EM TORNO DA Mediação e DA Constituição da Experiência

 

José António Domingues, Universidade da Beira Interior

 

 

«Um inesgotável desejo de nascer

ou ser o odor da terra. Quem é a incógnita soberana?»

«Mediadora Caminhante» in António Ramos Rosa, Mediadoras [1]

 

   1. Há um pensamento que diz que onde quer que seja requerida uma organização há mediação. É assim na lógica, para articular premissas, no conhecimento, para explicar o dado segundo leis ou princípios, ou no domínio da acção prática, para fazer do comportamento uma conduta regulada. Segundo este pensamento, há espaço para a mediação e para o imediato, este último figurado pela desunião, e também que a mediação é uma resposta à mesma. Ela é pensável, como em Walter Benjamin, a partir da ideia de uma certa experiência cesurada e que reclama uma estratégia de recomposição.[2] Lida directamente com a tensão, com o que não combina, com a oposição, e tem por finalidade garantir estados homogéneos e desconflitualizados. Neste âmbito, a  cultura surgirá como o grande campo de exercício das estratégias de unificação do disperso em que a mediação se transforma, o espelho delas.[3]

Uma leitura moderna, feita por Baldwin, sublinha ainda que ela consiste na referência que uma experiência faz a outra para que lhe seja dada uma significação.[4] Diz que algo é mediato ou obtido por mediação tendo em conta que a sua presença não é dada directamente, é indicada por outra presença, essa sim dada e presente. A mediação surge estruturada como representação. E representar, assinala Debray, «é tornar presente o ausente».[5] É dar a ver o que não se vê. É tornar próximo o distante. Mais que evocar, é substituir, aparecer em vez de. O nascimento da mediação faz-se, deste modo, por ocasião da morte do real. Para cumular a sua falta. Para aliviar a chaga aberta pela ausência ontológica. Em virtude de o directo do mundo não se poder dar, haver falta do original do mundo, da imediatidade, da condição selvagem, em seu lugar aparece uma cópia, uma dobra, uma tradução. Por conseguinte, a mediação desempenha uma função, apresenta-se como esquema operatório relativamente à insuficiência detectada na experiência. É tipo um pharmakos.[6] Todavia, assim como tem a possibilidade de fazer a ponte entre quem enfrenta a mediação e o que ela mediatiza, de evocar no visível um invisível, de permitir que o sujeito estabeleça com o inacessível um contacto, uma comunicação, tem também a possibilidade de a ele se sobrepor e advir no único ser objectivamente real. Acabará por se constituir referência. Operando na divisão entre mundo de ser e mundo de sentido, à mediação caberá unir o que se encontra separado e tornar visível o que não se pode tornar visível.

A alma da mediação é, como demonstram as Kolossoi gregas, por um lado a filiação profunda, a ligação íntima à sua procedência, de onde emana e encontra justificação, e por outro a distância, a incomensurabilidade relativamente ao que é mediatizado.[7] A separação é uma virtude.[8] Eis o que podemos depreender da crítica de Debord em A Sociedade do Espectáculo. Ela aí incide sobre a mediação autónoma, que podemos contrapor à heterónoma, aquela que deve o seu ser à coisa que medeia. A mediação da crítica de Debord converteu-se em primeira natureza. Deixou de ser meio e passou a fim. A última consequência da produção de um mundo assim consiste na entrega à realidade virtual e fictícia.[9]

Há um outro pensamento que absolutiza a condição medial. Todos os domínios da experiência são mediação. Desde logo, uma sua contextualização - que é trabalho político, ético, gnosiológico, técnico ou lógico - resulta inútil. Latour expõe que o mundo apresenta-se como uma extensa mediação, onde convivem, em simultâneo, os mediadores mais heterogéneos: este texto, coisas naturais, técnicas, ciências, seres de ficção, religiões pequenas e grandes, a política, os tribunais, as economias e as idiotices.[10] Por esta ordem de ideias, não se está em lugar ou tempo algum com o imediato, com significado de imanente. O pensamento da mediação é, necessariamente, transcendente, de uma «transcendência sem contrário».[11] A própria natureza, símbolo genérico da imediatidade ou sensibilidade original, não é mais acessível que a sociedade ou Deus. Na verdade não há imediação, no sentido de algo exterior à mediação. Se a presença das coisas é assegurada por uma delegação, uma tradução, substituição, o mais imediato é mediato. O mundo não comporta divisão entre visível e invisível, entre aquilo a que se acede e aquilo que é inacessível, entre existência e essência. «Ser e sentido são uma e mesma realidade».[12] O que permite existir as coisas é a delegação, é por esta que é possibilitado o permanecer em presença daquelas.

A análise de Kantarowicz dos dois corpos do rei é de um alcance diferente do manifestado por Debord, ainda que ambos atestem a valência da mediação, enfim, que se vive numa geografia desenhada por ela, que tudo na terra é delegação. Mas se para Debord a mediação é aberta por uma metafísica da separação, se fundamenta nela, para Kantarowicz a mediação abre para uma alteridade do mesmo, um desdobramento. Os dois corpos do rei são o corpo natural e o corpo divino. Um e outro estão presentes simultaneamente. O modo natural do rei convive com o modo divino do rei. Um está com o outro. Em nenhuma circunstância um expulsa o outro. Na unidade do rei vigora uma espécie de alteridade interna. Não é dois, é um. A imanência é transcendente, a transcendência é imanente. O mortal é imortal.[13]

 

2.Em termos de uma antropologia da questão, Stiegler esclarecerá que a origem do humano como mediador reenvia para o facto deste estruturar o vivo segundo modos não-vivos.[14] «A vida é inscrição no não-vivo».[15] Orgânico e inorgânico, longe de se oporem, com-põem-se. Um não está na dependência do outro. A origem é de «con-venance» ou de chegada ao mesmo tempo dos dois.[16] «O homem não é um milagre espiritual, que de um momento para o outro se viesse juntar a um corpo previamente dado, onde o «mental» se viesse agrafar ao «animal»».[17] A condição protésica ou tecnológica aqui abordada «não é suplemento de qualquer coisa, não substitui algo que existiu antes e se perdeu: é um reunir».[18] A prótese não é uma extensão, um prolongamento, é o que constitui o próprio corpo. Não é meio, é fim. Reconhece que o trabalho da mediação é o único que é visível, por isso ele é fim. O ponto de partida de Stiegler não é uma qualquer essência, mas a existência que se faz nos mediadores, nos agentes, nos actuantes, o que turva o trajecto que as metafísicas assumiram ao pretenderem descobrir o fundamento (Grund) de onde se adequariam as diversas ordens do real, incluindo as do homem. Turva-se certamente o discurso de descoberta do que do passado age em direcção ao futuro. A exterioridade do homem é a sua interioridade. O dentro é o fora. Um é o outro, constituindo-se ambos em simultâneo. É nas marcas da finitude que o homem se infinitiza.[19] Simbólico, tecnociência e digital, entre outras mediações, constituindo exemplo da maiêutica (evolução) brenhosa de o humano atravessar o vivo e explicando a sua natureza medial intrínseca, não são algo de transcendental que se acrescenta ao natural.[20] Não há de um lado o dado e do outro o adquirido. Todo o homem é mediação. O simbólico não se acrescenta ao material como algo de espiritual, porque o material acontece com o espiritual.

Em Rousseau e Condillac a imediação do humano apresenta-se como algo de difícil alcance, mas que é importante recuperar. E recupera-se, respectivamente, num por uma ficção especulativa e no outro por uma imagem. A equação «X+Y=» de Rousseau busca a valência da primeira incógnita, do «X», eliminado a parte devida às mediações culturais «Y», aceitando como ponto de partida o homem actual «=». Só através desta operação regressiva, por completo ficcional, pois o que se obtém sempre é um homem civilizado de alguma maneira, se alcança imediatidade. O homem imediato, natural, originário e selvagem é construído pela necessidade que há de a todo o custo encontrar uma origem, um ponto de referência. A estátua de Condillac cumpre a mesma necessidade. A estátua representa a imediação absoluta, o que fica de resíduo do homem ao privar-se de toda a humanidade. Corresponde ao dado original que é ocultado numa construção que se faz peça por peça, etapa por etapa. Mediatizar nestas condições corresponderá a insuflar vida num artifício.[21]

Posta a questão em termos de uma incompletude nativa, a mediação é necessária para passar ao resultado. Donde, é fundamental promovê-la.

O homem é uma possibilidade total da mediação. «Ao descobrir-se o primeiro lugar de vida», afirmará Folscheid, «o primeiro sílex, a primeira pintura, é já o homem que se descobre».[22] Inexiste num antes e num depois das mediações. Simplesmente não é fora delas. É por elas que ele aí está. Adopta-as como habitus (lat.), que dará em português habitação e vestimenta ou hábito. Tudo o que mediatiza o homem é seu lugar de vida e sua segunda pele. É nesse sentido que se diz que vestir a natureza é torná-la habitável. Rodeia-se de próteses do mais diverso género - virtudes, costumes, instituições, meios de transporte, computadores - para criar um ambiente favorável à sua respiração. Uma condição de libertação para si, como faz questão de frisar Bragança de Miranda.[23] Mas enquanto realizam a função de colmatar uma espécie de nudez pragmática original, imediata, dada pela natureza, as mediações desenvolvem a definição essencial de roupagem (Ware).[24] Na cultura actual a roupagem é entendida mais no sentido de algo onde o humano penetra e menos no sentido de simples invólucro (wrapping). «Já não nos satisfazem as superfícies. Estamos a experimentar penetrar o impenetrável, o ecrã do video», diz Kerckhove.[25] A expressão: «conhecemos o cyborg, e este somos nós», de Rosanne Stone, ilustra o grau de imersão que hoje o corpo atinge na mediação maquínica.[26] Tende-se para um tal regime de fusão do sujeito com as máquinas que quase se oculta o facto de se continuar numa metafísica de separação.

Espontaneamente, o homem é tido como não se completando a si mesmo, como não acedendo imediatamente a si, e daí toda uma economia da falta se desencadeia. E é porque ela abisma que a única tarefa do mediólogo é de a reparar. «Reparar, reparar», diz Debray.[27] O pensamento da incompletude, que tem, para esta vertente da mediação, uma dimensão omni-histórica, é que obriga à passagem do imediato para o mediato, ou do caos para o cosmos, da natureza para a cultura, da individualidade para a universalidade. Faz-se da passagem o problema dos problemas. Como canta Antonio Machado em Cantares... «Todo pasa y todo queda, pero lo nuestro es pasar, pasar haciendo caminos, caminos sobre el mar.».

Trata-se de um modo de pensar marcado pelo dualismo, separação dos regimes do sujeito e do objecto, do natural e do social, do humano e do inumano, característica moderna, que esquece, segundo Latour, «o nascimento conjunto».[28] Esquece o comércio que os humanos sempre desenvolveram com as coisas, objectos, animais e Deus, a natureza com a cultura. Tudo o que não constitui a humanidade mas com que ela se constitui. Paradoxalmente, e simultaneamente, encontra-se separada e unida a eles. Por isso, a surpresa maior não é de uma passagem que privilegia o humano, mas de uma permanência de todos os mediadores na produção do mundo. «Não somos nós que acrescentamos arbitrariamente a “dimensão simbólica” a puras forças materiais. Estas são tão transcendentes, activas, agitadas, espirituais como nós mesmos», refere José A.Mourão.[29]

 

   3.O campo da mediação vê-se assim disputado por dois pensamentos adversários, numa espécie de permanência no tempo, sob moldes diferentes, da adversidade que caracteriza a oposição que o cristianismo move ao religioso que irrompe ao nível da concepção mítica. Os actores de hoje representam papéis antigos. Historicamente não há dúvida que a experiência do homem se constitui na ligação à mediação e que a religião é a sua grande genealogia. Todas as mediações eram capturadas por ela. A religião detinha, com efeito, o grande poder constitutivo do mundo.[30] Nas intuições religiosas primárias há tantas forças mediadoras quantas ligações há para efectuar; faltar um deus é ficar um domínio da experiência vital obscurecida. É o momento dos «deuses momentâneos», segundo Usener.[31] As necessidades do quotidiano e/ou os sentimentos de crise gerados a partir do mesmo conduzem a uma multiplicação dos deuses, revelando-se toda a sua mobilidade e fugacidade. Como em Roma, onde o Panteão nunca está completo ou, finalmente, como em Atenas, erguendo um altar ao deus desconhecido, em sinal de permanecer para sempre a ameaça da imediatidade, de restar um lugar por onde o não-deus se pode introduzir no mundo ordenado. Ocupar todo o território de mediações vale pelo exorcismo do medo do regresso a um passado tenebroso, caótico. Ao Wakanda, Manitu ou Orenda é atribuído o controlo do mundo.[32]

A imediatidade é vista como a fonte do mal no mundo e o seu combate é o facto que inaugura o debate sobre a mediação.[33]

O Cristianismo representa neste panorama uma ruptura. A mediação de Deus é como um manto que o homem ao nascer vê já cobrir toda a sua existência e do mundo. Por Deus, o homem e o mundo são transcendentes. Não resta nenhum lugar para a imediatidade. Deus invade e submete a si as ordens cósmica e humana. José A.Mourão precisa que as teologias cristãs da criação reflectem que homem e mundo vêm de Deus segundo uma lógica da incarnação. Eles vêm dele, «mas via constituição, segundo uma diferença originária e determinante, e não via geração».[34] Deus não criará no sentido de fazer passar um nada para um tudo e que o homem poderia imediatizar, mas no sentido em que a essência de Deus é diferenciante. Por outras palavras, toda a existência é constituída num processo de transformação de Deus que resulta impossível determinar o princípio ou o fim.

Para S.Paulo, o cristianismo do Antigo Testamento ao não actuar a partir da incarnação de Cristo falha mediologicamente.[35] Com efeito, o livro da Sabedoria distingue um mundo de Deus e um mundo do demónio.[36] E Job suplica a favor de um árbitro que se interponha entre Deus e ele.[37] Nesta fase, a linguagem da religião é uma linguagem mitológica, aparece alicerçada num pensamento de ruptura de humano e divino, pecado e graça.[38] A justificação da eleição do povo hebraico e do seu êxodo faz-se na percepção de um abismo com Deus, procurando colmatá-lo, como forma de redenção, com os mediadores mais heterogéneos.[39]

A grande alteração medial surge na concepção neotestamentária, no momento em que é Cristo que concentra todo o papel da mediação. Através da pessoa de Cristo, a religião cristã une a humanidade e a divindade. A incarnação de Deus em Cristo culmina o que não seria pensável em termos de articulação das esferas da essência com a existência, do saber com a acção, ou do pecado com a salvação. O que outrora tivera condição assumidamente conflituosa e inconciliável agora aparece unido. Inclusive a morte é mediatizada na ressurreição. Morte e vida estão ligadas.[40]

A mediação alcança, inclusive, o próprio Deus através da Trindade. Será o referente último da mediação.

A existência de zonas obscuras na forma arcaica do religioso levanta-lhe um problema que o cristianismo erradica. Referimo-nos à estratégia de estabilizar a experiência, de a conter em determinados moldes ou quadros. Não estando o cristianismo neotestamentário afectado por esse mal não tem de arquitectar nenhum plano especial. O que se depreende da expressão conhecida das Confissões de Sto Agostinho:«Deus é-me mais íntimo que a minha intimidade» é que o mais além é o mais aqui. A intimidade é já um itinerário para Deus.[41]Ao contrário de outras religiões, cujo problema é o de operar a passagem daqui para além. A divindade é o piloto (Kubernêtikós) de um sistema de controlo da experiência, que relança o projecto cibernético moderno, em que a motivação principal de pôr fim à entropia, ou pelo menos atenuar os seus efeitos, o levou à criação de máquinas automáticas. Encontra-se o mesmo princípio na concepção do apeiron por Anaximandro, cujo objectivo era explicar a passagem do indeterminado ao determinado. Por «explicar a passagem» entenda-se dominar a passagem, formatando-a sob princípios racionais. Para Hegel é a dialéctica que encaixa a totalidade do real. Esta move-se de si a si por intermédio de um processo gradativo. Em suma, o controlo da experiência é o intuito que parece presidir ao funcionamento das mediações que admitem a imediatidade, sejam elas teorias, técnicas, divindades, normas ou mandamentos.

O que tem de observar-se a partir daqui é o aspecto do controlo desenvolvido por cada uma dessas mediações. E atendendo à distinção operada por Bragança de Miranda, há dois aspectos essenciais[42]: o primeiro aspecto está orientado para o controlo de natureza transcendente, sendo partilhado pela filosofia, até Hegel, e pela religião. O controlo pertence ao absoluto e os trâmites para o alcançar incidem no relacionamento do fragmentário e do contingente com esse mesmo absoluto, por intermédio de um ascetismo como o que a Alegoria da Caverna alude. O núcleo da mediação joga-se na divisão do visível e invisível, da  presença e ausência; o segundo aspecto realça os processos que remetem para o mundo dos instrumentos a eficácia do controlo. Privilegia as mediações imanentes ou técnico-científicas herdadas do projecto de uma razão absoluta do racionalismo, da transmudação por Leibniz das qualidades do raciocínio para o cálculo matemático. A divisão, no caso vertente, é quanto aos complexos motivacionais do esquema da instrumentalidade. À partida eles são dois: um é de natureza eminentemente técnica e prende-se à ideologia cibernética, designadamente ao facto de esta visar a estabilidade nas interacções comunicacionais fazendo deslocar o controlo para a máquina como forma de diminuir as incertezas e as imprecisões da vontade do homem. O outro motivo é de natureza humanista e explica a vontade do homem em vencer a sua finitude através das suas próprias criações.[43]

 

4.O enquadramento experiencial é colocado como problema da mediação, não se questionando, todavia, a qualidade das experiências em cada forma de mediação.[44]O tipo de experiência é fornecido pela mediação, como é melhor sugerido na análise do étimo grego de mediador (mesites), informado e formado pela tradição cristã do Novo Testamento e que se repercutiu no pensamento Ocidental e que a modernidade altera. O mesites não é um terceiro, um inter-mediário, um árbitro que se posiciona no limite exterior do que visa mediar.[45] O mediador entra no próprio processo de con-junção. Desenvolve o seu trabalho a partir do invisível, como reconhece Bruno Latour, no irrepresentável, mas é ele que produz.[46] O pensamento moderno simplesmente separa o que se encontrava unido: natureza e cultura, economia e sociedade, política e religião, global e local, humano e inumano, céu e terra. «Não misturemos!», eis a palavra de ordem que Latour descortina no espírito analítico moderno e que, paradoxalmente, é responsável pela proliferação incontrolável de híbridos.[47] A filosofia de Hegel é bem um exemplo do pensamento que evita as misturas quando descobre no Absoluto graus de ser e que cai nas misturas quando faz da contradição o motor da história. Recusando a mediação, não fala senão de mediação.[48]

Até que ponto se pode falar em configurações de experiência e o que as determina? Hegel explica através da luta do Senhor e do Servo narrada na Fenomenologia do Espírito que o que está em causa na história não é uma mera questão de sobrevivência, mas de sobre-vivência, uma questão de elevação da sua condição. A passagem pela alteridade, e por toda a carga de negatividade que aí se implica, justificar-se-á porque a experiência não se constitui espontaneamente. A mediatização é fundamental, afigura-se como o ir à luta, decorrendo daí que uma dada realidade histórica se configura. Ou por outra, duas realidades históricas distintas, que coexistem temporalmente, uma do Senhor e outra do Servo. A diferença é marcada pela atitude face à mediação do outro. O Senhor arrisca a vida e o Servo teme pela sua. O Senhor vence porque teve força para polarizar a outra existência. Manifestou, na terminologia de Nietzsche, mais vontade de poder. A esses Ernst Yünger apelida-os de figuras (Gestalten), que qualifica de potências metafísicas, precisamente pelo carácter de irradiação de presença que as marca.[49] Serão aquelas em torno das quais a experiência girará. Funcionarão como pólos de uniformização, o que possibilita a formação de um estrato de experiência ao mesmo tempo diferenciado e homogéneo. Representa o momento da paragem da luta e o exercício do poder por parte do Senhor. Entretanto outra luta se desencadeará, arredando a hipótese do esgotamento da função de mediar por parte dos mediadores, bem como a contrária, a da sua assunção numa figura terminal. [50]

Bruno Latour, ao invés de Hegel, propõe que se faça um trabalho de constituição da experiência através da simetria, que consiste na convocação de todos os mediadores que actuam no mesmo tempo e no mesmo espaço, que habitam a mesma casa, e numa posterior interpretação do vinculum, da passagem, da relação que em conjunto geram. Não passa pela convocação de representantes excepcionais, as figuras ilustres, mas do processo que resulta da interacção de todos os que permanecem em presença. A constituição da experiência refere-se ao acontecimento, ao lidar com a tensão, com o que não combina, com a oposição, apreciando-se que a constituição tem por finalidade garantir, igualmente, estados homogéneos e desconflitualizados. A ideia do espaço simétrico procura restabelecer o entendimento comum dos seres e a sua separação. É entendida como o desenhar de um quadro onde as diferenças se organizam. Nestes termos é compreensível que o que é separado do homem seja unido a ele. Basta pensar que a natureza transcende o homem, todavia ela só é constituída como natureza quando o homem a cria por força do cálculo. Mas ainda que a natureza seja uma criação do homem, este encara-a como se não fosse. Para estes o que o homem inventa fará parte sempre dele, como uma multiplicação sua, tendo em vista a sua própria definição e a das coisas. O processo nunca é um processo sem sujeito ou só com sujeito. É uma dinâmica lata que nunca põe em perigo a mediação humana.

No âmbito do pensamento anterior, e ao contrário, há centros totalitários: umas vezes é o homem, outras a palavra, a natureza ou a técnica, que se sentem ameaçados quando num certo momento o trabalho dos mediadores se impulsiona para além da fixidez traçada, seja ela ontológica, teológica ou lógica. O que verificamos em Lyotard e na sua rescrita da modernidade, por exemplo, é exactamente isso. Ela surge quando, num ápice, a mediação passou de um processo com sujeito para um processo de movimento sem móbil, sugerindo uma experiência livre, sem começo nem termo.[51]

 

5. A partir daqui estamos prontos para fazer o entendimento da experiência nos seus principais momentos ou estratos: o teológico, o filosófico, o gramatológico, o representacional, o técnico-científico e o digital.[52] É um exame que aqui não fazemos, mas que agenciamos para trabalho de campo, a levar a cabo junto dos que as viveram e falaram delas.

 

 

Bibliografia

 

AAVV, Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica, 1991.

ALLEAU, René, A ciência dos símbolos, Lisboa, Ed.70, 1982.

Baldwin, James Mark,  Le médiat et l’immédiat, Paris, Librairie Félix Alcan, 1921.

Baudrillard, Jean, As Estratégias Fatais, Lisboa, Editorial Estampa, 1990

BENJAMIN, Walter, Origem do drama barroco alemão, S.Paulo, Brasiliense, 1984.

CASSIRER, Ernst , Linguagem, Mito e Religião, Porto, Edições Rés, 1976.

Coenen, Lothar, Diccionario Teologico del Nuevo Testamento, Salamanca, Ediciones Sigueme, V.1, 1985.

Debray, Régis, Critique de la raison politique ou l’inconsciente religieux, Paris, Gallimard, 1981.

IDEM, Vie et mort de l’image, Paris, éditions Gallimard, 1992.

Derrida, Jacques, De la Grammatologie, Paris, Les éditions de Minuit, 1967.

Folscheid, Dominique, L’esprit de l’athéisme et son destin, Rennes, Éditions Universitaires, 1991.

Ginzburg, Carlo, «Répresentation: lemot, l’idée, la chose» in Annales, novembre-décembre 1991, nº6, pp.1219 - 1234.

KANTAROWICZ, Ernst, Les deux corps du roi, Paris, Éditions Gallimard, 1989

KERCKHOVE, Derrick de, The skin of culture, investigating the new electronic reality, Toronto, Sommerville House Publishing, 1995.

Latour, Bruno, Nous n’avons jamais été modernes, essai d’antropologie symétrique, Paris, Éditions La

Découverte, 1997.

Lyotard, Jean-François, O Inumano, considerações sobre o tempo, Lisboa, Editorial Estampa, 1989.

MIRANDA, José A. Bragança de «Ilusão arcaica, breve crítica da globalização» in Le Monde Diplomatique, Julho de 1999, ano1, nº4

IDEM, «Fim da mediação? De uma agitação na metafísica contemporânea» in Revista de Comunicação e Linguagens, 25-26, Real vs Virtual, org. José A. Bragança de Miranda, Lisboa, Edições Cosmos, 1999, (293-330).

MOURÃO, José A, O paradigma mediológico (texto policopiado).

IDEM, «O sagrado entre o universo e o átomo» in Cenáculo, 38. 150, (1998-99), Braga, Universidade Católica Portuguesa, (63-72).

Rosa, António Ramos, Mediadoras, Lisboa, Ulmeiro, 1985.

SANTOS, José Manuel, «O Virtual e as Virtudes» in Revista de Comunicação e Linguagens, Real vs Virtual, org. José A. Bragança de MIRANDA, Lisboa, Edições Cosmos, 1999,(519-537).

Stiegler, Bernard «La croyance de Régis Debray» in Le débat, nº8, mai-août, 1995.

IDEM, La technique et le temps, 1. La faute d’Épimethée, Paris, Galilée, 1994.

Stone, Allucquerque Rosanne, «Recordações da unidade Ou chegou a era da máquina e tudo o que eu ganhei foi esta horrível T-shirt» in Revista de Comunicação e Linguagens, Real vs Virtual, org. José A. Bragança de MIRANDA, Lisboa, Edições Cosmos, 1999,(69-72).

Taylor, Mark e SAARINEN, Esa, Imagologies, London, N.York, Routledge, 1994.

Yünger, Ernst, O Passo da Floresta, Lisboa, Edições Cotovia, 1995.

 



[1] Cf. António Ramos Rosa, Mediadoras, Lisboa, Ulmeiro, 1985, pp. 17.

[2] Cf. Walter BENJAMIN, Origem do drama barroco alemão, S.Paulo, Brasiliense, 1984.

[3] Cf. José A.Bragança de MIRANDA,, Notas para uma abordagem crítica da cultura, pp.8 (texto policopiado)

[4] Cf. James Mark Baldwin,  Le médiat et l’immédiat, Paris, Librairie Félix Alcan, 1921, pp.3.

[5] Cf. Régis Debray, Vie et mort de l’image, Paris, éditions Gallimard, 1992, pp.49.

[6] Realça-se a ambivalência da mediação, que podendo ser cura também é morte.Cf. Ibidem, pp.50.

[7] Cf. Carlo Ginzburg, «Répresentation: lemot, l’idée, la chose» in Annales, novembre-décembre 1991, nº6, pp.1219 - 1234. As kolossoi tomavam o lugar dos mortos e de certo modo continuavam a sua existência terrestre.

[8] Gilbert Durand frisa que a mediação deixa de funcionar se não houver distanciação. Nesse caso estaremos perante uma presença que não evoca uma ausência, algo de fundamentalmente outro e que, portanto, nada significa. A significação é concebida como tendo de ocorrer sempre na perspectiva da delegação. A presença que nada evoca, e não podendo evocar-se a si, o que seria contraditório, não significará. Cf. René ALLEAU, A ciência dos símbolos, Lisboa, Ed.70, 1982, pp.256.

[9] Temática que o conceito de simulação de Baudrillard desenvolverá. Cf. Mark Taylor e Esa SAARINEN, Imagologies, London, N.York, Routledge, 1994, pratices 13.

[10] Cf. Bruno Latour, Nous n’avons jamais été modernes, essai d’antropologie symétrique, Paris, éditions La Découverte, 1997, pp.177

[11] Ibidem, pp.176.

[12] Ibidem

[13] Cf. Ernst KANTAROWICZ, Les deux corps du roi, Paris, Éditions Gallimard, 1989.

[14] Cf. Bernard Stiegler, La technique et le temps, 1. La faute d’Épimethée, Paris, Galilée, 1994, pp.146.

[15] Ibidem, pp.150.

[16] Ibidem, pp.162

[17] Ibidem, pp.154.

[18] ibidem, pp.162

[19] Cf. Idem, «La croyance de Régis Debray» in Le débat, nº8, mai-août, 1995, pp.49

[20] Ibidem, pp.48

[21] Rousseau e Condillac são citados em Dominique FOLSCHEID, L’esprit de l’athéisme et son destin, Rennes, éditions Universitaires, 1991, pp.210-220.

[22] Ibidem, pp.183. Este considera a mediatização uma forma de alienação, um obstáculo no acesso à verdade. As coisas, o homem e Deus precisam de ser libertos da mediação. Cf.pp.234-236.

[23] Bragança de Miranda fala da astúcia inerente ao humano como se tratasse de um centro de liberdade que joga a seu favor e que evita que ele seja determinado completamente por aquilo que cria. Cf. José Bragança de Miranda, «Fim da mediação? De uma agitação na metafísica contemporânea» in Revista de Comunicação e Linguagens, 25-26, Real vs Virtual, org. José A. Bragança de MIRANDA, Lisboa, Edições Cosmos, 1999, (293-330), pp.320(nota 2).

[24] Cf. D. FOLSCHEID, op.cit., pp.185.

[25] Cf. Derrick de KERCKHOVE, The skin of culture, investigating the new electronic reality, Toronto, Sommerville House Publishing, 1995, pp.138

[26] Cf. Allucquerque Rosanne Stone, «Recordações da unidade Ou chegou a era da máquina e tudo o que eu ganhei foi esta horrível T-shirt» in Revista de Comunicação e Linguagens, 25-26, pp.69.

[27] Régis Debray, Critique de la raison politique ou l’inconsciente religieux, Paris, Gallimard, 1981, pp.270.

[28] B. Latour, op.cit., pp.23

[29] Cf. José Augusto Mourão, O paradigma mediológico (texto policopiado)

[30] A perda desse poder nas sociedades contemporâneas é abordado por José A. MOURÃO. Cf do autor: «O sagrado entre o universo e o átomo» in Cenáculo, 38. 150, (1998-99), Braga, Universidade Católica Portuguesa, (63-72), pp.64

[31] Citado por Ernst CASSIRER, Linguagem, Mito e Religião, Porto, Edições Rés, 1976, pp.107.

[32] Ibidem, pp.109; 115.

[33] É curioso que a associação primitiva da mediação com a magia seja uma constante entre as expressões mediais mais racionais como as técnicas.

[34] Cf. José A.MOURÃO, op.cit., pp.70

[35] Cf. Hebreus 8, 7.

[36] Cf. Sabedoria 2, 23-24.

[37] Cf. Job 9, 33-35.

[38] É próprio do arcaísmo religioso, verificável igualmente nas religiões da Mesopotâmia e do Egipto.

[39] Moisés, os Reis, os Sacerdotes, os Profetas, os Servos, o Espírito Santo, a Palavra e a Sabedoria preenchem o intervalo existente entre Deus e os homens.

[40] Articulação que no Fédon de Platão tanta dialéctica gerou!

[41] Que só se cumpre com a adesão livre do homem, obstando-se, segundo José A.Mourão, a uma integração plena do homem em Deus. O homem é semelhante a Deus, não é um ser divino. Inscreve a sua diferença na própria diferença de Deus. É transcendente pela transcendência divina. Cf. op.cit., pp.72

[42] Cf. José Bragança de Miranda, op.cit., pp.298-303.

[43] José Manuel SANTOS questiona a propósito se este ideal não consistirá algo de desmedido para a vida de um ser radicalmente finito. Cf. do autor: «O Virtual e as Virtudes» in Revista de Comunicação e Linguagens, 25-26, pp.522.

[44] Bragança de Miranda dá algumas pistas nesta questão e alude à beleza das experiências, no sentido platónico, e à justiça, no sentido da dikê grega. Por outras palavras, se guardam as ideias de proporcionalidade e de repartição igual. Cf. José A. Bragança de MIRANDA, «Ilusão arcaica, breve crítica da globalização» in Le Monde Diplomatique, Julho de 1999, ano1, nº4, pp.2. Lyotard refere-se a uma modalidade de presença que é de co-pertença, em que são gerados processos de identificação. Cf. Jean-François Lyotard, O Inumano, considerações sobre o tempo, Lisboa, Editorial Estampa, 1989, pp.121.

[45] Cf. «Alianza» in Lothar Coenen, Diccionario Teologico del Nuevo Testamento, Salamanca, Ediciones Sigueme, V.1, 1985, p.84-93; Cf. também

1 Timóteo 2, 5.

[46] B. Latour, op.cit., pp.53.

[47] Ibidem, pp.9.

[48] A mediação é, à partida, o lugar da passagem, de uma imediatidade do ser a outra imediatidade. Seria apenas o movimento de relação do ser consigo mesmo, no entanto constitui o verdadeiro lugar da vida.

[49] Cf. Ernst Yünger, O Passo da Floresta, Lisboa, Edições Cotovia, 1995.

[50] O que não se verifica com o marxismo, que antecipa a redenção do comunismo no fim da história, comprometendo desta maneira todas as formas anteriores de mediação.

[51] Cf. J. F. Lyotard, op.cit., pp.33-43.

[52] Esta distribuição da mediação pela experiência devo-a ao Prof. José A.Mourão, que a referiu durante a arguição da tese de mestrado que defendi na UBI, sob o título: A emergência do paradigma mediológico, arqueologia da mediação.