O medium e sua performance[1]


Eduardo Esperança, Universidade de Évora

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"Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam em seu redor; pois, como todo o intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens."[2]

 

 

No espaço da filosofia, seja em Aristóteles ou em Hegel, a noção de «mediação» está presente nos seus raciocínios e é encarada de forma diferente. Abstraindo-nos das especificidades, este é o processo pelo qual a relação entre dois pólos, de algum modo separados, se torna possível através de um  agente de inter-mediação, instância mediadora da relação entre esses dois primeiros. O processo de mediação, como a instância mediadora, encontram-se na sua função, não só pela actualidade da relação como pela incapacidade de contacto directo e instantâneo — imediato — entre os elementos envolvidos no processo. Esta é uma observação à qual se chega quase pelo senso comum, mas que retrata razoavelmente bem as mediações, sejam elas as da capacidade da lógica no seu acesso à verdade racional, em Aristóteles,  seja o acesso à verdade pela mediação da reflexão ou pela dialéctica, em Hegel.

Por outro lado, uma perspectiva mais sensível ao que se está hoje a passar no quotidiano Ocidental, não pode deixar de equacionar a questão mediática de uma outra maneira. Com o desdobramento e aparecimento de novos media, a presença e profusão mediática é tal, que parece legítimo desenhar o esquema "polar" de um outro modo; em vez de dois pólos que recorrem a uma ou mais formas de mediação cada vez que têm necessidade de contacto, talvez essas formas de mediação, que se corporificam sob os mais diversos aspectos, sejam o "éter" no qual têm de submergir todos os "pólos" comunicantes. Esta é uma questão de paradigmas, pela qual não nos vamos aqui perder; limitamo-nos a assinalar a sua presença[3].

O problema da mediação, no contexto comunicacional em que nos deslocamos, é central e tem sido muito debatido neste século "mediático" em que a emergência de organizações e aparelhos funcionalmente preparados para a comunicação e funções mediáticas, assumem um papel destacado. Os media, os processos de mediatização, as teorias sobre os media, adquiriram nos últimos cinquenta anos, matizes próprios, inerentes às suas performances na sociedade e ao modo como estas se observam, tanto pelo senso comum, como pelos investigadores e teóricos da comunicação e de outras áreas científicas.

Observando a generalidade das novas formas de mediação que nos são presentes, que se automatizam e rapidamente passam a articular e gerir novos padrões de relação, é possível afirmar que, em termos gerais, estas são responsáveis por um aumento e aceleração dos circuitos relacionais no tecido social. Com todas as implicações, acontece que essa aceleração pode não ser directamente proporcional ao contacto entre sujeitos — pois que é uma aceleração orquestrada por mediações, que se reproduzem umas nas outras. De qualquer modo, o que aqui queremos destacar é a necessidade de encontrar a presença do medium[4] nos processos comunicacionais que o podem tornar transparente e invisível. Isto acontece particularmente pela sua constituição histórica e formação de habitus, tendo alguns media deixado mesmo de ser considerados como tal, por terem deixado de oferecer qualquer resistência no processo comunicacional, o mesmo é dizer, por  terem adquirido um desempenho optimizado.[5] Isto percebe-se melhor quando se observa a sua evolução histórica, desde o seu aparecimento e génese de utilização social. Podemos dizer que, nestes termos, o medium emerge geralmente com uma qualidade de resistente — quando todas as condições do meio são propícias à resistência para a sua utilização. Um bom exemplo é o do computador e da sua recente introdução no escritório e, depois, no meio doméstico; a sua "disponibilidade" e adaptação ao uso comum vai do sistema que, para arrancar, é necessário que lhe introduzam instruções em código, até aos interfaces intuitivos de hoje, mais "amigáveis", isto é, adaptados e ainda em processo de melhoramento.  Numa série magistral — Connections — James Burke mostra como, pelo modo reticular de funcionamento e subtileza de adopção, os diversos dispositivos tecnológicos que suportam a vida global, em particular a mais urbanizada, só se tornam visíveis quando, por alguma razão, deixam de funcionar. Então o quotidiano apercebe-se da sua presença, dependência, e da sua invasão. Burke, para o mostrar, recorre à reencenação de um corte de energia ocorrido durante algumas horas, que paralizou Nova York e quase todo o seu Estado federado, no fim da década de 70. Tudo devido à avaria de um relais[6] numa central de distribuição de energia. O que se destaca, é todo o universo tecnológico de suporte, polarizador do enorme crédito que o sustenta. Quando alguém se mete num elevador, num automóvel, num avião, numa montanha russa, fá-lo despreocupadamente porque acredita que não corre perigo, é um dispositivo a-provado, fiável. Como dizem os anglo-saxónicos: "taken for granted". Então, uma vez que deixou de oferecer "resistência" e se incorporou socialmente, o dispositivo perde a sua visibilidade enquanto medium.

Melhor ou pior, o que caracteriza o processo de mediação, do ponto de vista tradicional, é a sua constituição como polo de relação dentro do universo de possibilidades que se podem admitir num determinado contexto. Esta perspectiva da mediação como possibilidade de relação através do medium, tem implicado um universo fragmentado e monadológico em que toda a relação é mais ou menos determinada/constituída pela forma de inter-mediação e morfologia do medium; daí a sua importância, e a necessidade de ter em conta todas as inter-mediações observadas no processo comunicacional. 

Actualmente, o processo de mediação tem de ser observado de outro modo uma vez que nada pode ser percebido sem ter em conta uma ou mais formas de mediação que se constituem na própria estrutura de qualquer contexto observável. É dentro dessa imersão especular que se observam os processos de transacção.[7]

No contexto em que nos encontramos, e para não nos alongarmos num tema sobre o qual muito se tem escrito, e muito há ainda a dizer, cabe-nos destacar dois elementos concretos,  os mais frequentemente investidos no agenciamento da mediação que ocorre no campo patrimonial:

— A um nível material e concreto,("positivo") o campo patrimonial, como estrutura material (mediação — sujeitos, objectos e relações) enquanto fiel-depositário da parte de memória subjectiva e colectiva de que se investiu e lhe cabe representar;

— A um nível simbólico, a própria noção de património, no modo como é  a priori investida pelo agenciamento da mediação simbólica; tanto subjectivamente — no momento de qualquer actualização de investimento — como colectivamente, por parte do sujeito colectivo que lhe determina funções representativas tanto gerais e comuns, como específicas.

É claro que, para que isto assim ocorra, é necessário que a manutenção dessas funções mediadoras seja institucionalmente assegurada. Queremos com isto dizer que tanto o objecto concreto como o polarizador simbólico da mediação — património — só se sustentam envolvidos pelo aparelho institucional que lhes garante o estatuto mediador através da pedagogia sobre os sujeitos e o campo investidores. O sentido simbólico da expressão património só emerge na sua relação com a conformidade institucional, do consenso adquirido em cada actualização da expressão aplicada, dentro da racionalidade em que esta se desenvolve. O mesmo se passa com o objecto/bem e o seu reconhecimento pelo sujeito como patrimonialmente valioso; algo que não acontece sem a assimilação de uma axiologia pedagógica, uma mensagem com força persuasiva acerca da quantidade e qualidade do valor a investir. O modo como se opera a mediação, a entidade instrumental que operacionaliza a constituição do valor, é o que agora nos ocupa. Observe-se o caso do bem/objecto como agente de mediação, quando este adquire valor pelo simples facto de ter pertencido a alguém que de algum modo se expôs e se destacou na História ficando célebre; por exemplo, em 8-9-1994, um saxofone pertencente a Charlie Parker  — "Bird" — foi arrematado em leilão no Christie's , em Londres, por cerca de 23.000 contos, pelo Mayor de Kansas City para o museu da cidade onde o artista tocou; um valor que ultrapassou o dobro do máximo esperado. Este é um entre milhares de exemplos em que é transferida para o objecto a aura "mística" do seu proprietário[8], cultivada e acrescida com o tempo (e o auxílio dos media). De génese idêntica é a fascinação pelo objecto artesanal que, na sociedade industrial, por ter passado pela mão do artesão modelador e não apenas pela máquina, é suposto manter aquele trabalho ainda nele inscrito, a par do momento da sua criação presente no traço ou inscrição criadora.[9]

Deste modo, o património só é evocável enquanto processo de mediação, tal como o objecto patrimonial só existe enquanto medium, acontece e actualiza-se no momento da sua inscrição como relicário e fiel-depositário desse valor, que geralmente assume a forma que o sujeito, a História ou a instituição que o preserva lhe conferem.  Cabe no entanto assinalar que, neste contexto, assumindo o objecto o estatuto de suporte da representação mediada, assumindo-se como representamen, atractor do que a instância intrepretante lhe investe, o objecto-em-si é volúvel à tricotomia sígnica[10] que o qualifica e o localiza na rede axiológica formada por todos os outros objectos e cadeias de representação.

Isto faz revelar a noção mais evidente que se encontra para a necessidade da representação — a falta; a ausência do corpo, ideia, costume ou objecto que se tornou imprescidível  constituir a sua presença, mesmo que por delegação, geralmente em algo com uma afinidade qualquer[11] no tempo, no toque, na "homologia". A força desta noção advém-lhe, no caso do património, da distância que o objecto presentifica, precisamente nesse jogo ontológico  de presença/ausência em que o medium se constitui como peça principal,  constituindo-se igualmente, enquanto representamen, como medium/representante do elemento ausente que representa. A forma de mediação que neste caso o património operacionaliza articula-se em volta de toda a máquina institucional que materializa a ideia da necessidade de perduração e edita, escolhe o que vale o que não vale a pena preservar.

Por exemplo, Philipe Ariès caracteriza muito bem o modo como o romantismo moldou esta necessidade de preenchimento da ausência de uma forma especial que ainda hoje perdura; uma forma que está na génese da noção de património que hoje encontramos mais difundida. O romantismo, para lá de "embelezar" a morte e de a exaltar "num patetismo que a Idade Média nunca conheceu", noutro extremo acaba mesmo por recusá-la. "Mas — atenção! — não da minha morte, não da morte em geral, mas da morte do ser que eu amo. Isto significa uma mudança extraordinária nas sensibilidades. Como houve uma revolução industrial, uma revolução política, houve também uma revolução da afectividade, uma revolução da sensibilidade. (...) No domínio da família há uma concentração da afeição que antes era mais difusa. Trata-se, por outro lado, na recusa, na intolerância da morte do outro." Pelo que Ariès afirma, podemos arriscar a indução de que, na recusa da morte do outro, estará a necessidade de preservação dos seus restos materiais, à falta de outra solução tangível. Estes serão, essencialmente, num universo que destaca a produção, a produção do sujeito enquanto vivo e amado, estabelecido na relação comunicacional com os outros — a comunidade.

 

 

A Razão Mediática — processos e formas de mediação geral

 

Central, aqui, é a noção de mediação. Esta permite-nos observar e destacar a evolução da experiência Moderna com as mudanças ocorridas em suportes, dispositivos de operação e efeitos de mediação que atravessam a experiência no tempo. Tentar definir a mediação e seus processos em geral, passa por encontrar a generalidade dos dispositivos — sujeitos e objectos aparelhados — que na organização da experiência moderna se oferecem/funcionam como intermediários, num ou vários processos em que são determinantes na sua consecução. Em termos tradicionais, tenderíamos a situar o seu estatuto de "intermediários" entre dois pólos de acção e efeito que fechariam o processo. Esta perspectiva tenderia a privilegiar, centrada na arché, a origem ou a acção primeira motora de todo o processo; ou então no telos, o efeito/finalidade do mesmo. A intermediação seria, em termos sistémicos,  uma "caixa negra" pouco interessante, uma vez que determinada pelo input, ou valorizada pelo output a ser actualizado longe dessa intermediação. Esta perspectiva pressupunha sujeitos e objectos estáveis — uma configuração estabilizada da experiência em acto — e uma imparcialidade das instâncias de mediação.

Se observarmos os processos de mediação a partir da "caixa negra", a perspectiva transforma-se completamente. Começa por se dissolver a importância dos pólos de origem e finalidade, destacando-se o papel histórico central dos aparelhos e suportes de mediação. Marshall McLuhan chamou a atenção para isto e começou por demonstrá-lo com o exemplo da introdução da imprensa e o seu impacto nos diversos níveis de experiência então estabilizados. O modo como o novo medium — o livro tipograficamente reproduzido — veio alterar as diversas estruturas em que se articulava a experiência medieval, a começar pela memória, seus suportes e níveis de confiança.[12] Nesta perspectiva, a centralidade dos aparelhos de mediação opera um "volte-face" às abordagens clássicas acerca dos processos de mediação e comunicação. Não são os sujeitos e os objectos que fazem operar dispositivos de mediação — operadores de mediação — são os próprios dispositivos aparelhados de mediação que envolvem toda a experiência em que se situam sujeitos e objectos. Quando, por exemplo, se observa um dispositivo de mediação relativamente puro como o telefone, a tendência desliza para o modelo clássico — emissor - canal de mediação - receptor. Se pensarmos que hoje, o aparelho das telecomunicações, a rede de linhas que ligam os pontos do globo, só numa percentagem que se vai reduzindo, serve o processo do telefone clássico, a ideia de mediação altera-se; o aparelho serve a transferência e transacção de todo o tipo de informação e não apenas a informação em suporte de diálogo falado.

Quando, por exemplo, se observa o processo de mediação dos orgãos de comunicação social, dos meios que herdaram mais directamente o nome, o estatuto e a importância das formas de mediação aclaram-se e destacam-se. Num medium como a televisão, o processo de mediação ocorre entre o acontecimento, a sua colocação em imagem e relato, e a sua emissão para uma audiência. Neste processo ocorrem actos de formação, interpretação, selecção, edição, enfatização, etc, de acordo com a estrutura de percepções, expectativas e experiências anteriores dos envolvidos no relato dos acontecimentos. Entre qualquer acontecimento e a chegada da sua imagem e reportagem ao receptor, ocorre uma série de acções de inter-mediação. Com diversos níveis de processamento e complexidade, razoavelmente simples no primeiro exemplo do telefone clássico; mais complexo no caso da televisão, o processo de mediação constitui-se como inevitável. A maior parte da informação que hoje nos chega sobre o mundo, vem em segunda e terceira mão, formada, alterada, pintada por valores, preocupações e formas de percepção dos mediadores, da mais diversa forma de instâncias de mediação. "Un milieu de transmission historique cristallise concrètement dans, et à travers, des opérateurs sociaux de la transmission. C'est un espace construit par, et sur, des réseaux d'appropriateurs, accréditeurs, prescripteurs, agents de liaison, etc."[13]  Esta abordagem acredita, assim, que na História, essas instâncias de mediação sempre foram visíveis e influentes, em particular sempre que se cristalizaram em aparelhos estáveis de processamento dessa mediação. O nosso trabalho passa assim pela detecção e recorte desses "aparelhos" de mediação, que se tornam tanto mais transparentes quanto melhor funcionam. O serem mais ou menos percetíveis, deve-se ao modo como a eficiência da sua forma de mediação é posta em acto, com maior ou menor resistência/transparência no contexto quotidiano dos sujeitos e na adequação a outras formas de mediação diferentes com  as quais se cruza.

 

O medium sobre o qual fazemos a seguir referência é a linguagem, pela sua importância e omnipresença; pela forma como determina o seu uso; pelo exemplo que constitui para as referências que se seguem aos media de difusão. Assim, poderemos a seguir analisar o modo como o património aqui circula e, em particular, o modo como mediatiza — constitui como media — experiências e objectos.

 

 

A Razão Mediática - o medium linguagem;

 

"À comunicação por meio da linguagem pertence não só uma concordância quanto às definições, mas também (por estranho que isto possa soar) uma concordância quanto aos juízos. Isto parece abolir a Lógica, mas de facto não o faz. - Uma coisa é descrever métodos de medida, uma outra é obter e comunicar resultados de medidas efectuadas. Mas aquilo a que chamamos "medir" é também determinado por uma constância dos resultados obtidos."

    

     Parágrafo §242, Wittgenstein, L. -Investigações Filosóficas, ed.       Gulbenkinan, Lisboa, 1987

 

 

Existem muitos mais parágrafos igualmente evocativos do pensamento central de Wittgenstein acerca do território agonístico, espaço de jogo em que os sujeitos se deslocam, particularmente quando usam uma linguagem ou, generalizando, quando se deslocam por sobre qualquer instituição ou dispositivo socializado. Esta epígrafe destaca essa percentagem de determinismo comum aos diversos suportes discursivos utilizados nos diversos processos de comunicação. Essa percentagem de determinismo postula, basicamente, que para existir comunicação, é necessário que se cumpra em comum, um determinado número de regras pré-estabelecidas, cumprimento sem o qual qualquer inter-acção é votada ao insucesso. Para lá do pré-acordo existente acerca deste cumprimento de regras, observa-se no quotidiano que o número de regras é tal que condiciona e dita boa parte dos juízos sobre as decisões a tomar em qualquer momento.  Entende-se, por isto, que uma boa comunicação passa por uma homologia decisional, um programa de juízos idêntico; é, afinal, nesta rede hiperdefinida de condutas decisionais que funcionam, como zonas de incerteza ou espaços de maior abertura, os conceitos mais abrangentes e ambíguos que oferecem uma maior liberdade de deslocação a quem os domina precisamente na sua abrangência e ambiguidade.[14]       É aqui que emerge o símbolo que sugere as regras da sua interpretação, sendo que estas variam consoante o contexto da actualização.

Há, de facto, uma tendência para a explicação formal das contingências que ocorrem no real e não são ainda completamente dominadas. Mesmo sobre a linguagem, e quando surgem conflitos acerca do seu uso quotidiano, o que se tenta é decidir qual é o uso correcto da palavra ou do conceito. Neste processo de decisão mais ou menos conflituoso, o que se ganha sempre é uma maior definição do sentido da palavra ou expressão e o seu referente[15] apropriado. A movimentação por essa rede de regras necessita também de uma grande sensibilidade relativamente às forças expressivas dos conceitos e aos modos em que o diferendo é aplacado entre a rede de convenções (ortográficas, gramaticais, retóricas, etc) e as intenções individuais dos contendores.

 

Esta introdução acerca da normatividade implicada no processo de comunicação, observa como é possível, por este campo da razão mediática, expurgar de quaisquer argumentos de inocência aquilo que diz respeito ao trabalho dos media e respectivos processos de decisão nele envolvidos.

 

 

Os media de difusão

Os meios de comunicação social, constituindo-se como campo social autónomo e produtor de observações e interpretações legitimadas pelo campo a partir do real, é algo que ainda está por demonstrar neste presente progressivamente complexo. Não se pode dizer que não seja uma ideia interessante, particularmente do ponto de vista heurístico, mas as suas fundações soçobram assim que se dobra o cabo das suas rotinas e corpos de formalidade estilística e hermenêutica, que são supostos fornecer essa autonomia. "Entendemos por campo dos media o campo cuja legitimidade expressiva e pragmática é por natureza uma legitimidade delegada dos restantes campos sociais(...)campo dos media é a designação (...) da instituição de mediação que se instaura na modernidade, abarcando, portanto, todos os dispositivos, formal ou informalmente organizados, que têm como função compôr os valores legítimos divergentes das instituições que adquiriram nas sociedades modernas o direito de mobilizarem autonomamente o espaço público..."[16].   Segundo esta abordagem, os media teriam como primeira função o facultarem aos outros campos sociais, legitimados e por legitimar, uma arena de exposição, confronto e acesso ao espaço público. Teriam igualmente o privilégio hermenêutico da reconstituição da experiência fragmentada em que vive o indivíduo no espaço público.[17]

Não vamos aqui analisar em profundidade esta questão, mas ela é suficientemente importante para que destaquemos algumas observações, particularmente pelo papel que atribuamos aos media de difusão no desempenho de uma função mais ou menos interventora na modelação da experiência no presente. Por outro lado, a sociologia dos media tem destacado a função de "gate-keeping" desempenhada pelos media, e que se determina pelo modo como estes colocam sobre a infinidade de acontecimentos que ocorrem no mundo, uma grelha axiológica que os selecciona e hierarquiza como dignos de exposição e destaque ou, simplesmente irrelevantes. Talvez seja nesta grelha axiológica, padronizável mas não universal, que se pode encontrar alguma fonte de "autonomização do campo" na sua originalidade axiológica. No entanto, um estudo mais cuidado poderá logo observar o predomínio de um ou outro campo social na constituição desta grelha, tal como na modelação hermenêutica a operacionalizar no débito da mensagem para o espaço público.

Pelo carácter transversal da sua morfologia, pela sua receptibilidade a todas as forças que se cruzam e debatem no seu interior, os media de difusão são um campo a observar, particularmente em Portugal onde a sua presença é importante e oferece, ao observador atento, o retrato e a aferição imediata das forças em confronto pelo acesso e a exposição. Estando nós a tratar um tema e um objecto que se caracterizam, igualmente, pela transversalidade com que atravessam os campos sociais, com maior ou menor acantonação nuns e noutros, a observação dos media pode oferecer a referência dos lugares por onde flui a cultura-ideologia patrimonial, e os modos como esta se actualiza.[18]

Existe, de facto, uma "cultura mediática" — a que os anglo-saxónicos chamam "media culture", porque os públicos tendem a aceitar as realidades sociais apresentadas pelos media; esta cultura dos próprios media, na sua morfologia e caracterização auto-referente, constituiría hoje alguma resistência e opacidade às mensagens originárias dos campos que acedem aos media. Até certo ponto, e por esta perspectiva, o património seria apenas mais um "produto" proveniente de um campo, a juntar aos outros que estes media irradiam. Nesta amálgama em que se cruzam os campos, a emergência e difusão dos produtos patrimoniais estaria sujeita às suas forças  e capacidade de confronto com outro género de bens pre-dispostos no mercado que se constitui pelo seu consumo. A noção de "mercado" que aqui utilizamos não é tão positivista como a que tem origem na esfera económica, mas é bem mais extensa. Ela cobre toda a panóplia de ideias, elementos, objectos, experiências fecundadas e compostas nalgum campo de origem, e que depois desaguam nos media em que se expõem e são mais ou menos "consumidas". Então este mercado, sinónimo de "esfera das possibilidades de transacção", seria o grande medium, proporcionando ou não, acesso, exposição e consumo dos objectos e experiências inerentes também ao campo do património.[19] Não iríamos tão longe no uso da metáfora económica[20], e contentar-nos-íamos com a já exposta espacialização dos domínios onde ocorrem práticas e experiências específicas, orientadas por lógicas padronizadas, constituindo campos, objectos, sujeitos e relações, a serem observadas.

Sintetizando,  o processo de mediação em geral, constitui-se na emergência da relação e impõe a necessidade de ser observada na sua especificidade, devido ao modo como condiciona e determina a relação, os modos de relação.

O património, constituindo-se como campo com alguma autonomia dentro do macro-campo da cultura encontra, tal como os outros campos, diversos media que não só estreitam as relações que estruturam e solidificam o campo como, no caso dos objectos, sujeitos e experiência que os envolve, polarizam e corporificam a identidade das relações.  Será por isto importante atentar em algumas especificidades da mediação e "materialização" das relações no campo do património. Mas antes de atentarmos nessas especificidades ou modelo de mediação patrimonial, é preciso observar a localização operacional de vários media gerais, cada um engendrado e agenciado predominantemente por um campo autónomo. Este não se pretende reclamar um modelo positivo, mas apenas uma via (heurística) de acesso às lógicas operacionais dos diversos media predominantes e campos conexos.

 

 

Operacionalidades diferentes, processos diferentes, diferentes formas de mediação

 

 Num trabalho  já com quase vinte anos, Daniel Bell mostra como a emergência do capitalismo arruína a noção de tradição e ao mesmo tempo a visão holista do social que a ela se liga: "A ideia fundamental do modernismo, a tendência assumida na civilização ocidental depois do século XVI é a seguinte: a unidade da sociedade não é o grupo, nem a corporação, nem a tribu, nem a cidade, mas sim o indivíduo". E a partir do momento em que o indivíduo se concebe como uma mónada com liberdade e autonomia, como verdadeiro átomo social, reconhece-se a si mesmo com capacidade de pôr em questão todos os valores herdados, assim como modificar as normas que os instituem[21]. Para lá da exposição da forma de individualismo que se estabiliza, Bell ensaia aqui uma crítica dos paradigmas dominantes da sociologia contemporânea: nesta altura, as inspirações marxistas e funcionalistas. Para ele, é necessário afirmar a heterogeneidade dos diferentes níveis que constituem a sociedade capitalista. Estabelece, assim, três esferas (de mediação):           

1- A estrutura tecno-económica que pode ser descrita em termos weberianos;  é regida por uma organização burocrática que tem por princípio a eficácia (dentro da sua própria economia de rentabilidade máxima) que se identifica com uma racionalidade instrumental (Zweckrationalitat)

2- A esfera do político. Com a emergência do individualismo moderno, esta orienta-se para uma legitimidade democrática sob o princípio, pelo menos formal, da igualdaade de voto.

3- A esfera da cultura, que para Bell tem um sentido muito Cassireriano, orientada no mundo moderno para a expressão do Eu/sujeito, na ênfase da personalidade.

Para Bell, a relação aparentemente conflituosa entre a primeira (económica) e a terceira esfera (cultura), acabam por se acopolar na sociedade de consumo onde a esfera cultural aparentemente crítica da instrumentalidade económica, acaba por auxiliar essa racionalidade: "As duas esferas que historicamente estavam unidas para produzir uma única estrutura de mentalidades, a do puritanismo, estão agora separadas. (...) Por um lado, a corporação dos negócios exige que o indivíduo trabalhe o máximo e aceite remeter as recompensas e satisfações para mais tarde, (...) por outro lado, a esfera cultural encoraja o prazer, o deixar-andar..."[22]

 

Neste trabalho, para observarmos eventuais contradições e modos de operacionalização de formas de mediação diferentes, foi necessário defini-las e esquematizar as suas formas de procedimento. Podendo parecer, o esquema que se segue não foi inspirado no de Bell. Para tal cedemos, por motivos heurísticos, a alguma simplificação:

 

— Produzimos um esquema, em volta dos eixos operatórios de mediação de esferas[23] diferentes, de modo a destacar as suas formas próprias de acção e mediação; os pontos e linhas de cruzamento entre esferas de acção;

 

— Fazemos uma decantação/destilação destas formas de modo a encontrar as dominantes que afectam e se cruzam no modelo patrimonial.

 

 

Em primeiro lugar, definimos quatro esferas de mediação dominadas por suportes diferentes e lógicas diferentes de operacionalização. Parte-se do princípio que, imanente a estas esferas existe uma estratégia de domínio — no sentido de vontade de alcance e controlo de um território de acção social — que pode não ser imediatamente manifesta, mas agenciada pelas prórias formas específicas de mediação.

O modo como estas formas de mediação se tornam visíveis ocorre aquando de qualquer actualização; quando ocorrem transacções em que é possível observar a dominância da qualidade (lógica transaccional) dos interesses das partes. Por exemplo, Marco Bianchini estabelece três esferas de acção social, a partir da morfologia das permutas: a da satisfação das necessidades fundamentais (área da continuidade), a da satisfação das necessidades superiores (área do potenciamento social) e a área das acções de mercado (zona do potenciamento individual.

Sendo interessante este recorte, ele é observado de um ponto de vista teleológico — relativo aos objectivos últimos da transacção. Ora isto é demasiado problemático porque implica a indexação de vontades e finalidades aos actos de permuta. Mesmo circunscritas ao campo em que se instalam, é muito difícil estatuir essas vontades e finalidades no momento da actualização dada, precisamente, a potencialidade instrumental de qualquer bem-de-valor. Por isto, todo o nosso trabalho se processa em volta da mediação, no privilégio da atenção à sua lógica operacional específica, a partir da qual vai sendo ainda possível encontrar uma determinação.

Comentando um texto de  Momigliano,[24] Bianchini refere as sociedades que se vão complexificando e diferenciando, mais desenvolvidas no campo tecnológico, "produzem, na mesma época, dois poderosos instrumentos de ordenamento e de orientação: um, a verdade, operante no interior da sociedade; o outro, a moeda, no exterior. Um destinado a reforçar a solidez de corpos políticos territorialmente muito vastos, o outro capaz de tornar fluidas as trocas comerciais entre esses mesmos corpos políticos, no âmbito de uma reciprocidade equilibrada ou negativa. Ambos instrumentos convencionais que, uma vez integrados nos costumes de um povo, regulam as suas acções sem a necessidade de intervenção directa e personalizada dos mentores da ordem."[25]

Neste caso em que Bianchini faz articular os eixos «verdade» e «moeda», encontram-se aí propriedades sinérgicas. Enquanto a «verdade» observa uma lógica holista e de união, a «moeda» segmenta e divide; enquanto esta cria riqueza, a primeira, sacrifica. Até certo ponto, elas representam nesta dimensão transaccional, ora a vantagem da relação entre os sujeitos uns com os outros, ora a vantagem da relação dos sujeitos com a mercadoria. O problema é que a ocultação/submissão de um destres três elementos — sujeito, mercadoria e outro — tem o seu preço. Quando a moeda, dentro da lógica mercantil, se sobrepõe às diversas lógicas que superintendem as diversas fontes de produção de bens-de-valor (dimensionalmente mais localizadas em campos), quando tudo se torna passível de ser indexado a um valor comercial, é natural que "se tenham quase imediatamente erguido barreiras normativas à sua penetração em âmbitos como a reprodução biológica, a educação, a política, a religião, a ciência e a arte, ou seja, nos centros de funcionamento anteriores a ela (moeda)."[26]

Também estes dois eixos acima destacados — «verdade» e «moeda» (dinheiro) — se cruzam hoje, de modo mais complexo, com outros eixos, então constituídos a partir de outras esferas com lógicas operacionais diferentes.

 

 

a) A esfera do poder político e instituído — organizado segundo uma operacionalidade logográfica e discursiva, que assenta a sua força de alcance na mediação da retórica discursiva, e a sua força de manutenção do domínio, na capacidade representacional e aparelhamento operacional do discurso da lei. Mediando, estão aqui todas as capacidades de operacionalizar a decisão através da representação — uma forma mais complexa de "delegação" — que no regime democrático assenta na vontade e poder da maioria. Inclui-se aqui todo o aparelho de Estado e instituições zeladoras do cumprimento dessa capacidade representacional da lei. Uma lógica assente no cumprimento da decisão da lei determinada pela maioria que constitui — elege e delega o poder — num governo administrador da sua vontade.

Historica e pragmaticamente é uma esfera de acção ainda operacionalizada de modo tradicional, segundo o modelo grego e romano.

 

b) A esfera do capital económico, articulada em volta do poder do dinheiro,  — organizada segundo uma lógica do rendimento, isto é, da reprodução do capital. Uma lógica relativamente simples, em relação às outras, que assenta o seu alcance na aceleração dos circuitos de produção-consumo para o elevar dos efeitos de rendimento. Esta operacionalidade e valor são directamente aferíveis pela capacidade de reprodução e moção (pôr em movimento) do dinheiro.

É uma lógica tipicamente da Modernidade, pós-medieval, de superfície mutante, que tem atravessado nervosamente os tempos adquirindo todo o género de feições.

 

c) A esfera geral da cultura, normalmente actualizada/dominada por uma esfera dominante — actualmente organizada em volta das diversas formas de visibilidade/visibilização de tudo o que é passível de ser exposto e sentido, significável; funcionando segundo uma lógica da exposição e da influência pela força de afecção da imagem, da "prisão" e reverência às experiências e objectos expostos. Uma lógica em que o valor se destaca e reproduz na ordem dessa afecção e relação de reverência. Hoje, claramente dominada pelos media imagéticos, especializados nessa forma de mediação; como o denomina Regis Debray, uma Videoesfera.[27]

Histórica e pragmaticamente é a esfera de acção mais actual. Operacionalizada a partir de uma estetização da experiência articula, paradoxalmente, os seus modos de produção do valor e legitimação pela defesa da não-mediação, do imediato, do intuído, da condição inefável da experiência dos sujeitos.

 

d) A esfera da Ciência, vocacionada para a produção do saber novo, e organizada em volta dos diversos modelos de produção desse saber, tendo sempre (no tempo) um como dominante. Os eixos operatórios que articula, fazem gravitar a sua produção não só na orientação para a descoberta, como no grande esforço de manutenção do seu grande efeito de sustentação — a confiança nos sistemas periciais aí produzidos. Esta é a confiança que fornece segurança às outras esferas que com esta se cruzam e auxiliam a produção da sua legitimidade.

 

e) O campo da técnica, que se pode observar como subsidiário da ciência, no que respeita às suas formas de operação. Organiza-se em volta do crescimento da capacidade instrumental que consegue produzir, e tem uma estratégia de estabilização nitidamente invasiva de todas as esferas do quotidiano. 

 

 

Em termos mais esquemáticos, resultaria algo assim:

 

 

 

 

 

 

 

Torna-se assim possível observar, neste esquema, os eixos lógicos de operacinalidade de cada esfera de acção. Podemos igualmente ensaiar uma prospecção do modo como cada esfera organiza campos legitimados de relação forte e coesa para o cruzamento das outras esferas. Poderíamos enumerar  os casos mais claros destes cruzamentos, para exemplificar a operacionalidade heurística deste esquema mas, tal parece-nos desnecessário, tal a força da sua evidência.

Guardamos as mostras exemplares para os cruzamentos que envolvem, de uma maneira ou de outra, o património.

 

 

Observando estas quatro esferas de acção, a partir dos seus operadores centrais, destaca-se a polarização das suas formas de mediação, operacionalmente assim conceptualizáveis;

 

a) Mediação do agir político tradicionalmente agenciado pelo modelo da delegação/representação (desse poder de decisão e acção); é a forma de mediação mais cristalizada porque não se cruza com as outras sem prescindir do uniforme institucional — político-instituído ou ideológico;

 

b) Mediação do agir capitalista agenciado pelo modelo do rendimento e da reprodução do capital. Como formas preponderantes, cruza todos os territórios — formas de investimento — que se mostrem férteis à operacionalização dessa reprodução;

 

c) Mediação do agir cultural agenciado pela visibilidade e contaminação afectiva, tendo como formas preponderantes, a exposição, o espectáculo e a dramatização. Tende a superar a capacidade invasiva do capital, à medida que se reproduzem os dispositivos de visibilização social.

 

d) Mediação do agir científico agenciado pela verdade do campo que sustenta os vários sistemas periciais. Participa e intersecta todas as outras esferas através desse eixo da pericialidade que sustenta as estruturas de legitimação de quase todos os outros.

 

 

 

Eduardo Jorge Esperança

Professor Agregado da Universidade de Évora



[1] Este artigo está publicado na revista MARGEM da Faculdade de Ciências Sociais – PUC – São Paulo, em número dedicado à Etica e o Futuro da Cultura, 1999.

 

 

[2]A Condição Humana, Arendt,H., ed. F. Universitária, Rio de Janeiro, 1991, p. 62

 

[3]Até certo ponto, as controvérsias implicadas neste género de abordagem, são sintetizadas neste excerto de Ellul, sem por isso anular um átomo que seja da necessidade desta perspectiva para o entendimento das diversas fragmentações a que assistimos. "...Como «isso» funciona. Mas isto é exclusivamente a técnica. É o universo dominado pelo tecnicismo. Ora, o que é muito interessante neste pensamento filosófico é que ele revela que, para dar espaço livre, jogo livre à actividade superordenada dos meios (técnicas), é necessário que o sujeio não exista (o sujeito só tem que obedecer aos meios), mas é necessário também que o objecto não exista ( o objecto não passa de um produto sem importância do jogo das técnicas). (...) Assim, chegamos à conclusão decisiva que o nosso universo não é um universo de objectos, que não há um sistema de objectos, mas um universo dos meios e do sistema técnico".

Traduzido de Le Système Technicien, Ellul, J., ed. Calmann-Lévy, Paris, 1977, p. 54.

Por outro lado, Lucien Sfez, chama a atenção para o modo como, tanto Ellul como a Escola de Frankfurt descobriram a corrosão social pela técnica, sendo que esta tenta permanentemente anular/abrandar essa mesma corrosão através da introdução de novos dispositivos comunicantes — tecnologias da comunicação. Segundo Sfez, a abordagem centra-se toda na crítica da tecnocomunicação que possibilita e determina os diverssos tipos de relação hoje adoptados. Ver  Crítica da Comunicação, Sfez, L. ed. Inst. Piaget, Lisboa, 1994, p.23.

Sobre isto, ver ainda  "Le domaine mediologique"; e "Cinq dragons entre la technique et nous", Cours de Mediologie Générale, Debray, R., ed. Gallimard, Paris, 1991, p. 37 e seg....e p.63e seg.

 

[4]"Dans médiologie, medio désigne en première approximation l'ensemble, techniquement et socialement déterminé, des moyens de transmission et de circulation symboliques. Ensemble qui précède et excède la sphère des médias contemporains, imprimés et électroniques, entendus comme moyens de diffusion massive (presse, radio, télévision, cinéma, publicité, etc.)".

Que signifique "médiologie", Cours de Médiologie Générale, Debray,R., ed.Gallimard, Paris, 1991, p.15

 

[5]Esta perspectiva pode, no seu sentido lógico, fazer-nos aderir compulsivamente a uma observação teleológica da generalidade dos processos. Não podemos negar essa impressão inerente a qualquer forma de racionalidade. No entanto, existem contextos e observações específicas onde é inoperante qualquer abordagem teleológica - não se admitem determinismos; por exemplo, o caso das micro abordagens sobre a acção dos sujeitos e determinação do seu sentido e previsibilidade. Já nos parece que, qualquer macro-abordagem, em particular quando se territorializam campos sociais, tem em si implicada a viabilidade de uma razão performativa com base numa finalidade que, mesmo alterada no tempo, sempre se pode determinar.

 

[6]Dispositivo de ligação automática de sectores energizados.

 

[7]Ainda assim, é importante determinar uma diferenciação, no contexto actual, entre aquilo que se podem chamar os media fundamentais (pré-tecnológicos) como a linguagem, a roupa, os objectos de uso corrente, etc; e os media extensionais que hoje englobam todos os meios de comunicação teledifundidos e que começaram a sua história com a emergência da impressão mecânica.

Ver "La improbabilidad de la comunicación", Luhmann, N.,Revista Internacional de Ciencias Sociales, Vol. XXXIII, Paris, UNESCO, p.137

 

[8]Ironia deste exemplo, (RTP, Canal 1, Telejornal 20h 10/9/94) um saxofone que, em vida do seu proprietário, foi empenhado (casa de penhores) mais que uma vez, certamente por valores irrisórios.

 

[9]Que, segundo Baudrillard, lhe investem "filiação e transcendência paterna". Ver "O Objecto Marginal, o objecto antigo", em O Sistema dos Objectos, , Jean Baudrillard, ed. Perspectiva, S. Paulo, 1989, p. 81-85.

 

[10]Para Peirce, o signo apresenta três facetas na sua qualidade de representação; pode ser icónico, indexical ou simbólico. O ícone é um signo que possuiria uma capacidade significante, mesmo sem existencia do objecto; a qualidade representativa deste é a mais importante. Um índice será um signo que perde o seu carácter sígnico uma vez desaparecido o seu objecto, o mesmo não aconteceria se desaparecesse o interpretante; este é apenas um mediador-orientador para a presença do seu objecto. O símbolo é um signo que perde o carácter que o constitui como tal, uma vez desaparecido o interpretante; a sua força (simbólica) constitui-se na regra por ele representada e que determina o seu interpretante.

Ver Collected Papers of Charles Sanders Peirce, ed. by Charles Hartshorne and Paul Weiss, ed. Harvard University Press, 1931-35, vol. 2, p.227 e seguintes.

 

[11]Pode ser uma afinidade de tipo analógico, como o retrato que a viúva guarda do seu defunto marido, que é também uma afinidade de tipo "metafórico", em que o representamen se constitui em algo "como"; ou mesmo de tipo "metonímico" em que o representamen é apenas algo "próximo" no espaço ou no tempo.

 

[12]Ver, The Gutemberg Galaxy: The Making of Typographic Man, McLuhan, M., ed. The New American Library, 1969, or. University of Toronto Press, 1962, em particular, "The Galaxy Reconfigured", a partir da pág, 314.

ver, igualmente, acerca da metáfora e função do livro, do ponto de vista de McLuhan e de Blumemberg, os comentários de J.Bragança de Miranda na nota  §4, p. 51, da  sua Analítica da Actualidade, ed. Vega, Lisboa, 1994.

 

[13]cont. "Pour l'imprimerie, par exemple: les éditeurs-libraires, colporteurs, instituteurs, bibliothécaires, organisateurs de cabinets de lecture, responsables d'academies provinciales. «Ils selectionnent, diffusent et dynamisent l'information; ils la rendent désirable et assimilable, ils sont les agents actifs de son appropriation et sa transformation.» Mais chaque nouveuau medium modifie la capacité opératoire et donc l'importance politique de chacun des réseaux déjà en fonctionnement. En général, le nouveau déclasse l'ancien. (...)"

"Pour une Médiologie", Manifestes Médiologiques, Debray, R., ed. Gallimard, Paris, 1994, p. 27.

 

[14]Aqui, mesmo se no fim, o conceito de "classe social" se dissolve sob os olhos do sociólogo, o seu valor consistiu em dar oportunidade a uma acumulação de trabalhos, pesquisas, inquéritos, doutrinas etc; é um valor heurístico.(...) Por isso, o esquematismo de um conceito não é senão raramente um obstáculo ao seu valor. A ciência acabada eliminá-lo-á por superação depois de ele ter desempenhado o seu papel de maneira espontânea, mas é destruindo-se a si próprio na pesquisa de uma definição válida e exaustiva que ele liberta uma série de resultados, contradições ou induções que formam o seu verdadeiro valor pragmático. Se ele constitui uma ideia-força, quase não importa que após uma busca de definição se transforme em ideia falsa, desde que tenha, nesta transformação, desempenhado um papel construtivo."

 

Pois, o problema é quando o enquadramento teórico-esquemático é de tal maneira forte e congelante que faz sobressair alguma resistência esterilizante à mudança, com uma emergência ainda mais difícil de explicitar.

No exemplo acima transcrito que, na prática, todos os anos me passa pelas mãos, a situação acaba por ser idêntica à de muitos outros conceitos nomeados por expressões ultrapassadas no tempo e na História, ambíguas pelo seu uso quotidiano de senso comum na linguagem normal, dfíceis de situar, mas necessárias por razões de enquadramento, e depois ouve-se

‑ Mas, afinal, como é que o professor define classe social ?

Esperança, E.J., "Qualitativos: a viagem possível pelos mundos do complexo", Economia e Sociologia nº52, Évora 1991, p.19

 

[15]Questão que foi "formalmente" mais tratada por Gottlob Frege no seu ensaio sobre "sentido e referência" (or. Sinn und Bedeutung), e que é aprofundadamente analisado por Michael Dummett em , "Sense and Reference", o cap. 5 de Frege: Philosophy of Language, ed. Duckworth, London, 1981, e também em T. Honderich (ed.) Philosophy trough its past , ed. Penguin, Harmondsworth, 1984, p.447.

A questão essencial na qual Frege orbita é assim sintetizada por Inglis :" Frege had generalized his classical distinctions in algebraic set theory between "sanctions" and"arguments": an algebraic function cannot stand by itself. It has no entity (no objective existence), yet it has meaning. He went on to develop an analogous distinction betwween sense and reference by way of showing that sense (or meaning) may be independent of reference, and that it is only where reference is in question that a case for truth or falsity can relevantly be made.(...)" Fred Inglis, Cultural Studies, ed. Blackwell, Oxford, 1993, p.86

Por outro lado, Michael Dummett não se contenta no seu Frege: philosophy of language com a abordagem em volta apenas do sentido e da referência. Dummett assinala que Frege distingue três espaços: sentido, tonalidade e força, cujas variações afectam o sentido das frases. Ele quer com isto afirmar que a referência é apenas uma parte do sentido, uma consequência por este determinaada. Para Dummett, uma teoria do sentido é uma teoria do entendimento que terá de dar conta do que uma pessoa sabe, quando e o que a expressão quer dizer do ponto de vista de quem a entende. A noção de sentido e significação assim entendida não podem basear-se apenas no capital referencial do individuo mas, e essencialmente, no que este e os outros determinam como sendo os sentidos comuns do expresso; um pouco como a base do entendimento, em Wittgenstein, sobre a comunidade linguistica de sentido e referência no processo de utilização da linguagem.

 

[16]"O campo dos media" em Estratégias da Comunicação, Adriano D. Rodrigues, ed. Presença, Lisboa, 1990, p.152.

Este problema central do espaço público como arena onde iriam decorrer a generalidade das relações comunicacionais, foi algo já muito presente a Kant "...até que finalmente a civilização, chegada ao ponto mais alto, faz disso quase obra prima da inclinação refinada, e sensações serão somente consideradas tão mais valiosas quanto elas permitem comunicar universalmente. Neste estádio, conquanto o prazer que cada um tem num tal objecto seja irrelevante e por si sem interesse visível, todavia a ideia da sua comunicabilidade universal aumenta quase infinitamente o seu valor."

Crítica da Faculdade do Juízo, Kant, I., ed. INCM, Lisboa, 1992, § 41, p. 200.

Os comentários de Kant sobre a eventual emergência de uma cada vez maior capacidade comunicacional, sobre a dimensão de intersubjectividade central à reflexão crítica no espaço da Arte, da política ou da pragmática,foram bastante explorados pela filosofia neste século. Hanna Arent, Lyotard e Habermas, por exemplo,  não se podem esquivar à sua representação.

 

[17]"A legitimidade específica do campo dos media assenta assim na elaboração, na gestão, na inculcação e na sanção dos valores de representação, de transparência e de legibilidade do mundo da experiência no seio de uma sociedade caracterizada pela natureza fragmentada da experiência do mundo".

ibidem, em  Estratégias da Comunicação, p.155

 

[18]"Uma sociologia dos produtos culturais tem de ser eclética, recorrendo a materiais de um largo espectro de especialidades e disciplinas, mais no exterior que no interior das fronteiras cada vez mais mal definidas da sociologia"Traduzido de Crane, D. The Production of Culture, p.x

 

[19] Para entender a natureza e o papel do arquivo cultural na sociedade contemporânea, é preciso  examinar as características das organizações nas quais  essa cultura é produzida e disseminada. A teoria da produção cultural tem-se preocupado com os efeitos de diferentes tipos de estruturas organizacionais e diferentes tipos de mercados na diversidade e espectro dos produtos culturais. Na sociedade pós-moderna é a arena cultural que determina os padrões e formas culturais, muito mais que uma suposta "alta cultura".A exposição que se segue, sintetiza bem a genalogia da passagem à comunização e mediatização d'A Cultura, particularmente na alteração de padrões de consumo que veio a assumir.

"Inherent in the traditional notion of culture, and hence an element in the justification for university studies as well as for museums, galleries, and concert halls, was the idea that culture allowed people to have important kinds of experience not available in their ordinary lives. This was part of why it was exciting - exciting to encounter say, the architectonic grandeur of Paradise Lost or the insasiable reasoning of Kant's critiques or the heightened passion of a Verdi opera. On this view, culture was the repository of what the sifting of time had established as the most fruitful prompts to a kind of experience that was at once valuable, enjoyable and uncommon. Moreover, it was part of the appeal of culture, and of the prestige of the "cultured", that these masterpieces were in many respects distant and difficult. They were in other languages, literally or metaphorically; they were full of allusions to things not now commonly referred to; and to enter and possess them required learning, concentration, discipline. Culture, like the notion of scholarship that it supported, was cumulative, impersonal and severe."

Stefan Collini, "Escape from DWEMsville  - is culture too important to be left to cultural studies?, ed. The Times Suplements, TLS May 27-1994, p.4

 

[20]De qualquer modo, assinalamos que não é por isto que a terminologia económica e o empréstimo de alguns modelos aqui não deixarão de aparecer. Com todas as reticências, o campo económico no seu fechamento, estruturação e capacidade de atravessar destacadamente todos os outros aparece, mesmo sem querermos, como estrutura de relações a pedir para ser tida em conta. Isto não invalida o cuidado que devemos empregar na utilização de cada termo aplicado numa perspectiva diferente, apenas recortando o sentido base do termo no modelo original.

 

[21]Traduzido de Les Contradictions Culturelles du Capitalisme, Bell, D., ed. PUF, Paris, 1979,p.26

 

[22]ibid.  Les Contradictions Culturelles du Capitalisme, Bell, D., ed. PUF, Paris, 1979,p.81

 

[23]Sem querer complexificar, achamos útil a introdução do conceito "esfera", emprestado a Debray que define a «mediaesfera», pela demarcação não só morfológica como territorial que opera no reconhecimento de transacções e tensões entre formas de mediação. "...«sphère» et «champs» ne sont pas exclusifs, mais la première englobe les sconds. Elle suggère l'interdependance des éléments et la dépendance par inclusion. D'une part, nous sommes asservis à une médiasphère (et non à un champ) par le seul fait d'être dedans, assujetis à un système de contraintes existant «indépendamment des consciences et des volontés individuelles». Une sphère a une autonomie forte. Et de l'autre, elle oblige à globaliser notre perception en réintégrant tel ou tel appareillage dans un paysage d'ensamble."

"Carte d'identité", "I.Pour une Médiologie", Manifestes Médiologiques, Debray, R., ed. Gallimard, Paris, 1994, p. 47-48.

 

 

[24]Alien Wisdom. The Limits of Hellenization, Momigliano, A., ed. Cambridge Un. Press, London, 1975.

 

[25]"Permuta", Bianchini,M., Enciclopédia Einaudi, nº28, ed. INCM, Lisboa, 1995, p. 224.

 

[26]ibidem, "Permuta", Bianchini,M., Enciclopédia Einaudi, nº28, ed. INCM, Lisboa, 1995, p. 226.

 

[27]Ver "Qu'est-ce qu'une médiasphère", Manifestes Médiologiques, Debray, R., ed. Gallimard, Paris, 1994, p.40