José António Domingues, Universidade da Beira Interior
(Dissertação de Mestrado)
Setembro de 1998
Apresentação
Na sequência do mito de Epimeteu e Prometeu (1), o homem obtém
uma essência específica depois de o segundo dos deuses lhe
entregar os artefactos técnicos que roubara a seus pares. Aparte
a filantropia de Prometeu, desencadeada por força do esquecimento
de Epimeteu de guardar uma qualidade distintiva para a raça humana,
o que importa reter é que, originariamente, o homem era de condição
deficiente. Superou-se no momento em que se exteriorizou.
O mito presta auxílio à compreensão da natureza
humana, ao facto insondável de colocar a técnica no coração
da sua existência, como seu suporte, sem o que esvaeceria. Régis
Debray assinala:«O meu cérebro morrerá, não
estas notas escritas a tinta num papel que durará mais que eu».
(2) Para além desse facto, o mito esclarece porque há inerência
do inorgânico relativamente ao orgânico, porque é que
é em modos artificiais que o natural humano se projecta e se identifica.
Originalmente, o homem é um ser de mediação técnica;
para interagir com o mundo da vida constrói ambientes artificiais
e move-se dentro deles.
Surpreendentemente, o homem cria e é também criado pelo
que cria. Cria a escrita e é criado nele um certo tipo de racionalidade.
Homem e técnica não coabitam um com o outro, simplesmente;
a técnica não está face ao homem como o objecto face
ao sujeito. O facto de encontrar na técnica a identidade é
avesso a uma interpretação dualista do caso: «Eu sou
o meu carro, o meu telefone» (3), expressa, segundo Régis
Debray, o que a técnica acaba por ser: o lugar onde o humano habita,
a sua morada (oikon). Afinal, o exterior é o interior e o interior
é o exterior. O fora é o dentro e o dentro é o fora.
O homem «é construído pelo nicho que ele próprio
construiu» (4).
Assim que as técnicas são exteriorizadas, fenómeno
eminentemente humano este em que o que se separa assume vida própria,
passam a dar forma ao homem e à sociedade onde emergem. Configuradas,
reconfiguram.
Pelo modo como se interrelacionam com a vida do homem só podem
estabelecer com ela uma relação biónica. Influem ao
nível da consciência e acção. Compelem, fruto
de uma espécie de feed-back.
O espírito humano cria e o que cria torna-se independente, passando
a conceber, «nas nossas costas, sem nos pedir, sem nos informar,
um mundo, um espaço-tempo, uma cidade que se impõe a todos»
(5). Os artefactos técnicos libertam-se do espírito, quais
obras de Dédalo, e devêm condição da existência
do mesmo.
O homem habita uma experiência técnica, está no
interior dela, é por ela processado, ou definido. É no âmago
da técnica que o homem é constituído. Nada do que
lhe diga respeito é deixado fora do mundo dela.
O que é mais íntimo e o que é mais público,
o que é crer e o que é saber intersecta-se com a técnica,
modifica-se por ela. Portanto, é a partir das mediações
técnicas que a cultura se compreende. E se a cultura é, basicamente,
comunicação, então o automóvel, a televisão,
a pintura, o livro, a imprensa, a fotografia e o cinema, são mediações
da cultura. Práticas insignificantes, singularmente consideradas,
inscrevem a mediação numa grande corrente, preenchem-na com
a participação de elementos diversos e heterogéneos.
Historicamente, nem todos os meios humanos de visar a experiência
se instituíram como meios culturais, somente as palavras, as imagens,
os objectos e os sons fortes entram no seu receptáculo. Medeia culturalmente
o que manifesta, em termos nietzschianos, aptidão a controlar, a
totalizar a constituição da experiência. Ademais, tem-se
permitido que a cultura se leia por intermédio, apenas, de alguns
objectos, alguns sons, algumas palavras. Irrompem nela os meios que desempenham
papel polarizador, que organizam a realidade imediata e a diversidade em
que está mergulhada. A existência centra-se na actualização
de algumas figuras.
Numa perspectiva de emergência das figuras em apreço,
verifica-se que começaram por ser utilizadas as figuras que privilegiam
a interacção natural: um povo, que surge em lugar soalheiro
e tem nas costas uma serra que o protege das nortadas, é um exemplo.
Com a passagem à agricultura e à domesticação
dos animais entra-se numa nova etapa de constituição do universo
humano artificial, acelerado com a escrita, os projectos urbanísticos
e os meios de transporte mecânicos. A mediação digital,
na actualidade, a nossa nova pele, culmina, por ora, este processo.
As novas técnicas, os instrumentos que produzem, que fazem,
nomeadamente, que cada ser humano prolongue a existência local numa
existência global, levam a crer em formas diferentes de comunicação
dos homens uns com os outros e com o meio. O fascínio pode ir à
transfiguração do vivo.
A mediação digital representa uma ecologia nova. É
um meio ambiente recente, uma paisagem onde o humano começa a inscrever
o seu estar-aí e a completar-se, nas mais diversas facetas. Neste
espaço vislumbra-se que se prescinda de experimentar o real directamente.
Tem poder, diríamos, ontológico, tal a capacidade de simulação
de um real novo. É a mediação «no estado puro,
identificando-se quase com a Physis», adianta Bragança de
Miranda. (6) Donde, é importante reflectir a questão da mediação
na actualidade, compreendê-la, sob pena de cairmos no «absurdo
e no desmesurado» . (7)
Dada a imersão de todos os domínios experienciais humanos
na mediação técnica de hoje, é importante pensar
se o meio ainda funciona como meio - a não ser que estejamos demasiado
narcotizados, de modo que somos insensíveis ao problema.
Os processos de mediação contemporâneos impõem
que estejamos de sobreaviso, que sejamos críticos quanto à
possibilidade de os meios se transformarem em lugar de vida. Os meios podem
liquidar a a experiência imediata, substituírem-se à
relação do homem com o mundo, passarem a ser fins.
A mediação aparece como uma ideia que guia o homem confrontado
com a alteridade da experiência. Pensar a mediação
é pensar no liame dos seres. Consiste em pensar no que une a experiência,
no que lhe dá ordem, sentido.
A questão da mediação é uma questão
de aferição da comunicação do que compõe
a vida. Apetece dizer que enquanto houver vida o problema de a mediar põe-se;
e que ela só é, realmente, se for afectada por alguma forma
mediadora. A linguagem foi, no panorama mediológico, a forma que
por direito próprio emprestava às coisas no estado bruto
o molde que as convertia em coisas reais. O mínimo fragmento de
experiência recebia a sua luz da força mediadora da linguagem.
Por ela passava toda a questão da mediação e toda
a questão da constituição da experiência. A
mediação reduzia-se a um problema gramatológico.
Trabalhada no âmbito teológico cristão e pensamento
filosófico grego, a mediação ganhará autonomia,
dignidade de ser, mas aos poucos é desviado o seu sentido originário.
Valoriza-se a conexão dos seres, no entanto ela pressupõe
o afastamento progressivo do plano concreto rumo ao plano abstracto.
A mediação torna-se uma projecção da vida
em formas ideais. O natural exila-se e perde carne. Foi assim na fase antiga
da cultura e também na designada modernidade. A cultura técnico-científica
prolonga os efeitos da redução do mundo real a um mundo ideal
na mediação. A cosmovisão maquínica é
fruto do entendimento da mediação no sentido mais instrumental
e dominador. A extensão humana privilegiada, a linguagem, toma o
banho da racionalidade e passa a configurar as restantes mediações.
As características da objectividade, univocidade e funcionalidade
não são apenas válidas para a razão, transbordam
para a linguagem e da linguagem para as coisas. A máquina recebe
dela a lição de racionalidade. É uma tecno-logia.
O mundo visto por este prisma moderno aparece como um conjunto de artefactos
susceptíveis de manipulação e transformação,
inclusive o corpo humano.
A mediação ocupa o cenário todo do vivo. Não
há nada que sai fora, está tudo sob o efeito da mediação.
É ela que domina. Já não será meio, será
fim.
A base de sustentação da teoria moderna da mediação
é a representação. A vontade de controlar, de unificar
a experiência à volta de um quadro inteligível e produzido
pelo homem, é fundamentada na capacidade de representação,
ou seja, capacidade de operar numa segunda presença da realidade
(re-presentar). Nesta modalidade de presença a realidade estaria
na 'leveza do ser', dotada de propriedades ontológicas, de realidade
realmente real.
A representação devém visível por intermédio
da capacidade que o homem tem de significar os objectos com determinadas
imagens, signos, por sua vez, meios de o sujeito se apropriar da experiência
da representação.
Constituído o signo, encontra-se constituída a experiência,
restando comunicá-la aos outros. É na base de signos que
fundamos a convivência social.
O signo, reflexo da cultura, remete para todo o exercício de
abstracção efectuado sobre o real e que o assemelhou, proporcionando-se
a significação.
O predomínio do signo equivale ao predomínio da mediação
técnica, mas de essência performativa, fiel ao ideal antigo
da poiesis, que atribuía ao homem a faculdade de criar a realidade
e de manter a sua ordem. O desenvolvimento técnico e científico
lê-se a essa luz, liberta o homem da sua finitude, o elevando a senhor
da natureza.
A cultura humana é préproduzida segundo o modelo maquínico,
foi invadida pela objectividade e formalidade. Aos poucos, deveio uma imensa
colónia de tecnologias, para as quais não encontra finalidade
hoje.
A linguagem, de protagonista ganhou o papel de serva, foi invadida,
maquinou-se. O signo é exemplo desse estado de petrificação
a que a linguagem chegou.
Guy Debord, atento a esta problemática, explica que para a sociedade
que repousa na representação «o fim não é
nada, o meio é tudo» .(8)
Inquieta que o mundo se faça ver por diferentes mediações
e não se dê por isso. Se a ligação do mundo
com a existência humana acontece por mediação artificial,
e se esta transforma o sujeito, então o poder está todo na
mediação.
É pelos meios que os acontecimentos e os sujeitos são
realizados no mundo. Neste teor, o meio técnico maquinal acelerou
o processo, devém mais rapidamente uma segunda pele e uma segunda
consciência; o órgão de contacto com a realidade aumentou
a velocidade de realização de uma existência, outrora
aberta ao devir histórico. Na senda de Debord, a vida «degradou-se»,
mais rapidamente, diríamos nós, «em universo especulativo»
.(9)
O homem tem utilizado a dificuldade de lidar com a alteridade da experiência
para se desligar dela. A sua unidade tem sido organizada pelo próprio
meio, o que, dadas as circunstâncias, tem revelado uma experiência
como se de uma unidade estruturada se tratasse, muito semelhante a um discurso,
cujas partes se conectam seguindo leis lógicas.
O quadro não é feito a partir do real, é o inverso,
logo, a cosnciência que se tem do mundo e as existências singulares
põem-se em risco. São momentos integrantes da estrutura geral
formal da cultura da representação.
A seguir àquilo a que se pode chamar de desontologização
do real, a favor da ontologização da representação,
sucede o apreço pela uniformidade universal, que com Adorno daremos
conta.
O tema mediológico ganha, pelo exposto, mais importância,
e mais hoje, que se procuram desenvolvimentos novos, eventualmente mais
profícuos em termos de correspondência com a libertação
do humano de constrangimentos que o abafaram durante a modernidade.
O novo é aqui perspectivado como manifestação
de vitalidade criadora, de continuação da premissa de que
a cultura é sinónimo de criatividade, para no final aparecer
como autêntica obra de arte.
A tarefa do futuro fica entregue a cada um, não fica nas mãos
de um qualquer programa de acção ou uma qualquer ética.
Ocorre-nos, com a parábola do trigo e do joio, que no cuidado de
eliminar o mal eliminemos descuidadamente o bem.
Genealogia da ideia de Mediação .(10)
Mediação, messianismo e redenção são
ideias afins. (11) Depreende-se delas que o conceito ganha todo o sentido
perspectivado na relação entre o divino e o humano, facto
que as formas mais antigas de religião registam. (12) Aliás,
que é ele o pano de fundo do messianismo e da redenção
cristãs - o cerne da mensagem bíblica do Antigo e do Novo
Testamento - por outras palavras, o pano de fundo de uma figura que livremente
seja vítima expiatória dos pecados dos outros e imolada para
os resgatar (13). Também, de uma comunhão entre o crente
e o seu salvador, que representasse um renascer para o primeiro ( 2º
Coríntios 5, 17).
Caberá perguntar: porque é a mediação um
conceito tão importante, ou mesmo fundamental, na questão
da fé? E estamos em crer que só num horizonte de ruptura
ela é possível, tornando-se esse o fundamento. E o livro
da Sabedoria confirma-o:«Deus criou o homem para a imortalidade e
o fez à imagem de Seu próprio Ser; mas a morte entrou no
mundo por inveja do demónio e os que lhe pertencem passarão
por ela.»(Sabedoria, 2, 23-24)
Por obra do diabólico, o homem experimentou a confusão,
gerou-se, e como que se disseminou, o caos, sendo necessário livrar-se
dele .(14)
Parece que nem sempre assim foi. A semelhança (homoiesis) original
de Deus com o homem, no contexto criacionista, não foi posta em
causa por Adão, primeira cópia viva de Deus (15). Nem tão
pouco seria quebrada quando «Adão com cento e trinta anos
gerou um filho à sua imagem e semelhança, e pôs-lhe
o nome de Set.»(Génesis 5,3). Inclusive no pecado!
A questão da mediação iniciar-se-á, desta
forma, no momento em que a questão da imago Dei perde a conotação
natural, mantendo-se a exigência «da reprodução
radical da realidade divina», conforme palavras do teólogo
Barbaglio, ou «da identidade perfeita entre o eikôn e o protótipo»,
conforme as de Kittel .(16)
Ao povo de Israel, a quem Deus falou (Êxodo 19, 3-6), coloca-se,
nitidamente, a exigência de mediação. Se existe a necessidade
de a criatura procurar protecção, existe igualmente a impressão
de que entre ela e Deus há um abismo. Contudo, a aliança,
de iniciativa divina, sublinhando a distância infinita que separa
os dois termos que se pretendem conjugar, abre uma via de acesso .(17)
É de um mediador que o povo precisa, dá a entender Job:
«Entre nós não há árbitro que se possa
interpor entre nós dois. Que retire a Sua vara de cima de mim, para
que não me assombre com o terror que me causa. Então falar-Lhe-ia
e não O temeria, pois eu não sou culpado aos meus olhos.»
(9, 33-35)
À primeira vista precisa de uma figura que não permaneça
apenas na esfera do humano, mas entre na esfera do divino, receba de Deus
mandamentos . (18)
A primeira figura a materializar esse conceito é Moisés.
Ele é tido como o mediador da aliança de Deus com o povo
de Israel que teve lugar no monte Sinai. Relata o cronista:«Moisés
desceu do monte Sinai, levando na mão as duas tábuas da Lei.
Não sabia, enquanto descia o monte, que a pele do seu rosto resplandecia,
depois de ter falado com o Senhor. Quando Aarão e todos os filhos
de Israel o viram notaram que a pele do seu rosto se tornara resplandecente
e não se atreveram a aproximar-se dele. Moisés, porém,
chamou-os, e Aarão e todos os chefes da assembleia foram ter com
ele, e ele falou-lhes.» (Êxodo 34, 29-31).
Pressente-se na mediação mosaica o caminhar para uma
vida instruída por Deus, sob a sua autoridade, o que mais tarde
será designado de coinonia (I Coríntios 1, 9). Há,
porém, neste estádio do devir histórico algo que impede
que se tenha alcançado o fim. É que, como denuncia S.Paulo,
a obra de Moisés é conforme ao modelo que lhe foi mostrado
no monte (Hebreus 8, 5). Por isso, considera, a aliança de Moisés
não está isenta de defeitos(Hebreus 8, 7).
Tratar-se-á de uma aliança imperfeita, onde a marca do
intermediário é muito forte. O factor humano, presente, relativiza
a mediação e torna-a caduca, valida-a provisoriamente (Gálatas
3, 19), concluindo-se que só as intervenções directas
de Deus são perfeitas e definitivas .(19)
Outros mediadores povoarão o devir histórico de Israel
como agentes da libertação que Deus preconizou, desde o rei
David, «tomado dos apriscos das ovelhas», homem eleito pelos
outros homens (II Samuel 3, 17-18), os quais representa diante de Deus
(Deuteronómio 17, 18-20) .(20)
Os sacerdotes, por seu turno, desempenham uma mediação
institucional, proclamam a Torâh (I Crónicas 16, 40) e asseguram
o louvor a Deus (I Crónicas 16, 8-36).
O profeta, ao contrário do mediador anterior, íntimo
de Deus, caso de Jeremias, repete fielmente a ordem que lhe é confiada
.(21) Apaga a sua personalidade ante a missão. Ao falar não
segue o seu próprio espírito, como o falso profeta, segue
o espírito da fonte .(22)
Nem rei nem profeta, o Servo, se ele é mediador é entrando
livremente no sofrimento. É uma vítima humana inocente que
voluntariamente é tornada culpada por Deus dos pecados do seu povo
e imolado para os resgatar (Isaías 53, 9-12) .(23)
Nunca a mediação espiritual do Antigo Testamento terá
ido tão longe, segundo Feuillet, realçando este na mediação
sacrificial do Servo a antecipação do que se passará
quatro séculos depois com Cristo .(24)
Como traços marcantes da mediação que se acaba
de expor, dir-se-ia tratar-se de uma mediação exercida por
homens que se tornam capazes de pensamento e acção junto
de outros homens porque se elevam, sobem, para perscrutar em Deus esses
mesmos pensamentos e acções. Para além disso, vinca
as matrizes das crenças do meio oriental.
Como explicar que este conjunto de mediação assinalada
declare que é sob a impulsão do Espírito Santo, sob
a sua assistência e autoridade, que as suas obras são realizadas?!
Vejam-se as declarações de Moisés (Números
11, 17, 25, 26), dos reis Saúl e David (I Samuel 16, 13, 14), do
Servo (Isaías 42, 1), ou dos profetas (Isaías 48, 16; 11,
12; Ezequiel 2, 2; 3, 12, 14; Oseias 9, 7; Miqueias 3, 8; Zacarias 7, 12).
Tais declarações colocam-nos perante uma mediação
que desce, que vem de cima para baixo. O que inverte o processo.
Paralelamente às funções do Espírito Santo,
são colocadas as atribuídas à Palavra. Ela revelou-se
no Sinai a Moisés e revelou-se aos profetas. O que acontece exactamente
com a Sabedoria, no papel que desempenha na alma humana (Sabedoria 9, 7;
8, 9; 9, 10; 1, 4; 7, 27) e no mundo material (9, 9; 8, 4; 7, 22-23; 7,
27; 8, 1).
Não cumprirão claramente as três noções
uma função mediadora descendente? Relativamente à
Sabedoria, as imagens empregues em 7, 25-26; 8, 3 e 9, 4, 10 para um ser
pessoa, engendrado e residente em Deus. Do mesmo modo a Palavra, que nos
Salmos é assimilada a um ser vivo que se mantém nos céus,
de lá impõe a sua autoridade aos humanos e às coisas,
criando por todo o lado a harmonia (Salmos 119, 89). Também o Espírito
é personificado (Isaías 53, 10; Ageu 2, 5; Salmos 143, 10;
Sabedoria 1, 5, 7; Judite 16, 14).
Serão hipóstases, no sentido em que não se podem
dizer que sejam a primeira das criaturas, ou uma espécie de intermediários,
que participam simultaneamente da natureza divina e da natureza das coisas
criadas. Não se confundem com Deus, exercem a sua acção
ao lado de Deus. (25)
Dado este carácter, haveria toda a pertinência em considerá-las
mediadoras, não fosse as funções atribuídas
ao Espírito não diferirem das que são atribuídas
à Palavra (26), por um lado, e a indiferenciação de
actividades atribuídas ao Espírito e à Sabedoria,
por outro (Sabedoria 1, 4-5; 7, 22-25; 9, 17). Assim, deixa-se de colocar-se
a questão da hipóstase e, por consequência, a de uma
mediação propriamente dita. São três realidades,
efectivamente, mas representam a acção directa de Deus (Números
11, 29) .(27)
Em conclusão, a investigação sobre a significação
descendente da mediação destas três noções
culmina no fracasso. Salvar-se-á nos anjos?
No livro do Génesis, o patriarca Jacob vê uma escada que
une a terra ao céu, ao longo da qual os anjos sobem e descem. Sobem
para levar homenagens e os votos dos homens, descem carregados de favores
divinos (28, 12). Pensa-se: este é um papel que convém mais
à qualidade de enviado que de mediador, e que o anjo é simplesmente
instrumento, auxiliar, ministro de uma comunicação feita
de cima para baixo, mas jamais um mediador.
Em Daniel 10, 13 ainda se poderá reconhecer o anjo Miguel nessa
qualidade de mediador, quando intercede pelos homens e por Deus para que
se mantenha a paz de Israel .(28)
Temos, assim, a propósito dos elementos contidos no Antigo Testamento
sobre a ideia de mediação, uma variedade rica, porém
dispersa, o que complica a tarefa de síntese.
A concepção neotestamentária do problema que nos
ocupa, exclusivamente por mérito da teologia de S.Paulo, concentra
em Cristo o papel de mediador duma nova aliança, fundada sobre promessas
melhores (Hebreus 7, 22; 8, 6-13; 9, 15; 12, 24) (29). À multiplicidade
opõe a unidade de mediação.
Por nenhuma outra via o homem pode aceder a Deus. O destaque para a
figura de Cristo como mediador único é assimilável
à ideia de um Deus também único (I Timóteo
2, 5).
Exclui-se, consequentemente, toda a panóplia de intermediários
- anjos, profetas, sacerdotes, etc. - criados pela especulação
religiosa anterior, bem como se altera a qualidade da mediação.
Com Cristo, realmente, a mediação entra ao serviço
da obra de salvação, da reconciliação dos homens
com Deus (Gálatas 2, 20), de todos (I Timóteo 2, 5-6), evocando
a universalidade desta.
Uma perplexidade: como chega Cristo a receber o conceito de mediador
se na Nova Aliança as leis hão-de ser impressas no espírito
e gravadas no coração dos que pertencem à casa de
Israel? (Hebreus 8, 8-12) Não representa esta passagem a intervenção
directa de Deus, consequentemente a negação do mediador?
A justificação da Carta aos Hebreus reside no facto de
Cristo ser Filho de Deus. A encarnação de Cristo é
a explicação fundamental (30). Enquanto Filho de Deus, é
a imagem (Eikon), ou o exacto reflexo de Deus, o que lhe dá autoridade
e o torna chefe de toda a economia de salvação (Colossenses
2, 9). Ora, desta forma, Jesus Cristo não está, como Moisés,
entre Deus e o homem (31). Em Cristo, na sua pessoa, une-se o homem e Deus.
O papel de Cristo é descrito como sendo mais o de um fiador
(Hebreus 7, 22) (32) de um testamento (33) em que é necessário
que se dê a morte do testador (Hebreus 9, 16) (34).
O sangue do próprio mediador transcende qualquer tipo de mediação
havida. Reflecte uma soberania e uma eficácia que nenhuma outra
criatura pode colaborar com ele ou ser suplemento na sua obra (35).
Em «O Verbo fez-se carne» assinala-se a passagem de um
modo de ser a um outro. Mas como deveio? Pergunta-se. Como é que
em Cristo se realiza a união de Deus e dos Homens?
Permanece um quebra-cabeças. O que é testemunhado é
que a divindade reside nele de um modo permanente e fixo (Actos 9, 22;
11, 29; 13, 27; 22, 12), tornando a sua mediação sempre actual
(Hebreus 7, 3; 24) e estável (Eclesiástico 29, 14), relativamente
ao acesso e alcançar dos bens prometidos.
Cristo é para os cristãos o lugar de encontro, o agente
de comunicação puro. Assume-se como a via e a verdadeira
via (João 14, 6). É como se fosse a ponte entre dois rios,
que o mediador permite passar de um a outro.
A sua mediação tem por meta suprimir qualquer antilogia
inicial e impor a comunhão de um mesmo modo de ser e de agir.
Vislumbra-se que o fim é o de abolir todas as diferenças
de raças ou de nações e constituir um povo único
(Efésios 2, 14-18). Reduzir todos os seres sob um só, restaurar
a harmonia inicial da criação, com Cristo a ser a síntese,
tanto das realidades visíveis como invisíveis, tanto das
coisas da terra como das coisas do céu (36).
Subjaz a ideia de uma coinonia (Koinonia), através de uma vida
em e por Cristo (I Coríntios 1, 9), o que designa uma pertença
ontológica, mais profunda que a comunhão psicológica
de pensamentos e sentimentos realizada na primeira aliança (37).
Para os cristãos, Cristo ao mesmo tempo revela o plano da salvação
e realiza-o (38), o que significa que a sua mediação é
a sua acção mesma. E depois dele? Que valor de mediação
os apóstolos, as orações têm? S. Paulo responde
a essa pergunta em I Timóteo. Responde que a vontade salvífica
é universal (2, 4) e que a Igreja participa na mediação
de Cristo por meio das orações, das súplicas, petições
e acção de graças que se hão-de dar (2, 1),
assim como a pregação apostólica (2, 7) (39). Exclui
a ideia de a Igreja ter uma existência independente, poder ser tomada
como um efeito produzido por uma causa.
Posto isto: o conceito de mediador expressará de modo adequado
a função de Cristo? (40)
Atendendo ao sentido original de mediador, este designa o que ocupa
um lugar intermediário ou central, que fica no meio. Situa-se a
igual distância dos extremos (41). O seu papel é o de se intrometer
numa negociação (42).
Assim sendo, e dada a identidade entre Pai e Filho, porque sempre que
Cristo fala é Deus quem fala, e seguir a Cristo é seguir
a Deus (I Coríntios 6, 11; Romanos 8, 18-30; Colossenses 1, 13-14),
há um sentido de mediação que é descoberto.
Se Cristo não está entre Deus e os homens, e no entanto ele
realiza a mediação salvífica, por mediar só
se pode vir a entender o consumar de uma união.
Cristo acaba por ser a figura por excelência, polarizadora de
todas as mediações, contudo é-o de um modo paradoxal,
parecendo não ser, não existir sequer como mediador (43).
Da instância compreensiva da palavra mediação fará
parte apenas a especulação teológica? Não haverá
uma concepção extra-bíblica da mediação?
Com efeito, não se trata de uma noção especificamente
religiosa, a especulação filosófica aplicou-se igualmente
a precisar o vasto campo da sua aplicação (44) . Citando
J.Moller, que precisa a significação filosófica do
termo: «Mediação significa, em primeiro lugar, a redução
das coisas opostas a umponto central ou a partir deste. (...)A oposição
contrária distingue-se da contraditória no sentido em que
permite achar um ponto de equilíbrio, portanto, uma mediação.
(...)Mas também na oposição contraditória existe
uma 'mediação' no sentido em que o homem pode pensar, por
intermédio da sua razão tal oposição. Todavia,
esta mediação não se dá no ser.» (45).
Assim sendo, o trabalho filosófico da mediação
tem por tarefa buscar a entidade que estabeleça a ponte entre opostos,
cujas modalidades dos mesmos se circunscrevem, no autor, à oposições
contrárias e contraditórias. Para além disso, J.Moller
chama a atenção para a abordagem dos opostos como facto de
razão e como facto de ser.
Ora, parece que para equacionar a mediação em filosofia
se tem de explicitar a questão das oposições conceptuais,
sendo destas que aquela emerge.
O pensamento por opostos, sendo categorial, é um pensamento que
evidencia a tensão, o contraste, a negatividade da experiência
(46). Ao mesmo tempo, os opostos tornam-se peças mestras de um pensamento
ordenador da mesma experiência - como se a cognição
começasse com o estabelecimento de rupturas e descontinuidades,
se fizesse com a produção da diferença.
Os conteúdos da experiência sofrem, por assim dizer, um
«regime de separação», uma «conduta de
corte e de cisão» (47). Começam por aparecer recortados
binariamente (48). E porquê?
«Universalmente», responde J.J.Wunenburger, «a dualidade
está associada à saída da unidade, à produção
da primeira diferença.» (49). A dualidade liga-se à
alteridade e à heterogeneidade, rompe com a homogeneidade de uma
unidade primordial (50). O dois representa uma forma de organização
primitiva de inteligir o real. É o mínimo exigido para se
falar de mutação.
O movimento da história nesta questão tem revelado que
se passou de um desdobramento do dado em dois para um desdobramento em
modalidades superiores a dois.
A morfologia ternária abriu, por assim dizer, a porta para a
inteligibilidade do complexo e, simultaneamente, afinou as leituras das
diferenças: dois elementos articulados em torno de um terceiro desenrolam
melhor as propriedades da diferenciação. Pela introdução
de um terceiro percebe-se melhor se dois elementos são disjuntos
ou se são confusos, pela razão de que a dualidade retrocede
para a unidade, não consegue desfazer-se dela como se de um seu
prolongamento se tratasse.
Com a tríade desenvolve-se a necessidade de assentar a diferença
num espaço intermediário às entidades distinguidas.
Entre elas toma forma um estado específico que faz com que identidade
e alteridade coabitem e que procura resolver os problemas postos pelos
pontos de encontro e de separação entre duas coisas (51).
O princípio da diferenciação justifica, assim,
um pensamento que doutra maneira confundiria todos os géneros no
ser (52). As formas de oposição conceptual que se desenharão
a partir dele significarão modulações suas, que os
pares não se organizam segundo a mesma matriz. Quais as principais?
Seguindo a elucidação formal do assunto por Fernando
Gil, em Mimesis e Negação (53), as figuras de oposição
organizam-se em pares não antagónicos e antagónicos,
distinguindo-se um do outro, respectivamente, pela não exclusão
mútua dos termos ou exclusão mútua, e pelo conjunto
de ocorrências ou não ocorrências implicado na ocorrência
de um.
A simetria, a dualidade e a complementaridade encontram-se entre o
primeiro dos pares, sendo o segundo configurado pelos paradoxos, contrariedades
e contradições.
Observando um exemplo de simetria (dia e noite) (54), o que salta à
evidência é que não há antagonismo. Os elementos
opostos constituem como que uma dissociação do idêntico,
a reduplicação de uma mesma estrutura (55).
Nas dualidades, (grande-pequeno) (56), por seu turno, existe homogeneidade
entre os termos, existe uma continuidade, coesão. Passa-se de um
termo para o seu contrário por continuidade. Os opostos compreendem-se
como limites de uma variação contínua. Nestes é
facilmente aplicável o princípio platónico segundo
o qual a transformação dos contrário em geral se baseia
na geração recíproca de cada um deles em direcção
ao outro (57). A simbólica da linha recta, encontrando cada termo
o seu correlativo, esclarece muito bem esta oposição (58).
A outra das figuras não antagónicas, a complementaridade,
reporta-se a disjunções que se apresentam tal qual faces
heterogéneas de um mesmo domínio (par-ímpar nos pitagóricos)
(59).
Nas complementaridades levanta dificuldades aplicar o princípio
platónico enunciado, porque se se aceita que a morte nasça
da vida, como explicar que a vida provenha da morte?
Havendo ruptura, descontinuidade, uma geração em linha
recta não seria possível, requer-se, sim, um percurso circular.
A geração dá a volta, diz Platão, através
de um processo de compensação que as coisas que existem se
dão umas às outras (60).
A volta é indispensável nas circularidades, ficando por
descobrir a lei da articulação, já que elas fazem
emergir um princípio de alteridade forte. O dispositivo de conhecimento
que opera em cada um dos elementos difere, as metodologias de estudo da
res cogitans são diversas das metodologias do estudo da res extensa
(61).
As figuras antagónicas mais importantes, que são a contradição
e a contrariedade, produzem-se a partir da negação de cada
termo pelo outro, quer dizer, a presença ou a verdade de um implica
a ausência ou a falsidade do outro.
Lendo exemplos de contrariedades (branco-preto) (62), e deslocando
a atenção para cada estado do leque de possibilidades que
existe entre um e outro (todas as cores), constata-se que ela re-introduz
o multivalente. Raciocinando com o Tratactus de Wittgesntein, cada facto
positivo representa um só de entre o conjunto de estados de coisas
virtuais (63).
A imagística de que a contrariedade está impregnada é
a do contínuo, por isso a geometria da contrariedade não
é a da linha, invocada no Fédon, mas a da superfície
ou do volume (64).
Na ciência da modernidade, precisamente, onde a contrariedade
é a figura por excelência, as leis visam estabelecer interacções
admitidas e os limites duma compossibilidade.
A abertura para o regime das contradições bem pode ser
dada por Heraclito, quando afirma:«As coisas em conjunto são
o todo e o não-todo, algo que se reúne e se separa, que está
em consonância e em dissonância; de todas as coisas provém
uma unidade, e de uma unidade, todas as coisas.» (65).
Acompanhado das forças motoras, o Amor e a Discórdia,
de Empédocles, Heraclito revela o quanto o conflito é um
elemento indispensável à justificação da existência,
toda ela incompatível e afecta de pluralidade antitética.
Ele é que provoca as mudanças (66).
Assim não pensa Aristóteles, para quem o pensamento só
pode aceder à inteligibilidade e à coerência à
custa de uma submissão aos princípios de identidade, de não
contradição e terceiro excluído (67).
Um ideal concebido pela conformidade com um jogo de regras antecipadamente
fixadas pode fixar um indicador de certeza (68).
Trata-se de uma posição inversa da descrição
prolixa das formas e das forças do cosmos (Empédocles e Heraclito)
e das inversões vertiginosas que se inflige à palavras e
aos conceitos (Sofistas). Nestas, sem qualquer dúvida, o postulado
da economia do pensamento não é seguido.
A posição aristotélica empenha-se na via de uma
estabilização substancial dos dados, abandonando o devir
à contrariedade- ela só existe no seio de um mesmo género
(justiça-injustiça) e não entre seres que diferem
em espécie. Segundo Aristóteles, os contrários protagonizam
a diferença perfeita, estabelecendo que não pode haver duas
extremidades, porque para cada coisa não pode haver senão
um só contrário (69). Por contra, a representação
da contrariedade deve elevar-se ao plano de uma quididade que obedece à
estrita identidade (70).
Qualquer substância só pode ser compreendida como quididade
simples. Daí, a verdade assenta na unilateralidade do dado, limita-se
à alternativa do sim e do não (71).
Ora, o pensamento está prisioneiro de uma representação
homogénea, em última análise, encerra-se na tautologia
segundo a qual o que está vivo está vivo (72).
As contradições que Aristóteles visa, saídas
da elucidação dos princípios, referem-se a dois juízos
antinómicos, nos quais a afirmação e a negação
incidem sobre o mesmo determinante particular.
A clarificação filosófica parece incidir antes
sobre as paridades de raciocínio, das quais podemos dar o exemplo
das antinomias da razão pura kantianas (73).
Que é da complexidade? Que é do emaranhamento de processos
opostos que levam a um facto positivo? Que é da interacção
entre a criação e a destruição?
Abrir a porta ao contraditório, tolerar a sua positividade,
favorecia o descontrolo do conhecimento, entrar-se-ia num domínio
de indeterminação. É por essa razão que eles
são submetidos ao paradigma da identidade (74).
Que escapa a este paradigma?
«Não acha lugar para pensar a aurora e o crepúsculo
em que se chocam e conjugam a noite e o dia, ou a divindade andrógina
na qual se compõem os opostos do macho e da fêmea.»,
responde J.J.Wunenburger (75).
A diferenciação ficou contida na figura chã, o
que corresponde a uma hipertrofia (76) do valor do homogéneo. Deixa
por legislar as relações dinâmicas do Mesmo e do Outro.
Só com Hegel a contradição ganha direitos filosóficos;
apresenta-a como o conceito que permite pensar o real como movimento ou
devir (77).
Categoria conceptual, a contradição é a charneira
na dinâmica também do ser (78). Tanto o pensamento quanto
a realidade estão implicados nesta forma de progredir (79).
Hegel procura solucionar a velho problema da «consumação
ôntica do ser», na expressão de F.V.Pires (80), formulado
por Platão desta maneira: como obter do Ilimitado um advento à
existência? (81)
Trata-se, claramente, de uma aporia, já posta pelos pré-socráticos,
que se perguntavam como é que o determinado se obteria do indeterminado.
Não terá de pressupor-se princípios de organização
e de diferenciação no seio da indistinção originária?(82)
Sob que procedimento se pode articular os termos diferentes em sua
qualidade mesma de diferença? É que pensado o Ser na economia
do Mesmo ele teria de retirar-se do devir, e este está dado (83).
Como o tornar inteligível? - pergunta-se agora. Como integrar numa
representação completa todas as determinações
heterogéneas do concreto?
Eis o que abre para uma razão móvel, que deixa a possibilidade
de postular uma coextensividade lógica e ontológica entre
o Mesmo e o Outro.
Enquanto movimento, a Razão produz os conteúdos negativos,
as determinações (84). Temos, portanto, um ser que é
posição e negação.
Dialéctica é o termo que abarca a força que remete
o ser na sua forma vazia para um conteúdo, e que abarca todos os
encadeamentos nos quais o pensamento se envolve gradualmente, sem se deter
em nada de satisfatório antes de uma última etapa (85). A
forma(dialéctica) é definida pelo próprio Hegel como
um «passar para outro» (86).
Ser e Não-Ser, identidade e diferença, estão ligados,
assim, por uma relação dialéctica; e a negação
é o conceito central dessa relação. Em termos lógicos,
a primeira posição da negação surge na lógica
do ser (negando o ser puro, fazendo-o equivaler ao nada), reaparecerá
na lógica da essência (pressupondo uma alteridade diferenciadora
intrínseca à identidade do ser), por último ao nível
da lógica dos conceitos (encontrando o particular no percurso de
concretização do universal em individual) (87).
A negação afectará posteriormente a realização
do real sob todas as formas, inanimadas e animadas (88). Presidirá,
ulteriormente, ao aparecimento de cada figura da consciência, de
cada forma institucional (89).
A negatividade traduz, em Hegel, a dinâmica do espírito,
do seu surgimento (90). Cada forma, cada figura, que é a contradição
do Espírito, prepara o acesso à sua verdade.
A alteridade é colocada no centro do dispositivo lógico
e real. É esse processo de alteridade que Hegel pensa (91). Como
se instala a diferença na unidade?
Para abordar o problema, o pensador alemão cruza dois trajectos,
um que afirma que a alteridade surge como processo de alienação,
segundo uma exterioridade, outro que afirma que a alteridade se prende
a uma divergência interna.
Sobre o edifício dialéctico caem como que duas cargas
ambíguas. A primeira vem no prolongamento de uma teologia crística,
centrada no mistério da Encarnação (92); a segunda
vem no prolongamento de um vitalismo e biologismo românticos, provenientes
de uma Filosofia da Natureza (93).
De acordo com o primeiro dos paradigmas, a diferença depende
de um movimento de dilaceração da identidade, exprime uma
espécie de duplicação de si mesma, de projecção
fora de si num reflexo.
No segundo paradigma este tornar-se em outro é mudado para uma
visão centrada na cissiparidade do Absoluto em determinações
duais. A prová-lo temos a imagem do botão que gera a flor
e a flor o fruto. Em toda a flor está contida o botão segundo
a sua idealidade, ela não é senão a explicitação
do conceito de botão (94).
O botão realiza a sua finalidade intrínseca contando
com os seus próprios recursos. É, em sentido estrito, causa
sui. É ele próprio que concede a si mesmo a existência
(95). Nesse caso, a oposição é vista como uma duplicação,
uma espécie de desdobramento do Mesmo (96).
O processo da alteridade explicado pela saída de si para se
tornar numa figura completamente nova submete-se a uma finalidade teleológica,
a um plano que desloca a causa do devir da origem para o fim, ao passo
que explicado segundo uma performação do Outro no Mesmo,
o Outro já não é produzido, mas é actualização
daquilo que está em botão, em potência.
Os dois esquemas oscilam a compreensão da diferenciação
entre a alienação e a alteração, como acabámos
de ver.
De acordo com J.J.Wunenburger, a oscilação é,
no entanto, suprimida na negatividade e na contradição. A
negação e a contradição tomam a vez dos esquemas
teológicos e biológicos e elevam a diferença à
sua máxima amplitude. Como? Pensando que a identidade em Hegel implica
a diferença, que implica, ela própria, a contradição,
que implica, ela própria, a oposição, temos que não
há identidade sem diferença e sem contradição.
O que é que isso significa?
Hegel verte a identidade do Absoluto na contradição,
e a potência do negativo alimenta-se na integração
sucessiva de todas as figuras da diferenciação.
Assim, a oposição e a diferenciação são
momentos que preparam o culminar da contradição (97).
A negatividade abisma-se em contradição, realiza-se nela
(98).
O processo dialéctico conduz a diferença para a contradição,
seu desvio maior. O que prossegue o processo de negação?
Outra figura de negação? (99)
Em Hegel, poder-se-á dizer, a contradição é
racionalizada a partir de premissas aristotélicas, daí a
pergunta: a contradição abarca todas as disputas, todas as
diferenças? Abarcará as que se reportam a ordens de realidades
afastadas umas das outras ou desniveladas? (100)
Se pensarmos em pares contraditórios do tipo analogia e digital
(101), verificamos que estes instauram ou suscitam choques entre ordens
de realidades diferentes; eles não se mantêm no interior do
mesmo tipo de nível.
Este tipo de oposição que faz apelo a um mundo fortemente
diferenciado designa-se de paradoxal (102).
Lendo, por exemplo, as Pensées de Pascal deparamos com uma reflexão
que se desenha em torno da diferença de Deus e do homem (103). O
mesmo tipo de
discurso se encontra em Kierkegaard (104).
Deles concluímos que a inteligibilidade dos elementos em presença
é afectada pela recusa da lógica da univocidade, da continuidade,
da homogeneidade (105) e salvaguarda do que Pascal decidiu chamar 'Razão
dos Efeitos' (106) e Kierkegaard aut-aut existencial (107).
A contradição ressurge sempre, invertendo o por no contra
(108), ou através do salto do contra para o por (109), que a natureza
do homem não consiste em ir, sempre, tem as suas idas e vindas (110).
Será, assim, possível um ponto de equilíbrio entre
os opostos ou, dada a natureza diversa das determinações,
não há um ponto de apoio específico mas cada ponto
é, em potência, um ponto de apoio?!
A geometria do paradoxo resvala para a segunda hipótese. O paradoxo
não é já pensável em termos de esfera ou de
balança, antes em termos de cone.
É que o movimento à volta do cone é no sentido
ascendente e convergente, ordena para um fim, único, os pontos de
vista diversos. Mantém, simultaneamente, juntos e separados os opostos.
A ironia, por conseguinte, associa-se à tarefa de desapossamento
de uma posição absoluta em favor da associação
com o seu contrário (111) e que pode pôr tudo do avesso, exteriorizar
o interior, interiorizar o exterior. Como notou Pascal, Cristo revelou
que os pobres hão-se ser ricos e os ricos, pobres, que os primeiros
hão-de ser os últimos e os últimos os primeiros.
A ironia a que aqui se faz referência manifesta a trágica
impossibilidade de desfazer a contradição, tornando esse
facto matéria para pensar. O mistério pascaliano e o escândalo
kierkegaardiano são definidos por esta ironia.
Nenhum conhecimento de nós mesmos podemos ter sem conhecermos
o mistério da transmissão do pecado, dirá Pascal.
E que a transmissão do pecado é o que há de mais impenetrável
ao nosso conhecimento, de modo que o homem é inconcebível
sem este mistério e este mistério é inconcebível
ao homem (112).
Para Kierkegaard, o escândalo consiste em crer que o pecado pode
ser perdoado e ainda em desesperar de os pecados não serem perdoados
(113).
Perante tão rica modulação da diferença
cabe perguntar se chegaremos a responder ao problema que temos entre mãos,
e que é o de saber em que termos é a mediação
fornecida, se a filosofia, efectivamente, é lúcida quanto
à forma de tornear a diferença. Ou se não vamos deparar
com uma teia de soluções que velam mais que desvelam, ganhando-se
em amplitude o que se perde em acuidade, fruto do refinamento do que as
problemáticas da oposição e da mediação
foram alvo.
Relativamente à simetria, e face ao analisado, a mediação
é incorporada nas próprias coisas, dispensa um terceiro.
A distinção é resolvida em termos de equilíbrio
entre partes contrastantes (114).
O dia e a noite, constituindo transformações de um mesmo
não modificam a estrutura dele, asseguram a estabilidade (synthesis)
do mesmo.
Ora, isso é assumir um grau zero na mediação,
um seu limiar inferior; a partir dele outras mediações se
subentendem.
Nas dualidades o problema da organização do múltiplo
não se põe, ela é auto-suficiente. A inteligibilidade
destas não invoca uma mediação propriamente dita,
porque passa-se do aquecimento ao resfriamento de um corpo por uma geração
recíproca. Cada um dos contrários origina-se no outro (115),
não há ruptura, há uma coesão patente, o que
faz as coisas acabem por revestir a mesma figura.
As complementaridades suscitam a questão da união e da
organização (116). «É impossível combinar
bem duas coisas sem uma terceira: é preciso entre elas um elo que
as aproxime, e o elo melhor é o que estabelece a mais perfeita unidade
entre o que ele une e ele mesmo», refere Platão (117). A terceira
coisa, o misto, é o responsável pela união.
A natureza deste misto é de modo a fazê-lo participar
das qualidades dos extremos, só assim podendo fundi-los e possibilitar
qualquer comunicação, vida, acção, entre eles.
Daí, vai além deste misto o papel de participação
e conexão, exige que se estabeleça ordem, proporção
e harmonia (Koinonia) (118), nem que para isso tenha de implicar violência,
como no caso do demiurgo para unir o Mesmo ao Outro, porque o Outro era
rebelde à mistura (119).
Haverá limites à intervenção desta causa
exógena?
A avaliar pelos exemplos, o metaxo platónico intervém
tanto no plano físico, intelectual, moral, social, como religioso
(120). É um conceito que Platão aplica para designar a relação
entre o fragmentário, o contingente, e o uno, o todo. Platão
visa observar a passagem da unidade do infinito à multiplicidade
do finito (121). Aristóteles é, igualmente, tributário
desse esforço, bem como Plotino (122).
Afinal, qual a origem do misto? Será causa sui? Ou a complementaridade
é dada nas partes, são estas a fornecer o princípio
de complementação? Ou,
ainda, a causa do misto vê-se no fim? (123)
Repondo a abordagem aristotélica do carácter contingente
dos seres e dos acontecimentos, no essencial defende que o regime da contrariedade
refere-se ao ser que existe, podendo não existir. Refere-se, por
conseguinte, à existência dependente de outra existência.
Natural, pois, que o 'sentimento de ser' não seja garantido
à consciência, o sentimento de uma subsistência, o que
agudiza o fantasma do acaso.
Como é servida, então, a mediação num mundo
onde as ocorrências são imprevisíveis?
Pensamentos vários tentaram fornecer uma resposta a essa pergunta,
como o de Leibniz, aqui interpretado por Michel Serres:«A mónada,
como tal, encontra-se constantemente designada como o suporte de características
inversas, como o são as do mundo que elas constituem...(ela) é
uma unidade, repetida uma infinidade contínua de vezes; é
fechada e aberta, sem janelas nem lacunas, mas representa a totalidade
do mundo...:original, irredutível, insubstituível mas harmónica
e entre-expressiva segundo todas as inter-relações imagináveis»
(124).
A mediação(ordem) da contingência vê-se atribuída
apenas a um conceito; apenas um conceito fixa as condições
de ocorrência de cada termo. A mónada é mediação
entre os contrários, é ela que fornece a regra ao devir.
Outras mentes reagiram à contingência, ora expulsando
as qualidades secundárias do âmbito das qualidades apreciáveis,
reduzindo-se, obviamente, uma fenomenologia aparente a uma mais uniforme;
outras buscaram num cogito pré-reflexivo e na experiência
ingénua do mundo os actos fundadores, mas esquecidos, como a fenomenologia
husserliana. Outros, ainda, seguiram diferentes sínteses, começando
pela síntese que se dá no plano da sensibilidade, mediante
as formas puras da intuição - espaço e tempo - passando
pela do entendimento, em que a síntese será unificação
dos elementos da representação, mediante as categorias, até
à que se observa no plano da razão, com base nas ideias.
Tal ponto de vista sobre a mediação pertence a Kant, que
o designou de síntese transcendental.
O inatismo cartesiano elucidou, igualmente, esta configuração.
Assenta na ideia de que a alma possui, desde o princípio da sua
existência, ideias congénitas, criadas por Deus ao criar a
natureza do homem. A ideia de Deus e da sua imutabilidade, substância,
pensamento, espaço e movimento, princípios de identidade
e causalidade e as verdades matemáticas e as leis mais universais
da natureza constituem como que o património originário da
razão, que só esperam pelo estímulo exterior para
se desenvolverem.
Ora, o que resulta?
Uma mediação como ser de razão, extrapolando-se
desta para a ordem real de modo a obter uma imagem do mundo essencialmente
continuista, isenta de conflitos (125).
No fim encontra-se uma estrutura que procura recuperar a organicidade
primordial, mediadora de diferenças. O plano em que é colocada
é o de um ideal
regulador (126).
Passando à abordagem da contradição, e tal qual
foi dito sobre isso e sobre Hegel, é a partir da proposição
'Ser e Nada são o mesmo' que o jogo da busca de mediações
começa (127).
A identidade encontra-se posta assim porquanto o ser se madiatiza através
da negatividade - o ser é referência si enquanto é
referência a outro (128), implicando-se um movimento de aparências,
vistas na função mediadora - até que o absoluto se
re-conheça unidade de pensar e ser (129).
Como é visível, a mediação, ou seja, segundo
a definição lógica, «o ter partido de algo de
primeiro para um segundo e um sair da diferença» (130), é
mais uma automediação, a partir do momento que é o
Absoluto que põe ele próprio a si o Outro e se concilia consigo.
O Espírito encontra a sua identidade no movimento de oposição
à imediatidade que ele inclui; imediatidade esta cumprida na diversidade
de aparências sobre as quais o ser se recolhe sem se deixar esvanecer.
Aquilo que é o ser devindo é ao mesmo tempo imediatidade
e mediatidade, que será superada pelo pensamento de tudo unir. É
a especulação que tudo transforma em mediação.
Contradição, negatividade e aufhebung constituem, em
suma, a tradução silogística do pensamento especulativo.
Onde, efectivamente, com o desenvolvimento e por meio dele, tudo encontra
mediação é a história. É para ela que
Hegel remete a reflexão do facto de o homem como indivíduo
só adquirir um significado real após um desenvolvimento milenário
de mediações (131).
Encontramo-nos, por conseguinte, face à natureza política
da mediação, cujo pressuposto declara que o homem é
sempre membro de uma comunidade, está sempre exposto à relação
com outro, numa relação de oposição. A mediação
aparecerá com o propósito de interligar uma relação
intersubjectiva (132).
Central na análise da categoria de mediação intersubjectiva
vem a ser, mais uma vez, e coerentemente, a contradição,
como se o sistema fosse um círculo. O que significa que o desenvolvimento
para a igualdade realiza-se por meio de uma desigualdade crescente (133).
Para se alcançar, por exemplo, a autoconsciência, cada
resultado concreto das mediações precedentes foi extinto.
Porém, as mediações precedentes, quer dizer, as formas
aparentes da consciência consciente de si como livre e universal,
permanecem constitutivas da nova realidade (134).
A autoconsciência é criada no desenvolvimento das mediações;
a natureza originária enriquece-se (135), conserva em si um carácter
intrinsecamente
mediato (136).
Num primeiro momento, a alteridade entra apenas negativamente na constituição
do homem, seguindo-se daí que o homem faz a experiência não
da própria independência do mundo, mas da sua dependência.
É que se o mundo fosse anulado, a autoconsciência perderia
a sua essência.
À partida existe uma experiência de mediação
inadequada que, contudo, resulta adequada assim que o 'outro' da autoconsciência
se eleva a si mesmo a universal, com dignidade igual àquela do 'eu'
originário.
Só o encontro com um 'outro' independente pode elevar a autoconsciência.
Só uma alteridade que seja diferente mas que, mesmo na negação,
se mantenha, sem se extinguir, pode realizar uma mediação
intersubjectiva autêntica (137). O enfrentamento imediato (138) de
duas autoconsciências é o começo de um novo desenvolvimento
da autoconsciência. A acção seguinte consiste em cada
uma das duas rebaixar a outra a uma mera forma de vida imediata. Consiste,
enfim, no desprezo pela vida e pelo 'outro'.
Cada uma das duas procura infligir a morte à outra, contudo
a contrariedade presente faz com que isto signifique também arriscar
a própria vida.
Chegados aqui, avizinha-se a anulação da mediação,
porque a morte é inadequada para ser meio. O aniquilamento não
é solução, antes o manter dos extremos, ainda que
seja um manter desigual. Logo, o enriquecimento depende de quando se enfrenta
a morte, não de quando a mediação é truncada
pela morte.
Temer perder a vida significa não se resignar a afundar-se na
coisalidade do mundo.
A consciência que ignora o temor é consciência dependente,
a essência é ser para um 'outro', ao contrário, a consciência
que enfrenta o temor é consciência independente, reconduz
cada alteridade sob si. Uma representa o servo, a primeira, outra representa
o senhor, a segunda (139).
Oposição paradoxal: que figura de mediação
ela poderá conceber?
Nenhuma, prestando atenção à crítica de
Kierkegaard para com a pretensão à mediação
hegeliana, que em Post Scriptum considera negadora da existência
singular, esta caracterizada pela angústia, tensão, dilemas,
alternativas, características resultantes da condição
de escolha, decisão. E essa condição só reside
na subjectividade, domínio onde não penetra a reflexão
sistemática (140).
Em Temor e Tremor declara que o paradoxo não se presta à
mediação. O Indivíduo, que é «exclusivamente
Indivíduo», desde que quer tomar consciência do dever
e realizá-lo reconhece que está em crise e, embora resista
à perturbação, não consegue sintonizar a consciência
do dever com a realização do dever.
Não há mediação possível na angústia
de Abraão, personagem que sabe que deve obedecer a Deus e sacrificar
Isaac; tem renitência em cumpri-lo por amar a Isaac.
Pensar paradoxalmente não é, vistas as coisas, procurar
uma terceira via de conciliação, fora dos opostos, que seria
externa, será mais pensar os contrários juntos e mobilizar
a razão no 'entre' eles. Desse 'entre' é que poderá
brotar uma solução.
Em vez de superar os opostos, procura-se escavá-los e, em vez
de os conciliar, o paradoxo absorve o seu conflito.
Ao modo pascaliano, qualquer compreensão exaustiva dos elementos
em causa é tarefa impossível, que assim que se consegue uma
perspectiva global dos contrários gera-se de novo a instabilidade,
e assim por diante. Conforme o próprio Pascal:«Nós
ardemos de desejo de encontrar um lugar firme e uma última base
constante para aí edificarmos uma torre que se eleve até
ao infinito, mas todos os nossos alicerces estalam e a terra abre-se até
ao abismo.» (141)
Não nos podemos libertar da contradição. Não
existe a possibilidade de se produzir uma síntese, através
da qual finito e infinito, aparência e realidade, presença
e ausência, se confundem.
A nossa condição de homens é «estar ao meio
entre dois extremos» (142). Existimos, pensamos, afastados dos extremos
e de um ponto último de equilíbrio.
Em suma, as formas contrárias são pontos de partida e
pontos de chegada das metamorfoses, das mudanças na experiência,
das diferenciações fenomenais que ocorrem sob o tempo. Porque
razão as contrariedades? É que se as formas fossem idênticas
não haveria transformações, mas também se fossem
simplesmente diferentes resultaria daí uma explosão de metamorfoses
possíveis, com a consequente deliquescência dessa noção.
Assim, as mudanças ligam entre elas diferenças reguladas,
que é o que as formas contrárias são (143). Qualquer
mudança se vê atribuída a uma par-tipo, que ou constitui
os dois únicos estados possíveis (par-ímpar, limitado-ilimitado)
ou os dois extremos de um campo de variações que se produzem
no seu intervalo (quente-frio, grande-pequeno). A actualização
desta ou daquela forma vê-se posta em relação com a
acção correlativa inversa.
Por conseguinte, as unidades do real já não são
simples e homogéneas, dotadas de propriedades unilaterais, mas organizações
polares, acolhem uma espécie de coexistência dinâmica
de polaridades opostas. De modo que, em vez de distinguir duas naturezas
de corpos, uns vivos outros mortos, pode-se admitir a existência
de constituições que comportem ao mesmo tempo destruição
e criação.
As determinações extremas dos fenómenos ligam-se
entre si por forças antagónicas que produzem misturas de
propriedades. Quebra-se a visão de um mundo inerte, formado de partes
independentes contíguas e expostas a perturbações
externas que o animariam de um movimento (144).
A questão do modelo que pode apreender o encontro de forças
contrárias faz nascer a problemática do equilíbrio
dos contrários, o ponto de junção. E a esse respeito
agrupamos em duas as maneiras de tratar do problema, uma a maneira arquimédica,
a outra a maneira hipocrática (145).
De acordo com a primeira, o equilíbrio assenta no uso de artefactos
(balanças) procurando definir idealmente e abstractamente um centro
de gravidade e as condições de uma imobilidade (146).
As teorias saídas deste paradigma privilegiam, na maioria, a
figura da anulação das forças opostas.
De acordo com a segunda maneira, o equilíbrio caracteriza-se
pelas pequenas oscilações em torno de um centro de gravidade
fictício (147).
A maneira arquimédica segue o modelo de equilíbrio do
fiel da balança, procura explicar a estabilidade num mundo em devir
instável, e a maneira hipocrática segue o modelo do pêndulo
oscilante, pressente sob a ordem uma alteridade em movimento. Uma propõe
um equilíbrio de repouso, se assim se pode dizer, que resulta da
igualdade constante de duas forças que actuam continuamente segundo
direcções diametralmente opostas, outra o equilíbrio
de movimento, que resulta da acção simultânea de forças
iguais mas que prevalecem uma sobre a outra, alternadamente, à causa
de agentes exteriores (148).
Conforme se verificou, as posições seguidoras do equilíbrio
arquimédico organizam-se em posições que ora desligam
os opostos (149), ora os igualam, fundindo-se os aspectos diversos numa
unidade superior (150).
O esquema da compensação, nutrido por um componente normativo,
generaliza-se e é colocado no centro de todas as coisas, porque
tudo na natureza está submetido a uma harmonia geral, garantida
por um Deus previdente e generoso (151).
O equilíbrio das forças, nesta situação,
assenta numa finalidade providencial, externa, portanto, aos elementos
que se compensam (152).
A compensação leva os extremos para o centro, as extremidades
para o meio, os excessos para a medida. Nessa medida, as filosofias da
compensação acabam por ser um monismo da ordem, valorizam
o equilíbrio como lugar da reconciliação, como forma
de atingir uma média, introdutória de uma espécie
de forma ideal justa e dissuadora de se conceder qualquer eficácia
ao desequilíbrio (153). Idealiza-se o estável.
Curiosamente, o paradigma arquimédico, moldado no Direito e
na Economia, vai ser substituído pela tecnologia no séc.XIX.
A máquina permite que se transfira para sistemas artificiais o processo
de restabelecimento do equilíbrio.
A providência transcendente é substituída por um
automatismo imanente. Mais tarde, com a cibernética, os mecanismos
de restauração de uma constância tornam-se flexíveis
e mais autónomos e automáticos (154). De Arquimedes à
Cibernética, a finalidade é a de garantir a igualdade, a
supressão de uma diferença.
Através destes modelos somos colocados perante a valorização
de estados homogéneos, desconflitualizados e estabilizados. A alteridade
dissipa-se numa situação em que não existe antagonismo
vivo, os extremos tocam-se e repousam, apagam-se para dar lugar ao vazio.
NOTAS:
1-PLATÃO, Protágoras, 320c-322d.
2-Régis DEBRAY, Cours de Médiologie Générale,
Paris, éditions Gallimard, 1991, p.75.
3-Régis DEBRAY, Manifestes Médiologiques, Paris, éditions
Gallimard, 1994, p.141.
4-Ibidem.
5-Régis DEBRAY, Cours de Médiologie Générale,
p.76.
6-José A. Bragança de MIRANDA, Notas para uma abordagem
crítica da cultura, p.11 (Texto policopiado).
7- Idem, p.14.
8-Guy DEBORD, A Sociedade do Espectáculo, Trad. Francisco Alves
e Afonso Monteiro, Lisboa, mobilis in mobile, 1991, p.14.
9-Idem, p.16.
10-Seguindo a advertência nietzschiana de Genealogia da Moral,
como poderemos esquecer o «acto de autoridade que emana dos que dominam
» e encontra o nome para a ideia que perseguimos?! Eis, justificada,
a remissão histórica do começo do nosso texto. Cf.
Friedrich NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Lisboa, Guimarães Editores,
1992, p.21.
11-CSPICQ, «Médiation», Dictionnaire de la Bible,
Supplément, Tome V, 1957, p.983.
12-Nas religiões da Mesopotâmia a mediação
é protagonizada pelo rei. O rei representava o povo no culto e constituía
o meio através do qual a vontade dos deuses era transmitida e suas
bênçãos eram concedidas. Existiam outros mediadores,
seus subalternos, os sacerdotes.
Na religião egípcia, o faraó encarnava os dois
mundos, era como deus e como homem.
13- Os quatro poemas do servidor são prova disso: Poema I, Isaías
42, 1-4;6-7; Poema II, Isaías 59, 1-6; Poema III, Isaías
50, 4-7; Poema IV, Isaías 52, 13-53, 12.
14-Miguel Baptista PEREIRA opõe a experiência dia-bólica
à experiência sim-bólica, utilizando como referências
a Torre de Babel, para a primeira, e o encontro do Cenáculo, para
a segunda. Cf. Miguel Baptista PEREIRA, «Comunicação
e Mistério», CENÁCULO, XXXV, 136, (1995/96), p.163-182.
15-Génesis 1, 26-27. Como se equaciona, neste caso, a relação
do homem com Deus? A tese de Soggin é a de que a relação
é igual à que a cópia mantém com o original.
Quer isto dizer que a criatura não tem autonomia própria,
depende sempre do Criador, a quem representa. Cf. J.A SOGGIN, «Ad
immagine e somiglianza di Dio», Varios (Atti del simposio per il
XXV dell'ABI), Brescia, 1975, p.75-77 (referência encontrada em G.
BARBAGLIO, «Imagen», Diccionario Teologico Interdisciplinar
III. Salamanca, Ediciones Sigueme, 1982, p.133).
16-G. BARBAGLIO, op.cit., p.137.
17-O hebreu significa a situação de duas maneiras. Quando
aparece na Sagrada Escritura significa intercessão ou oração,
e veja-se I Samuel 2, 25; Génesis 20, 7; Números 21, 7; Deuteronómio
9, 20. A mesma significação em Job 31, 1-11, com o sentido
de Juiz, e em Êxodo 21, 22, com o sentido de árbitro.
O outro significado guarda uma ressonância mais forense. Exprime
a decisão imposta por aquele que tem autoridade. Veja-se em Génesis,31-42,
como se espera a arbitragem de Deus, equivalente a uma sentença.
O facto de que se trata da intervenção de um terceiro encontra-se
em Génesis 31, 37, com os companheiros de Labão e Jacob a
desempenharem esse papel. Em Job 9, 33 é Deus o árbitro.
O mesmo pensamento aparece em Job 16, 21.
18-Abraão pode ser citado como exemplo de uma mediação
que permanece na esfera do humano, ora para salvar Sodoma (Génesis
18, 22-23), ora para justificar Abimelec (Génesis 20, 1-17).
Moisés também representou esse tipo de mediação.
Veja-se quando as tribos saídas do Egipto deparam com Amalek (Êxodo
17, 11-13), o episódio do vaso de ouro (Êxodo 32, 7-14) e
o episódio da serpente de ouro (Números 21, 7).
São passagens que oferecem de Moisés a imagem de um intercessor.
O principal objectivo era obter o perdão de Deus para o povo, tão
só. Contudo, Moisés ultrapassará Abraão, ultrapassará
a mediação sob a forma de intercessão.
19- Eis a posição de S. Paulo relativamente à
intervenção de Moisés. Não é o mediador
último. Será, no entender do apóstolo, um delegado,
um intérprete da vontade de Deus, um Seu agente subalterno. Alguém
eleito pelo seu carisma, mas apenas para manter o plano de salvação
previsto para o povo de Israel. Um peão no jogo de Deus!
Posição partilhada por Fílon de Alexandria e pelos
rabinos judaicos. O primeiro não o considera mais que um intercessor,
conciliador e protector do seu povo; os segundos assemelham Moisés
a um negociador ou intérprete. Cf F.J.SCHIERSE, «Mediador»,
Conceptos Fundamentales de la Teologia, Tome II, Madrid, Ediciones Cristandad,
1966, p. 620.
20- O rei israelita, Saúl, David ou Salomão, não
tem nada da divindade do faraó, nem tão pouco da qualidade
sobre-humana que naquela época se apresentava nos monarcas da Mesopotâmia.
21- Jeremias 2, 26-3,5; Isaías 6; Jeremias 1; Ezequiel 1-3;
Amós 7, 15.
22- Em termos estritamente teológicos, o domínio próprio
do profeta é a escatologia, o anunciar o reino de Deus e o advento
messiânico.
23- O Servo tem outras particularidades, comparáveis às
do Sábio grego, é que apenas ensina. É simplesmente
um mestre de sabedoria, sem necessidades de sair da Palestina para cumprir
sua missão. Não se pronuncia em público, deixa de
fora as questões políticas, não questiona as instituições
tradicionais, concentra-se apenas na moral e tem uma doutrina humanista.
Não foi esta a imagem de Sócrates dada por Platão
na Apologia? Como o Servo, também Sócrates recebe de um espírito
revelações. É óbvio que o daimon socrático
não é o mesmo que o Espírito do Servo. O Servo é
integrado, como o profeta, numa perspectiva escatológica. De salientar
que, na Babilónia, nos cultos e na magia, usava-se este princípio
de substituição a que o Servo dá expressão
bíblica.
24- C.SPICQ, op.cit., p.1015.
Confronte-se com os poemas do Servo.
25-Atente-se em Provérbios 8, 22-36, o relato da origem da Sabedoria.
26- Confirme-se em II Samuel 33, 2: Isaías 49, 21; Zacarias
7, 12; Salmos 33, 6; Provérbios 1, 23; Judite 16, 14.
Os hebreus nunca as distinguiram perfeitamente.
27-A ideia da presença do Espírito no meio do povo, para
o guiar e renovar os seus sentimentos, é uma ideia que tem consistência
após o exílio. Cf. Isaías 4, 4; 63, 10, 11, 14.
28- O livro de Daniel é de um judaísmo tardio. A concepção
do anjo como mediador não é eminente nos primeiros livros
do Antigo Testamento, devendo ser chamado mais de intermediário
que de mediador.
29-A interpretação de S.Paulo é a de que, na aliança
sinaítica, os homens ficaram sob a custódia da Lei e não
da Revelação (Gálatas 3, 23). Demarca o que mais adiante
dirá ser da ordem da pedagogia (24) do que é da ordem da
promessa (29). A primeira tem origem no 'negócio' entre Moisés
e Deus, a segunda tem origem em Cristo.
30- A questão da imagem, da verdadeira e autêntica imago
Dei, é uma inquietação que vem da igreja primitiva
e que S.João exprime, afirmando:«A Deus ninguém jamais
o viu.» (João 1, 18). Na Carta aos Colossenses, S.Paulo escreve:«Ele
é a imagem de Deus invisível.» (1, 15).
Em Cristo Deus dá-se a ver. Foi em Cristo que a Palavra se fez
carne (João 1, 14), se realizou a união das duas naturezas,
divina e humana (Efésios 3, 9).
A Encarnação constitui um dos elementos capitais do cristianismo
e tem sido um dos mistérios divinos onde mais esforço racional
foi feito.
31- Mesites (Mesites) é a palavra grega que designa a situação
de 'estar entre'. Faz parte de um grupo de palavras como mesiteia (mediação),
com o significado de posição central, mediana, garantia,
e mesiteo (mediar), com o significado de ser intermediário, estar
no meio, arbitrar.
O termo mesites só aparece na era cristã, junto com a
Coinonia (séc.IIIA.C.). No Novo Testamento é utlizado seis
vezes: Gálatas 3, 19-20; I Timóteo 2, 5; Hebreus 8, 6; 9,
15 e 12, 24. E como se verifica, releva exclusivamente do vocábulo
paulino.
32-Eggos é o termo grego para fiador. É um termo do direito
muito frequente nos papiros egípcios e no direito grego. Refere-se
ao que toma sobre si as obrigações jurídicas num contrato
de garantia. O fiador podia mesmo pagar a caução com a própria
vida. O termo integra-se, perfeitamente, no âmbito dos fiéis
cristãos que, como peregrinos, avançam e perseveram sobre
a cidade celeste unicamente apoiados em promessas.
33-Anunciado em Jeremias 31, 31-34 e redito em Hebreus 8, 8-12.
34-Cristo ratifica a aliança com o seu sangue (Mateus 26, 28).
Nenhuma união pode ser concebida sem efusão de sangue (Hebreus
9, 22).A morte é necessária para que os herdeiros de Cristo
recebessem em herança os seus benefícios. A morte tem valor
de sacrifício, oferecê-la é acto essencial da sua mediação
(I Timóteo 2, 6).
35-Mesmo os anjos o adoram. Cf. Hebreus 1, 6.
36- Perspectiva teleológica da mediação. Cristo
é a causa eficiente, exemplar e final de todos os seres, utilizando-se
uma linguagem aristotélica. Tudo nele recapitula.
A ideia de arbitragem que comporta etimologicamente o termo mesites
esfuminha-se em proveito do poder e soberania detidos por Cristo.
37- Na linha da missão do dialéctico, sublinhada em Fedro
266b,c, Cristo distingue a unidade na multiplicidade. Realiza a coinonia,
a comunicação amorosa entre seres contrários. Como
na música, ainda segundo Platão, (Sofista 253b), da combinação
de graves e agudos é que resulta a harmonia conciliadora.
38- «O Cristo mediador é a nossa sabedoria, simultaneamente
especulativa e prática», confirma C.SPICQ, op.cit., p. 1080.
39- Os santos passarão a desempenhar o papel de medianeiros
da Igreja. Homens consagrados e silenciosos, representam as «boas
formas da Igreja, as etiquetas cerimoniosas do gosto hierático»,
nas palavras de Nietzsche, que impedem que se fale directamente com Deus.
Lutero empreendeu contra eles uma autêntica guerra. Cf. F. NIETZSCHE,
op.cit., p.121.
40- Como o conceito de Filho, ou o conceito de Homem.
41- C.SPICQ, op.cit., p.1022; F.J.SCHIERSE, op.cit., p.620; AAVV, «Mediação,
Mediador», Dicionário Bíblico, São Paulo, Edições
Paulinas, 1984, p.596-597.
42-As situações mais frequentes são: recomendar
conselheiros a princípes; regular o que um contrato ou uma aliança
deve estipular; conciliar contrários; servir de árbitro numa
transacção jurídica; negociar a paz entre forças
beligerantes procurando cessar as hostilidades. Cf. C.SPICQ, op.cit., p.
1022-1023.
43- Fílon de Alexandria (n.20?a.c.-m.50?d.c.) é um filósofo
e teólogo do judaísmo helenístico que recorre a Platão,
Aristóteles e aos estóicos para apresentar uma filosofia
em que o papel de intermediários e mediadores é entregue
a seres transcendentes, como o Logos (pensamento divino criador), a Sabedoria
(meio de criação do universo), Pneuma (une a alma com Deus),
as Potências (seres mitológicos, figuras, símbolos),
anjos (embaixadores de Deus entre os homens) e os padres.
São entendidos como extensões de Deus; é através
deles que Ele estende o seu poder às extremidades do universo, contendo
todos os seres o seu domínio. Neste sentido, o crente é convidado
a progredir de imagem em imagem até alcançar o ser simples,
que o entendimento não pode ver por defeito de subtileza.
O judaísmo palestiniano, à semelhança da teologia
anterior, reconhece também uma multiplicidade de seres intermediários:
Sabedoria, Torâh, Espírito de Deus, Memra, Métatron
(qualidades da natureza divina mas que não se distinguem realmente
dela) e Shekinah (marca e presença de Deus, da sua imanência,
que todos conhecem mas ninguém está autorizado a dizer).
Esta última tende a atenuar o que há de perigoso e de pouco
decente numa apreensão directa da face de Deus.
44-Os textos herméticos e astrológicos, posteriores à
era cristã, são outras das formas que exploram o conceito.
Vejam-se as revelações de Hermes Trimegistro a Tat a propósito
da influência sobre a alma humana que os demónios dos planetas
exercem. É devido a eles a mudança dos reis, a sublevação
das cidades, as pestes, as fomes, o fluxo e o refluxo do mar, os tremores
de terra, etc.. Os planetas, em número de 36, designados os Decanos,
são os mediadores.
A medicina astrológica egípcia, por sua vez, defende
que cada parte do corpo humano estava sob a dependência de um deus
ou de um génio e era necessário conciliar-se com ele para
que tal órgão permanecesse são ou recuperasse a saúde.
À situação mediana prendia-se uma significação
moral ou médica. Cf. C.SPICQ, op.cit., p. 1027-128.
45- Cf. J.MOLLER, «Mediación», Conceptos Fundamentales
de la Teologia, Tomo II, Madrid, Ediciones Cristandad, 1966, p.614-615.
46-O termo Categoria (Categoria), na etimologia, aponta para as duas
perspectivas, significa afirmar, predicar, mas também, na linguagem
dos tribunais, acusar, falar contra. Cf. Michel RENAULD, «Categoria»,
Logos, Vol.1, Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1989.
A bipolaridade semântica da palavra em apreço encontra
semelhanças com outras palavras, como o termo egípcio Ken,
que designa o forte e o fraco, os termos latinos Saltus, que exprime ao
mesmo tempo o alto e o profundo, e Sacer, ao mesmo tempo positivo e negativo.
Remeterá a palavra para dois objectos distintos ou antes para
a relação e diferença entre os dois?
A cultura barroca do séc.XVI gerou o poético fazendo
renascer uma prática linguística que procura exprimir a simultaneidade
dos contrários e a impossibilidade de basear a realidade no unívoco.
Qualquer forma não pode ser vista isolada, sim ligada ao seu oposto.
Nos extremos desta cultura, pode observar-se o risco de a diversidade
antagónica passar a ser vista como um jogo de inversão de
formas, o que pode levar ao enfraquecimento da diferenciação
dos opostos. E exemplo a obra de Montaigne, que apresenta, segundo os seus
críticos, a reversibilidade dos contrários e o consequente
isomorfismo e indistinção. Cf. J.J.WUNENBURGER, A Razão
Contraditória., p.146-149.
47-As expressões pertencem ainda a J.J.Wunenburger, que as associa
à semântica da ferida.
48- Confirme-se através de Alcméon («(...)a maioria
das coisas humanas anda aos pares: branco-preto, doce-amargo, bom-mau,
grande-pequeno». Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A,5,986
a 31-32; 35-36; KIRK e RAVEN, Os Filósofos Pré-Socráticos,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982 p.235-239) e da
tábua pitagórica, composta de 10 pares de opostos (Limite-Ilimitado,
Ímpar-Par, Um-Múltiplo, Direita-Esquerda, Macho-Fêmea,
Repouso-Movimento, Rectilíneo-Curvilíneo, Luz-Obscuridade,
Bom-Mau, Quadrado-Oblongo. Cf. ARISTÓTELES, op.cit., 986 a 22-26).
Estas são posições elementares de um trabalho filosófico
sobre os opostos. Essa elementaridade será motivo de fortes críticas
por parte de Aristóteles. Veja-se em Metaf., A,5, 986 a 36-37; Categorias,
10, 12a ss.
49- J.J.WUNENBURGER, op.cit., p.32.
50-No pitagorismo a plenitude do ser está conferida no Uno,
este é a figura da igualdade perfeita; a Díade introduz a
primeira forma de indeterminação.
51- Sendo o dual uma oposição que só favorece
o triunfo de um só, a tríade ganha vantagens porque traz
em si um jogo de alianças e de oposições graças
ao qual dois podem agir contra um, um contra dois. Só na tríade
podem existir ligações e repulsões. É, realmente,
expressão do holon e não já de uma reunião
segundo o pan.
A problemática da alteridade ímpar rompe com a simetria
do dois e devém, verdadeiramente, a primeira forma complexa. O dois
havia já fixado uma primeira diferença mas, dado o seu carácter
especular, é mais de uma indiferença que se trata.
Com a tríade, a dualidade rebenta e cada elemento vê-se
confrontado com dois outros, chegando a adquirir violência (o demiurgo
de Platão). A vida não é redutível a um ou
a outro dos elementos, não se decide numa lógica de inclusão
ou de exclusão.
52- Princípio refutado por Parménides, de acordo com
o argumento de que o que é é incriado, extinguindo, por consequência,
a ideia de geração e mudança. Isso é impensável,
abrindo para um horizonte especulativo que não encontra ponte entre
a Unidade e a Multiplicidade.
As primeiras cosmologias, pelo contrário, associam o princípio
da diferenciação à explicação da génese
do mundo. Tales, Anaximandro e Anaxímenes, ainda Heraclito, estabelecem
um regime de causas entre os opostos. Derivam da acção dos
opostos uns entre outros a geração, algo que para Aristóteles
é um erro. É um erro supor que os opostos sejam a causa de
todas as coisas sem a existência de um substrato (hypokeimenon).
A este substrato caberia a função de mediação.Cf.,
Met., L, 10, 1075 a 25-30.
53- Fernando GIL, Mimesis e Negação, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1984, p.173-194.
54- Outros exemplos: alto e baixo, direita e esquerda, frente e atrás,
côncavo e convexo, avesso e direito, uma forma e sua imagem especular.
55- O mito toma a simetria como um dos principais critérios
organizadores:«Eram, no princípio o Espaço e o Companheiro;
o espaço, no alto Céu, que Tananoa rematava; Ele governava
o Céu, e Mathuei envolvia-o.»Trata-se de um excerto de um
mito polinésio da criação. O suporte básico
da criação é atribuído ao acoplamento de elementos,
dependendo deste a estabilidade do todo. Cf. Ernst CASSIRER, Linguagem,
Mito e Religião, Porto, Edições Rés, 1976,
p.83.
56- Outros exemplos: doce-amargo, rápido-lento, belo-feio, justo-injusto,
forte-fraco.
57- PLATÃO, Fédon, 71b.
58- Aristóteles, no esclarecimento sistemático que faz,
designa este tipo de oposição por oposição
relativa. Cf. Cat., 7, 6b 20ss; 8, 10b 25 ss.
59-Outros exemplos: essência-aparência em Platão,
Yin-Yang no pensamento chinês, extensão-pensamento em Descartes,
sujeito-objecto na epistemologia moderna, númeno-fenómeno
em Kant, onda-corpúsculo na mecânica quântica, vigília-sono,
vida-morte, imortal-mortal.
60- PLATÃO, op.cit., 72 a-b.
61- A filosofia grega parece interessar-se mais pela descontinuidade
das complementaridades que pelas variações contínuas
das dualidades. Como provas podemos referir Heraclito, os opostos pitagóricos
e a física estóica.
O esbatimento das descontinuidades será um problema que transitará
até ao séc. XVII, altura em que a matemática é
um instrumento decisivo.
62-Outro exemplo: vil-honesto, Ser-Outro. Cada elemento é tudo
o que o outro não é.
63- Ludwig WITTGENSTEIN, Tratado Lógico-Filosófico, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, proposições
3.411 e 3.42.
64- Frequentemente, entendem-se as contrariedades como dualidades,
porque os dois pontos, considerados extremos, condensam o sentido de uma
variação contínua.
65- KIRK e RAVEN, op.cit., p. 193, fr.10, e também o fr. 67:«O
deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome;
passa por várias mudanças do mesmo modo que o fogo, quando
misturado com especiarias, é designado segundo o aroma de cada uma
delas.»
66- Heraclito e Empédocles serão casos raros no panorama
filosófico grego, em grande parte dominado pelo paradigma identitário
67- Aristóteles, ao mesmo tempo que elucida o regime das contradições
demonstra o princípio da não contradição e
do terceiro excluído, e as conclusões que retira são
as de que as doutrinas tradicionais sobre o ser e a verdade não
estão de acordo consigo próprias ou conduzem a conclusões
inaceitáveis. Refere como exemplos: Protágoras (Met., G,
4-6), Heraclito, Anaxágoras (Idem, G, 7-8) e Empédocles (Idem,
B, 4, 985 a 23; B, 4, 1000 a 25ss.).
68- Duas ideias: a)a razão julga encontrar em si, nas suas produções
conceptuais, um fundamento insuperável, antes mesmo de ter a certeza
de poder atingir o fundo das coisas; b)as regras vêm antes da preocupação
de alcançar a textura complexa do devir e do múltiplo.
69- ARISTÓTELES, op.cit., I, 4, 1055 a 20-33.
70- Aristóteles esclarecerá (G, 4 )que é impossível
que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo
tempo, ao mesmo sujeito, sob o mesmo aspecto (Princípio da Não
Contradição, estreitamente ligado ao Princípio do
Terceiro Excluído (Idem, G, 7), porque «uma coisa é
ou não é»).
71- A afirmação e a negação do mesmo estão
desunidas. Um organismo não pode estar senão morto ou vivo;
a quididade do homem não é a quididade do não-homem
(Idem, G, 4, 1007 a 20 ss.)
72-É o que o Princípio da Identidade enuncia, que uma
coisa é, o que é!
73- Antinomias matemáticas: o mundo tem/não tem um começo
no tempo; o mundo é/não é limitado no espaço;
o mundo é/não é composto de partes simples; antinomias
dinâmicas: liberdade/causalidade; necessidade/contingência.
74- Aristóteles recusa-se a pensar o devir dos fenómenos
e o Terceiro Excluído é disso prova, condenando o pensamento
à disjunção, obturando qualquer terceira posição
que permitisse pôr a coexistência dos contrários.
75- J.J.WUNENBURGER, op.cit., p.158.
76-A respeito da longevidade da lógica clássica e da
conotação pejorativa da lógica contraditória
que aquela lhe atribui, J.J.Wunenburger adianta que o pensamento identitário
tomou para si a aura da normalidade. Reforçou-se por meio de uma
patologia, enfim. Divulgou o seu ideal ao assegurar que o respeito pela
normalidade assegurava a normalidade psíquica.
A contradição, ao invés, permanecia associada
a uma monstruosidade lógica, a uma subversão racional. Tal
versão surgia da parte das psicopatologias centradas no primado
as desconflitualização. Carrear a perspectiva do contraditório
era sinal de desestruturação dos quadros mentais, de uma
alienação da consciência e a uma total incapacidade
de se inserir numa linguagem comum. Portanto, sempre foram apresentados
fortes motivos para dissuadir a concepção da contradição,
até que a psicopatologia da esquizofrenia e a psico-sociologia dos
grupos distinguiram a contradição patogénica da contradição
criadora. Em si, concluem, a contradição não é
patogénica, só o é porque o sujeito é incapaz
de dinamizar a contradição. E que se a contradição
pode avivar sintomas neuróticos a não contradição
também o pode fazer; o emprego generalizado do esquema identitário
pode levar a uma espécie de racionalismo mórbido, dissolvendo
todas as diferenças no homogéneo. Além disso, repelir
a alteridade pode veicular ideologias diabólicas. Cf. Idem, p. 161-167.
77- Jacob Boehme, uma figura alemã da especulação
teosófica, preludia Hegel a propósito da ideia de que o infinito
pressupõe o finito, sendo este o fundamento daquele.
A intuição de Boehme formula uma diferenciação
contraditória no Absoluto divino. Conjectura que Deus não
se manifesta senão num fundo de Ser e de Nada, de sim e de não.
Estende a lei da polaridade até ao absoluto. Segundo ele, o divino
acha-se exposto a um conflito de dois poderes.
Para uma visão resumida desta posição, Cf. Alexandre
Fradique MORUJÃO, «Boehme (Jacob)», Logos, Vol.1, Lisboa/São
Paulo, Editorial Verbo, 1989
Para além da intuição da contradição
no coração do Ser, Hegel herda o conceito de uma realidade
que é actividade, processo, movimento, auto-movimento do «eu
penso» kantiano e do idealismo de Fichte e Schelling.
78- Tomando que a substância é sujeito, Hegel retoma o
aforismo parmenidiano segundo o qual a mesma coisa é pensar (noein)e
ser (einai).
79- O espírito jamais está em repouso: «vai arrancando
um após outro os pedaços da fábrica do seu mundo precedente;
o seu titubear insinua-se por sintomas solados, a frivolidade e o aborrecimento
que mordem no existente, a vaguidão do desconhecido, são
presságios de algo de novo. O paulatino desmoronar-se, que não
altera a fisionomia do todo, interrompe-se e, como um raio, produz de golpe
o acontecer do novo mundo.» Hegel descreve o começo do espírito
como sendo o produto de uma revolução ampla nas mais diversas
estruturas, o galardão de uma carreira multiplamente intrincada
e de esforços e fadigas também múltiplas. Cf. HEGEL,
Fenomenologia del Espíritu, Madrid, Revista de Occidente, 1935,
p.15-16.
Quanto à progressão, ela terá uma configuração
em espiral. O momento abstracto ou intelectual, o dialéctico ou
negativo-racional e o especulativo ou positivo-racional marcam o ritmo
dessa configuração. Cf. HEGEL, Enciclopédia das Ciências
Filosóficas em Epítome, Vol. I, Lisboa, Ed.70, 1988, §79-82.
80- Cf. Francisco Videira PIRES, «Dialéctica», Logos,
Vol.1, Lisboa/Saõ Paulo, Editorial Verbo, 1989,
81- PLATÃO, Filebo 26d.
82-Anaximandro propõe o gonimon, que se introduz entre os contrários
e o infinito primordial, o apeiron. Em Anaxímenes, os contrários,
que são a raridade e a densidade, exprimem mudanças intrínsecas
do ar, que são a rarefacção e a condensação.
Para Parménides, o advento e a individualidade dos entes permanecem
um mistério. Em Platão, a individuação e a
organização relevam da chora e da ideia (instâncias
descoordenadas); do to pan (tudo) fisiscista, entendido como elemento primordial
de onde procede o que é, e do to holon (todo) metafísico.
Cf. PLATÃO, Sofista 242 d. Em Aristóteles, o mundo dá-se,
originariamente, como uma multiplicidade das substâncias (a unicidade
pertence à definição de substância). Cf. Met.,
G, 2, 1003b27-28.
83- O devir da natureza, o lugar de onde o espírito retorna
à sua identidade, é revelado pelo espírito, consiste
na revelação de que é livre. Põe a natureza
como seu mundo, «um pôr que (...)é ao mesmo tempo um
pressupor o mundo como natureza independente». Cf..HEGEL, op.cit.,
Vol.III, Lisboa, Edições 70, 1992, §384.
84-Hegel retoma a fórmula de Espinosa: «Omnis determinatio
est negatio».
85-Esta ideia de dialéctica liga-se à de inquietude,
explorada por Kierkegaard.
86- HEGEL, op.cit., vol. I, §84.
87- Idem, Primeira, Segunda e Terceira Secção da Lógica.
88-Âmbito da Filosofia da Natureza.
89-Âmbito da Filosofia do Espírito.
90A essência do espírito é negar-se imediatamente
idêntico. Apesar disso, não deixa de manter-se afirmativo.
Tem a liberdade de suportar a negação. Ele contém
o negativo de si mesmo, a contradição. Cf. Idem, Vol.III,
§382; Vol I, §214.
91- Veja-se que Hegel reconhece em primeiro lugar o primado da identidade.
Tal faz surgir uma perplexidade: a ser assim, o trabalho da contradição
não terá outro fim que o de restaurar, de renovar uma unidade
no interior da qual todas as coisas têm consonância, apesar
de o próprio Hegel sugerir que se trata de uma consonância
viva e não imóvel como a dos medievais, que simplesmente
inclui. A este respeito, J. MOLLER afirma:«(...)Hegel (...)intenta
uma mediação tal entre o pensar e o ser que as realidades
que se comunicam constituem uma verdadeira vida e não uma unidade
petrificada.» op.cit., p.616.
92-A religião cristã, no seu modelo luterano, é
uma das fontes principais, aliás, uma espécie de ilustração
antecipadora da sua doutrina idealista.
93- Escreve Hegel no prólogo à Fenomenologia do Espírito
que o botão é refutado pela flor, esta declara falsa a existência
daquele, assim como o fruto declara falsa a existência desta. Em
lugar da flor aparecerá o fruto como a verdade da planta. Cf. HEGEL,
Fenomenologia del Espíritu, 1935, p.5.
94-Hegel reata com a oposição da potência e do
acto aristotélica, como que a anunciar que o conceito não
tem de ir buscar fora de si o alimento fundamental ao seu desenvolvimento.
95-Cf. M.M. COTTIER, L'Athéisme du jeune Marx: ses origines
hégéliennes, Paris, Vrin, 1959, p.93.
96- A versão do infinito no finito obedece, neste paradigma,
a uma perspectiva continuista.
97- Entendendo a contrariedade hegeliana como o processo que designa
a dilaceração do Mesmo segundo um par de extremos e a oposição
o processo de instalar o Outro no Mesmo, a corrosão do Mesmo pelo
Outro.
98- A negatividade diz da dinâmica que afecta todas as figuras
no processo de diferenciação.
99-Se o positivo devém negativo, só pode entender-se
a aufhebung como continuação do processo de negação.
100- A oposição contraditória, visto que incide
sobre objectos idênticos ou semelhantes, explicita uma diferenciação
fraca.
101- Outros exemplos: natureza e cultura, finito e infinito, relativo
e absoluto, homem e Deus.
102-O paradoxo afigura-se, neste sentido, situar-se além da
razão identitária.
103- «Todo este mundo visível não é mais
que um traço imperceptível no amplo seio da natureza. Nenhuma
ideia se lhe aproxima. (...) enfim o maior rasgo sensível da omnipotência
de Deus é que a nossa imaginação se perca nesse pensamento
(...) Que é o homem no infinito?». Cf. Blaise PASCAL, Pensées,
Paris, Librairie Générale Française, 1972, frag.199.
104- «A paixão paradoxal da inteligência esbarra
portanto sempre com este desconhecido que certamente existe, mas que não
deixa por isso de ser menos desconhecido, e a este título menos
inexistente. A inteligência não pode ir mais longe: mas o
seu sentido do paradoxo leva-a a aproximar-se do obstáculo e a ocupar-se
dele; porque pretender exprimir a nossa relação com o Desconhecido
negando a sua existência não é correcto, visto que
o enunciado desta negação implica precisamente uma relação».
Cf. KIERKEGAARD, As Migalhas filosóficas, III, «O paradoxo
absoluto: uma quimera metafísica». Citado de Pierre MESNARD,
Kierkegaard, Lisboa, Ed.70, 1986, pág.54.
105- Essa tem sido a lógica das diversas escolas filosóficas
(materialismo-espiritualismo; idealismo-realismo; racionalismo-empirismo;
dogmatismo-cepticismo)que se encerram em visões sempre desmentidas
por uma escola oposta. Instalam-se num ponto fixo, válido como ponto
absoluto, ignorando a contradição. Tomam o aspecto de uma
antinomia, adjudicando a verdade a cada um dos opostos, do seu ponto de
vista, como em Kant.
106-A Razão dos Efeitos, ou das proposições, na
qual desempenha papel de relevo o esprit de finesse, traz à luz
a natureza paradoxal do homem. O homem é, simultaneamente, grande
e miserável, e que qualquer doutrina que considere apenas um destes
aspectos é falsa e perigosa (B.PASCAL, op.cit., frag.121). Nessa
medida, são falsos o dogmatismo de Epicteto e o pirronismo de Montaigne
(Idem, frag.109).
107-Não haver lugar para o "ou-ou" é suprimir a existência.
«quando faço abstracção da alternativa na existência
isso significa que faço abstracção da existência(...)».
Cf. KIERKEGAARD, Post-Scriptum aux Miettes Philosophiques, Paris, Gallimard,
1949, p.207-210.
108- Cf. B.PASCAL, op.cit., frag.93.
109- A existência é marcada por uma oscilação.
Equivale a uma vibração da alma, na imagem de JANKÉLÉVITCH
(Le pur et l'impur, Paris, Flmmarion-Champs, 1979, pág.228). Um
acontecimento instantâneo não é um acontecimento quase-nada?!
110-PASCAL, op.cit., frag.27. Contra o tédio do repouso, incita:«É
preciso sair dele e mendigar o tumulto».(frag.136)
111-A ironia, neste contexto, revelará que o finito estético
se abre ao infinito ético, e que o vazio da interioridade torna
possível a confrontação com a plenitude de Deus.
112-Perante a resistência da razão em admitir um mistério
para explicar outro mistério, Il faut parier!, já que estamos
lançados na vida. PASCAL, op.cit., frag.131.
113- Indicação encontrada em Pierre MESNARD, op.cit.,
Lisboa, Ed.70, 1986, p.61.
114-Convém distinguir a mediação simétrica
aristotélica da de Anaximandro. Para Aristóteles, segundo
o exemplo:«a saúde é uma simetria de calores e de frios»
(Física, VII, 3, 246b5), a simetria implica diferença; o
que é distinto da simetria a que Anaximandro alude para explicar
a imobilidade da terra no centro do universo (op.cit., II, 13, 295b11),
esta uma simetria na indiferença.
115-PLATÃO, Fédon, 71d.
116- Simetrias e dualidades são morfologias elementares, modelizadas,
a primeira, segundo a inteligibilidade da duração, do contínuo,
sem nenhuma secção, e a segunda segundo a inteligibilidade
da dobra, com começo e fim. A estas subjazem outras, como a ruga,
que modeliza o engendramento, a união e a desunião. Os géneros
Ser, Repouso e Mesmo apresentados no Sofista contam-se entre a primeira
das morfologias, e a emergência do cosmos em Anaximandro é
uma dobra. A Concórdia e a Discórdia em Empédocles
pode representar-se como uma ruga, como as demais complementaridades. Cf.
Fernando GIL, Mimesis e Negação, p.169-170.
117-PLATÃO, Timeu, 31c.
118-PLATÃO, Político, 284b.
119- PLATÃO, Timeu, 35c.
120- Vários exemplos: a água e o ar servem de transição
entre o fogo e a terra (Timeu, 31b-32c); a medula é o meio termo
entre a alma e o corpo (Timeu, 73d); em Retórica, a perfeição
consiste em discursar entre o demasiado conciso e o prolixo (Protágoras,
338 a), entre o demasiado curto e o demasiado longo (Fedro, 267b); Eros
é o intermediário entre o mortal e o imortal (Banquete, 267b),
é um auxiliar da alma, ajuda-a a elevar-se acima do mundo sensível,
até à contemplação da ideia (Banquete, 211
a,b), facilitando-lhe a ascensão até ao Bem (República);
o virtuoso é o que se mantém na justa medida(Protágoras,
346d); em política o ideal será entre a servidão e
a liberdade (Leis, 694 a).
O metaxo intervém também na religião, sob a forma
de daimones e de oráculos, sobretudo oráculo de Delfos, onde
Apolo é o exegeta do direito sagrado (República, 738b-d;
427b,c). Os daimones, por seu turno, servem de traço de união
entre os deuses e os homens (Banquete, 203 a). De entre os principais aspectos
da sua intervenção, destaca-se o papel que têm de transmitir
aos deuses o que vem dos homens e aos homens o que vem de Deus, completar
o vazio que existe entre uns e outros, unir o Todo a ele mesmo (Banquete
202e), proteger dos males da injustiça, cupidez, violência,
loucura (Leis, 906 a). Atribuído a cada homem logo pelo nascimento,
vela por ele durante a vida terrestre e condu-lo diante do tribunal onde
se julgam as almas. É assim uma espécie de aliado ou génio
tutor (Fédon, 107d-108b; 113d; República, 617d-e; 620d-621b).
121- Platão afirmará no Filebo:«(...)um e muitos
(...) circulam por todas e cada uma das coisas que dizemos.» (15d)
A unidade e a multiplicidade informarão uma lista vasta de outras
figuras conceptuais: parte-todo, simples-complexo, Mesmo-Outro, Discreto-contínuo,
finito-infinito, absoluto-relativo.
122- Não desempenhando um papel tão preponderante como
em Platão, o misto para Aristóteles tem também uma
causa exógena à experiência; refere-o como sendo da
mesma natureza que os extremos (Metafísica,1057 a 26). Na lógica,
o termo médio do silogismo reúne os extremos e torna a conclusão
possível (Segundos Analíticos, 81b, 31, 35; 82 a, 2, 21,
28, 30, 31, 33); o contínuo espacial ou temporal não pode
conceber-se sem intermediário: «a linha é intermediária
entre dois pontos, como o tempo entre dois instantes» (Física,
VI, 231b, 6-10); o movimento produz-se entre termos opostos ou contrários
(Idem, V,III,236h, 23; Metafísica, 1068b, 27); a noção
é utilizada em moral para definir o meio termo virtuoso (Met., 1023
a 7); na religião, o motor imóvel fonte primitiva de todas
as forças motoras, faz seguirem-lhe deuses de segunda ordem, condutores
dos astros, a quem o Primeiro motor entrega o governo do mundo; a forma,
definidora e configuradora do ser concreto, serve de mediadora entre o
ser e o conhecer; por outro lado, o conhecer, que não se pode explicar
a partir do homem, remete para o ser que é pura ousia, pura energeia,
pura noésis. Pode aludir-se, ainda, ao papel dos intermediários
nos relativos e dentro da contrariedade.
Plotino multiplica as hipóstases mediadoras (Enéades,
V, 1, 4). A todos os níveis há um movimento de retorno à
unidade mais elevada da hipóstase anterior - da Alma ao Nous e deste
ao Uno (Idem, VI, 7,17). No topo está o Uno, que faz remontar a
si o que de si procede (Idem, V, 4, 1; 2, 1; 2, 2). Este movimento de retorno
resolve-se graças ao Nous (Inteligência), que forma uma unidade
com a pluralidade dos seus objectos (eide), descrevendo-se como um uno
múltiplo, e graças à Alma, cuja unidade se desdobra
na diversidade dos entes (Idem, V, 1, 8, 25-26). Em conclusão, a
dialéctica uno-múltiplo joga-se nos planos da Inteligência
e da Alma. Quanto ao Uno, dele só é lícito dizer que
está para lá do ser, não exprime um 'isto' determinado
nem sequer é possível exprimir o seu nome. Comporta só
uma tese negativa: 'não é isto' (Idem, V, 6, 10-12).
Toca-se o Uno pelo êxtase, o que sugere uma imediação
no seu acesso, a não discursividade.
123-A filosofia grega, atraída por esta questão dos complementares,
apresenta soluções variadas. A propósito da primeira
hipótese, o fogo (pyr)de Heraclito estabelece a medida dos complementares.
Representa, por conseguinte, uma lei cósmica, como constitui a alternância
entre a dominação da Concórdia e a dominação
da Discórdia em Empédocles.
A solução de Anaxágoras, segundo a qual os spermata
contêm uma mistura inicial válida para todo o sempre, é
partidária da segunda hipótese. Os elementos de Anaxágoras
transportam consigo uma constituição originária e
os princípios da sua organização. Solução
também de Leucipo e Demócrito e os Estóicos (Cf. Met.,
A,4,985b5).
Aristóteles partilha da terceira hipótese. A perenidade
das espécies, diz ele, é um efeito da tendência da
Natureza para Deus (De Generatione, II,10,336 a 35-337 a 1; Gener. Animal,II,1,731b
18ss; De Anima, II,4,415 a 29 -b 3). Em Aristóteles há uma
reorientação teleológica do problema da geração
dos seres. Tal processo natural de reprodução existe para
os seres vivos participarem no eterno e no divino (De Anima, II,4,415 a
28).
124- Citação encontrada em F.Gil, op.cit., p.185.
125-A significação da solução da mediação
dos contrários como facto de razão vem prejudicar a análise
aristotélica da dupla pertença que os opostos gozam, ao ser
e ao pensamento. Não possuem só um estatuto lógico,
também ontológico. Valorizando os contrários no estatuto,
eminentemente, de factos de razão, estão Platão, Plotino,
Santo Agostinho, São Boaventura, Malebranche, Leibniz e Kant, entre
outros.
126- Marx conta-se entre os grandes críticos desta ideia de
mediação. Aceitará a procura da harmonia, da coesão,
da igualdade, do equilíbrio, mas tomando como ponto de partida os
sujeitos reais. O cunho humanista deste pensador leva-o a depreender que
os conceitos apenas constroem outros mundos, que apenas alienam as relações
do homem com as suas obras; provocam a desorientação do homem:
na religião, na filosofia, no Estado, na classe social, no produto
do trabalho. E dissipar esse outro mundo é o papel da crítica
filosófica. Cf. MARX, Contribution à la critique de la Philosophie
du Droit de Hegel, Paris, Aubier-Montaigne, 1971, p.79.
127-O Ser está no começo contido no Nada («Nada
ainda é e (já) é preciso que algo seja»), como
o Nada sobrevem na interioridade do Ser, marcando-lhe o progresso. Cf.
HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas, §87.
128- Cf. HEGEL, op.cit., §112.
129- Através de Hegel, o aforismo parmenidiano encontra-se posto
dialecticamente em movimento.
130-Cf. HEGEL, op.cit., §86.
131-A história é, como opina Enrico Rambaldi, o crisol
da mediação, o seu lugar por excelência. Cf. Enrico
RAMBALDI, «Mediação», Enaudi, Vol.10 (Dialéctica),
Porto, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988, p. 145.
132-Natureza e cultura enfrentam-se na história; as relações
entre indivíduos são o palco onde o choque se torna visível.
133- Por oposição à mediação radical
de Hegel, surge a mediação não radical, segundo a
qual a desigualdade é fruto de uma incompleta arte social.
134-As mediações precedentes correspondem a articulações
de diferenças. À autoconsciência elas não aparecem
significativas, mas constitutivas. Sublinha-se, desta maneira, uma mediação
em dois sentidos, negativo e positivo.
135- Rambaldi não tem dúvidas de que a Fenomenologia
do Espírito hegeliana é o maior incunábulo moderno
da reflexão sistemática sobre este aspecto enriquecedor da
mediação. Cf. E.RAMBALDI , op.cit., p.157.
136- O momento originário, totalmente imediato, do 'eu' e do
'outro' desdobra-se em mediação. O 'eu', como pura consciência,
destrói o 'outro', nega-o. E teríamos a tautologia do 'eu
sou eu'. Mas porque o 'eu' é constrangido a mover-se no mundo, o
comportamento do homem é, antes do desenvolvimento das mediações,
de negação da alteridade do mundo, esforço por subsumir
o mundo sob si mesmo.
Neste momento as diferenças de si própria são
nulas, o que conduz a uma concupiscência que jamais se satisfaz.
Razão para que a sua acção seja mera destruição.
137-O desenvolvimento do encadeamento entre mediação
e imediatez gerou uma nova totalidade, a duplicação da autoconsciência.
138- Imediato porque as duas não são reconhecidas reciprocamente
pelo que são em si.
139- Para uma abordagem sucinta do texto hegeliano sobre a dialéctica
da senhoria e escravidão, contido na Fenomenologia do Espírito,
observar o esquema de Giuseppe BEDESCHI, «Servo/Senhor», Einaudi,
Vol.5 (Anthropos-Homem), Vila da Maia, Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1985, p.266-267 e, ainda, E.RAMBALDI, op.cit., p.160-161.
140- Para Kierkegaard, o calcanhar de Aquiles da filosofia sistemática
reside na crença de que não existe quebra, de que o começo
é absoluto, e que não acontece na decisão. Ao invés,
o pensador dinamarquês pressupõe uma sequência com a
qual se está permanentemente a romper, fazendo do começo
um re-começo, sucessivamente. Cf. Jean WAHL, Études kierkegaardiennes,
Paris, Vrin, 1967, p.177.
141-PASCAL, op.cit., frag.199.
142- Ibidem.
143- Philippe QUÉAU, Metaxu, Champ Vallon, 1989, p.85.
144- Do mesmo modo que as bolas de bilhar recebem a sua energia cinética
do exterior e se entrechocam segundo leis puramente mecânicas.
145- A terminologia pertence a J.J.WUNENBURGER, op.cit., pág.110.
146- A ideia de equilíbrio é fornecida pela balança
- uma balança está em equilíbrio quando as duas partes
se sustentam tão exactamente que nem uma nem outra sobe nem desce,
privilegiando-se o zero, o neutro, o inerte. E este défice de diferença
implica que cada desequilíbrio seja amortecido, compensado, de modo
a que a estabilidade inicial se restabeleça. Dá-se a equivalência
dos opostos, ou coincidentia oppositorum.
147- O paradigma hipocrático remete para as situações
em que pode oscilar o desequilíbrio e a harmonia, posto que para
Hipócrates a harmonia do organismo não era um estado estável
e perfeito. O ideal biológico resulta de uma justa proporção
dos humores.
148- Uma reivindica uma contradição resolvida, expandindo-se
no pensamento da alquimia, que mistura opostos por intermédio de
um mediador, outra reivindica uma contradição não
resolvida, culminando no balanceiro pascaliano e kierkegaardiano.
O equilíbrio por igualação é objecto da
mecânica (os movimentos têm o seu fundamento no centro de gravidade)
e serve de referência a Descartes (uma só e mesma coisa pode
produzir efeitos contrários, tal como numa balança, em que
o mesmo peso eleva um prato e abaixa o outro). Cf. DESCARTES, Regras para
a direcção do Espírito, 2ªed., Lisboa, Ed.Estampa,
1977, regra IX.
149- No exemplo:«a rosa bela tem os seus espinhos», ama-se
a rosa pela sua beleza e detesta-se por causa dos seus espinhos, a coexistência
do positivo e do negativo assenta numa conjunção desarticulada,
numa ausência de síntese. Aí, o conflito imobiliza-se,
não se torna possível o devir, o real é cortado em
dois.
150- No exemplo:«a rosa tem os seus espinhos», ama-se a
rosa apesar dos seus espinhos. Os aspectos diversos fundem-se numa unidade,
facto que as Luzes evidenciam ao ligarem a existência universal de
antagonismos a um mecanismo que restaura a igualdade das forças
em conflito: ao Direito, por exemplo, atacando-se os delitos por meio de
penas adequadas. Só desta forma o sistema pode manter-se em equilíbrio
de repouso.
151- Nenhum excesso ou extremo gera um mal irremediável, uma
desordem absoluta.
152-A lei da compensação é projectada artificialmente
sobre elementos como Deus, que é o grande compensador da Natureza
no séc.XVIII. É o grande engenheiro do universo, que construiu
um artefacto de alta precisão.
153-Compensar será igualar, aplainar, rectificar, corrigir diferenças,
unificar multiplicidades, estabelecer continuidades.
154- A lógica cibernética não faz senão
amplificar o mecanismo de retorno ao equilíbrio, anterior às
diferenças provocadas à saída.