Poder, conjuntura e eleições em África: o caso do Botswana

Paula do Espírito Santo, Universidade Técnica de Lisboa

(II COLÓQUIO SOBRE GÉNERO, EDUCAÇÃO E PODER EM ÁFRICA: 22 e 23 de Novembro de 2001)

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INTRODUÇÃO

A problemática da estabilidade política em África tem sido de motivo preocupação e de reflexões entre as comunidades de Estados africanos e tem desencadeado estratégias diversas de resolução dos múltiplos e complexos problemas estruturais daquele continente. De entre aquelas comunidades  lembre-se o reconhecido papel, por exemplo, da SADC. Saliente-se também a parceria de países africanos com países europeus com capacidades económicas e modelos estruturantes largamente divergentes face àqueles, como por exemplo o caso dos países da União Europeia. Destas parcerias resulta essencialmente uma importação de estratégias nem sempre de natureza apenas económica, tecnológica ou científica mas, mais ou menos abertamente, de natureza política.
Entender e participar na globalização, expressão associada a uma perspectiva tendencialmente de natureza anglo-saxónica ou, nas palavras de Adriano Moreira, na mundialização de interdependências, [1] deve significar  aceitar uma responsabilidade fundamental nem sempre verdadeiramente compreendida pelos diversos parceiros. Entender e participar na mundialização de interdependências deve significar estar sobretudo apto a não excluir mas ao invés a conseguir integrar e fazer emergir a diversidade e complexidade de padrões culturais, económicos e políticos de todos os intervenientes nos processos de parceria. Significa a adaptação de estratégias flexíveis, integradoras que possam, do ponto de vista político, suscitar uma verdadeira participação cívica bem como, ao nível das elites no poder. O resultado deve estar associado a soluções renovadoras tendo por base a essência das tradições sociais. Um dado é fundamental, a democracia como modelo funciona quando complementada por uma forte estrutura institucional que promova efectivamente a participação dos cidadãos, de cada cidadão, nos assuntos do seu interesse. 
Hoje em dia, ainda que se não tenha conhecimento do terreno, lembrar África, pode significar pensar sobre a beleza e a riquezas de recursos naturais inquestionáveis e inigualáveis que desencadeiam o sonho e a cobiça. Mas também, hoje em dia, lembrar África é pensar na aplicação errada do poder e da política que promotora de formas de conflitos exacerbados e duradouros geram uma destruição irreversível, infligindo as suas consequências directas sobre a população. A política pode tornar-se um mecanismo desencadeor de conflitos mais ou menos duradouros cujo terminus não se compadece nem com estratégias militares de demarcação do território nem com esforços diplomáticos, já que a intervenção supraestadual nem sempre é reconhecida de forma efectiva.
A integração de soluções e a delimitação de estratégias políticas e económicas para África deve significar um esforço de diagnóstico estrutural e conjuntural do ponto de vista de cada Estado, de cada comunidade, de cada nação. Daí que as soluções e estratégias políticas devam ser estudadas numa perspectiva sistémica que permita entender os condicionalismos de cada sistema político. Estes condicionalismos devem ser entendidos do ponto de vista das exigências, necessidades, apoios, da parte das instituições e intervenientes na comunidade civil, por um lado. Por outro lado, devem diagnosticar-se as respostas do poder político, da parte das elites locais e das elites nos orgãos de soberania, no que se refere ao ponto de vista normativo e dos padrões de regulação social, política e económica.


1. Botswana: condicionantes e padrões sócio-económicos

A diversidade de situações políticas no continente africano é felizmente ampla. Daí que deve lembrar-se que apesar de o conflito, e suas consequências devastadoras, serem um dos motivos de referência mais preocupante e mais mediático, naquele continente há, no entanto, situações de estabilidade política duradoura que devem ser lembradas quer como exemplo quer pela sua peculiaridade. Associada à estabilidade política, essencialmente como uma causalidade desta, existe um quadro económico que, comparativamente com outros países africanos, oferece maior sustentabilidade para as populações. Lembre-se, contudo, que no quadro dos modelos económicos desenvolvimentistas os índices de desenvolvimento das democracias africanas estáveis deve ser visto de forma enquadrada no âmbito do contexto estrutural africano.
De entre os países africanos em geral e, em especial da SADC, o Botswana é um caso de democracia estável. Tornado independente em 1966 da sua situação de protectorado britânico, o Botswana era nesse ano um dos países mais pobres do mundo com um PIB per capita de USD$80. Essa pobreza foi acentuada por vários anos seguidos de seca. Foi a partir do início da década de 70, que o desenvolvimento se tornou sustentável, nomeadamente, devido à descoberta das últimas minas de diamantes em África e das maiores do mundo, quadruplicando o PIB.
Este Estado, geoestrategicamente designado como encravado, visto não ter recursos oceânicos nos limites políticos da sua extensão, tem também a particularidade de ser percorrido em grande escala pelo deserto – do Kalahari – o que condiciona do ponto de vista do povoamento certamente a sua população, de 1,6 milhões de habitantes para uma extensão geográfica de cerca de 600Km2.
Os seus níveis educacionais e económicos são competitivos, nomeadamente, com países africanos poderosos como a África do Sul, sendo o seu crescimento económico anual 3% para o ano de 2001 para uma taxa de inflação de 9%. O PIB é de USD$5.25 biliões e o PIB per capita é de USD$3.600 (referência ao ano de 1998) (ou seja, 817.200$00 ou 4.076,18). Refira-se que a fronteiriça África do Sul tem um PIB per capita de USD$ 2.942  (1999).
Para se ter uma noção comparativa apresenta-se o seguinte quadro com os valores do PIB per capita para os países africanos de expressão portuguesa. Por curiosidade indique-se que o PIB de Portugal é de USD$105.336 milhões (2000)  e o PIB per capita é de USD$10.518 (ou seja, 2.387.586$00 ou 11.909,23).


Q. 1 – PIB per capita dos países africanos de expressão portuguesa

 

PIB per capita

Angola

 USD$ 428      (1994)

Guiné-Bissau

 USD$ 233,9   (1994)

Moçambique

 USD$ 867      (1996)

Cabo Verde

 USD$ 910      (1994)

S. Tomé e Príncipe

 USD$ 600      (1992)



Q. 2 – PIB per capita do Botswana, África do Sul e Zimbabwe

 

PIB per capita

Botswana

 USD$ 3.600    (1998)   

África do Sul

 USD$ 2.942    (1999)

Zâmbia

 USD$ 380       (1997)

Zimbabwe

 USD$ 520       (1999)


Para lá dos diamantes, as principais indústrias de natureza mineral do Botswana são o cobre, níquel, carvão, sal, soda, hulha. No entanto, apesar de ser um país maioritariamente desértico, são indústrias importantes neste país as ligadas aos cereais como o sorgo, o milho miúdo, o milho graúdo, os amendoins, feijões, sementes de girassol, de entre as principais produções. Refira-se também que os seus parceiros de comércio principais são a União Europeia, a SACU (South African Customs Union) e o Zimbabwe.
Em termos de actividade económica saliente-se o papel, cada vez mais, importante das actividades ligadas ao turismo, em particular tirando partido de uma escassa zona húmida a norte, como por exemplo Chobe e Okavango, que para os locais é como se fosse um país diferente, onde é possível desenvolver safaris [2] quer ao longo dos poucos rios que no Botswana não estão secos quer por terra para observar a vida natural selvagem. Inclusivamente o deserto do Kalahari é também uma fonte de receita a nível turístico proporcionado passeios por vis aérea através de pequenos aviões. Refira-se, no entanto, que tal como acontece em outras indústrias, também esta é explorada em grande medida por sul-africanos quer os fugidos ao regime do apartheid quer à forte competitividade económica sul-africana. Ali se radicaram encontrando um oásis para desenvolver os seus negócios [3] .


2. O processo democrático gerido a partir de Gaborone

Politicamente o Botswana é uma república parlamentar, cujo Presidente, neste momento - Festus Mogae (eleito em 1998)  - é eleito por cinco anos. Em 1999 desencadearam-se as eleições para a Assembleia Nacional, unicameral, composta por 40 lugares eleitos pelo povo e quatro lugares eleitos pela própria Assembleia. A periodicidade dos mandatos é de cinco anos. O partido com maior peso é o partido conservador, designado por Botswana Democratic Party (BDP) representado por 54,2% dos assentos. O partido situado ideologicamente como social-democrata, designado Botswana National Front (BNF) tem um peso parlamentar de 24,6%. O Botswana Congress Party (BCP) tem 11,3% de representação parlamentar. Refira-se que o Presidente Festus Mogae foi eleito e identifica-se com o BDP.
Não há mecanismos públicos de financiamento dos partidos políticos sendo que a legislação - ‘Acto Eleitoral’ – limita as despesas dos intervenientes no processo eleitoral. Existe uma Comissão Independente Eleitoral (IEC), desde 1998, cujo Presidente solicitou ao Forum das Comissões Eleitorais dos SADC que enviasse uma equipa de observadores para as eleições para a Assembleia Nacional e para as assembleias locais, em Outubro de 1999. O objectivo foi obter recomendações quanto a um melhor funcionamento do processo eleitoral bem como do IEC.

Desde 1965 que o Botswana tem tido eleições multi-partidárias, que decorreram sempre sem incidentes que inviabilizassem o processo democrático de legitimação do poder. Desde aquele ano que o BDP se tem mantido no poder, sendo que apenas em 1994 o maior partido da oposição esteve próximo de rivalizar mais seriamente com ele. 
Apesar de se manter o mesmo partido no poder já desde 1965, a estabilidade política permanece bem como o desenvolvimento económico. Diversos factores explicam o desenvolvimento desta democracia estável. Para lá de uma população reduzida o que, grosso modo, simplifica a gestão política em termos demográficos, existe um outro aspecto que é incontornável na explicação política africana em geral.  Esse aspecto é a etnicidade. A segmentação étnica do Botswana é composta por uma etnia principal, os batswana, que são cerca de 90% da população e por restantes grupos, alguns nómadas, que são então minoritários (como os kalanga, os basarva, os kgalagadi). O facto de haver uma etnia principal maioritária facilita a coesão social e permite que esse factor não seja motivo de disputa política associada a factores de natureza ideológica ou partidária.   
Do ponto de vista da participação eleitoral, um factor, no entanto, deve ser destacado: apesar dos esforços da campanha de sensibilização da população para votar, dos 460.000 votantes inscritos apenas pouco mais de metade se deslocaram às urnas nas eleições de 1999, para votar. Refira-se que a mobilização eleitoral foi  uma das apostas da Comissão Eleitoral Independente. A legitimidade no poder para um país com a extensão e os recursos do Botswana é conseguida apenas com cerca de 200.000 eleitores, o que equivale a cerca de 1/5 da população adulta. Este dado indicia uma forte apatia eleitoral. Podem apresentar-se várias explicações para a fraca ocorrência às urnas da parte dos eleitores, sublinhe-se recenseados. Parece-nos que a principal pode ser associada à ideia de predomínio político garantido do partido liderado pelo Presidente da República cuja vitória estaria assim antecipadamente assegurada. Este factor aliás é motivo de abstenção em contexto político não só africano mas também europeu. Outro factor prende-se com um hipotético distanciamento político das populações distanciadas dos centros de poder concentrados em Gaborone. De facto, a dispersão populacional com aglomerados populacionais pouco densos e muito voltados para uma directa liderança local, onde o papel dos chefes de aldeia ainda é efectivo e consequente, leva a que não seja sentido como útil um voto para uma Assembleia cuja eficácia não é percebida ou sensível a quem se encontra a mais de 1000 Km de distância. Refira-se também que apesar de ser um país em franco desenvolvimento e de ter das melhores redes viárias em terreno africano, as quais foram uma aposta da última década, a comunicação continua a ser difícil em particular para as povoações situadas for a dos circuitos viários principais. Quanto ao facto da baixa taxa de recenseamento, lembre-se que apesar de a grande maioria da população ser ‘acessível’ em termos de recenseamento, o que equivale à etnia principal que são os batswana (como foi referido, largamente maioritária), para os restantes grupos étnicos, em parte nómadas, (como os kalanga, os basarva, os kgalagadi) os mecanismos de eleição de acordo com os modelos democráticos dificilmente podem ser conceptualizados.


CONCLUSÃO

Não há dúvida de que o Botswana é um país africano em franca expansão económica cuja referência em contexto africano deve ser assinalada. A par da expansão económica também a estabilidade política tem tido um papel determinante na gestão deste território. No entanto, apesar da fraca densidade populacional o Botswana apresenta os mesmos problemas de interioridade e de difícil acesso às populações associados aos seus padrões de vivência, que outros países apresentam.
Consideramos que tal como na maioria dos países democráticos, e não apenas africanos, também no Botswana a participação eleitoral deverá ser, certamente, a maior aposta política e eleitoral para os próximos anos. Da participação eleitoral resultará um reforço da legitimidade do poder que poderá ser posto em causa se se mantiver a designada anomia social. No entanto, reconhecemos que as soluções de participação política não se confundem com a participação eleitoral e esta última apenas deve ser vista como um mecanismo de reforço daquela em vista de uma maior identificação da população com os seus representantes a nível do Estado. Por outras palavras, não nos parece que uma maior participação eleitoral seja um garante de plena participação política. Não se pode originar uma identificação política da parte das populações com personagens que as mesmas não conhecem porque não podem conhecer. Lembre-se que o uso de ‘velhas’ tecnologias como a televisão ou a rádio (para não falar nos jornais) não são acessíveis de forma massiva às populações. Mesmo as campanhas eleitorais com os comícios, as reuniões, as sessões de esclarecimento, têm um efeito secundário no quotidiano das populações rurais. O seu efeito é mais evidente junto da população urbana.
Há, de facto, duas realidades diametralmente opostas no Botswana e que acaba por ser também um pouco a realidade em outros países africanos. Há um mundo rural, onde existe um forte peso dos líderes locais, naturais e onde esse peso continua a fazer dinamizar as redes económicas, sociais, económicas dessas populações. E existe um mundo urbano anónimo mas ainda fortemente ligado a solidariedades familiares e de comunidade. Este é mais permeável à adesão aos mecanismos do processo eleitoral, geradores de identificação supra-comunitária. No mundo urbano perde-se o conhecimento interpessoal com os líderes mas ganha-se uma dimensão de delegação de confiança num projecto de gestão do todo que é o Estado.
Pensar em representatividade eleitoral pressupõe entender que a coesão e proximidade dos ingredientes do Estado (neste caso, essencialmente, o território, a população) podem ser melhor geridos por representantes escolhidos por todos e não por desígnios tradicionais de escolha onde o peso simbólico do transcendental era cultivado. Do nosso ponto de vista um longo caminho de sensibilização deve ser feito se se quiser efectivamente apostar numa participação eleitoral efectiva. Se as novas tecnologias podem desempenhar uma papel mais mediato, a alfabetização e o alargamento dos níveis de escolaridade apenas podem dar os seus frutos no espaço e duas ou três décadas. Será que o modelo democrático de representação eleitoral resiste?



[1] A expressão mundialização tem uma natureza de cariz mais francófono, apesar de haver posições que divergem quanto ao conteúdo desta e da globalização. 

[2] Esta palavra significa viagem e é corrente para a designar em quase toda a África.

[3] Não se conseguiram dados sobre o peso do investimento sul-africano em território do Botswana.