«Também
eu sou pintor» é o enunciado de uma pretensão. Vários foram os pintores que lhe
deram voz ao longo da história, e esta ter-lhes-á dado, ou não, uma voz na
Pintura. Durante séculos, a história da Pintura foi-se fazendo como a história
dos seus pretendentes. Que existissem pintores, garantiu portanto à Pintura as
suas obras e a sua história. No tempo em que as Academias formavam e
reconheciam pintores nada permitia por isso supor que se pudesse falar um dia
de um fim da Pintura. Mas, se tal veio a suceder, não foi certamente por terem
deixado de existir pintores, pretendentes a pintores ou mestres de pintura. Pelo
contrário, foi o fim da Pintura que determinou o fim dos mestres, dos
discípulos e das academias de Pintura ou a sua sobrevivência frágil e plena de
ambivalências, como a que mantêm ainda, por exemplo, no ensino artístico
institucionalizado.
Mas
o que é este fim da Pintura, decretado numa aparente displicência pela existência
de gerações e gerações de pintores do passado e do presente. Entre ser pintor e
a pintura abriu-se uma brecha que nem a
academia nem o reconhecimento podiam colmatar. Para os modernos, «ser pintor»
não garante a pretensão à Pintura. Na verdade, é como se a Pintura só pudesse
começar depois do fim dos pintores e de tudo o que havia transformado o gesto
pictórico em técnica, métier ou ofício. A crise da pintura é, pois, a
crise do que une o pintor à pintura. E o que une pintor e pintura é o gesto. O
que está em falha é o gesto de pintar. Independentemente dos contornos
metafísicos desta crise, isto é, dos questionamentos mais ou menos centrados
sobre a essência da Pintura, a crise da Pintura é, antes de mais, uma crise do gesto
de pintar, do seu sentido e
do seu porquê. E, enquanto o gesto de
pintar se mantém sob questionamento, a pintura permanece num qualquer fim ou
num qualquer começo, e o pintor, uma figura restante, vazia, desocupada.
A
figura vacante do pintor assumiu um papel particularmente importante na cena
artística do século XX, nomeadamente
pelas dramatizações que a vanguarda dela fez . Evoque-se exemplarmente, o
abandono da pintura por parte de Marcel Duchamp, ou a decisão de Warhol de
fazer do seu estúdio uma «fábrica» de imagens reprodutíveis. Para qualquer um
deles, ser artista significava ser algo de outro; … porque não um
jogador de xadrez, um conferencista, um «artífice» de objectos já feitos; …
porque não um homem de negócios, um cineasta, ou mesmo uma máquina; em qualquer
um dos casos, esse algo de outro era um (qualquer) outro do pintor. Ser pintor, sendo algo de outro, foi o
contributo paradoxal da vanguarda para a busca inquietada que a pintura moderna
fez de si mesma, ou em torno do «si mesma». Os lugares vacantes da arte
interessaram sobretudo à vanguarda que os ocupava para, precisamente, os manter
vazios, isto é, abertos a todos os gestos. Trata-se, segundo o mote inúmeras
vezes repetido pela vanguarda, de manter a arte ligada à vida e comprometida
com a sua condição essencial: a da liberdade. Para a vanguarda, o projecto da
arte é pois um projecto fundamentalmente ético e político e não técnico e
poético. Daí o ataque sistemático ao métier de artista, mas também à
produção e à obra, fechadas numa autonomia forjada, cujo último sustentáculo
seria uma arte transformada em prática institucional.
Para
a vanguarda, a revitalização da arte colocava-se como a possibilidade radical
de fazer comunicar a criatividade e a prática da vida, possibilidade essa
fundada na crença de que «todos os homens são artistas». Enunciada por um dos
artistas mais marcantes da segunda metade do século, Joseph Beuys, esta
pretensão pertence, na verdade, ao
imaginário e à doxa culturalmente partilhados acerca da vanguarda. De facto,
uma tal suposição acompanhou quase sempre, pelo menos sublinarmente, os ideais
estéticos mais utópicos da vanguarda, e é por isso que a revindicação do
renascentista Corregio, «também eu sou pintor», tem, na aparência, um sabor
surpreendentemente moderno. No entanto, as duas revindicações estão longe de
ser equiparáveis. A de Corregio supõe a glorificação artística do Pintor, e por
isso a revindica; a outra concorre para a sua dissolução, colocando a glória da
arte para além da glória do pintor. O escândalo potencial de que «todos os
homens sejam artistas» não é, como bem esclareceu Beuys, que todos os homens
sejam pintores, escultores, etc., mas sim que o gesto artístico está para além
de qualquer uma destas competências e é um gesto universal, eminentemente
humano, o gesto da criação e da
liberdade. Ser pintor não implica ser artista ou, inversamente, para ser artista não basta apenas ser
pintor, escultor, etc ; é preciso ser algo de outro. Tal como Duchamp, ou
Warhol, também Beuys foi artista sendo algo
de outro e fez da sua prática a sua obra.
Ler
este «anchi’o son pittore», aqui e agora, como «também eu sou artista» e
ocupar, num rasgo supostamente vanguardista, o lugar vazio do pintor, eis o
jogo curioso e ambíguo que sugere o dispositivo de pintura de Pedro Portugal. O
«prière de toucher» a ele convida, sedutoramente, iniciando um pequeno
teatro de qui pro quos na cena interactiva da peça. Se o lugar do Pintor
está vago, o primeiro convite é, no fundo, o de que meditemos sobre tal vazio. E
se o Pintor o abandonou, exibindo-o nesse vazio, é porque, de algum modo, ele
não era já o seu lugar. Também eu já não sou pintor é aliás uma das
sugestões possíveis a retirar da proposta anterior de Pedro Portugal,
ambiguamente intitulada «Últimas Pinturas».
Que todos possam ocupar facilmente e com à-vontade o lugar do pintor, à
excepção do próprio pintor, é uma das ambiguidades fundamentais que esta peça
de Pedro Portugal exibe e desconstrói, como herança da própria vanguarda. Ocupar
o lugar vazio do pintor, pintando o que se puder e como se puder, ou pintando
seja o que for, é certamente uma das
possibilidades que também ficou em aberto depois do trabalho dissolutório da
vanguarda. Mas que todas as possibilidades estejam em aberto não significa que
umas não sejam melhores do que outras. A arte inventa possibilidades. É este o
seu modo de escolher umas em vez de outras. Inventar possibilidades é, no
entanto, uma forma particular de realizar, de intervir no real. É nessa medida
que a arte é um gesto, e desde que haja gesto, nem tudo permanece em
aberto. O gesto de «Anchi’o son
pittore» é o do jogo, o gesto por excelência da fronteira entre abertura e
fechamento, entre finitude e infinitude, entre possibilidade e realização. O
gesto que se encena e se experimenta a si mesmo. Através de um arquivo plástico
e de uma aplicação informática que disponibilizou num interface interactivo, e
do compromisso de aceitar executar pictoricamente os resultados, Pedro Portugal
encomenda-se a si mesmo um conjunto de pinturas. «Anchi’o son pittore» encena
todo um processo complexo que lhe permite fazer retornar a si o gesto de
pintar.
Quem
levar para casa o seu quinhão de «pittore» não leva nem uma pintura de
sua autoria nem uma pintura de Pedro Portugal, mas sim um resultado ou um
efeito possível do jogo contido na obra interactiva «Anchi’ o son pittore».
A pintura (ainda que assinada por Pedro Portugal) será, quando muito, uma
pintura «a várias mãos»: umas terão operado com um interface gráfico, outras
com tintas e pincéis, outras com símbolos lógicos e matemáticos. A realização
da cada pintura é partilhada por várias pessoas e por várias operações. No
caso, Pedro Portugal terá reservado para si, aparentemente, a mais modesta,
isto é, a operação da mera execução reprodutora de uma imagem em tela ou em
papel. E, no entanto, a esta operação corresponde uma competência que, por mais
que queiramos desvalorizar, não é facilmente apropriável por nenhum dos outros
intervenientes: a competência do pintor. O lugar do pintor está pois menos
acessível do que pode parecer a um primeiro olhar sobre o jogo. No CD-Rom que
acompanha e prolonga esta experiência fora do espaço da exposição, pode ler-se,
aliás, a advertência quase moralista: não voltes a dizer «isto também eu fazia». Ao pintor o que
é do pintor.
Uma
outra ambiguidade mantém, porém, incerto o lugar do pintor: o que é do pintor,
poderá ser da máquina? Se o pintor apenas executa a posteriori o que a
manipulação da máquina lhe propõe, então o pintor não é menos maquínico do que
a máquina. Na verdade, fica ironicamente sugerida uma estranha inversão de
papéis: a máquina produz e o pintor reproduz. E se a reprodutibilidade técnica
da imagem fica a cargo do pintor, a única mais-valia seria a de que o pintor
reproduz à mão. Transformado em máquina de reprodução manual, o gesto do pintor fica reduzido ao gesto
propriamente técnico de desenhar e colorir. Na oferta final, as reproduções
manuais do pintor concorrem, aliás, com a impressão da imagem directamente
retirada da máquina. O que a máquina aliena do pintor não é pois a mão. No
limite, a mão é o que resta ao pintor
para concorrer com a máquina. O que a máquina aliena é o seu gesto. É por isso
que, através da máquina, outros podem pretender a esse gesto, mesmo sem saberem
desenhar ou colorir, mesmo deixando com o o pintor essas tarefas.
Como
bem compreendeu W. Benjamin, a reprodutibilidade técnica da obra de arte não
vinha apenas, nem sequer primordialmente, afectar o lugar da mão no processo de
constituição da obra, mas sim instâncias bem mais incorporais como a
«genialidade» a «criatividade» e o culto esteticista a elas prestado. Nas novas
condições de produção e de recepção impostas pela técnica moderna, e muito
especialmente pelos novos dispositivos da imagem como a fotografia e o cinema,
as formas de arte tradicionais, como a pintura, a literatura e o teatro,
necessitavam de se reinventar como gesto, isto é, de procurar novas formas de
envolvimento com o mundo e de aquisição de um valor social e político. O problema não era apenas o de que as
imagens pudessem, doravante, ser produzidas sem a mão do homem, aspecto que
fascinou os primeiros receptores da fotografia ou do «photegenic drawing»,
como lhe chamava Talbot. Na verdade, e como acontecia, aliás, em diversos
sectores da produção industrializada, a mão era ainda requerida, a vários
nívies, embora adestrada a novos aparelhos e a novas funções, de precisão, de
repetição e de ritmos. A técnica não só
mantinha um programa para a mão, para um novo adestramento da mão, como previa,
aliás, todo um programa de ligação a outros membros e orgãos do corpo. Mais do
que em qualquer outro momento da História, a técnica moderna, nomeadamente a
dos meios de comunicação, implica todo um processo radical de inclusão e
reconstituição do corpo, com amputações, potenciações e complementações, como
compreendeu, desde cedo, Marshal McLuhan. As mãos, ou os olhos, não ficam
propriamente desocupados, sendo na verdade palco, senão mesmo munição, de
muitas batalhas, que a técnica trava precisamente no território do corpo. Não é
pois o comprometimento aparentemente
essencial da pintura com a mão que coloca a pintura em crise, na era da
técnica. O lugar da pintura não se torna incerto pelo simples facto de ela ser
manual. A técnica moderna não
compromete a mão do pintor, mas sim, bem mais radicalmente, o seu gesto, e
este, como diz Wilém Flusser, é algo mais do que «o encontro entre o pintor e
os seus materiais», o «encontro entre corpo e espírito» ou entre criatividade e
procedimentos técnicos, sejam eles maquínicos ou manuais.
Se
a crise do gesto de pintar está, de algum modo, relacionada com a entrada em
cena da técnica moderna, é na medida em que esta afecta de facto o homem nos
seus gestos, e não apenas na sua envolvência, mais ou menos instrumental, com
materialidades e imaterialidades. Retomando
uma vez mais a reflexão de Flusser no seu livro sobre Os gestos (1991),
a intencionalidade, a vontade, e logo, a liberdade são necessariamente
requeridas para compreender o gesto, pois «não se pode dar para ele uma
explicação causal satisfatória» [1]. É isto que carrega o gesto de sentido e de responsabilidade. Mas, por
outro lado, o gesto não se confunde com o agir em si mesmo ou com a acção
moral. A eleição da esfera do gesto por outros pensadores contemporâneos, como
por exemplo Agamben, mostra precisamente que há algo que é preciso redescobrir
e valorizar, na actividade humana, mais para além do fazer e do agir. Para
Agamben, o gesto é distinto do fazer, mas também do agir, na medida em que é
uma espécie de res gerere, o que implica «alcançar alguma coisa, retê-la
sobre si, assumir inteira responsabilidade», mas não necessariamente agir nem
ser agido por ela. Como diz, «se o fazer é um meio em vista de um fim e o agir
um fim sem meios, o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que
paralisa a moral, e apresenta meios que se subtraem como tal ao reino dos
meios, sem por isso se tornarem fins» [2]. Para Agamben a arte pretence precisamente a esta esfera que não é nem
técnica, nem moral, estando antes próxima do político. Ela não é nem a esfera dos meios para fins,
nem dos fins em si mesmos, mas a esfera de uma medialidade pura na qual o gesto
pode libertar-se enquanto tal.
Esta
perspectiva torna-se sobretudo interessante para afrontar um certo tipo de
dramatizações acerca da técnica e dos meios que ela põe à nossa disposição, a
saber, se na sua relação com estes meios, nomeadamente os das máquinas, o homem
está ainda em condições de eleger os seus próprios fins, ou se estas os
controlam no seu lugar. A atenção ao gesto vem mostrar que há algo mais do que
o controlo ou o descontrolo das máquinas. Na relação entre a técnica e o
humano, a liberdade não está unicamente ameaçada pelo descontrolo das máquinas,
nem fica unicamente garantida pelo seu controlo. Ela passa pela possiblidade de
uma gestualidade pura, sem para quê técnico ou em si moral, mas
não alheada dos meios enquanto tais, capaz de os explorar e exibir na sua
medialidade. Como compreendeu Agamben, algumas das máquinas modernas, como por
exemplo a do cinema, foram bem mais eficazes a apoderarem-se da nossa
gestualidade do que das nossas finalidades, pelo que o diálogo em falta com a
técnica não seria ético ou moral, mas político e artístico.
A perspectiva de
Benjamin, algumas décadas antes, era já esta. A técnica moderna sugeria uma
perigosa apropriação estética da política, que deveria suscitar, por sua vez,
uma resposta política da arte. De algum modo, na perspectiva esperançosa de
Benjamin, as novas artes emergentes, como a fotografia e o cinema, fariam parte
desta resposta. Neste contexto, um dos
aspectos mais interessantes da reflexão de Benjamin é o de ter visto na
vanguarda, (nomeadamente no dadaísmo,
no cubismo, no futurismo e no surrealismo),
uma estratégia alternativa para transformar, por processos e efeitos paralelos
aos da técnica, não apenas a produção e a recepção da obra, mas o gesto
artístico, convertendo-o em «choque».
Esta estratégia alternativa é o que Benjamin descreve como a tentativa
de assegurar «uma distracção intensa, colocando a obra de arte no centro de um
escândalo». Esse «escândalo do público» era o que Benjamin chamava um «choque»
ainda de «invólucro moral». Só a efectiva penetração da técnica na obra, como
no caso do cinema, viria dar a esse escândalo a efectiva «qualidade táctil» do
choque. Na vanguarda, Benjamin vê, portanto, um conjunto de «tentativas
insuficientes da arte para empreender a penetração da realidade com
aparelhagem». O envolvimento atavés da
«recepeção táctil» impõe-se, segundo Benjamin, como uma necessidade de
adaptação a novas «tarefas apresentadas do aparelho de percepção humana (…) [ que ] não podem ser
resolvidas por meios apenas visuais». Esta «recepção táctil» por força do
envolvimento afeccional do espectador, proporcionava, aquilo a que chamava uma «recepção
na diversão», que permitiria fazer coincidir, como no cinema, «as atitudes
críticas e de fruição». Ao recolhimento contemplativo que suscitava
tradicionalmente a arte, contrapunha-se pois, na perspectiva de Benjamin, «a
distracção como uma espécie de jogo de comportamento social», que transformava
o homem de massa numa espécie de «examinador distraído» [3]. Apesar do seu
relativo entusiasmo quanto ao acolhimento da fotografia e do cinema pelas
massas, Benjamin vê um claro sinal de crise nas pretensões que a pintura revela
para alterar, também ela, as suas condições de recepção e dirigir-se, de igual
modo, às massas. O lugar da pintura seria, por natureza, o de «um aqui e
agora», incompatível com a reprodutibilidade técnica e a apropriação pela massa,
pelo que o lugar do pintor parecia de facto destinado a um inevitável vazio.
Hoje,
que a cultura está decididamente penetrada pela aparelhagem, que as artes se
designam a si mesmas como «tecnológicas», que o mundo se estilhaçou numa
infinidade de imagens, que os dispositivos da visão se convertem cada vez mais
em dispositivos da imersão e do táctil, a pintura, e tudo aquilo que ela
representava, parece ser, mais do que nunca, um gesto irrecuperável. A cultura
tecnológica ter-se-ía instalado finalmente como a cultura da reprodutibilidade,
da diversão e da massa. Contudo, os diagnósticos sobre a aliança entre a
cultura e as novas tecnologias da informação vêem, no presente, o despontar de
uma nova era para as artes. Estaríamos a passar da era da reprodutibilidade
técnica da obra de arte, para a era da sua realidade comunicacional, geralmente pensada sob o signo da
interactividade. Transformada desde logo no operador ideológico deste tipo de discursos, a interactividade
representaria a possibilidade de um efectivo alargamento tecnológico da
experiência artística sem o seu decaimento na cultura de massas: a
possibilidade de interagir em tempo real com uma máquina que produz
representações variáveis, aceitando inputs dos seus utilizadores. Neste sentido, a era da arte interactiva
seria a arte em que todos podem finalmente ser artistas, apesar de serem
algo de outro. A arte interactiva é a nova arte das máquinas e dos seus
utilizadores, chamando a si velhos valores, como os da criatividade. Não é pois
surpreendente que também o computador apresente pretensões ao lugar vazio do
pintor, como «máquina de pintar». Para
alguns, e dadas as suas possibilidades fantásticas de análise e de síntese no
domínio da imagem, ele estaria mesmo mais apto a passar o teste de Turing,
fazendo-se passar por pintor.
Tal seria, por
exemplo, o caso de AARON, um sistema pericial que alia programação gráfica e
inteligência artifical e produz imagens
em tudo semelhantes a pinturas, quer no
traço do desenho, quer na utilização de uma paleta, quer na composição. Concebido
em 1974 por um pintor, Harold cohen, e por uma equipe especializada de
engenheiros informáticos, AARON foi evoluindo de um programa gráfico, para um
programa que simula tantas técnicas pictóricas quantas aquelas que os seus
criadores foram sistematizando e
tornando disponíveis aos utilizadores. Através da própria interacção, Aaron foi
integrando novas possibilidades e desenvolvendo competências. Desde então, tem exposto as suas pinturas em
diversas galerias e museus. Numa exposição recente no Japão, AARON criou mais
de 7000 imagens diferentes enquanto Cohen estava na California. Quando lhe
perguntam a quem se deve atribuir as pinturas produzidas, Cohen responde: «Eu escrevi
o programa. AARON faz as imagens». Isto
é, nenhum deles, na verdade, pinta. A pintura, como técnica, permaneceu,
traduzida num conjunto de regras de execução ou de mão; mas, como gesto,
desapareceu. Desde os anos 90, AARON transformou-se num sistema mais complexo
ainda, aliando ao computador um braço robotizado que executa efectivamente com
tintas, pincéis e tela, as imagens produzidas. A redução do gesto à mão não
poderia ser mais clara.
A
máquina de pintar de Cohen expõe, pelo menos, um aspecto curioso: diz-nos que a
interactividade tem como estrutura implícita a automação e que, em última
análise, a máquina tende a dispensá-la. Se os gestos de interacção com a
máquina são eles próprios antecipáveis e programáveis, então não são gestos,
mas sim operações. A «high technology» do presente pode perfeitamente
simular a «high art» tradicional do passado, desde que a reduza a un
conjunto de operações e a anule como gesto. Por muito espectacular que seja a
performance informática e robótica da máquina de Cohen, só por uma imensa
ilusão óptica própria ao espectáculo se poderá dizer que a máquina pinta. A
máquina não pinta, apenas funciona. Como diz Flusser, uma vez instalada, uma
máquina «não faz mais do que funcionar, pura e simplesmente» [4]. As suas «pinturas» limitam-se a
ser variações, necessariamente pouco variadas, de uma programação, sendo nessa
medida que conseguem impôr a ilusão de um estilo.
Na
verdade, o elemento de variação mais interessante que pode ser introduzido no
funcionamento de uma máquina é o daquele que funciona com a máquina,
isto é, aquele que se relaciona com as suas funções. Ora, a interactividade tem
basicamente implicado a a sua redução a um utilizador, isto é, a um
conjunto abstracto de operações, sejam elas mais ou menos conscientes,
mais ou menos intencionais ou mais ou menos imediatas, como aquelas que são
incorporáveis a partir de sensores ligados ao próprio corpo do utilizador. Em qualquer dos casos, a nossa relação com
as novas máquinas é ainda um um mero gesticular, para o qual só as máquinas (e não nós) descobrem «sentido», e
mascaram de «interacção». Ora as
máquinas não agem. As máquinas funcionam, e nós, quando muito, funcionamos com
elas. A arte do presente passa inevitavelmente pelas máquinas, por um gesto que não visa dramaticamente um aquém ou um
além delas, mas sim o seu
funcionamento. Se a técnica é aquilo
que extrai máquinas (de pintar, e outras) dos nossos gestos, então as artes
tecnológicas deverão poder extrair gestos das nossas máquinas.
* Ensaio publicado
no Catálogo de Pedro Portugal, «Anchio son’ pittore» (CAM, F. Gulbenkian,
Setembro de 1999)
** Docente do
Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa