O Terror da Vermelha: estética da agressão e rigor formal de Torquato Neto no cinema1

 

Silvio Ricardo Demétrio
Universidade de São Paulo

 

Durante muito tempo a passagem de Torquato Neto pelo cinema constituiu a matriz de um dos mitos mais fortes da recente produção artística brasileira: a figura em Super-8 do vampiro que toma água de coco de capa preta e calção nas areias de Ipanema. Um vampiro tropicalista nascido do encontro entre a atuação de Torquato Neto e a direção de Ivan Cardoso em Nosferatu no Brasil. A imagem é tão forte que dela Torquato nunca mais se desligou. Talvez porque assim se produza a fonte das reverberações de outras imagens que constituíram a mística cult que envolve o nome do poeta, principalmente a imagem drummondiana do anjo torto e, por derivação direta, a eleição do marginal como herói (seguindo o estandarte de Hélio Oiticica).

Segundo Walter Benjamin o cinema é uma das mais altas expressões do fenômeno da ``perda da aura da obra de arte''. Isto porque é já em sua gênese uma arte industrial, e que, portanto, destituída do valor de culto atribuído à originalidade. Segundo o crítico alemão isto se dá em função do estatuto estético que na modernidade entra em crise a partir da segunda metade do século XIX com a emergência da técnica como nova mediação da arte. A fotografia marca o fim do sonho romântico de uma volta ao originário puro e incorruptível de uma arte pensada e executada de acordo com a noção de gênio. O mito do original, que revestia a obra de um valor de culto, se vê irremediavelmente abalado pelas novas formas de arte que emergem de uma presença cada vez mais forte da técnica . Tendo esta condição do cinema como ponto de partida, Torquato Neto mais uma vez se inscreve como uma figura que é sinônimo de paradoxo: é exatamente do cinema que emana a aura que confere tanta força a sua imagem. Um outro tipo de aura que não a benjaminiana, mas, contudo, ainda uma aura, próxima a que acompanha o mainstream das estrelas de cinema e que marca a ambigüidade do marginal que se torna célebre nas páginas policiais. Um mito vive de suas contradições. Torquato construiu para si um mito pop.

O anjo torto da Tropicália foi um poeta não-especializado2. Existe uma fluidez e mobilidade de códigos em sua obra que servem de índices de sua transitividade. Responsável por uma produção poliédrica3, Torquato Neto é um marco na passagem do tropicalismo para o pós-tropicalismo. Esse caráter de passagem, de ponte, é ressaltado por trabalhos que lhe são dedicados e que apontam para uma questão em comum: o que dá uma unidade a sua produção é a perspectiva de uma trajetória -- tema presente de forma sensível em sua recepção no âmbito da crítica literária4. Devido a isto a referência aos aspectos biográficos serve como um dispositivo pelo qual se torna possível captar algo que, em sua essência, é movente. Daí a intransponível marca que assinala sua obra nascendo no local que esta ocupa no imaginário da transgressão a partir de seu suicídio. Daí a dificuldade também de uma apropriação crítica da obra de Torquato, exatamente pelos aspectos biográficos que a transcendem e que podem comprometer uma avaliação da força daquilo que ele produziu -- o risco sempre presente da mistificação da obra em função de seu suicídio.

O problema está naquilo que André Bueno ressalta:
``é tarefa urgente separar Torquato neto do mito romântico que cerca nossos mitos (necessáris?).

velho papo furado do jovem-poeta-romântico-que-se-mata em romântica reação contra, oh!, esse mundo com suas leis cruéis (Brecht). Conforto da má-consciência: usar a morte alheia como espelho compensatório de tudo aquilo que deveria ser feito por todos mas que é sublimado na barra, isolada e isolante, de uns poucos mitos, todos trágicos

no conforto da poltrona lendo uma viagem ao inferno, outra temporada no inferno, vocês querem o quê? Assim é muito fácil. O importante é resgatar, levar adiante, não deixar morrer os sonhos e as possibilidades que foram cortadas.''5
O limite entre vida e obra é apagado de uma maneira definitiva através do gesto de uma recusa fatal. Gesto que num golpe faz da obra de Torquato Neto uma potência que passa ao ato no mesmo momento em que coloca um fim em toda e qualquer ação. Em torno deste destino paradoxal ronda o perigo da redução de Torquato Neto à figura do gênio romântico. O valor estético da sua obra reside nos fragmentos em si muito mais do que pela mistificação romântica do suicídio Dessa maneira é reforçado um aspecto singular da imagem do vampiro enquanto símbolo: Torquato Neto se torna um morto-vivo no sentido de que paira sobre sua obra o signo da incompletude produzida pela iminência dos inéditos6.

É o caso de sua única produção como diretor, ``O Terror da Vermelha'', que veio a ser exibida publicamente pela primeira vez em 2001, 28 anos após sua morte, na mostra ``Marginalia 70 -- O Experimentalismo no Super-8'', evento que fez parte do projeto ``Anos 70; Trajetórias'' do Itaú Cultural sob a curadoria do professor Rubens Machado Jr. O valor desta exibição está no fato de que assim se resgata um documento de um período singular da recente produção cultural do país. Seu significado é muito maior do que o que emana da aura romântica desprendida de seu suicídio. O Terror da Vermelha é o registro incontestável da verve e do domínio por Torquato Neto dos fundamentos da linguagem cinematográfica, um de seus lados ocultos que ficou adormecido na virtualidade do seu mito marginal. Até então o que havia era apenas a referência ao filme em dois textos poéticos que constam da segunda edição dos Últimos Dias de Paupéria (p.339-346), no qual Torquato fixa uma espécie de roteiro que mais tarde servirá de base para a montagem feita por Carlos Galvão em 1973. Torquato nunca chegou a ver seu filme montado. A montagem que foi exibida na mostra em 2001 foi feita por Ana Maria Duarte, que foi casada com o poeta. Carlos Galvão também montou uma outra versão, com algumas cenas que não constam da montagem de Ana Maria Duarte e com uma trilha sonora diferente. O resultado é, em termos gerais, praticamente o mesmo, contudo na versão de Galvão as imagens onde aparecem as ``palavras-cenário'' (VIR, VER, OU, AQUI e ALI) estão mais nítidas. Na primeira versão, montada dor Ana Maria Duarte e que foi exibida publicamente em 2001 a trilha sonora oscila de uma atmosfera tropicalista para o suspense que precede os confrontos nos filmes de western.

O Terror da Vermelha foi rodado em 1972, quando Torquato Neto voltou para Teresina a fim de se internar para uma desintoxicação. Neste ponto de sua trajetória todas as rupturas com os companheiros tropicalistas já tinham se dado e as crises eram constantes. Do convívio com um então grupo de estudantes que se articulava em torno do jornal Gramma, do qual participava Carlos Galvão, nasceu o elenco7 da única produção que teve Torquato Neto na direção.
``(...) fui a Teresina pelo início de

junho (sanatário (sic) meduna), entrei

em contato com os rapazes que

haviam feito o jornal gramma e

partimos para um superoito de metragem média que resultou neste

O TERROR DA VERMELHA (ou qual outro nome escolherem).''8
Em dois momentos anteriores Torquato havia participado de produções em Super-8, mas como ator: Nosferatu no Brasil, de Ivan Cardoso e Dirce e Helô, de Luis Otávio Pimentel. Sua ambientação no cinema não para por aí, tendo-se em vista projetos como Crazy Pop Rock, que nunca foi rodado, e Silvinha, cujo roteiro aparece na coletânea Últimos Dias de Paupéria. Ainda dentro do que em sua obra guarda relações com o cinema9 está o roteiro que escreveu para a televisão em parceria com Capinan e que tinha o título de Vida Paixão e Banana do Tropicalismo -- 1967 - 1968. Fechando os contornos do território que Torquato ocupou no cinema está sua coluna na Última Hora, a Geléia Geral, casamata da artilharia pesada em defesa do cinema marginal de Sganzerla, Bressane frente a institucionalização do Cinema Novo. Com isto o anjo torto da tropicália percorreu um itinerário que passa pelos momentos essenciais da produção cinematográfica: ator, diretor, produtor e crítico. Se uma das características essenciais da poética de Torquato Neto é seu caráter fragmentário, com relação ao cinema se dá algo no sentido inverso. Organicidade e totalidade são atributos que podem ser percebidos de maneira direta tanto no seu envolvimento com o ``fazer cinema'', afirmado na Geléia Geral de 07/02/72:
``Bitola, bichos? Pode ser qualquer uma, desde que esteja sempre pelas pontas do ``coração selvagem''. Superoito, dezesseis, trinta e cinco, cinema, etc. Desde que seja com o coração selvagem e a todo vapor: tela livre. De todos os círculos. Filmes novos, invenção.''10
quanto no rigor construtivo dos planos de O Terror da Vermelha. O formato Super-8 é encarado por Torquato como uma possibilidade de se atingir a espontaneidade do impulso ao se fazer cinema no que ele define como ``coração selvagem'', uma atitude aberta para a descoberta e a invenção. Isto não significa no entanto um descuido com o aspecto formal quanto ao resultado:
``Contra todas as dificuldades e todos os grilos e todas as espécies de diluição. Rigor. Em superoito, em cinemascope, nos cinemas: cinema.''11
Esta disposição que busca aliar impulso e rigor o coloca em relação direta com o cinema marginal de Sganzerla e Bressane. Dessa maneira Torquato assume uma posição frente à guerra entre cinemanovistas e marginais, optando por estes últimos como companheiros de luta. Com as subvenções da Embrafilme e a censura emergem as superproduções épicas ao sabor oficialesco do ufanismo vigente. A posição adotada por Glauber Rocha foi a de uma diluição consciente da densidade estética que atingira com Terra em Transe como estratégia para ampliar seu público e assim conter o avanço do que então significava a morte do cinema nacional. O inimigo era comum, no entanto os marginais viram a posição de Glauber como concessão, o que acabou deflagrando um conflito que nunca mais se estabilizou. Torquato Neto chegou a escrever em sua coluna: ``Glauber Rocha já era'' .

A geléia Geral então se tornou uma tribuna de defesa da posição assumida por Bressane e Sganzerla, que mantinham o primitivismo do primeiro cinema novo, radicalizando-o ainda mais e assim consolidando o status de marginalidade de sua produção, entendendo aqui por marginal tudo aquilo que aponta para a exterioridade de uma condição instituída. Na visão do grupo marginal a briga com os cinemanovistas foi por estes terem deixado de ser quem eram
``(...) o que resta do falecido movimento do Cinema Novo é a nova nefasta aristocracia do cinema brasileiro, do cinema, e a ruptura que já existe exposta desde 1969/70, por Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, nas telas, deve ser mantida, e está sendo. Ambos combateram e combatem de maneira eficaz, com filmes brilhantes e excelentes exposições (entrevistas, declarações, artigos, etc.), a proposta fundamental dos aristocratas, a irresponsável e otária continuação em linha reta e contínua de um movimento já cumprido e, agora, deteriorado''.12
O conflito se traduziu na proposta de uma volta ao núcleo da estética fundada pelo Cinema Novo, traduzida em sua forma mais simples pelo slogam glauberiano de ``uma câmera na mão e uma idéia na cabeça''. É aí que sobre o nome de Torquato Neto se abre a panorâmica que atravessa toda a década de 70 até meados da de 80 com a produção em Super-8 de filmes de curta e média duração de uma geração inteira que preservou como sua utopia o espírito do experimentalismo num outro flanco em consonância com o cinema marginal. Segundo Rubens Machado Jr. a produção em Super-8 no Brasil representa de metade a dois terços dos filmes experimentais produzidos no país13. A bitola encontrou um sucesso assim tão grande em função de seu baixo custo e facilidade de acesso:
``Superoito é moda? É. E é também cinema. Tem gente que já está nessa firme e não está exatamente só brincando. Em minha opinião, está fazendo o possível, quando é possível. (...) (...) superoito é fácil de manejar (Waly Sailormoon) e custa cinqüenta contods revelado, colorido, Kodak. (...) (...)Se eu compreendi direito, nada melhor do que curtir de superoito, vampiresco, fresco, mudo. Cinema é um projetor em funcionamento projetando imagens em movimento sobre uma superfície qualquer. É muito chato. O quente é filmar.''14
Diante da liberdade de expressão asfixiada pelo regime militar, o super-8 constituiu-se numa alternativa viável. Organizaram-se festivais de forte cunho regionalista e também criou-se todo um circuito de exibição desses filmes em espaços alternativos. O próprio Torquato Neto descreve a atmosfera dessas exibições em sua coluna de 12 de dezembro de 1971:


`` Quente mesmo foi a sessão de cinema que Ivan Cardoso promoveu anteontem nos salões dos Taborda. Quente por causa dos filmes quentíssimos de Ivan e quente pela temperatura geral da platéia (convidadíssima), subindo, subindo, queimando e pegando fogo.'' (...) (...) Anotar ainda: Amor e Tara, Nosferato no Brasil e Piratas do Sexo Voltam a Matar: três filmes: o cinema brasileiro não morreu nem morrerá: morreram os trouxas: quem não inventa faz super-produções estúpidas: quem não acredita na invenção a qualquer preço não sabe o que é malandragem, bate na ponta da faca e ainda se aborrece: suicida são eles:transemos em superoito: nossa curiosidade não tem limites: Rogério e Julinho, quentura viva: fraturas expostas na tela desoficial: quem quiser que viva de barganhas: invenção transemos com a imagem: Godard: é preciso confrontar idéias vagas com imagens claras: o abstrato versus o concreto armado: nem morreu nem morrerá: cinema, Brasil, 1971: Ivan Cardoso apresenta.''15
A partir do tipo de espaço para exibição que esta produção em Super-8 vai encontrar, resgata-se, frente ao seqüestro da liberdade de expressão, a dimensão de crítica da esfera pública da qual fala Habermas. Num contexto político de exceção garantido pelo AI5 as projeções de Super-8 -- seja em garagens ou nos festivais - significaram uma possibilidade de, em alguma medida, refundar espaços de discussão assim como na origem moderna da própria noção de democracia cara ao estado burguês de bem-estar estão as sociedades literárias que funcionavam nos cafés londrinos. Há portanto uma ligação fundamental do fenômeno histórico do Super-8 no Brasil com a discussão das bases pelas quais o espaço público pôde ser resgatado em seu valor coletivo e crítico.

As projeções nos circuitos alternativos estabelecidos pelo fenômeno do Super-8 transformaram-se assim em um acontecimento que aglutinava então as condições para que, mesmo de forma precária e clandestina, uma opinião pública fosse formulada. Dado o contexto histórico marcado pela ditadura militar, esta opinião pública ficava restrita ao âmbito destes circuitos alternativos como canal de manifestação. Tal relação fortaleceu relações ``localistas'' como mediação fundamental destes espaços, o que se revela nas produções mesmas em suas fortes referências a significados regionalizados. Numa dimensão simbólica, outra tendência que se verifica é a tensão entre o espaço doméstico, privado, visto como provinciano, fechado, muitas vezes reacionário e o espaço público, aberto e progressista. Esta já era uma característica do discurso tropicalista, como analisa Celso Favaretto, apontando como exemplo algumas letras tropicalistas de Torquato Neto:
``A carnavalização tropicalista deve, além disso, ser analisada quanto ao seu processo de espacialização. Na maior parte das músicas há alternância, quando não oposição, de espaço aberto e espaço fechado. As ``ações'' ocorrem nas ruas, praças públicas, parques, que são lugares de passagem e mudanças rápidas; ou então, em interiores e exteriores (psicológicos ou ideológicos) -- salas de jantar, quintais, corredores, portões, prateleiras, balcões. Comprova-o o recenseamento dos lugares: o sol e as bancas de jornais em Alegria, Alegria; o parque de diversões em Domingo no Parque; a sala de jantar em oposição ao sol, aos quintais e à avenida central, em Panis et Cirsenses; a cozinha e os corredores em Deus vos Salve Esta Casa Santa, o abafamento da vida caseira em oposição à cidade grande em Mamãe Coragem(...)

(...) De um modo geral, nessas músicas, o dado urbano equivale ao movimento de abertura, conotando a modernização da sociedade e a modernidade dos procedimentos tropicalistas.''16
É exatamente por conter em si todos estes elementos que O Terror da Vermelha se presta a uma análise mais detida. Segundo Rubens Machado Jr., o filme é, por analogia, uma espécie de continuação de Nosferatu no Brasil:
````O filme é tido como uma espécie de continuação do `Nosferatu o Brasil', com o vampiro virando um serial killer, mas eu acho que do ponto de vista cinematográfico é ainda mais bem construído, a composição dos planos é mais elaborada e sofisticada''17
Desta maneira pode-se situar a experiência de Torquato com o cinema no quadro das referências do que Haroldo de Campos nomeia como o terrir18 de Ivan Cardoso: uma estética do grotesco assimilada pelo deboche lúdico tropicalista. Como em Nosferatu no Brasil, O Terror da Vermelha é uma sucessão de micro-narrativas que mostram um protagonista anti-herói atacando suas vítimas indefesas. O deboche dissolve qualquer vestígio moralizante invertendo mesmo a posição do trickster-marginal-monstro em herói -- Hélio Oiticica revisitado em seu estandarte ``SEJA HERÓI -- SEJA MARGINAL'', como também Macunaíma de Mário de Andrade. A agressão é aqui um elemento fundamental no estabelecimento do ritmo da narrativa cinematográfica. Estas micro-narrativas se estruturam seguindo o esquema identificação da vítima, abordagem, ataque e plano descritivo da vítima. O cenário dos ataques é a vida urbana das ruas do Bairro da Vermelha em Teresina, influência do cinema marginal tanto em relação ao protagonista anti-herói (Matou a Família e Foi ao Cinema, O Anjo Nasceu, Bang Bang, O Bandido da Luz Vermelha) quanto à urbanidade em contraposição ao rural, uma das características fundamentais da crítica do Cinema Marginal ao Cinema Novo. Outro aspecto formal determinante em O Terror da Vermelha é a oposição herdada do tropicalismo na contraposição entre o local-doméstico da cultura popular e o público-cosmopolita da cultura de massa como analisa Celso Favaretto. Tal contraposição se encontra na alternância entre os quintais (privado) e a rua (público). É na articulação do tempo da agressão com o espaço alternado entre público e privado que Torquato Neto estabelece as bases da decupagem de O Terror da Vermelha.

O primeiro plano do filme mostra em close o protagonista, interpretado por Edmar Oliveira. Cabelos compridos e de boina, o personagem esfrega os dedos nos lábios19 . Seu olhar volta-se para o espaço fora do quadro. No plano seguinte o personagem está em movimento, esgueirando-se por entre a rala vegetação da paisagem que logo a seguir revela as margens de um rio e, no lado oposto ao ocupado pelo protagonista, um casal (Conceição Galvão e Geraldo Cabeludo) observado com interesse por este. A seqüência produz resultados diferentes conforme a sonorização da montagem final de Ana Maria Duarte, cuja trilha é uma música típica dos filmes de western de Sérgio Leone, e a de Carlos Galvão, feita em 1973, cuja sonorização é toda a partir de uma trilha de rock'n roll (Alice Cooper) A montagem com a sonorização western imediatamente constrói uma atmosfera de suspense ao fazer referência ao gênero do qual Torquato Neto era fã confesso, especialmente Sergio Leone. A opção de Galvão pelo rock de Allice Cooper justifica-se mais pela referência ao Nosferatu no Brasil de Ivan Cardoso, cuja trilha é feita com músicas do disco Their Satanic Majesty Request dos Rolling Stones e a música Third Stone From the Sun, de Jimmy Hendrix. Uma versão se abre dialogando com o repertório cinematográfico de Torquato (a versão final), enquanto a outra busca uma interlocução com a contracultura e o mito romântico do artista-mártir - Their Satanic Majesty Request, tido como uma resposta dos Rolling Stones ao Sgt. Peppers dos Beatles foi o último disco dos do qual participou o guitarrista Brian Jones, encontrado morto em uma piscina em 1968.

O plano seguinte a esta seqüência reafirma a referência ao Nosferato no Brasil. Em contra-plongée, copas de palmeiras emolduram o canto inferior direito do quadro que mostra a lua num céu diurno ensolarado. A relação com o filme de Ivan Cardoso é direta. Conforme Rubens Machado Jr escreve na sinopse de O Terror da Vermelha,
A pesquisa formal se sobrepõe a um percurso afetivo do autor por sua cidade natal. Não revisitaria apenas os locais da sua experiência, mas também os filmes, inclusive o Nosferato no qual atuou.''20
Ao compor esta imagem da lua num céu diurno, Torquato Neto fazia referência à solução que Ivan Cardoso encontrou para uma limitação técnica do Super-8 na realização de Nosferatu no Brasil. Para contornar o que seriam as dificuldades na filmagem de cenas noturnas nesta bitola, Ivan Cardoso valeu-se de um recurso estético. Ao apresentar plaquetas com as mensagens ``ONDE SE VÊ DIA'' e ``VEJA-SE NOITE'' na abertura do filme, justificava-se o paradoxo de um filme de vampiro inteiramente rodado com cenas diurnas. Contradição patente com a própria construção do mito do vampiro, que por definição é um habitante da escuridão. O recurso das plaquetas reintroduz um elemento discursivo característico do cinema mudo: a intercalação de seqüências com letreiros que as pontuam. Como escreve Rubens Machado Jr, no caso do filme de Torquato Neto
``As perambulações de um assassino serial perseguindo suas vítimas pelas ruas do bairro da Vermelha, em Teresina, serve como pano de fundo para investigação do caráter formal do cinema, com a intrusão de elementos plásticos e poéticos avessos à ficção cinematográfica contemporânea, como cartelas e enquadres inusitados.''
Tal expediente será articulado como forma de compor mensagens com os letreiros que a câmera encontra prontos na paisagem urbana e os recorta, seja em outdoors, placas ou então na televisão, ou ainda no nome de um hotel pintado em sua fachada. É o caso da seqüência seguinte, na qual planos fixos mostram uma TV ligada. Nela é composta uma mensagem criada a partir da articulação do nome de uma novela, ``Na Idade do Lobo'', com uma cena de um comercial na qual se lê num letreiro ``Você compra e não paga''. O resultado é a construção de uma metáfora: NA IDADE DO LOBO VOCÊ COMPRA E NÃO PAGA. Metáfora tanto em relação ao conteúdo da mensagem, mas sobretudo pelo procedimento formal de articulação entre elementos heterogêneos e díspares. Num dos textos da coletânea Últimos Dias de Paupéria que serviram de referência para Carlos Galvão em sua montagem, Torquato Neto define este elemento de sua poética no cinema:
``plano geral

paisagens-planos-gerais,

distâncias. A cidade transformada

retornada transformada em

EM TRANSFORMAÇÃO. O jogo

(from navilouca) VIR/VER/OU/VIR

etc (AQUI/ALI), títulos subtítulos

versos pontuação; TEXTO-LEGENDA,

ora ocupando totalmente o

fotograma ora

precisamente ilustrando-o

``sur-place'', como

palavra-cenário (luiz otávio), e

também (galvão em OU),

palavracontradestaque, como

palavra contra destaque, como

destaque (waly) na dança da

herondina, nove cassetes filmados,

filme ectachrome kodak''21
O jogo de comutação e montagem de palavras tomadas a partir de sua materialidade enquanto significantes denota a forte influência da poética concretista transplantada para um contexto fílmico -- o que reforça ainda mais esta influência, tendo-se em vista a abertura que a poesia concreta introduziu em relação a suportes alternativos e uso de tecnologias na construção de sua poética. Isto faz com que estas ``palavras-cenário'' cumpram uma função muito singular na estética de O Terror da Vermelha. Elas não são meros elementos secundários mas parte de um discurso poético não narrativo, e por que não dizer até mesmo de caráter construtivista, que corre em paralelo com o filme. Torquato Neto reúne com isto as condições para que a montagem prolifere como procedimento para além do discurso cinematográfico. O cinema é então vampirizado pelo poeta que extrai de suas possibilidades arteriais o fluido vital que vai nutrir o rigor formal de sua poética-moviola. Desde a letra de Geléia Geral, quando nesta são enumeradas as ``relíquias do Brasil'' até no estilo de texto jornalístico singular inventado por Torquato Neto, tudo na sua produção pode ser entendido como resultante de procedimentos que exploram a montagem em suas possibilidades estéticas. O corte que seleciona e a sutura que coloca em contigüidade elementos díspares, provocando a colisão destas representações, como sugere Eisenstein, e desferindo com isto um choque produtor de uma metáfora absoluta na consciência do leitor-espectador. Em sua análise sobre o poeta expressionista Georg Trakl, Modesto Carone explica a relação entre metáfora e montagem:
``O recurso do poeta, para livrar-se de um mundo verbal pré-constituído (que o levaria, se articulado fielmente, a dizer não o que afinal conseguiu, mas ao que de alguma forma já tinha sido dito) é quebrar a linguagem através da alogicidade da metáfora e da descontinuidade da montagem''.22
Para além das coincidências que transcendem o plano específico de suas obras23, Georg Trakl e Torquato Neto se mostram próximos em relação à maneira pela qual exploram a dimensão da linguagem poética que Pound chamou em seu ABC da Literatura de fanopéia -- a virtualidade própria que uma linguagem traz consigo de suscitar a criação de imagens. Torquato expressa esta necessidade de ir além do que o universo verbal pré-figurado lhe permite pois compartilha da descrença na possibilidade de encontrar um sentido no plano do instituído tal como é afirmada esta ``perda da fé nas palavras'' na Carta de Lorde Chandos de Hugo Von Hoffmansthall:
``Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra -- um mundo poluído -- explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Informação: há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. Todas juntas e à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas''24
Esta forma de composição na qual o procedimento da montagem é representada através da imagem dos letreiros na TV na construção da mensagem NA IDADE DO LOBO VOCÊ COMPRA E NÃO PAGA coloca em curto circuito a relação forma conteúdo, pois a forma mesma é que se torna o conteúdo da mensagem,
``Uma forma isolada, uma forma em si, realmente não existe. Ela é o ser, a tarefa existencial do artista, seu objetivo. Nesse sentido é que se deve entender a frase de Staiger: a forma é o mais alto conteúdo.''25
O recurso das palavras-cenário vai ser recorrente em outros momentos de O Terror da Vermelha. Quanto à seqüência da pontuação inicial do filme a decupagem se completa com a apresentação em plano fixo do letreiro com o nome do filme escrito com tipos que imitam o sangue escorrendo pela tela. O plano que se segue descreve uma cena banal de uma mulher que estende roupas num varal, numa relação direta com a letra de Mamãe Coragem, música de fundo na montagem da Ana Maria Duarte. Os planos seguintes continuam descrevendo este espaço da vida privada onde prevalece a verticalidade, o equilíbrio, a inércia. A imagem da mãe de Torquato Neto é mostrada em plano americano, mais uma vez reforçando a relação com a trilha musical. Aqui é reiterado mais uma vez o sentido de um antagonismo entre o espaço inercial da esfera privada, onde nenhuma ação evolui segundo uma linha de continuidade e o espaço público como local onde se dão as ações. O ritmo é paratático, reforçando o contexto de isolamento que as imagens apresentam desse espaço privado26. O quadro seguinte mostra um portão aberto num plano mais uma vez fixo: a câmera que está cativa deste espaço fechado encontra neste elemento a possibilidade de uma relação com a exterioridade. Segundo Noel Burch o cinema é definido por dois tipos de espaço: o espaço do enquadramento e o que se encontra fora de plano. Até este plano do portão o espaço fechado da casa como interioridade do privado é mostrada como isolado, o que também acontece quanto ao aspecto formal do enquadramento no sentido de que são planos fixos sem qualquer ação e sem qualquer movimento de câmera. A partir do momento em que a câmera encontra este ponto que permite uma passagem, o movimento e a ação se tornam possíveis no exercício formal e abstrato pelo qual se mostra uma bandeira azul com o seguinte símbolo gráfico:

O plano pelo qual se inicia a descrição do símbolo abstrato é um close fechado no centro do plano que constrói a imagem de um sinal de adição (+). Com um zoom out revela-se a imagem em plongée da bandeira com o símbolo estendida no chão do quintal. O símbolo de adição acrescido da transversal no quadrante superior esquerdo desenha o número 4 (quatro), que pela lógica de comutação de seus elementos significantes torna-se ``quadro''. -- seguindo Noel Burch, quatro são as direções que fundamentam o que se mostra no plano. É através dos limites estipulados pelos segmentos que formam o plano que se estabelece o jogo entre o que entra na composição do plano e o que se coloca fora de enquadramento. O ritmo de um filme é dado segundo da articulação desses dois espaços. Existem ainda mais dois limites, inteirando seis ao todo: o ponto que se coloca para trás da câmera e o que se coloca para além do horizonte O estilo de decupagem de um diretor é resultado da maneira pela qual é trabalhada a variação deste parâmetro. Com a cena em questão Torquato Neto mais uma vez pontua seu filme com um elemento não narrativo, o que pode ser entendido como um esforço no sentido de ressaltar seu cuidado quanto aos aspectos formais de sua realização.

Realizado o exercício formal abstrato a câmera mostra a mesma bandeira agora pendurada no varal já antes mostrado na cena da mulher que estendia roupa para secar.Isto a libera para descrever um giro e chegar até um grupo de crianças sentadas à frente da bandeira com o símbolo abstrato. Mais uma vez se chega até a mesma bandeira estendida no chão e também se repetem os movimentos da cena homóloga anterior. É reforçado o sinal de adição (+) formado com o enquadramento em super close do centro da bandeira, o que denota uma sucessão de adições (referência a Goddard, ONE PLUS ONE- o cinema como síntese de uma seqüência de planos que se somam na intermitência de 24 quadros por segundo). No texto que serviu de base para a montagem de O Terror da Vermelha por Carlos Galvão encontra-se a seguinte exposição de conceitos sobre linguagem no cinema:

 

``-- um filme é feito de planos:

a b c: um plano depois do outro

depois do outro depois do outro

depois do outro -- planos. Não é

feito de cenas, rapaziada-cineclube.

1 plano é um plano, porquanto

montagem é, ante sempre

montagem é, antesempre, uma análise

de planos, e mais soma/ divisão

multiplicação/ subtração. Certo disso,

dziga vertov, citado por Godard em

inglês:... montar um filme antes

da filmagem, montar um filme depois da filmagem.

Fazer um filme (...)

 

(...)-- em seguida à verificação de

variadas férteis possibilidades

de edição (montagem), optou-se por

stanley donen. Não há explicações

recomendáveis claras para a

escolha: pareceu-nos simplesmente

a mais NATURAL, CONCRETA, no

pensamento da transação com imagem

(e som): em movimento como forma de

narração concreta precisa necessária

satisfatória. Idade eletrônica. Mais,

evidentemente, o

tempo/ contratempo/ contracampo,

produção execução e a guerra,

(ONE PLUS ONE), Godard, o filme das

famílias, televisão, cinemascope, o

escambal, o diabo a 4 27(grifo nosso)

 

Mais um letreiro: ``O FAROESTEIRO DA CIDADE VERDE'' abre outro momento do filme introduzindo o protagonista serial killer num plano geral que o mostra caminhando pelo movimento das ruas do Bairro da Vermelha em Teresina (bairro onde morava Torquato Neto). De ``Mamãe Coragem'' da seqüência anterior, a sonorização retorna para a trilha western do começo: o ``faroesteiro da cidade verde'' vai começar a atacar. Desenvolve-se então uma seqüência nos moldes do esquema das micro-narrativas de agressão, com identificação da vítima, abordagem, ataque e plano descritivo da vítima. Em câmera subjetiva a vítima é identificada e, ao perceber o perigo, devolve o olhar para a câmera. Ainda no mesmo plano a personagem se levanta e inicia sua fuga correndo para o limite que se coloca para trás da linha do horizonte, segundo os parâmetros espaciais definidos por Burch. O plano seguinte mostra o protagonista em perseguição à vítima -- o ritmo se torna tenso, com vários raccords explorados de maneira a produzir um efeito de desorientação num plano formal paralelo à desorientação da personagem que tenta em vão escapar das mãos do assassino. Este acaba por estrangulá-la. O plano que fecha o momento do ataque mostra o detalhe das mãos do agressor que lentamente soltam o pescoço da vítima, novamente num plano fixo. Segue-se o plano característico pelo qual Torquato Neto fecha o esquema das micro-narrativas de agressão, a descrição da vítima já morta - um estado em que se volatiliza o personagem na apresentação da pura imagem de um corpo catatônico, histérico de um ator-atriz coisificado que não mais representa um papel, mas que é transfigurado em mero elemento cênico. Na seqüência deste primeiro ataque Torquato Neto mostra mais algumas ``vítimas'' já reduzidas à sua mera corporeidade através do recurso da montagem -- só são apresentados os corpos inertes da mesma forma descritiva que a primeira vítima. A agressão só é mostrada em seu resultado -- os ataque são elididos.

Na seqüência seguinte é utilizado novamente o recurso das ``palavras-cenário'': o protagonista fica à espreita da personagem interpretada por Conceição Galvão, que está saindo de casa para se encontrar com o personagem interpretado por Geraldo Cabeludo ( na trilha musical Elvis, com The Girl That I Love). Um affair que tem como destino o BAHIA PALACE HOTEL. O protagonista serial killer fica à espreita mas não entra no hotel para atacar o casal -- fica do lado de fora com um picolé, sentado sob o letreiro do hotel logo abaixo da palavra BAHIA tomando um picolé. Para Paulo Roberto Pires a cena consiste numa metáfora do rompimento de Torquato com o grupo baiano28. Nesta espreita que não resulta num ataque, o protagonista não está com a camisa vermelha do começo do filme, mas uma branca. Conceição e Geraldo são as únicas vítimas que escapam do Terror da Vermelha. Quando o casal sai do hotel o plano que atravessam no sentido longitudinal da esquerda para a direita corta no seu limite superior uma placa da qual extrai a palavra ``CARNAÚBA'' entre dois logotipos de COCA-COLA. O casal chega novamente na casa da qual partiu Conceição -- eles se despedem e ela entra. O plano que fecha a seqüência mostra o protagonista novamente com sua boina e camisa listrada vermelha em frente de um fundo vermelho, olhando diretamente para a câmera.

Ao som de Let's Play That, parceria de Torquato com Macalé, o filme chega então ao seu ápice com a cena mais forte de todas: o protagonista identifica Torquato Neto como próxima vítima a ser atacada. O próprio diretor não escapará do personagem que criou. Numa aproximação rápida, pontuada por planos construídos segundo um ritmo dinâmico, o Terror da Vermelha ataca Torquato pelas costas com uma corda. O anjo torto da tropicália é exterminado pelo seu alter-ego enquanto lia ``a Geléia Geral brasileira que o Jornal do Brasil do Brasil anuncia'' , sentado despreocupadamente num banco de praça do bairro em que viveu em sua cidade natal. A seqüência termina com um plano geral mostrando Torquato na mesma condição pela qual o protagonista esvaziava suas vítimas anteriores de qualquer resquício de representação, apresentando seus corpos em sua pura materialidade. Segundo Gaston Bachellard a agressão como elemento estético é uma forma de apropriação do tempo que cria um determinado ritmo. Na reflexão que o filósofo francês faz sobre a obra de Lautréamont, identifica-se a estética da agressão dos Cantos de Maldoror como um recurso estético fundamental para a criação do estilo próprio desta obra- a velocidade das ações que lhe dão seu ritmo:
``(...) o tempo da agressão é um tempo muito especial. É sempre recto (sic.), sempre dirigido; não o curva qualquer ondulação, nenhum obstáculo o faz hesitar. É um tempo simples. É sempre homogêneo ao primeiro impulso. O tempo da agressão é produzido pelo ser que ataca no plano único em que o ser pretende afirmar a sua violência. O ser agressivo não espera que lhe dêem tempo; apossa-se dele, cria-o''.29
Bachellard chega a esta avaliação do estilo ducassiano a partir da apreciação das metamorfoses animais de Maldoror. A agressão no comportamento animal cumpre a função fundamental de preservação da vida. Esta é a relação da agressão com a natureza. Com relação à cultura, a agressão é um elemento pelo qual se pode articular uma apropriação do signo da morte: o tempo. De acordo com Freud em O Mal-Estar na Civilização (Cultura no original em alemão), a vida em sociedade impõe a necessidade da repressão dos instintos básicos do homem. Dessa maneira o recalque desses impulsos é sublimado através da fantasia e da arte.Todo e qualquer ato de criação artística mobiliza a energia recalcada desses impulsos reprimidos. A maneira pela qual um artista se relaciona com este componente agressivo é determinante na constituição de sua estética. No caso de Torquato Neto a agressão assume todo uma condição central na figura do vampiro à qual ficou vinculado. Em o Terror da Vermelha é dado livre curso a suas fantasias auto-punitivas -- a encenação de sua própria morte foi um dos avisos mais eloqüentes de seu suicídio iminente.

Num dos planos mais misteriosos do filme, logo após atacar Torquato, o protagonista é mostrado chegando numa esquina emoldurada por dois postes nos quais figuram placas de contra-mão. O Terror da Vermelha se posiciona no meio entre os postes e mira diretamente na objetiva.

Nas seqüências seguintes repete-se o procedimento das micro-narrativas de agressão e das palavras-cenário. A cena mais inusitada talvez fique por conta da dança de sua sobrinha, Herundina que havia então recentemente chegado dos EUA. Na versão da montagem de Ana Maria Duarte a música de fundo é La Bamba, o que cria um efeito cômico em relação à sua forma de dançar entre as palavras-cenário AQUI e ALI -- reiterando o jogo entre interior/exterior, próximo/ distante. Na montagem de Galvão a música de fundo cria uma percepção completamente diferente ao evocar um ar de exotismo a partir de uma música com referências incidentais de música indiana.

A seguir é a cena épica do duelo. Aqui mais uma vez é seguido o esquema das micro-narrativas de agressão - pela primeira vez o Terror da Vermelha usa uma arma (faca). Os enquadramentos em contra-plongée são uma referência direta ao estilo de Sérgio Leone. O jogo entre plano e contra-plano é utilizado num ritmo crescente que culmina com o ataque sobre a vítima. Na luta esta se arma com uma pedra, mas não consegue deter o terror da Vermelha que lhe desfere um golpe fatal com a arma. Este sai mais uma vez em fuga desorientada pela cidade, esfregando os dedos na boca como o personagem principal de Goddard em `Acossado''. Um plano fixo mostra o poema-cartás tristeRESINA, uma referência direta à emulsão do filme (resina) que capta a vida melancólica de sua cidade natal. Na seqüência o Terror da Vermelha faz mais duas vítimas -- os movimentos de câmera e enquadramentos se tornam cada vez mais fragmentados e descontínuos (efeitos de raccord) conforme o protagonista vai sendo mostrado ferido e correndo de maneira trôpega pelas ruas da cidade. Na penúltima seqüência mostra-se o espaço vazio da esquina emoldurada pelos sinais de contramão da qual o Terror da Vermelha lançou anteriormente um olhar direto e prolongado para a objetiva da câmera. O plano desloca-se em travelling para a direita, sobe numa panorâmica vertical, executa outro travelling no sentido oposto ao primeiro e desce em outra panorâmica vertical, perfazendo a figura esquemática de um quadrado. Este procedimento acontece de maneira similar no filme que Hélio Oiticica rodou em Nova York (Agrippina: Roma é Manhattan) e que termina com a câmera desenhando um oito invertido. Este procedimento serve como uma vinheta, uma assinatura do diretor. O Terror da Vermelha termina com uma ponta de filme, o que introduz como pontuação final uma imagem completamente destituída de qualquer valor enquanto representação: ``uma ponta de filme -- calças amarelas / quarto número seis sete cidades''.30 Uma imagem autônoma:
``Toda situação é autônoma -- montagem somaseqüente de planos.

(...) Montagem absolutamente não discursiva. Um plano é um plano.31
O exercício formal colocado em prática em O Terror da Vermelha leva Torquato Neto a alcançar este estatuto da imagem. O rigor da sua concepção de discurso cinematográfico faz do filme a prova mais eloqüente da potência de sua estética. Potência que tem sido mantida soterrada pelos escombros românticos do seu suicídio. Neste sentido, sSua incursão pelo Super-8 é reveladora de uma poética rigorosa e de um trato obsessivo com a forma, características fundamentais de toda e qualquer obra de grande envergadura.

1  Bibliografia

ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um Poeta na Medida do Impossível : Trajetória de Torquato Neto. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo, 1993.

ANDRADE, Paulo. Torquato Neto -- Uma Poética de Estilhaços. São Paulo, Annablume, 2002.

BUENO, André. Um poeta não se faz com versos. In antologia Prêmio Torquato Neto ano 1 -- Diversas manifestações da cultura alternativa década de 60-70. Rio de Janeiro, Centro de Cultura Alternativa / RioArte, 1984.

BURCH, Noel. Práxis do Cinema. São Paulo, Perspectiva, 1992.

CAMPOS, Haroldo de. Glauberélio / Heliglauber. In CARDOSO, Ivan. Heliglauber. Rio de Janeiro, Secretaria de Cultura / Riofilme,1997.

CARONE NETTO, Modesto. Metáfora e Montagem -- Um estudo sobre a poesia de Georg Trakl. São Paulo, Perspectiva, 1974

FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996.

FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. São Paulo, Limiar, 2000.

LEMINSKY, Paulo. Os Últimos Dias de um Romântico. São Paulo, Folhetim n 303, 07/11/1982

MACHADO JR. Rubens. Marginalia 70. http://www.itaucultural.com.br/marginalia70/filmes.cfm?ord=filme acessado em 03/12/2003 às 00:07

MONTEIRO, André. A Ruptura do Escorpião -- Ensaio sobre Torquato Neto e o mito da Marginalidade. São Paulo, Cone Sul, 1999.

PIRES, Paulo Roberto. Torquato Cineasta. Disponível em http://www.no.com.br/revista/noticia/44329/1005258573000

TORQUATO NETO. Últimos dias de Paupéria. São Paulo, Max Limonad, 1982.

TRAKL, Georg. De Profundis. São Paulo, Iluminuras, 1994.

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento -- Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo, Brasiliense, 1993.

1
Ensaio apresentado como exigência do programa da disciplina ``Anarco Superoitistas'', ministrada pelo professor Rubens Machado Jr. 2004
2
LEMINSKY, Paulo. Os Últimos Dias de um Romântico. São Paulo, Folhetim n 303, 07/11/1982.
3
Caráter que se consolida ao se mapear sua trajetória que vai de letrista do tropicalismo ao colunista inclassificável da Geléia Geral; do cineasta experimental de O Terror da Vermelha ao ator em Helô e Dirce e Nosferatu no Brasil
4
ANDRADE, Paulo. Torquato Neto -- Uma Poética de Estilhaços. São Paulo, Annablume, 2002.

MONTEIRO, André. A Ruptura do Escorpião -- Ensaio sobre Torquato Neto e o mito da Marginalidade. São Paulo, Cone Sul, 1999.

ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um Poeta na Medida do Impossível : Trajetória de Torquato Neto. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo, 1993.
5
BUENO, André. Um poeta não se faz com versos. In antologia Prêmio Torquato Neto ano 1 -- Diversas manifestações da cultura alternativa década de 60-70. Rio de Janeiro, Centro de Cultura Alternativa / RioArte, 1984. p. 140.
6
Haja visto as atualizações e adensamentos da coletânea Últimos Dias de Paupéria, - conjunto de textos, poesias, letras e o material de sua coluna Geléia Geral organizado por Ana Maria Duarte Araújo, com quem Torquato foi casado e Waly Salomão, seu amigo. Esta coletânea está para ser republicada em sua terceira versão desde 1998 -- agora ampliada para 2 volumes e com um novo nome: Torquatália.
7
Edmar Oliveira, Conceição Galvão, Geraldo Cabeludo, Claudete Dias, Torquato Neto, Etim, Durvalino Couto, Paulo José Cunha, Herondina, Edmilson, Carlos Galvão, Xico Ferreira, Arnaldo, Albuquerque e os pais de Torquato, Heli e Salomé.
8
TORQUATO NETO. Úlimos Dias de Paupéria -- p.339.
9
Ver o único artigo dedicado exclusivamente dedicado ao Terror da Vermelha:

PIRES, Paulo Roberto. Torquato Cineasta. http://www.no.com.br/revista/noticia/44329/1005258573000
10
TORQUATO NETO. Úlimos Dias de Paupéria -- p.262
11
Ibdem.
12
TORQUATO NETO, p.261.
13
MACHADO JR. Rubens. Marginalia 70. http://www.itaucultural.com.br/marginalia70/filmes.cfm?ord=filme

acessado em 03/12/2003 às 00:07
14
TORQUATO NETO, Geléia Geral de 28/08/1971 -- ``As Travessuras do superoito'' em Últimos Dias de Paupéria, p.36.
15
NETO, Torquato. Nas Quebradas da Noite. Rio de Janeiro, Última Hora, Geléia Geral de 02/12/1971.
16
FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996. p 81-82.
17
In PIRES, Paulo Roberto. Torquato Cineasta. Publicado em 08/12/2001 no site www.no.com.br , disponibilizado na URL http://www.no.com.br/revista/secaoparaimpressao/1110/44330/1005258894000

acessado em 08/01/2004 as 04:32 a.m.
18
CAMPOS, Haroldo de. Glauberélio / Heliglauber. In CARDOSO, Ivan. Heliglauber. Rio de Janeiro, Secretaria de Cultura / Riofilme,1997.
19
Enquanto signos alegóricos, a boina e os cabelos compridos evocam a imagem de Che Guevara (Soy Loco Por Ti América) enquanto que o gesto de esfregar os lábios é uma citação do filma Acossado de Goddard, no qual o protagonista, que também é um anti-herói, repetidas vezes executa o mesmo gesto.
20
MACHADO JR. Rubens. Marginalia 70. http://www.itaucultural.com.br/marginalia70/filmes.cfm?ord=filme

acessado em 03/12/2003 às 00:07
21
TORQUATO NETO. Úlimos Dias de Paupéria -- p.240.
22
CARONE NETTO, Modesto. Metáfora e Montagem -- Um estudo sobre a poesia de Georg Trakl. São Paulo, Perspectiva, 1974.p.21.
23
Ambos os poetas se suicidaram. Trakl com 27 e Torquato com 28 anos. Ambos também tinham reconhecidamente um comportamento desregrado. Torquato pelo próprio contexto da cultura das drogas nos anos 60 e Trakl no começo do século recorrendo à morfina e à cocaína (ele era farmacêutico e, portanto tinha fácil acesso a estas substâncias) para suportar o pesadelo dos campos de batalha da I Guerra Mundial nos quais serviu como enfermeiro.
24
TORQUATO NETO, Últimos Dias de Paupéria, p.98.
25
BENN, Gottfried. Apud CARONE NETTO, op.cit. p35.
26
Ver nota 15.
27
TORQUATO NETO, Últimos Dias de Paupéria, p.340.
28
Op.cit.
29
BACHELLARD, Gaston. Lautréamont. Lisboa, Litoral Edições, 1989. p.9.
30
Descrição da cena pelo próprio Torquato Neto no texto que serviu de referência para Galvão montar o filme.
31
TORQUATO NETO, Últimos Dias de Pauléria, p.346.