque de la sincérité. Les couleurs
font connaître les objets sensibles; elles en font voir les dehors et les
apparences: un homme qui ment, imite quelquefois si bien la contenance et les
discours de celui qui ne ment pas, que lui trouvant les mêmes dehors, et pour
ainsi dire les mêmes couleurs, nous croyons qu'il nous dit la vérité
(...)".
A teia de relações argumentativas ínsitas a esta simples
metáfora é inesgotável. E é dela que a teoria da argumentação tem que partir,
considerando o filosofar e o argumentar como sendo uma das formas de potenciar
o
ilimitado, o infinito inteligível da linguagem.
(61) Quando se diz "Que
belo dia!", num dia chuvoso, cinzento e invernoso, ironia simples, ingénua
e prosaica, o que se faz é obstruir a relação entre verosímil e inverosímil.
Desta forma, a linguagem irónica, como toda a linguagem afinal, enuncia uma
distância entre sujeitos, que é inteligível ou ininteligível. Imaginando uma
ilha onde não houvesse ironia e onde chegasse alguém que fosse, supinamente, um
ironista, mesmo neste sentido mais elementar da ironia, ele seria considerado
incapaz de usar a linguagem e de compreender o natural/o literal da mesma. No
fundo, ele usaria, aos olhos dos indígenas, uma outra linguagem.
(62) Apesar deste modelo,
cujo momento inaugural reflui no conflito, exacerbado herneneuticamente, entre
os sofistas e Platão (vd. Górgias),
problema e conflito que atravessaram todo o esforço filosófico de erradicação
do sofístico e que levou à imagem de propaganda da argumentação sofismante,
como manifestação de uma atitude pouco séria e profunda, há que reconhecer que
mesmo nos efeitos especiais que alguma retórica elaborou se afinam
aspectos não desprezáveis para uma compreensão mais ampla dos processos
racionais de elaboração de argumentos.
(63) Explora-se, nesta
referência, o sentido etimológico da palavra polemos (polemoV) e do seu enquadramento no
pensamento heraclitiano.
(64) Já o diálogo socrático
era o percurso de esgotamento de todos os prováveis, numa contextualização de
variadas hipóteses, até à anulação aporética da racionalidade. Era esse vazio,
esse arrasar que redefinia permanentemente o problema e lhe inscrevia novas
formas de o pensar e, por isso, de o definir.
(65) Este aspecto
aproxima-nos realmente do perfil da ironia socrática e do jogo nela presente
entre hipotético, simulação e ironia. Ele será mais convenientemente
aprofundado, alguns passos à frente, pelo que se justifica a actual frugal
referência.
(66) Confira-se, neste
passo, a citação de Schopenhauer, in Petit
Bréviaire Cynique, Magazine Littéraire, n º 328, Janvier 1995:"L'humour est l'inverse de l'ironie. De même, en effet, que l'humour est la
plaisanterie cachée derrière le sérieux, l'ironie est le sérieux caché derrière
la plaisanterie."
Num sentido inverso, esta ideia é, de igual modo,
explicitada por Jean Paul, embora dimensionando-a numa outra perspectiva, ou
seja, frisando que a frieza e seriedade seriam carapaças da ironia e índices da
sua eficiência. Ver a este propósito, Olbrechts-Tyteca, op. c., pág 177/8.
(67) Na fragrância das
alusões, várias foram as referências coligidas, entre as quais se inclui
Kierkegaard. Como exemplo, cite-se : "Eirwneia had so many meanings that the nineteenth-century scholar Otto Ribbeck
called it proteusartig.". Knox, D., Ironia - Medieval and Renaissance Ideas on Irony, New York, E. J.
Brill, 1989, pág. 1.
(68) A ironia, como
manifestação metafísica do negativo e do nada, aparece, qual varinha de condão
de uma fada endiabrada, na ironia romântica. No limite, todo o universo é um
"esgar" irónico do nada, na fórmula intrigante em que tudo o que nele
se contém se apresenta como negação. O romantismo, como se verá, confere
matizes opiáceos à ironia, vendo nela a embriaguez do sujeito que, arrebatado
por si mesmo, ascende ao céu tumultuoso e infinito dos seus sentimentos,
negando-se ironicamente. Desta forma, a ironia seria a catarse do universo e do
pensamento.
(69) Este problema dos
limites da linguagem, que Wittgenstein explorou graniticamente, é interessante
por, no fundo, todas as filosofias da consciência aparecerem com a ambição de
uma meta-linguagem, quer dizer, de fundamentarem a linguagem. Nalgumas visões
mais adâmicas,
a linguagem aparece mesmo como a degradação de um pensamento puro, num
platonismo linguístico serôdio.
(70) Nietzsche, F., O Crepúsculo dos Ídolos, trad. port. de
Morão, Lisboa, Ed. 70, pág. 25. De todos os modos, no corpo a corpo da ironia,
todo o argumento é, pela afirmação uma negação de uma plêiade de argumentos
contrários, tornando-os ainda mais plausíveis, para melhor aplicar o golpe de
misericórdia.
(71) Já a ironia socrática,
no tactear
argumentacional que lhe era subjacente e à sua forma dialógica, apelava
a esta tensão que acabava por ser uma permanente perífrase de uma definição
essencial, aporeticamente adiada. Nas sucessivas máscaras desafiveladas, o que
a ironia introduzia era a circunstancialização de todas as definições, num
novelo enredado e cruzado de hipóteses, cuja exaustão argumentativa fermentava
a hipótese contrária. Assim, o ironista é o que
lida com incógnitas e com o incógnito: "(...) this is the picture of a man
who lives behind a mask, a mysterious, enigmatic figure, a man nobody knows:
"You should know that none of you know him" says Alcibiades to
Socrates friends.", Vlastos, G., Socrates,
Ironist and Moral Philosopher, Cambridge, Cambridge University Press, 1991,
pág. 37.
(72) Cite-se, a talhe de
foice, os casos de Nietzsche, Voltaire e o optimismo leibniziano, Shaw e o
socialismo ou, mais recentemente, a verve irónica e satírica com que Malcolm
Bradbury "desconceptualiza" o estruturalismo, nesse livro, impróprio
para crentes, que é Mensonge.
Todavia, o caso mais paradigmático acaba por ser o do começo: Aristófanes, com As Nuvens, faz de Sócrates o filósofo
nebuloso que se auto-ironiza e alimenta a perplexidade da ironia, a de ser
dúbia. O exemplo socrático e o seu retrato executado por
Aristófanes,–considere-se, entre parêntesis, a importância atribuída por
Kierkegaard a esta imagem, na compreensão de Sócrates–, prestam um sério aviso:
a ironia é a forma mais estranha e estimulante de seriedade, que usa o humor
como estocada final e de uma forma muito séria.
(73) Não há outra forma de
aguentar a lucidez problemática da filosofia a não ser mediante a interrogação
irónica que a determina. Saliente-se o aparente e irónico livro de divulgação
de Manuel Maria Carrilho, O que é
Filosofia? Se há interrogação mais irónica é esta, pois ela desvenda-nos
logo uma perguntabilidade cuja enunciação é irónica, como se nela se adivinhasse
algo. Mas não é ao jeito de adivinha que o texto se proclama: ele é a sugestão clara
de um problema que só é pensável na perspectiva concreta de uma proposta. E,
nesse sentido, a filosofia não se resolve ou descobre numa essência, mas no que
nela ainda é perguntável e repondível actualmente,
naquilo que nela não é obliterável, a sua intensa problematização.
(74) Deleuze e Guattari, op.
c., pág. 140
(75) Idem, ver capítulo Prospectos
e Conceitos. Falar do tempo, seja ele continente ou conteúdo, é sempre
extemporâneo. E se o extemporâneo é uma súbita perturbação da lógica do tempo,
então a ironia é entranhadamente extemporânea, o que faz com que falar do tempo
seja um acto irónico.
(76) A metáfora aqui
referida, nas suas navegações proto-, pós-, e intra-conceptuais, foi abundante
e pelagicamente analisada por Blumenberg, op. c.
(77) Não se pretende fazer
uma mera aliteração de palavras e entrar no bizantino império nominalista de
considerar que a um novo nome corresponde, de imediato, algo de novo. A mais,
se todos os nomes são flatus vocum,
dizer contradição ou contradução parece tão só um
"micro-flatus vocis", um número de trapézio feito ao nível do solo. O
que se pretende, pela introdução deste novo possível conceito, é correr o risco
prospectivo, de que se falou anteriormente, e mostrar que para se inteligir a
ironia, na visão retórica actual, é necessário ultrapassar a dificuldade
problemática que a noção de contradição levanta, quando aplicada à ironia e,
ainda mais, a noção lógica de negação.
(78)Sobre este assunto
veja-se o artigo de Meyer intitulado Para
uma Retórica da Razão, in Crítica,
n º8, mas, sobretudo, o ponto 8 do II Capítulo da Problematologia, denominado Da
inferência analítica à inferência problematológica.
Na malha estreita destas questões o que, imediatamente,
ressalta como evidência é o facto de a inferência irónica ser um caso nítido do
que Meyer chama inferência problematológica.
(79) "A passagem da
questão para a resposta é sempre uma inferência, e a inferência
proposicionalizada por Aristóteles faz-nos esquecer aquilo que a sustém.",
Meyer, op. c., pág. 175
(80) Ele é tão conhecido,
canonizado que foi no psitacismo aristotélico cultivado ao longo dos tempos,
tendo, a sua imagem, sido aperfeiçoada até à depuração do organigrama
transcrito em todos os manuais de lógica. De qualquer modo, e no trajecto que
aqui se pretende delinear, o que importa desde já realçar é a oposição lógica
que ele esclarece, bifidamente, entre contrários e contraditórios. Assim, e de
uma forma ainda seminal, as próprias noções de contradição, negação e oposição
não são restritas a uma lógica proposicional predicativa, patente no quadrado
de oposições, e mesmo na lógica aristotélica já nelas pululam aspectos
multiformes de outras lógicas, tais como a modal, a declarativa, a relacional,
etc. É nas fronteiras imprecisas destes problemas que surge, de modo esbatido e
em borrão, uma eventual diferença entre negação e contradição lógicas e negação
e contradição irónicas, capaz de fornecer munições suficientes para a
arquitectura de um novo conceito, o da contradução irónica.
(81) Não se pode entrar no
simplismo cativante de certas fábulas filosóficas, das quais a socrática se
tornou uma das mais emblemáticas. Aliás, porque a fábula, como género
literário, enquanto metaforização e simbolização do moral, é também um exemplo
retórico de uma argumentação, cuja lógica excede o território
convencional de uma lógica racional, pois nela, de igual modo, o exemplum aparece como regra de
organização do discursivo e do argumentativo, mediante uma indução fraca e
problemática. (Ver a este respeito a Retórica
de Aristóteles, Livro I, capítulo VIII, 1356b e a remissão sucessiva aos Tópicos e aos Analíticos Primeiros).
De todos os modos, e ressalvando a dificuldade erudita de
delimitação do pensamento de Sócrates, causadora de muitas batalhas inglórias,
e aliviando o lastro de fábula acima mencionado, que cultivou a exemplaridade
filosófica da figura de Sócrates, –sendo a exemplaridade um eco límpido, para
alguns, da universalidade–, pode-se admitir que o diálogo socrático,
esse teatro de ideias, almeja, mesmo quando não o consegue, a solução, a
definição final, que se perdoe o truísmo.
(82) É claro que na lógica
actual as regras de inferência tornaram-se um problema meta-lógico, no sentido
em que constituem operadores elementares do cálculo. Apesar disto, o que todas as
concepções de inferência, nos seus modi
operandi, inferência por conversão, contraposição, oposição, etc.,
evidenciam é um abafamento de uma eventual inferência problematológica, como
ela foi vigorosamente equacionada por Meyer, e da sua amplificação a uma
análise retórica da linguagem.
(83) "The major point, which almost doesn't need stating, is that
you must not do anything which is outside the rules. We might call this
restriction the "Requirement of Formality"., Hofstadter, D. R., Gödel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid,
London, Penguin, 1980, pág 33.
A formalização, mesmo quando
o esconjura, invade-se sempre de um espírito essencialista, na procura de uma
tabuada primordial do pensamento e da linguagem. Por isso, ela actua como um
sedativo para o problemático, ensaiando e monitorizando formas que garantem a eugenia
do raciocínio e dos argumentos, como se um argumento errado não pudesse,
ironica e metaforicamente, ser tão importante e válido como qualquer outro.
Aliás, a depuração genética só tem sentido na restrição, na estancidade, pois
nenhuma formalização pode exceder as regras canónicas dela própria. Por isto,
toda a formalização acaba nesse raciocínio canonizante, mântrico, quase
hagiográfico que, por vezes, se torna no seu aspecto mais negativo.
(84) Este conceito, se o é,
não tem um estatuto definido e conceituado, passe o pleonasmo, no panorama
filosófico. No entanto, replicar afigura-se uma das funções indispensáveis do
raciocínio filosófico o que, apesar disto, nunca justificou mais do que um uso difuso que dele se faz nos mais
diversos e heterogéneos contextos do pensamento. De todas as maneiras, a
ironia, como oposição argumentativa, é incompreensível sem a explicitação
adequada do que será, hipoteticamente, a réplica e o replicar como estruturas
argumentativas.
(85) Na página 27 do
presente trabalho.
(86) É de referir que, num
parentesco de conceitos, o latim suporta a palavra replicatio para designar a revolução celeste, ou seja, o retorno de
um astro ao ponto de partida.
(87) Seria quase néscio
pretender reduzir a dedução e a indução a esta questão. De facto, e nas longas
explanações lógico-filosóficas que determinaram o mapa de uma e de outra, nunca
a ironia poderia aparecer; pela evidência de que ela não é um problema lógico,
apesar de a lógica se deixar, por vezes, tentar pela ironia, quando se deixa
seduzir pelo absurdo, presente em alguns dos exemplos ilustrativos utilizados
pelos lógicos, que assumiram, bastas vezes, estranhas dimensões retóricas, como
se a lógica necessitasse, tanto quanto possível, de exemplos aleatoriamente
estranhos, para se realçar significativamente a si mesma. Este tema, o roteiro
de alguns exemplos absurdos da lógica e do seu contexto, poderia constituir uma
investigação à parte.
(88) "L'ironie est d'autant plus efficace qu'elle
s'adresse à un groupe bien délimité. C'est la conception que l'on se fait des
convictions de certains milieux qui seule peut nous faire deviner si tels
textes sont ou non ironiques.", Perelman,C. e Olbrechts-Tyteca, L., Traité de l'argumentation, Bruxelles,
Éditions de l'Université de Bruxelles, 1992, pág. 280.
(89) idem, pág. 262
(90) Não se pretende aqui
soletrar o desconstrutivismo de Derrida, no célebre "every reading is a
mis-reading". Seria determinar de um modo avassalador e negativo o
inteligível do texto, como se toda a inteligibilidade fosse um anti-texto e,
obviamente, todo o texto um anti-texto.
(91) Sobre este assunto,
retenha-se o capítulo 11 do Império
Retórico de Perelman. Numa maior especificidade e na leitura metodológica
que dele faz o autor, sinalize-se este excerto: "No sexto capítulo, onde
falámos pela primeira vez de dissociação de noções, observámos que se trata de
uma técnica argumentativa raramente mencionada pela retórica tradicional,
porque se impõe sobretudo àquele que analisa o pensamento filosófico, isto é, o
pensamento que se pretende sistemático.", trad. port. de Trindade e
Grácio, Porto, Asa, 1993, pág. 139.
(92) Tornar-se-ia
profundamente leviano, e quase lapalissiano, tentar fazer uma explanação sobre a
dimensão lógica da dedução e da indução, trabalho ciclópico que daria azo a uma
repetição sistemática, pouco interessante e já feito por várias vezes. Aliás, o
que se pretende nesta tese não é desenvolver um catálogo ecuménico de
relações filosóficas mas, no fundo, reter uma possibilidade de pensamento e de
argumentação, que assenta directamente na distinção surpreendida por
Pascal Engel, num artigo, superlativamente interessante, publicado em Magazine Littéraire, n º339, de Janeiro
de 1996, num dossier sob o tema, Philosophie, La Nouvelle Passion, ao qual ele dá o provocante e argumentativo
título: La
Philosophie Analytique Peut-Elle Être Française?. Num passo crucial,
diz o seguinte: "Ce qui distingue la philophie analytique
aujourd'hui de la "philosophie continentale" (qui n'est plus
seulement une caractéristique géographique, puisqu'il y a des philosophes
"continentaux" aux États-Unis et en Grand-Bretagne), ce ne sont plus
des doctrines, ni même l'usage d'une certaine méthode (la logique ou l'analyse
linguistique) mais une certaine pratique, une certaine attitude, et un certain
style philosophiques. La culture de la philosophie analytique est celle du
problème et de l'argument. Si on demande à un philosophe continental sur quoi
il travaille, il répond en évoquant un auteur ou la manière dont un problème a
été pensé à une époque. Quand on pose la même question à un analytique, il
répond par le nom d'un problème, il propose des arguments et des réponses, et
il essaie de formuler des théories. Alors que pour un continental, une thèse ou
un problème ne sont évalués que relativement à un contexte historique, à des
textes, à des commentaires et à des interprétations, pour un analytique, ils
s'évaluent en fonction de nos "intuitions" de sens comun (d'où
l'importance des exemples, des contre-exemples et des "paradoxes") et
de la discussion de ce problème ou de cette thèse per d'autres philosophes
(...)", pág. 49.
É dentro do precário deste estilo, que é mais do que um
método, que se ensaiam todos argumentos e em que se inscreve e fala,
–talvez gagueje–, a análise que aqui se faz da ironia.
(93) Peirce faz equivaler
abdução com outros termos que lhe sendo afins, lhe são algo esclarecedores: retrodução, presunção, hipótese, inferência
hipotética. Esta policromia matizada dá conta, num registo difuso, da
dificuldade magna de encerrar a conceptualidade do pensado na jaula de aço da
lógica.
(94) Proponha-se, como guia
desta questão, o texto cristalino de Manuel Maria Carrilho sobre o assunto e o
que nele se diz a dado passo: "O problema de Peirce é o de explicar a
inovação. É pois no seu âmbito que se deve compreender o papel da abdução,
concebida como uma inferência que nos leva a pensar o que ainda não tinha sido
pensado, pois é isso que, antes de mais, é exactamente uma hipótese. Mas quais
são as características lógicas da inferência abdutiva?
Na linha do que Aristóteles afirma quando diz que com a
abdução "se consegue aproximar da ciência" (Primeiros Analíticos, 69
a, 20-25) Peirce define abdução como um "raciocínio que apresenta nas suas
premissas factos que apresentam uma similaridade com o facto afirmado na
conclusão, mas que poderiam ser verdadeiros sem o último o ser, e muito mais
sem que fosse reconhecido como tal; desse modo, não se é conduzido a afirmar a
conclusão positivamente, mas apenas inclinado a admiti-la, como representando
um facto de que os factos das premissas constituem um ícone" (C. P.,
2.96). Na abdução há pois uma inclinação, mas ela não se pode reduzir a
uma dimensão psicológica, pois o que se visa é propor uma hipótese uma
"teoria problemática" (C. P., 2.776) (...)", Carrilho, M.M., Itinerários da Racionalidade, Lisboa, D.
Quixote, 1989, pág. 96/7.
(95)
Peirce,C., Collected Papers, Vol. II,
Elements of Logic, 2.86, Cambridge, Harvard University Press, 1978, pág. 46
(96) A este propósito
acompanhar os pontos 2.96, 2.100/3, onde Peirce equaciona o problema da
analogia e o seu papel na dedução, indução e abdução.
(97) "An Abduction is a method of forming general prediction
without any positive assurance that it will succeed either in the special case
or usually, its justification being that it is the only possible hope of
regulating our future conduct rationally, and that Induction from past experience
gives us strong encouragement to hope that it will be successful in the
future.", op. c., 2.270, pág. 153.
(98) Exemplo extraído da
obra Le
comique du Discours, Bruxelles, Éditions de
L'Universit'e de Bruxelles, 1974, pág. 328.
(99) Adejando em torno de
problemas nucleares, mais uma vez não se quer cometer o sacrifício de imolá-los
à pressa e às escuras. Em cada argumento destacado indicia-se o perigo de uma
visibilidade que é a sua própria intenção, como proposta de inteligibilidade.
(100) Tópico proveniente do
livro de Robert, M., Romance das Origens
e Origens do Romance, Lisboa, Via Editora, 1979.
(101) "The key role in the pragmatic drama is played by the
ubiquitious and slippery character, the "context". Our iceberg, in fact,
is never isolated (if it were, this significant fact and should be marked as
"null context"). Any sign is always surrounded by circumstances that
must be taken into account in its interpretation. It is surrounded by other
"visible" signs, objects, and events with which it stands in
syntagmatic relations. Usually invisible, but no less important, is the set of
paradigmatic relations (analogies, similarities, oppositions, etc.) which the
interpreting system's memory must bring to bear on the process of interpretation.",
Dascal, M., Why Does Language Matter To
Artificial Intelligence?, in Information,
Technology and Society, org. João Alves, Lisboa, Sociedade Portuguesa de
Filosofia,, 1989, pág 63.
No entanto, a noção de contexto não pode ser o santo e a
senha de todos os problemas, que se intercalam na abordagem da teoria da
argumentação, até porque ele próprio se oferece como problema precário, mas
imenso, ao ponto de se ter que contextualizar o argumento contexto
em cada um dos seus usos. Por outro lado, a sua "ubiquidade" leva à
oblíqua insinuação de um Contexto dos contextos, uma espécie de contexto
universalmente continente e vaziamente conteúdo.
(102) O problema das redes
de comunicação, adjacente à visão biológica-cognitiva, e por vezes cai-se na ingenuidade
de considerar a informação como neutra e amorfa, gera alguns dos clamores
mais intensos do que invade, alienígena, o problema da
racionalidade. Veja-se, e em campos ciber-afins, a proposta de um homem simbiótico de Joel Rosnay ou a
ideia de uma inteligência colectiva, ambas dionisiacamente reflectoras de um
homem-chip que, ao contrário do racionalismo clássico do homem máquina, é só
mega e virtual espaço de informação.
(103) A metáfora da
linguagem como rede fez as delícias argumentativas da filosofia e teve os seus
auspícios em Platão.
(104) Considere-se toda a
introdução ao Traité de l'Argumentation de
Perelman e Tyteca, cujos nós teóricos são sólidos e explanam ideias, ainda que prologais,
decisivas sob este ponto de vista. A realçar, entre outros, este passo: "Par contre, cette idée d'adhésion et d'esprits auxquels on adresse un
discours est essentielle dans toutes théories anciennes de la rhétorique. Notre
rapprochement avec cette dernière vise à souligner le fait que c'est en
fonction d'un auditoire que se développe toute argumentation; l'étude de
l'opinable des Topiques pourra, dans ce cadre, s'insérer à sa place.
Il va de soi, pourtant, que notre
traité d'argumentation débordera par certains cotés, et largement, les bornes
de la rhétorique des Anciens, tout en négligeant certains aspects qui avaient
attiré l'attention des maîtres de rhétorique.
L'objet de la rhétorique des Anciens
était, avant tout, l'art de parler en public de façon persuasive: elle
concernait donc l'usage du langage parlé, du discours, devant une foule réunie
sur la place publique, dans le but d'obténir l'adhésion de celle-ci à une thèse
qu'on lui présentait. On voit, par là, que le but de l'art oratoire, l'adhésion
des esprits, est le même que celui de toute argumentation. Mais nous n'avons
pas de raisons de limiter notre étude à la présentation d'une argumentation par
la parole et de limiter à une foule réunie sur une place le genre d'auditoire
auquel on s'adresse.", op. c. , pág. 7.
(105) Na leitura densa
destes problemas reconheça-se a fonte forte que constitui o II capítulo do Império Retórico e Perelman ou ainda a
determinante e estonteante análise de Meyer, no II capítulo do seu luminoso O Filósofo e as Paixões, trad. port. de
Fitas, Porto, Asa, 1994.
(106) Meyer, idem, pág. 54.
(107) Não se pretende
macaquear, numa paráfrase incipiente, o célebre círculo hermenêutico, mas
também não se pode dele ignorar o seu murmúrio: tornar audível é por vezes a
tarefa mais ingrata dos surdos e dessa forma de ensurdecer que habita muitos
dos comentários filosóficos que, como os manuais de história dos séculos XVII e
XVIII, que iam até às profundezas de Adão e Eva, até ao proto-homem para
explicar a contemporaneidade, procuram estabelecer linhagens que remontem ao nó
górdio, que só um Alexandre poderá cortar.
(108) Na incidência disto,
ver o II capítulo do Império Retórico
e o parágrafo 7 da I Parte do Traité de
l'Argumentation. Esta noção de auditório universal, cuja amplitude parece
querer ser ressuscitada, como já foi mencionado, numa teia comunicacional que
nos aproxima velozmente dum mega-auditório virtual, tem em Perelman ainda a
intenção piedosa de salvar a rês tresmalhada da racionalidade universal de
essência filosófica.
(109) Perelman, Traité de l'Argumentation, pág 46.
(110) Meyer, M., A problematologia, pág. 9.
(111) A organização de tipos
de argumentos avançada por Perelman arrasta ainda, no seu seio, uma certa
emulação a uma logicidade proposicional, embora se desvie dela, pelo contexto
que pretende construir. De qualquer forma, os denominados argumentos quase-lógicos, ainda que constituintes de uma abertura
ao contraditório e controverso, são aprisionados nas malhas do proposicinal. Ao
invés, os argumentos baseados na estrutura do real e as ligações que fundam a
estrutura do real (analogia, exemplo, modelo) parecem auferir e revestir-se dum
interesse maior, visto que restauram algo do que era fortemente original na
retórica.
(112) op. c., pág 203
(113) O problema ético,
veja-se o caso paradigmático de Kant, é a tensão intra‑racional da razão
com algo que a assoberba e, de certo modo, a fulmina: a decisão ética, o pálido
fantasma de uma liberdade que, como no caso vertente de Kant, sendo fundamento
de toda a racionalidade é cravar um espinho de irracionalidade na própria garganta
da racionalidade. (Confira-se Prefácio da Crítica
da Razão Prática).
(114) Habermas, J., O Discurso Filosófico da Modernidade,
trad. port. de Bernardo et alii, Lisboa, D. Quixote, 1990, pág. 291
(115) idem, pág. 297.
(116) O recurso assenta,
neste ponto, no capítulo Uma outra saída
da filosofia do sujeito: razão comunicacional versus razão centrada no sujeito,
o XI da obra citada de Habermas.
(117) "Nesta medida
formas de vida concretas substituem a consciência transcendental
unificadora. Em evidências que a cultura impõe, em solidariedades de grupo
intuitivamente presentes e em competências, avaliadas como "Know how"
dos indivíduos socializados, a razão, que se expressa pelo agir comunicacional
faz a mediação com as tradições práticas sociais e complexos de experiências
relacionadas com o corpo que, juntas, formam uma totalidade especial. As
formas de vida particulares e que apenas surgem no plural não estão, por certo,
apenas ligadas umas às outras pelas semelhanças de família; apresentam as
estruturas comuns dos mundos da vida em geral. Mas estas estruturas universais
só marcam as formas da vida particulares através do meio de agir orientado para
a compreensão mútua através do qual têm de reproduzir-se. (...) Esta é também a
chave para a racionalização do mundo da vida e para a libertação sucessiva do
potencial de razão investido no agir comunicacional.", idem, pág. 300
(118) idem, pág. 348/50.
(119) idem, pág. 292
(120) idem, pág. 292
(121) Veja-se Excurso Sobre o Nivelamento da Diferença
Genérica Entre Filosofia e Literatura.
(122) idem, pág. 199
(123) idem,pág. 199
(124) "Se se eliminasse
de toda a arte o cálculo matemático, isto é, a técnica de medir e de pesar, sem
dúvida dessa arte restaria pouco... Todavia, restaria sempre a arte da conjectura
(stochastikê, stocastikh), isto é, exercitar as
nossas faculdades através do uso da experiência, adoptando as qualidades
próprias do conjecturar.", Platão, Filebo,
35c.
Em grego, estocástico, designa aquele que é
hábil a conjecturar, aquele que é penetrante, já que a raiz da palavra é stach
ou stech, bater, o que aponta para a conjectura como a capacidade de ter
espírito penetrante, capaz de a partir de hipóteses fracas, alusivas, construir
argumentos fortes, que batem certo, isto é, que fazem ajustar a verosimilhança
com a probabilidade. No fundo, o entimema aristotélico, não é mais do que um
silogismo conjectural de premissas fracas, inseguras, em termos
lógico-demonstrativos, mas fortes em termos retórico‑argumentativos.
(Aristóteles, Retórica, 1, 1356b)
(125) op. c., pág. 180
(126) "Or
la passion c'est ce qui, en nous modifiant, produit des différences dans nos
jugements et qui est suivi de peine et de plaisir.", Aristóteles, Retórica, VIII, 1378 a, ed. c., pág 183.
Ou ainda, mais alicerçadamente, "Les
preuves inhérentes au discours sont de trois sortes: les unes résident dans le
caractère moral de l'orateur, d'autres dans la disposition de l'auditoire;
d'autres enfin dans le discours lui-même, lorsqu'il est démonstratif, ou qu'il
paraît l'être.", idem, III, 1356 a, pág. 83.
(127) idem, Introdução de
Michel Meyer, pág. 34.
(128) Neste sentido,
ultrapassa-se a formulação de uma retórica confinada a uma perspectiva de
análise da linguagem, tal como foi advogada em certos círculos, seja ela
sintáctica, semântica ou pragmática, apesar da última dar alguns sinais de
propiciar esta ultrapassagem. "Enfin, au dernier niveau,
pragmatique, on prend en considération le fait que l'emploi d'une phrase est un
phenomène interindividuel, un événement dans l´histoire des relations entre
plusieurs individus: le locuteur l'emploie parce que la situation où il se
trouve face aux personnes qui l'entourent (destinataires et auditeurs) l'amène,
ou au moins l'autorise, à le faire; et, s'il l'emploie, c'est d'autre part
qu'il cherche, grâce à elle, à produire un certain effet sur ceux à qui ou pour
qui parle. Les questions à poser, en pragmatique, pourraient donc être: tel
énoncé est-il approprié à telle situation? Serait-il, au contraire, hors de
propos? Quels actes de parole permet-il d'accomplir (assertion, interrogation,
ordre...etc.)? Quelle réaction exige-t-il du destinataire? Une r'eponse, comme
les questions? Una action, comme les ordres?...", Ascombre, J e Ducrot,
O., L'Argumentation dans la Langue,
Liège-Bruxelles, Mardaga, 1988, pág. 11.
(129) Admite-se aqui a
referência epigonal a uma das concepções antropológicas mais fatalmente
enredada no seu próprio círculo vicioso, de procura da unidade do homem na
invocação da tutela de uma razão, cuja referendação levava à consideração da
paixão como anti-razão e à dificuldade de conciliar vontade e razão, como
entidades, como irmãos desavindos, quase irreconciliáveis.
(130) No entanto,
ressalve-se que a expressão ironia socrática (eirwneia swkratikh) só apareceu primacial e
claramente, segundo diz Burnet, em The
Ethics of Aristotle, na Ética
Nicomaqueia (1127b, 23-26), de Aristóteles. Com isto, não se pretende
entrar nas discussões exangues sobre a primeira vez que, bastas vezes, não escapam
a um folclore teórico e erudito, espécie de refrão de uma obsessão que, qual
Erínia, cria um furor insólito e desmesurado de hiperactividade malsã.
(131) Recorre-se ao célebre retrato-robot
de Sócrates, nesse conciliábulo, mirabolante e meteorológico, das Nuvens. Aristófanes tornou Sócrates uma
farsa de Sócrates, ou seja, rematou a "invisibilidade do irónico",
como diz Kierkegaard. O irónico é o que se invisibiliza no que diz, para que o
Outro apareça, o que acaba por ser exaltado na visão santificante de Platão, em
que o diálogo socrático é apresentado como revelação inteligível do Outro.
(132) "Na medida em que
é possível dizer que Sócrates deve fornecer a unidade do cómico e do trágico,
evidentemente isto só pode acontecer na medida que a própria ironia é esta
unidade.", Kierkegaard, S., O
Conceito de Ironia, Constantemente Referido a Sócrates, trad. bras. de
Valls, Petrópolis, Vozes, 1991, pág. 54.
Assim, e como forma de negação, a ironia introduz o
trágico na comédia e vice-versa, no círculo vicioso e virtuoso de relações e
negações que o ironista desenvolve: "L'ironie
joue sérieusement, severe ludit,
mais tantôt l'accent est sur severe, tantôt sur ludit.",
Jankélévitch,V., L'Ironie, s. l.,
Flammarion, 1979, pág. 130. Nas mutações que o literário imprime, a tensão
entre a severidade e a brincadeira, numa dilatação proporcionada pelo
exageração que empola toda a linguagem, atinge, por vezes, a dimensão do
trágico e da comédia, que trazem a ironia à brutalidade do mais insensato e
absurdo. Quando isto acontece, a ironia torna-se o palrar de um espírito
demente, infectado do mais puro delírio, e do qual algumas peças de Shakespeare
são nocturnos e sombrios exemplos.
(133) Ainda que
tangencialmente, esta mesma ideia aparece no próprio retrato que Sócrates dá de
si mesmo aos outros e na proliferação de imagens que ele suscitou na sua época,
das quais, extrema tangunt, a
platónica e a aristofânica são o seu grau radical.
(134) O célebre severe ludit do ironista é a raiz de uma
forma de convocar o outro à incerteza, como abertura à pluralidade
argumentativa de cada argumento.
(135) Como diz Kierkegaard,
na análise forte que faz deste diálogo: "Todo esse diálogo (Protágoras) recorda a conhecida disputa
entre um católico e um protestante, que termina cada um convencendo o outro, de
modo que o católico fica protestante e o protestante católico. ",Kierkegaard, op. c., pág. 57.
(136) De facto, Aristóteles,
que não nos oferece uma reflexão sistemática, decisiva e incisiva, como era seu
timbre e como o faz em relação à metáfora, na Poética, tenta preservar uma dimensão positiva da ironia, apesar da
depreciação feita na Ética Nicomaqueia,
onde ele a aponta como vício contrário à sinceridade e ficando "aquém da
verdade". Neste contexto, Aristóteles hesita entre o olhar ético e
retórico sobre a ironia, aprumando em cada um deles a diferencição de saberes e
a sua relativa hierarquia, rigorosamente estabelecida por ele.
(137) Nas sobrevivências de
que também se faz a estranha longitude dos pensamentos, é sabido que toda a
análise da ironia, em Aristóteles, e da comédia, ficará sempre ensombrada pela
perda da célebre II Parte da Poética.
Apesar disso, é possível recolher referências esparsas, quer na Retórica quer na Ética Nicomaqueia e, designadamente, sobre este assunto, veja-se,
correspondentemente, o capítulo XXII do II Livro e o capítulo VIII do IV Livro.
(138) "La
rhétorique se rattache à la dialectique. L'une comme l'autre s'occupent de
certaines choses qui, communes par quelque point à tout le monde, peuvent être
connues sans le secours d'aucune science déterminée. Aussi tout le monde, plus
ou moins, les pratiques l'une et l'autre; tout le monde, dans une certaine
mesure, essaie de combattre et de soutenir une raison, de défendre,
d'accuser.", Aristóteles, Retórica,
I , 1354 a, trad. fr. de Ruelle, Paris, Le Livre de POche, 1991, pág. 75.
(139)
idem, I , 1356 a, pág. 84
(140) Não é, nem pretende
ser, esta investigação um repositório dos sucessivos e diferentes meandros que
constituem sempre o longo delta histórico das ideias, ao longo dos tempos. Essa
capilaridade histórica está já feita com bastante proficiência e querer,
estultamente, penetrar nela ao ponto de acrescentar algo é deixar-se infiltrar
pelo fascínio da erudição e dos eruditos, esses garimpeiros da paciência, que
investigam obsessivamente e minuciosamente o mínimo brilho. Apesar disso, e na
inevitável reserva de quem teve que procurar no filão da erudição aspectos ou
pormenores, há que mencionar algumas obras cujo contributo se aprecia, e nas
quais o escrutínio de perspectivas é exaustivo, imenso e tão conclusivo quanto
estas coisas o podem ser. A saber: Knox, D., Ironia- Medieval and Rennaissance Ideas on
Irony, New York, E. J. Brill, 1989; e a vulgata de Muecke, D. C., Irony and the Ironic, London, Methuen,
1986.
(141) A organização do
moderno e da concepção do sujeito moderno são incompreensíveis a quem não
acolhe o papel do romance nessa época, o que foi bem salientado pela já citada
obra de Marthe Robert e por Michel Foucault, em As Palavras e as Coisas. O herói irónico, portador de um alter-ego,
que o nega, D.Quixote e Sancho Pança, é o que na seriedade total de si próprio,
já não sabe que o real é uma ficção e, por isso, tem como escudeiro essa
consciência crítica que o tenta desficcionar: veja-se a relação
contradutiva entre o D. Quixote e Sancho.
(142) Subscreve-se aqui a
tese de Marthe Robert, expendida e expandida na obra já citada.
(143) A metáfora do livro é
inesgotável e fez as delícias de uma convenção de espíritos. A ciência
(Galileu, Einstein), a filosofia (Platão, Descartes, inter alios) falam dela e
usam-na abundantemente. O interessante do D. Quixote é que é ele o primeiro
exemplo, e por isso moderno, em que os livros, no caso vertente romances de
cavalaria, são mais reais que o real, o que aliás poderia dar azo à antítese a
estabelecer entre o Fedro, como
expressão de uma época anti-livro, na boca de Sócrates, e o D. Quixote. A
partir deste momento, o homem moderno nunca mais escapa ao facto, à armadilha
de passar a ser um personagem/sujeito do literário. É nesta armadilha do
factual-fictício que fica presa a visão da modernidade e da sua concepção de
sujeito, o que poderá conduzir à interpretação da modernidade como o conflito
do real e do imaginário, impossível de acontecer na época clássica.
(144) Atende-se, neste
ponto, à importância dos salões literários na elaboração de uma cultura
literária em que, progressivamente, o literário se sobrepõe cada vez mais ao
religioso, como modo soberano de englobar a vida. O nomadismo intelectual dos
frequentadores dos salões literários aparece bem retratado em alguns romances
e, ipso facto, as sociedades e os
salões literários tornam-se os olimpos modernos.
(145) O Cândido e o Poema sobre o
Desastre de Lisboa são duas das obras a recolectar como eventuais exemplos
deste problema.
(146) A figura de Voltaire e
a sua educação jesuítica, bem presente na sua ideia de uma libertação da
humanidade através do saber, trave-mestra do iluminismo e da modernidade,
conduzem também, ainda que de modo ínvio, à questão da jesuitização da
sociedade, bem assinalada por Thomas Mann na Montanha Mágica, e à oratória barroca, como uma das formas mais
singular e fascinante da retórica, merecedora de um trabalho exclusivo. Nela,
há uma figura, Baltasar Gracián, cuja presença diluída é ainda razão de alguma
descoberta tardia, que se torna epigonal de uma filosofia da corte ou áulica. Se a
ironia é civilização então na corte ela é civilização requintada, exercício
florentino de agudezas. Baltasar Gracián, cuja Agudeza y Arte de Ingenio concebe a linguagem como um jogo de
contrastes e conflitos, criados por metáforas e contraposições, dos quais todos
os conceitos provêm. Daí que, como diz Gerhart Schroeder, em Eine Untersuchung zur Beziehung
zwischen Maneirismus und Moralistik, citado por Santos Alonzo, no estudo
introdutório a El Criticon, Madrid,
Catedra,1990, pág. 23, o pensamento de Gracián assenta num perspectivismo, em
que a técnica de oposições e contrastes é fundamental e da qual a
"agudeza" e a ironia, que é um jogo pura e gelidamente intelectual,
são paladinas. A ironia, como jogo puramente intelectual, torna-se assim a
forma adequada dos jogos de corte e de sociedade, exigentes da habilidade
infinda do entre-dizer.
(147) À luz do impreciso
refere-se aqui, onirica ou assombradamente, um célebre verso de Píndaro, nos
poemas ao deus da serpente: "O homem é a sombra de um sonho".
(148) Kierkegaard, op. c., pág. 221/2. Esta definição é, ipsis verbis, de Hegel, como é
mencionado pelo autor.
(149) Apud Wimsatt, W. e
Cleanth,B., Crítica Literária, trad.
port. de Centeno e Morais, Lisboa, Gulbenkian, 1980, pág. 456.
(150) Kierkegaard, op. c., pág. 227. Retenha-se ainda: "Na
ironia, o sujeito bate em retirada constantemente, contesta a realidade de todo
e qualquer fenómeno, para se salvar a si próprio, numa independência negativa,
em relação a tudo.", idem, pág. 223.
Nesta visão estratégica da ironia, o sujeito é o que se
dilui nas sucessivas negações de si próprio, o que se fascina pelo poder demolidor
da sua liberdade. A liberdade já não é a serenidade, apologetica e criticamente
desenvolvida pelo sujeito clássico, mas a embriaguez, o orgiástico impulso para
a negação e a ironia é a gargalhada sardónica que ecoa, como um chicote,
algures, no labirinto sombrio e convulso de um eu sem mundo.
(151) Jankélévitch,V., L'Aventure, L'Ennui, Le Sérieux, Paris,
Aubier, 1980, pág. 8. O ironista romântico aparece como o herói da
impermanência, o que procura a aventura, não para a viver, mas para a negar e recuperar
a seriedade pelas traseiras.
(152) Apud Kierkegaard, op. c., pág. 227. Hegel não faz mais do que
extrair as consequências de uma dialéctica que, defluindo sobre si mesma, se
inebria da sua própria multi-negatividade.
(153) Booth,W., A Rhetoric of
Irony, Londres, The University Chicago Press, 1974, in Bibliografia.
(154) idem, pág. 277. Apesar
desta análise, a ironia kierkegaardiana aparece bem mais ampla que a marcação
pouco cerrada que lhe tem vindo a ser movida. De qualquer maneira, e abdicando de
um enquadramento global do seu pensamento, esta posição que remonta, como ele
diz, a Sócrates, recoloca a questão da ironia na área da qual partira, enquanto
dificuldade e problema de um sujeito
que se apresenta aos outros, nas suas determinações e negações, não como
proprietário de si próprio, mas como inquilino das suas próprias dúvidas
e do seu não saber e não ser. É isto mesmo que faz da ironia uma estranha
pedagogia, praticada por um excêntrico pedagogo: "A ironia é um
disciplinador (Tugtemester- pedagogo), que só é temido por quem não o
conhece.", pág. 277.
(155) A concepção de
instante em Kierkegaard é das mais abundantes do seu pensamento, pelo que a
parca referência acaba por ser um acto de salivação apressada. No entanto, a
determinação da ironia como um instante negativo é uma extrapolação, cuja
procedência não é a extracção directa da obra de Kierkegaard.
(156) idem, nota 32 da I
parte, pág. 186, "O irónico arranca o indivíduo da existência imediata, e
isto é o aspecto libertador, mas depois o deixa a flutuar como o esquife de
Maomé, segundo a lenda, entre dois magnetes, dois pólos, um de atracção outro
de repulsão."
(157) Duas citações,
próximas espacial e significantemente: "A ironia como um momento dominado,
mostra-se na sua verdade justamente nisso: que ela ensina a realizar a
realidade, a colocar a ênfase adequada na realidade. Daqui não se segue,
de jeito nenhum, a conclusão bem saintsimoniana de que se deva idolatrar a
realidade (...)" E logo, de um só fôlego: "No que toca à teoria, a
essência tem de se mostrar como o fenómeno. Na medida que a ironia é
dominada, ela não mais crê, como certas pessoas bem avisadas, que sempre deve
haver alguma coisa escondida por trás; mas ela também impede toda a idolatria
do fenómeno e, como ela ensina a respeitar a contemplação, assim também salva
daquela prolixidade que acha que para fazer uma exposição sobre a história
universal, por exemplo, se precisaria de tanto tempo quanto o mundo teve para
vivenciá-la.", idem, pág. 279/80.
(158) Para esta questão ter
em consideração o capítulo dedicado a Solger por Kierkegaard, pág. 264/275.
(159) Escutando o búzio
encantado das palavras do autor: "Uso o termo ironista para
designar o tipo de pessoa que encara frontalmente a contingência das suas
próprias crenças e dos seus próprios desejos mais centrais, alguém
suficientemente historicista e nominalista para ter abandonado a ideia de que
essas crenças e desejos centrais estão relacionados com algo situado para além
do tempo e do acaso.", Rorty, R., A
Ironia, Contingência e Solidariedade, trad. port. de Fonseca, Lisboa,
Presença, 1992, pág. 17.
Focado sob esta lupa, o ironista é o que se vê
confrontado com a contingência de todos seus pressupostos e disso mesmo faz a
sua liberalidade,
que é a recusa da crueldade. De certa forma, a crueldade é o exercício de uma
força que advém de uma concepção fundamental e fundamentalista, que exprime o
limite da ironia: quando ela é cruel ela abandonou-se ao sarcasmo e
brutalizou-se na insociabilidade total.
(160) idem, pág. 16
(161) Veja-se a suave
enunciação destas questões nessa polífona análise, da qual se alimentam alguns
dos mais importantes pensamentos actuais, quer dizer, a relação entre o mundo e
a linguagem: "Temos de fazer uma distinção entre a tese de que o mundo está
diante de nós e a tese de que a verdade está diante de nós. Dizer que o mundo
está diante de nós, que não é uma criação nossa, quer dizer, tal como o senso
comum, que a maior parte das coisas no espaço e no tempo são efeitos de causas
que não incluem os estados mentais do ser humano. Dizer que a verdade não está
diante de nós é simplesmente dizer que onde não há frases não há verdade, que
as frases são elementos das linguagens humanas e que as linguagens são criações
do homem.
A verdade não pode estar diante de nós, não pode existir
independentemente da mente humana, porque as frases não podem existir dessa
maneira ou estar diante de nós dessa maneira. O mundo está diante de nós, mas
as descrições do mundo não. Só as descrições do mundo podem ser verdadeiras ou
falsas; o mundo por si próprio, sem auxílio das actividades descritivas dos
seres humanos, não pode.", idem, pág. 25.
(162) Rorty apodera-se da
ideia da redescrição como método, em Mary Hesse, que considera as revoluções
científicas como "redescrições metafóricas" da natureza e não como
acesso ao "natural", império instantâneo e descodificado de uma
realidade dada ou construída objectivamente. Ver desde página 38 à 46.
(163) idem, pág. 109. No
fundo, o vocabulário é anterior à proposição, pois esta aparece como um dos
movimentos possíveis do vocabulário, entendido este não como uma entidade
inerte de vocábulos em colmeia, mas como contexto perspectivista de todos os
movimentos da linguagem. É curioso que, na linha do que é aflorado ao de leve
por Rorty, não haja ainda uma filosofia do vocabulário e dos vocabulários. Se
muitas vezes se fala de linguagem e de línguas parece, no entanto, réprobo
falar de vocabulários, linguagem e línguas contextualizadas que são, na
verdade, a linha divisória do que é usado e não usado, do que é actual e
inactual. Dalgum modo, o vocabulário aparece como a "temporalidade"
de uma língua, e no puzzle imenso dos
vocabulários, a virtualização interminável de possíveis modos de abordar e
construir uma contemporaneidade.
(164) "Chamo ironistas
a este tipo de pessoas, porque a sua percepção de que qualquer coisa pode
ganhar um aspecto positivo ou negativo ao ser descrita e a sua renúncia à
tentativa de formular critérios de escolha entre vocabulários finais os colocam
na posição a que Sartre chamou "meta-estáveis": nunca muito capazes
de se levarem a sério por estarem sempre conscientes de que os termos em que se
descrevem a si próprios estão sujeitos a mudança, por estarem sempre
conscientes da contingência e da fragilidade dos seus vocabulários finais e,
portanto, dos seus eus.", idem, pág.104.
Consequentemente, a experiência do eu transforma-se no
radical instável de uma linguagem corporalizada num vocabulário, que na sua
variação e variabilidade introduz campos de contingência. A diversidade de
vocabulários corresponde ao que se poderá chamar campos de contingência,
designação através da qual se pretende exprimir relações e redes de indivíduos.
(165) "O objectivo da
teoria ironista é compreender a exigência metafísica, compreender tão bem a
exigência de teorizar que se fique inteiramente livre dela. A teoria é, pois,
uma escada a afastar logo que se percebe o que é que levou os nossos
antecessores a teorizar. A última coisa que o teórico ironista quer ou precisa
é uma teoria do ironismo.", idem, pág. 130.
(166) Kierkegaard, op. c., pág. 217.
(167) Rorty, op. c., pág. 118.
(168) idem, pág. 134.
(169) idem, parte final do 4
º capítulo.
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