O medium e sua performance[1]
Eduardo Esperança, Universidade de Évora
(versão para imprimir – em pdf)
"Conviver
no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os
que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam
em seu redor; pois, como todo o intermediário,
o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens."[2]
No espaço da filosofia, seja em
Aristóteles ou em Hegel, a noção de «mediação» está presente nos seus
raciocínios e é encarada de forma diferente. Abstraindo-nos das
especificidades, este é o processo pelo qual a relação entre dois pólos, de
algum modo separados, se torna possível através de um agente de inter-mediação, instância mediadora da relação entre
esses dois primeiros. O processo de mediação, como a instância mediadora,
encontram-se na sua função, não só pela actualidade da relação como pela
incapacidade de contacto directo e instantâneo — imediato — entre os elementos
envolvidos no processo. Esta é uma observação à qual se chega quase pelo senso
comum, mas que retrata razoavelmente bem as mediações, sejam elas as da
capacidade da lógica no seu acesso à verdade racional, em Aristóteles, seja o acesso à verdade pela mediação da
reflexão ou pela dialéctica, em Hegel.
Por outro lado, uma perspectiva mais
sensível ao que se está hoje a passar no quotidiano Ocidental, não pode deixar
de equacionar a questão mediática de uma outra maneira. Com o desdobramento e
aparecimento de novos media, a
presença e profusão mediática é tal, que parece legítimo desenhar o esquema
"polar" de um outro modo; em vez de dois pólos que recorrem a uma ou
mais formas de mediação cada vez que têm necessidade de contacto, talvez essas
formas de mediação, que se corporificam sob os mais diversos aspectos, sejam o
"éter" no qual têm de submergir todos os "pólos"
comunicantes. Esta é uma questão de paradigmas, pela qual não nos vamos aqui
perder; limitamo-nos a assinalar a sua presença[3].
O problema da mediação, no contexto
comunicacional em que nos deslocamos, é central e tem sido muito debatido neste
século "mediático" em que a emergência de organizações e aparelhos
funcionalmente preparados para a comunicação e funções mediáticas, assumem um
papel destacado. Os media, os
processos de mediatização, as teorias sobre os media, adquiriram nos últimos cinquenta anos, matizes próprios,
inerentes às suas performances na sociedade e ao modo como estas se observam,
tanto pelo senso comum, como pelos investigadores e teóricos da comunicação e
de outras áreas científicas.
Observando a generalidade das novas formas de mediação que nos são
presentes, que se automatizam e rapidamente passam a articular e gerir novos
padrões de relação, é possível afirmar que, em termos gerais, estas são
responsáveis por um aumento e aceleração
dos circuitos relacionais no tecido social. Com todas as implicações,
acontece que essa aceleração pode não ser directamente proporcional ao contacto
entre sujeitos — pois que é uma aceleração orquestrada por mediações, que se
reproduzem umas nas outras. De qualquer modo, o que aqui queremos destacar é a
necessidade de encontrar a presença do medium[4] nos processos comunicacionais que o podem tornar
transparente e invisível. Isto acontece particularmente pela sua constituição
histórica e formação de habitus, tendo
alguns media deixado mesmo de ser
considerados como tal, por terem deixado de oferecer qualquer resistência no
processo comunicacional, o mesmo é dizer, por
terem adquirido um desempenho optimizado.[5] Isto percebe-se melhor quando se observa a sua evolução
histórica, desde o seu aparecimento e génese de utilização social. Podemos
dizer que, nestes termos, o medium emerge geralmente com uma qualidade de
resistente — quando todas as condições do meio são propícias à resistência para
a sua utilização. Um bom exemplo é o do computador e da sua recente introdução
no escritório e, depois, no meio doméstico; a sua "disponibilidade" e
adaptação ao uso comum vai do sistema que, para arrancar, é necessário que lhe
introduzam instruções em código, até aos interfaces
intuitivos de hoje, mais "amigáveis", isto é, adaptados e ainda em
processo de melhoramento. Numa série
magistral — Connections — James Burke mostra
como, pelo modo reticular de funcionamento e subtileza de adopção, os diversos
dispositivos tecnológicos que suportam a vida global, em particular a mais
urbanizada, só se tornam visíveis quando, por alguma razão, deixam de
funcionar. Então o quotidiano apercebe-se da sua presença, dependência, e da
sua invasão. Burke, para o mostrar, recorre à reencenação de um corte de
energia ocorrido durante algumas horas, que paralizou Nova York e quase todo o
seu Estado federado, no fim da década de 70. Tudo devido à avaria de um relais[6] numa central de distribuição de energia. O que se
destaca, é todo o universo tecnológico de suporte, polarizador do enorme crédito
que o sustenta. Quando alguém se mete num elevador, num automóvel, num
avião, numa montanha russa, fá-lo despreocupadamente porque acredita que não
corre perigo, é um dispositivo a-provado, fiável. Como dizem os
anglo-saxónicos: "taken for granted".
Então, uma vez que deixou de oferecer "resistência" e se incorporou
socialmente, o dispositivo perde a sua visibilidade enquanto medium.
Melhor ou pior, o que caracteriza o
processo de mediação, do ponto de
vista tradicional, é a sua
constituição como polo de relação dentro do universo de possibilidades que se
podem admitir num determinado contexto. Esta perspectiva da mediação como
possibilidade de relação através do medium, tem implicado um universo
fragmentado e monadológico em que toda a relação é mais ou menos
determinada/constituída pela forma de inter-mediação e morfologia do medium;
daí a sua importância, e a necessidade de ter em conta todas as inter-mediações
observadas no processo comunicacional.
Actualmente, o processo de mediação tem
de ser observado de outro modo uma vez que nada pode ser percebido sem ter em
conta uma ou mais formas de mediação que se constituem na própria estrutura de
qualquer contexto observável. É dentro dessa imersão especular que se observam
os processos de transacção.[7]
No contexto em que nos encontramos, e
para não nos alongarmos num tema sobre o qual muito se tem escrito, e muito há
ainda a dizer, cabe-nos destacar dois elementos concretos, os mais frequentemente investidos no agenciamento
da mediação que ocorre no campo patrimonial:
— A um nível material e
concreto,("positivo") o campo patrimonial, como estrutura material
(mediação — sujeitos, objectos e relações) enquanto fiel-depositário da parte
de memória subjectiva e colectiva de que se investiu e lhe cabe representar;
— A um nível simbólico, a própria noção
de património, no modo como é a
priori investida pelo agenciamento
da mediação simbólica; tanto subjectivamente — no momento de qualquer
actualização de investimento — como colectivamente, por parte do sujeito
colectivo que lhe determina funções representativas tanto gerais e comuns, como
específicas.
É claro que, para que isto assim ocorra,
é necessário que a manutenção dessas funções
mediadoras seja institucionalmente
assegurada. Queremos com isto dizer que tanto o objecto concreto como o
polarizador simbólico da mediação — património
— só se sustentam envolvidos pelo aparelho institucional que lhes garante o
estatuto mediador através da pedagogia sobre os sujeitos e o campo
investidores. O sentido simbólico da expressão património só emerge na sua relação com a conformidade
institucional, do consenso adquirido em cada actualização da expressão
aplicada, dentro da racionalidade em que esta se desenvolve. O mesmo se passa
com o objecto/bem e o seu reconhecimento pelo sujeito como patrimonialmente
valioso; algo que não acontece sem a assimilação de uma axiologia pedagógica,
uma mensagem com força persuasiva acerca da quantidade e qualidade do valor a
investir. O modo como se opera a mediação, a entidade instrumental que
operacionaliza a constituição do valor, é o que agora nos ocupa. Observe-se o
caso do bem/objecto como agente de mediação, quando este adquire valor pelo
simples facto de ter pertencido a alguém que de algum modo se expôs e se
destacou na História ficando célebre; por exemplo, em 8-9-1994, um saxofone
pertencente a Charlie Parker —
"Bird" — foi arrematado em leilão no Christie's , em Londres, por
cerca de 23.000 contos, pelo Mayor de Kansas City para o museu da cidade onde o
artista tocou; um valor que ultrapassou o dobro do máximo esperado. Este é um
entre milhares de exemplos em que é transferida para o objecto a aura
"mística" do seu proprietário[8], cultivada e acrescida com o tempo (e o auxílio dos
media). De génese idêntica é a fascinação pelo objecto artesanal que, na
sociedade industrial, por ter passado pela mão do artesão modelador e não
apenas pela máquina, é suposto manter aquele trabalho ainda nele inscrito, a
par do momento da sua criação presente no traço ou inscrição criadora.[9]
Deste modo, o património só é evocável
enquanto processo de mediação, tal como o objecto patrimonial só existe
enquanto medium, acontece e actualiza-se no momento da sua inscrição como
relicário e fiel-depositário desse valor, que geralmente assume a forma que o
sujeito, a História ou a instituição que o preserva lhe conferem. Cabe no entanto assinalar que, neste
contexto, assumindo o objecto o estatuto de suporte da representação mediada,
assumindo-se como representamen, atractor
do que a instância intrepretante lhe investe, o objecto-em-si é volúvel à
tricotomia sígnica[10] que o qualifica e o localiza na rede axiológica
formada por todos os outros objectos e cadeias de representação.
Isto faz revelar a noção
mais evidente que se encontra para a necessidade da representação — a falta; a ausência do corpo, ideia, costume ou objecto que se tornou
imprescidível constituir a sua presença,
mesmo que por delegação, geralmente em algo com uma afinidade qualquer[11] no tempo, no toque, na "homologia". A força
desta noção advém-lhe, no caso do património, da distância que o objecto presentifica, precisamente nesse jogo
ontológico de presença/ausência em que
o medium se constitui como peça principal,
constituindo-se igualmente, enquanto representamen, como medium/representante do elemento
ausente que representa. A forma de mediação que neste caso o património
operacionaliza articula-se em volta de toda a máquina institucional que
materializa a ideia da necessidade de perduração e edita, escolhe o que vale o
que não vale a pena preservar.
Por exemplo, Philipe Ariès
caracteriza muito bem o modo como o romantismo moldou esta necessidade de
preenchimento da ausência de uma forma especial que ainda hoje perdura; uma
forma que está na génese da noção de património que hoje encontramos mais
difundida. O romantismo, para lá de "embelezar" a morte e de a
exaltar "num patetismo que a Idade Média nunca conheceu", noutro
extremo acaba mesmo por recusá-la. "Mas — atenção! — não da minha morte,
não da morte em geral, mas da morte do ser que eu amo. Isto significa uma
mudança extraordinária nas sensibilidades. Como houve uma revolução industrial,
uma revolução política, houve também uma revolução da afectividade, uma
revolução da sensibilidade. (...) No domínio da família há uma concentração da
afeição que antes era mais difusa. Trata-se, por outro lado, na recusa, na
intolerância da morte do outro." Pelo que Ariès
afirma, podemos arriscar a indução de que, na recusa da morte do outro, estará
a necessidade de preservação dos seus restos materiais, à falta de outra
solução tangível. Estes serão, essencialmente, num universo que destaca a
produção, a produção do sujeito enquanto vivo e amado, estabelecido na relação comunicacional com os outros
— a comunidade.
A
Razão Mediática — processos e formas de mediação geral
Central, aqui, é a noção de mediação. Esta permite-nos observar e
destacar a evolução da experiência Moderna com as mudanças ocorridas em suportes, dispositivos de operação e efeitos
de mediação que atravessam a experiência no tempo. Tentar definir a mediação e
seus processos em geral, passa por encontrar a generalidade dos dispositivos —
sujeitos e objectos aparelhados — que na organização da experiência moderna se
oferecem/funcionam como intermediários,
num ou vários processos em que são determinantes na sua consecução. Em termos
tradicionais, tenderíamos a situar o seu estatuto de "intermediários"
entre dois pólos de acção e efeito que fechariam o processo. Esta perspectiva
tenderia a privilegiar, centrada na arché,
a origem ou a acção primeira motora de todo o processo; ou então no telos, o efeito/finalidade do mesmo. A
intermediação seria, em termos sistémicos,
uma "caixa negra" pouco interessante, uma vez que determinada
pelo input, ou valorizada pelo output a ser actualizado longe dessa
intermediação. Esta perspectiva pressupunha sujeitos e objectos estáveis — uma
configuração estabilizada da experiência em acto — e uma imparcialidade das
instâncias de mediação.
Se observarmos os processos de mediação
a partir da "caixa negra", a perspectiva transforma-se completamente.
Começa por se dissolver a importância dos pólos de origem e finalidade,
destacando-se o papel histórico central dos aparelhos e suportes de mediação.
Marshall McLuhan chamou a atenção para isto e começou por demonstrá-lo com o
exemplo da introdução da imprensa e o seu impacto nos diversos níveis de
experiência então estabilizados. O modo como o novo medium — o livro
tipograficamente reproduzido — veio alterar as diversas estruturas em que se
articulava a experiência medieval, a começar pela memória, seus suportes e
níveis de confiança.[12] Nesta perspectiva, a centralidade dos aparelhos de
mediação opera um "volte-face" às abordagens clássicas acerca dos
processos de mediação e comunicação. Não são os sujeitos e os objectos que
fazem operar dispositivos de mediação — operadores de mediação — são os
próprios dispositivos aparelhados de mediação que envolvem toda a experiência
em que se situam sujeitos e objectos. Quando, por exemplo, se observa um
dispositivo de mediação relativamente puro como o telefone, a tendência desliza
para o modelo clássico — emissor - canal de mediação - receptor. Se pensarmos
que hoje, o aparelho das telecomunicações, a rede de linhas que ligam os pontos
do globo, só numa percentagem que se vai reduzindo, serve o processo do
telefone clássico, a ideia de mediação altera-se; o aparelho serve a
transferência e transacção de todo o tipo de informação e não apenas a
informação em suporte de diálogo falado.
Quando, por exemplo, se observa o
processo de mediação dos orgãos de comunicação social, dos meios que herdaram
mais directamente o nome, o estatuto e a importância das formas de mediação
aclaram-se e destacam-se. Num medium como a televisão, o processo de mediação
ocorre entre o acontecimento, a sua colocação em imagem e relato, e a sua
emissão para uma audiência. Neste processo ocorrem actos de formação,
interpretação, selecção, edição, enfatização, etc, de acordo com a estrutura de
percepções, expectativas e experiências anteriores dos envolvidos no relato dos
acontecimentos. Entre qualquer acontecimento e a chegada da sua imagem e
reportagem ao receptor, ocorre uma série de acções de inter-mediação. Com diversos níveis de processamento
e complexidade, razoavelmente simples no primeiro exemplo do telefone clássico;
mais complexo no caso da televisão, o processo de mediação constitui-se como
inevitável. A maior parte da informação que hoje nos chega sobre o mundo, vem
em segunda e terceira mão, formada,
alterada, pintada por valores, preocupações e formas de percepção dos
mediadores, da mais diversa forma de instâncias de mediação. "Un milieu de transmission historique
cristallise concrètement dans, et à travers, des opérateurs sociaux de la
transmission. C'est un espace construit par, et sur, des réseaux
d'appropriateurs, accréditeurs, prescripteurs, agents de liaison, etc."[13] Esta
abordagem acredita, assim, que na História, essas instâncias de mediação sempre
foram visíveis e influentes, em particular sempre que se cristalizaram em
aparelhos estáveis de processamento dessa mediação. O nosso trabalho passa
assim pela detecção e recorte desses "aparelhos" de mediação, que se
tornam tanto mais transparentes quanto melhor funcionam. O serem mais ou menos
percetíveis, deve-se ao modo como a eficiência da sua forma de mediação é posta
em acto, com maior ou menor resistência/transparência no contexto quotidiano
dos sujeitos e na adequação a outras formas de mediação diferentes com as quais se cruza.
O medium sobre o qual fazemos a seguir
referência é a linguagem, pela sua importância e omnipresença; pela forma como
determina o seu uso; pelo exemplo que constitui para as referências que se
seguem aos media de difusão. Assim, poderemos a seguir analisar o modo como o
património aqui circula e, em particular, o modo como mediatiza — constitui
como media — experiências e objectos.