O Silêncio na Comunicação

Tito Cardoso e Cunha, Universidade Nova de Lisboa

tm.cunha@fcsh.unl.pt

Maio de 2001

O silêncio é, aparentemente, o contrário da comunicação. Sabemos que o não é inteiramente, nomeadamente por haver silêncios que exprimem sentido.

No entanto, comunicar em democracia parece ser, hoje em dia, algo de cada vez mais ruidoso. O silêncio guarda ainda, no nosso imaginário, a conotação de repressão imposta sobre a voz e a sua expressão livre.

A censura impõe o silêncio, corta a palavra, oculta. Se bem que ocultar seja da ordem do visível, que não do audível em que a voz se exprime rompendo o silêncio, o jogo metafórico da própria linguagem põe a invisibilidade do que ao olhar se oculta, ou é ocultado, a decorrer do que silencia a palavra e é portanto do registo do (in)audível.

De como o silêncio impõe o que deveria apenas ser da ordem do olhar: a ocultação. A palavra torna visível, resgatando do silêncio. Assim os antigos senhores a fixavam, à palavra, por escrito, para não deixarem de existir na memória dos homens. Como usarão a representação, o retrato, com o mesmo fim de eternidade.

A palavra foi também pensada como desocultação. A palavra que dá a ver. Há olhares que são cegos sem a palavra. Nomeadamente o olhar crítico. Melhor dito: a palavra como "esclarecimento" do olhar sem a qual este se condena à cegueira crítica. A cegueira é uma espécie de grande silêncio do sentido, uma ocultação que a palavra nunca inteiramente pode compensar.

Por outro lado, o silêncio também pode ser visto como ocultação do recalcado/reprimido. Politicamente isto tem consequências. O silêncio (melhor, o silenciamento) é claramente antidemocrático. Pode também ser cumplicidade ou falta de coragem: "Quem cala consente".

Não pretendo com isto dizer que o silêncio deve ser lido apenas como negatividade e privação. Porque ele é também, muito "clara" e afirmativamente a condição do sentido. Desde os primórdios, na música e no canto.

O ruído não "faz" sentido, antes no seu desfazer se empenha. Para que a música se erga e seja audível, o fundo tem de ser feito de silêncio.

Da palavra o mesmo se dirá quando ela, da sua fusional origem no canto e na recitação do mito, se destaca inscrevendo-se no espaço público. Enquanto palavra persuasiva, na essência mesma da polis helénica, a discursividade argumentativa do orador político assenta toda ela no dispositivo dialéctico entre a fala de um e o silêncio, porventura atento, dos outros. Nesse caso, a fala é comunicativa e o silêncio passividade receptiva.

O silêncio como passividade: sendo a palavra acção, como o mostrou Austin ao elaborar a sua teoria da performatividade da linguagem, há coisas que se fazem com a linguagem e, consequentemente, não se fazem pelo silêncio. Silêncio e (in)acção como na morte ou como no transporte místico. O êxtase místico, sendo extático, é pura inacção, isto é contemplação. Sendo contemplação é da ordem do visível. De novo nos encontramos perante a dupla categoria do dizível e do visível, entre o dizer e o que se oculta. Esta ocultação calada pode ser o resultado intencional de uma acção política ou psíquica de reprimir, mas pode também ser o modo ontológico do ser: a natureza gosta de se ocultar diz Heraclito num fragmento célebre [1] . Querendo com isso dizer, supor-se-á, que o ser é secreto, isto é silencioso [2] . A fala, o discurso, o verbo irrompe para o romper, precisamente, como se rompe o véu que oculta o ser. Aí Heidegger vai buscar a sua ideia de verdade como des-velamento, des-vendamento, véus e vendas que a palavra afasta, revelando o que se oculta ou, no dizer de Heraclito, gosta (philei) de se ocultar, tornando-se críptico, isto é que se oferece á decifração ou interpretação, tarefa por excelência da palavra.

A palavra como desvelamento da única verdade possível é o próprio, essencialmente, da fala poética, di-lo Heidegger e terá toda a razão. O que a palavra poética diz não é da ordem do inessencial quotidiano e falador (tagarela). É antes da ordem do essencial, que é o que mais próximo está do silêncio.

Um outro autor contemporâneo diagnostica aquilo a que chama “a retreat from da word” (Um retrocedimento da palavra) característico, segundo ele da ciência como da arte contemporâneas [3] .

Ao retirar-se da palavra, a nossa contemporaneidade, não nos remete necessariamente para o silêncio, como se depreenderia do que escreve G. Steiner. Antes para o ruído. Visto, aliás, de maneira oposta, dir-se-ia mesmo que o império do ruído é que destrui a palavra, destruindo o silêncio que é a sua condição de possibilidade.

***

A antropologia, que nos fala da alteridade mais primordial, é onde se poderá, a meu ver (e dizer), encontrar a ilustração mais autêntica disso mesmo que aqui se acaba de escrever.

O "primitivo" era tomado muitas vezes por lacónico, isto é mais dado ao silêncio. Sobretudo em contraste com o ocidental que na sua ânsia de um saber todo não parava de falar... e nunca mais parou, aliás. Embora esse saber totalizante (totalitário) estivesse ainda para além da quotidiana incontinência verbal exibida.

Começando pelo acto da nomeação (dar o nome), que nalgumas culturas se remete a um silêncio que o ocidental interpretou como o segredo do nome, no sentido repressivo do tabu, num regime discursivo radicalmente absurdo aos olhos (e ouvidos) do ocidental. Mas de um Ocidente sem memória que esqueceu os seus primordiais antepassados atenienses e espartiatas, tão lacónicos uns como cultores da palavra os outros que o foram pela primeira vez em público.

Porventura entre eles o laconismo silencioso foi a condição mesma de onde a palavra do sentido pôde brotar. Bem como a palavra que é acção e, de entre essas, a palavra persuasiva eminentemente activa enquanto se dedica exclusivamente a mover e co-mover a mente do outro que assim reconhece.

Mesmo nas nossas ocidentais sociedades mediterrânicas, aqui há uns tempos atrás, quando vigoravam ainda comunidades por vezes ditas arcaicas na sua ruralidade, a palavra assumia um peso contratual que foi perdendo. A palavra tinha o peso e a densidade de um rosto identitário: faltar à palavra dada era como perder a face, isto é aquilo que nos identifica e sem o que nos desconhecemos e somos des-conhecidos.

Nesta nostálgica utopia ao contrário (utopia do silêncio e da palavra plena que dela brota), ao contrário porque olhando para uma origem perdida, a palavra tem uma outra densidade, um "peso" que só o falar poético hoje por vezes guarda. A palavra era como uma coisa, quase um objecto como aqueles que se diziam ser de "estimação" porque habitados por um afecto.

Lévi-Strauss explica-nos como "Estava na natureza do signo linguístico não poder permanecer muito tempo no estádio ao qual Babel pôs fim, quando as palavras eram ainda os bens essenciais da cada grupo particular: valores tanto quanto signos; preciosamente conservados, pronunciados com parcimónia, trocados contra outras palavras cujo sentido desvendado vincularia o outro...

Na medida em que as palavras se banalizaram e em que a sua função de signo suplantou o seu carácter de valor, a linguagem contribuiu, com a civilização científica (eu diria mediática), para empobrecer a percepção, a despojá-la das suas implicações afectivas, estéticas e mágicas, e a esquematizar o pensamento." [4]

Contrariamente ao ar ou à água, que a actualidade percepciona como bens governados pela escassez, a palavra deixou de ser percebida como um bem escasso. Particularmente os actuais meios de comunicação de massa, e em particular o mais esmagador deles todos: a televisão, dão à palavra um estatuto que releva do puro dispêndio. O que só é reforçado pela noção, bem arreigada, de que o fluxo é inesgotável. O problema começa a ser antes o da incontinência verbal em que esses mesmos meios se precipitam e a nós com eles.

O que neles se observa é um "dilúvio de emoções familiares cuja obsolescência acaba por se tornar reconfortante por causa da maneira como elas são prodigalizadas, mas que inquieta sobre o estatuto de uma tal palavra que vota ao esquecimento tudo o que enuncia. A saturação da palavra induz o fascínio do silêncio." [5]

Quanto mais se fala mais se esquece. O discurso dos media que diz e produz a actualidade, delimita-a ao aqui e agora e transforma o real em algo que está em permanente evanescência, suspenso de um eterno presente que se prolonga sem fim como o fluxo incontido de uma torneira mal fechada.

A palavrosa actualidade televisiva é uma poderosa máquina de esquecimento. A actualidade, por definição, não tem memória. Ela existe num constante presente que ruidosamente passa e vai sempre permanecendo.

O esquecimento a que o não-presente imediato é votado resulta dessa incontinência verbal permanente a que o fluxo da actualidade, num eterno  presente, dá lugar.

Entre a actualidade e o seu esquecimento, a passagem não se nota porque a palavra por onde essa passagem se faz não consente nada para além do seu próprio imediatismo. Uma palavra imediata é por isso mesmo votada ao esquecimento. Poder-se-á assim dizer que é a palavra, no seu imediatismo, a causa do esquecimento.

Para que a palavra fosse mediação, nomeadamente em relação a um passado que exista, teria de haver lugar para o silêncio distanciador, isto é a possibilidade de uma palavra que não aderisse tão imediatamente ao ensurdecedor ruído da actualidade.

Como na TV, a palavra é tão aderente ao acontecimento e à sua imagem que lhe fica presa como um ruído de fundo. O ruído da di-versão entra em contraste com a uni-versão da memória que se opera a partir do silêncio e na distância.

A actualidade nunca acaba nem se cala, não dá lugar ao silêncio que é onde a memória distanciadamente se constrói.

A imagem televisiva sustenta-se no ruído, mais precisamente no ruído de fundo, que parece procurar combater o temor do silêncio gerador de angústia. Na modernidade a multidão será solitária mas não é por isso  menos ruidosa. No combate à angústia da multidão solitária, a escolha está entre a uni-versão da palavra com sentido e o atordoamento ruidoso de uma certa di-versão mediático-televisiva.

No primeiro caso coabita-se com o silêncio, é um silêncio de fundo do qual irrompe o sentido; no outro, o ruído de fundo, não dando lugar ao silêncio, impede o sentido, qualquer sentido, de advir.

A mudança que leva ao aparecimento da multidão solitária na modernidade foi emblematicamente referido por Lévi-Strauss [6] num texto conhecido onde põe em contraste o silêncio do analista, à escuta do mito individual do neurótico [7] , em contraste com o silêncio do selvagem a quem o xamane recita o mito colectivo.

Dir-se-ia que nesse processo de individuação, de que também fala Foucault [8] , a passagem do mito colectivo ao mito individual, é o de um progressivo alastramento da tagarelice. O narcisismo é tudo menos silencioso. Faz até, habitualmente, muito barulho. Quanto mais se avança na procura da verdade íntima, da verdade no íntimo, mais se está a romper o silêncio. A cultura do narcisismo [9] é, tendencialmente, uma cultura bem pouco silenciosa, e muito dada à tagarelice (fofoca, como dizem os brasileiros). Por isso se dá tão bem com os ditos meios de comunicação de massa.

Lembremos, no entanto, que o silêncio, em psicanálise, é também um indício do não esquecimento, daquilo que resiste ao completo apagamento. É porque de algum modo resiste e subsiste na memória que isso se cala e silencia. Aqui o silêncio (o que se silencia) vai de par com a memória, a persistência na memória. Enquanto resiste, existe. Existe pelo silêncio.

Porque o silêncio não o é de nada. O silêncio é sempre de algo que se silencia, que se guarda em segredo. Exemplos: os cripto-judeus de Belmonte ou os cripto-cristãos no Japão.

A matéria do silêncio existe, por vezes insiste, e sempre espera o momento de se dizer, com pertinência, na plenitude do sentido em que pode ser escutada.

O silêncio não é ausência de sentido. Há silêncios que falam e há até silêncios que são eloquentes, isto é que dizem mais ou melhor do que palavras. O silêncio, em todo o caso - e particularmente aquele que é dito ser eloquente - é um meio de comunicação se pensarmos, com Bateson e a escola de Palo Alto [10] , não ser possível deixar de comunicar. Há mutismos que são grito. A dor, por exemplo, se se diz normalmente pelo grito, é ainda mais eloquente quando se exprime pelo silêncio.

Sobre os limites da palavra confinando com o silêncio também Wittgenstein

meditou na famosa e intrigante proposição final do Tractatus [11] onde afirma "Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio", o que pode ser entendida talvez não tanto como uma impotência do falar mas como o reconhecimento de que haverá alguns limites ao dizer para além dos quais o silêncio estende o seu manto. Ao que um recente crítico contrapunha com alguma ironia: “Whereoff we cannot speak, thereoff we will go on guessing” [12] (acerca daquilo de que se não pode falar, continuar-se-á a adivinhar)

Mas o silêncio também pode ser performativo: "fez-se um silêncio". Este "fazer" denota até uma intencionalidade na acção. O silêncio  pode até ser da ordem da agressão como quando se decide "não dirigir a palavra" a alguém. Este silêncio é um acto de gravidade na medida em que retira ao outro o reconhecimento, base de toda a comunicação e de toda a auto-sustentação identitária.

Em contrapartida, dirigir a palavra a alguém constitui um acto de reconhecimento animado de alguma intencionalidade: alguém se coloca, ou é por nós colocado, na direcção da nossa palavra.

A palavra seria da ordem daquilo que se recebe, como dom até, a palavra dá-se e toma-se, também se conquista e não necessariamente contra o silêncio, mas contra o ruído e a tagarelice que não é mais do que um ruído de fundo que tende a dissolver qualquer fala racionalmente articulada e com sentido.

Já Platão (no Górgias), quando quer situar a retórica entre as artes começa por colocá-la entre aquelas de quem a acção é um atributo para em seguida distinguir aquelas que actuam pela palavra, como a retórica, das que actuam em silêncio como a pintura ou a escultura. Num caso a acção cumpre-se pelo silêncio, no outro ela efectua-se na e pela palavra.

Falando também da pintura, G. Steiner cita Van Gogh como tendo declarado que o pintor pinta não o que vê mas o que sente. Ao dizê-lo está a justificar uma intuição segundo a qual “o que é visto pode ser transposto em palavras; o que é sentido pode ocorrer a um nível anterior à linguagem ou fora dela”. [13] Isso é uma boa ilustração de como alguém se pode retirar da palavra para um silêncio eloquente.

Mas o que é também interessante no texto de Steiner, é a ligação que ele faz entre a palavra e a visão. É como se o que se vê só se explicitasse inteiramente pela palavra e como se a imagem pudesse exprimir até lá onde a palavra não alcança e só o silêncio impera.

Resta saber onde situar a música e aquilo que se ouve. É claro que a palavra também se ouve e o canto conjuga a palavra com a música. Mas da música em si, o que é que se pode dizer? Em todo o caso ela também depende do silêncio para ser ouvida.

Quanto à escrita, ela é uma arte que, tal como a pintura no dizer de Platão, se exerce em silêncio. Entre nós, contemporaneamente, a escrita é para ser lida em silêncio (escutada em silêncio). Sabemos que nem sempre assim foi. Provavelmente para Platão essa ideia seria absurda mas para ele e para os seus contemporâneos a fala com sentido não era tão perturbada pelo ruído ambiente. É o aumento desse ruído, a ponto de se tornar hoje literalmente ensurdecedor, que nos leva a ter de ler em silêncio. Esse tipo de leitura condicionará a escrita que se faz para o silêncio [14] .

De qualquer modo, pensar no regresso a uma relação anterior com a palavra e o silêncio é certamente uma utopia, uma utopia do silêncio que, como na utopia negativa de Clastres [15] (negativa porque coloca a sociedade sem Estado num passado já cumprido e não na comunidade por vir), imagina uma palavra que já não existe em lugar nenhum, que se perdeu, e que era uma palavra com valor como quando se dizia de uma palavra que ela era de honra. Essa era uma palavra que se podia dar, receber e guardar. Em silêncio e não a voar, levada pela ventania espasmódica dos media.

Escreve G. Steiner: “A menos que consigamos restaurar alguma medida de claridade e rigor de sentido às palavras nos nossos media, leis e acção política, as nossas vidas estarão cada vez mais perto do caos. Virá então uma nova era de obscuridade” [16] .





[1] Fr.123: phusis kruptesthai philei. Na tradução Kirk-Raven: “The real constitution of things is accoustomed to hide itself” (a real constituição das coisas  está acostumada a ocultar-se). G.S.Kirk & J.E.Raven, The Presocratic Philosophers. Cambridge, University Press, 1964. P.193.

[2] “Le secret est le frère utérin du silence” provérbio africano (Bambara) citado por David Le Breton, Du silence. Paris, Métaillé, 1997. P. 124.

[3] “... significant areas of the truth, reality, and action reced from thr sphere of verbal statement”. G. Steiner, “Ther retreat from the word”, in  Language and silenceI. London, Faber & Faber, 1985.

[4] Claude Lévi-Strauss, Les structures élémentaires de la parenté. Paris, Mouton, 1967. P. 569

[5] David Le Breton, op.cit. p.12.

[6] C. Lévi-Strauss, Anthropologie Structurale. Paris, Plon, 1958. P. 205 sqq.

[7] J.Lacan, O mito individual do neurótico. Lisboa, Assirio & Alvim, 1980.

[8] M.Foucault, A vontade de saber. Lisboa, António Ramos, 1977.

[9] C. Lash, The Culture of Narcissism. New York, Warner Books, 1979.

[10] P. Watzlawick et alia, Pragmatics of Human communication. New York, Norton, 1967.

[11] L. Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico. Lisboa, F. Calouste Gulbenkian, 1987

[12] P. Hensher, Guardian Weekley

[13] Id., ibidm, p. 41

[14] F. Nietzsche, Da retórica. Lisboa, Vega, 1997.

[15] P. Clastres, A sociedade contra o Estado. Porto, Afrontamento, 1979.

[16] “Unless we can restore to the words in our newspapers, laws, and political acts some mesure and stringensy of meaning, our lives will draw yet nearer to chaos. There will then come to pass a new dark age”, in “The retreat from the word” in op.cit.