OLHO, MÁQUINA E CORAÇÃO

Um estudo sobre as imagens fotográficas e sua relação com a memória e a afetividade

Amalia Creus

“Basta empezar a decir de algo ‘¡Ah! ¡Qué bonito, habría que fotografiarlo!’ y ya estás en el terreno de quien piensa que todo lo que no se fotografía se pierde, es como si no hubiera existido, y por lo tanto, para vivir verdaderamente hay que fotografiar todo lo que se pueda, y para fotografiarlo todo es preciso, o bien vivir de la manera más fotografiable posible, o bien considerar fotografiable cada momento de la própia vida. La primera vía lleva a la estupidez, la segunda a la locura.” (1)

No conto A Aventura de um Fotógrafo, Antonini é um homem angustiado pela impossibilidade de captar, através da fotografia, a essência das coisas. Nesta história, Ítalo Calvino (1993) ilustra com originalidade o corte e a fragmentação da realidade através da fotografia. Na medida em que o fotógrafo é obrigado a escolher apenas um momento e um ângulo determinado na continuidade do real, para Antonini, a única maneira de preservar vivências seria disparar pelo menos uma foto por minuto. Ininterruptamente, sempre e a cada instante fotografar.

A proposta absurda do protagonista do conto de Calvino nos faz pensar sobre algumas questões que resultam do corte que origina as imagens fotográficas e em como esta fragmentação do tempo vivido se reflete em nossa relação com a memória. Quando fotografamos determinamos uma ruptura, estabelecemos os limites daquilo que queremos ver. Ao acionarmos o obturador, selecionamos um instante e um espaço entre todos os outros possíveis. O resultado desta escolha é a fotografia. Esta seleção feita pelo fotógrafo torna-se, muitas vezes, a única referência de um passado esquecido, pois a imagem fotográfica pode ser guardada, revista, incessantemente contemplada.

Partindo do quadro estático e bidimensional que é a fotografia, iniciamos muitas vezes um longo percurso. Ela funciona como uma máquina que nos permite voltar ao passado. Ao tornar-se perene, ao ser seu próprio contínuo, a fotografia nos transporta de um tempo cronológico a um tempo memorial afetivo, onde as lembranças fixadas na imagem substituem pessoas e acontecimentos reais que se perdem. Nessa viagem, no entanto, levamos o presente: nosso modo de ver, nosso corpo, nossa vivência. A subjetividade de nosso olhar constrói novos significados, transformando, com freqüência, imagens aparentemente inalteráveis.

Para Fernando Braune (2000) esta capacidade de estabelecer uma ruptura na continuidade temporal faz inevitável uma aproximação entre fotografia e simulacro, uma vez que o próprio tempo, de uma forma ou outra, afasta a fotografia de nossa realidade. Ao longo dos anos a imagem fotográfica se reveste não apenas  de lembranças  e de todo o manancial emotivo que elas evocam, mas também de uma excentricidade proporcional à distância que a apresenta em relação ao que somos e como percebemos o mundo no presente.

Em outras palavras: com o decorrer dos anos, nossa percepção das coisas se altera, e com ela, nossos juízos de realidade e de valor. Na maior parte das vezes, lembrar é também uma maneira de recriar o passado. Como em uma ruína restaurada,  novos e antigos materiais se misturam; o que desapareceu pode ser visualmente refeito,  mas nunca trazido totalmente de volta.

A fotografia, como os espaços de nossa infância, depende do nosso olhar para construir significados. Como resulta de uma cisão determinada, com o passar do tempo ela perde suas amarras. Inserida em novos contextos, a fotografia se transforma em um fragmento difuso e intangível, aberto a qualquer tipo de leitura.

1.1 Lembrar e esquecer: desejos da memória

Num de seus contos – Funes, el memorioso – Borges nos mostra do que seríamos privados caso o esquecimento resultasse uma tarefa impossível. O protagonista, Funes, após sofrer um golpe na cabeça adquire dois surpreendentes talentos: uma percepção absoluta das coisas e uma memória notavelmente poderosa. Capaz de narrar interminavelmente e com exatidão tudo aquilo que havia visto, ouvido, tocado, cada detalhe perceptível e cada instante vivido era imediatamente convertido em lembrança.

O que Funes percebia nos mais mínimo detalhes em um dado momento era imediatamente confrontado por uma nova percepção dessa mesma coisa junto às intermináveis nuances que uma mudança de movimento, iluminação e postura implicavam. O personagem de Borges, diante de tantas memórias e percepções diversas de uma mesma coisa, sentia-se impossibilitado de compreender o mundo que o rodeava.

A formulação de um conceito implica postular a identidade e a permanência de alguma coisa; portanto precisa do esquecimento. Uma memória plena, como a de Funes, que não se distinguisse da consciência, que não diferenciasse o percebido do lembrado, não seria apenas insuportável, seria impossível. O esquecimento é imprescindível para a evocação da lembrança e para a própria constituição da memória. Somente lembramos porque somos capazes de esquecer.

Entre os tantos estímulos  que nos chegam do mundo escolhemos, consciente ou inconscientemente,  aqueles que guardaremos em nossa memória e aqueles que serão esquecidos. Poderíamos então perguntar: o que nos faz esquecer? O que estaria regendo nossas escolhas entre o que deve e o que não deve ser guardado na memória?

Sirvamo-nos de um aforismo de Nietzsche (2):

Fiz isso – diz minha memória.
Não posso ter feito isso – diz meu orgulho e permanece inexorável.
No final, a memória cede.

Nietzsche aponta que entre memória e esquecimento existe um embate onde a força da lembrança é vencida pela força do orgulho. O que está em jogo é a preservação da identidade contra a segregação que a ameaça. A constituição de uma memória demanda a exclusão daquilo que põe em choque  a imagem que se procura preservar.

O esquecimento é um ato que requer forças muito intensas para sua realização e pode ser pensado como libertador, como uma possibilidade de sossego ou uma porta que permite a entrada do novo. Por isso, Nietzsche critica as tendências do senso comum de tratar o esquecimento como uma determinação negativa, de não reconhecer seu caráter ativo e positivo: “Esquecer não é apenas uma força inercial, como crêem os superficiais, mas uma força inibidora, ativa, positiva no mais rigoroso sentido [...] o esquecimento é uma espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem esquecimento”. (Nietzsche, 1978)

Neste jogo entre lembrar e esquecer, as imagens fotográficas cumprem seu papel: são legitimadoras de acontecimentos que queremos preservar. Cada fotografia que tiramos é uma maneira de dizer à nossa memória o que deve ser guardado e o que deve ser esquecido, numa tentativa de construir e comprovar um passado. Ao conservá-las ou contemplá-las estabelecemos um ritual de culto doméstico, através do qual reafirmamos a nossa identidade no meio social em que estamos inseridos.

A característica fragmentária da fotografia permite registrar apenas aquilo que desejamos lembrar e possibilita escolher e construir uma história fotográfica própria, muitas vezes diversa da verdadeira. O anseio por exercer controle sobre nossa própria felicidade nos incita a tirar fotografias, porque através da imagem transitamos o caminho da auto-ilusão.

A imagem como fonte de memória e simulacro foi muito bem ilustrada por Ridley Scott no filme Blade Runner. Inspirado no romance Do androids dream of electric sheep?, do escritor Philip K.Dick, o filme tece uma história sombria sobre o futuro da humanidade, em uma das mais belas demonstrações de amor à vida exibida nas telas do cinema.

A trama do filme se inicia quando o blade runner Deckard é convocado pela polícia para eliminar cinco replicantes (andróides) de última geração, praticamente idênticos aos humanos, que haviam fugido de uma colônia interplanetária. Os andróides, que eram utilizados como escravos em minas espaciais, se escondiam em uma Los Angeles escura e labiríntica, onde sempre chovia e se falava um dialeto que misturava o inglês ao chinês e outras línguas.

Ao contrário dos seres humanos, os andróides eram privados de memória própria, por isso não eram capazes de sentir e de ser livres como os homens. As lembranças que tinham eram resultado de implantes de memória pertencentes a outras pessoas e tanto sua existência como sua morte eram programadas.

As fotografias têm no filme uma simbologia especial: serviam para legitimar as falsas lembranças dos andróides. Em uma das mais tocantes passagens do filme, a andróide Rachel, por quem Deckard se apaixona, mostra para ele uma antiga fotografia, onde aparece ainda menina junto com sua mãe. Rachel, que não tinha consciência de sua condição de replicante, enxerga na fotografia uma maneira de comprovar suas lembranças e seus laços afetivos com outros humanos. Esta imagem, completamente falsa para o espectador, é o único indício que Raquel possui de seu passado, vivência que, na realidade, só existe na fotografia.

Com este filme, que definiu um novo gênero pra o cinema de ficção, Ridley Scott apresenta uma projeção de nossos medos atuais. Vivendo em cidades superpovoadas e violentas, em um meio ambiente destruído, e sob o domínio econômico de grandes corporações, homens e andróides buscam um sentido para a existência, lutando pela preservação da vida e da própria identidade.

Em geral, da mesma forma que Rachel no filme Blade Runner, acreditamos ter certeza da diferenças entre sonho e realidade. Costumamos localizar em polaridades opostas cada um destes territórios: a realidade diz respeito ao dia, à luz, à lógica e a sabedoria. O sonho, ao contrário é um freqüentador da noite,  “floresce nas trevas, como essas raras flores noturnas que dão margem à imaginação e ao devaneio” (Schultz, 1998). Entre esses dois aparentes opostos, no entanto, muitas vezes são abertas brechas, fissuras por onde estes dois universos se comunicam. Neste contexto, a memória pode funcionar como um território ambíguo, onde lembranças e imaginação se misturam.

Devemos admitir que, para estabelecer uma relação entre fotografia e memória não basta nos limitarmos à imagem. As particularidades da gênese fotográfica, o fato de constituir-se como um índice mecanicamente elaborado, ou sua capacidade de mostrar com perfeição detalhes do mundo real, são fatores que, sem dúvida, afirmam sua credibilidade. No entanto, nossa relação com as imagens fotográficas se fundamenta em nossa disposição para construir uma realidade agradável tendo como ponto de partida a reprodução fotográfica. O significado de uma imagem reside por excelência em nossos próprios desejos e mecanismos afetivos. Cabe salientar que estudos sobre percepção e  memória visual merecem ser aprofundados a fim de captar a singularidade da expressão fotográfica em sua relação permanente com a subjetividade do observador.

Referências:

1.      CALVINO, Ítalo. La aventura de un fotógrafo. In: Los amores difíciles, 1980.

2.      NIETZSCHE apud Jô Gondar, Memória e Espaço, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.

Bibliografia sugerida:

BARTHES, Roland. A câmera clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Sociologia. São Paulo: Ática, 1991.

BESANÇON, Alain. A imagem proibida: uma historia intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

BORGES, Jorge Luis, El Aleph. Madrid: Alianza Editorial, 1995.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

BRAUNE, Fernando. O surrealismo e a estética fotográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.

CASARES, Adolfo Bioy. La invención de Morel. Madrid: Cátedra, 1998.

CORTAZAR, Julio. Todos los fuegos del fuego. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1993.

DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1993.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. São Paulo: Papirus, 1994.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

FREUND, Gisèle. Fotografia e sociedade. Lisboa: Vega, 1969.

GONDAR, Jô. (Org.) Memória e Espaço. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro, 2000.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 1996.

LEITE, Miriam Moreira. Retratos de família: leitura da fotografia histórica. São Paulo: EDUSP, 1993.