Media  e cidadania.
Algumas reflexões em torno de  duas categorias modernas: consenso e ideologia

João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior

Maio de 2001

 

Introdução

Durante décadas as reflexões críticas acerca do papel dos media  insistiram na sua função de integração social e fabricação do consenso. Acreditava-se que os media desempenhavam uma função de manutenção das regularidades estruturais do sistema. A noção de consenso era essencialmente centrada na  coesão social. A ideologia era sinónimo de distorção. Em todas as variantes desta análise os media surgiam como aparelhos ideológicos, isto é produtores de conhecimentos errados e ilusórios que escondiam as formas de dominação vigentes no sistema. Hoje,  estamos perante transformações estruturais do espaço público em que se assiste a uma reconfiguração das identidades sociais, cada vez mais sujeitas a uma reflexividade radical. Diminuído o poder dos mecanismos de mediação tradicionais que asseguravam a regularidade nas dinâmicas sociais, os media  tornaram-se simultaneamente veículo de valores estruturados em torno de uma visão dominante e consensualmente aceite, e, simultaneamente,  um espaço de tensões e fragmentação onde se luta por transformações de sentido. Procura-se, neste texto, saber qual o papel que lhes é imputável na construção e representação das regularidades sociais tendo em conta, simultaneamente, a sua dificuldade estrutural em manterem-se dentro dos caminhos estreitos de uma representação mais ou menos monolítica do mundo social, num momento de pluralismo intenso, resultante da revalorização atribuída à emergência das identidades minoritárias.
Para efectuar este percurso,  recorre-se a dois conceitos com um peso essencial na reflexão sobre a Modernidade: ideologia e consenso. Através da evolução/interpelação destes conceitos tentaremos demonstrar que nos encontramos diante de novas transformações estruturais do espaço público, que se traduzirão, eventualmente em novos modelos de cidadania.

Ideologia, iluminismo e  e marxismo (s)

A noção de ideologia, na modernidade, surgiu profundamente ligada à ideia de uma distorção e de um erro que se podia ultrapassar pelo uso da razão.
A crítica ideológica começou com a crença de De Tracy  segundo a qual se fosse possível analisar sistematicamente ideias e sensações, obteríamos uma base segura para um conhecimento sólido (Hekman, 1990: 40). A ideologia seria a ciência das ideias que serviria de fundamento para todas as ciências morais e políticas, preservando-as do erro e do preconceito. O objectivo de Marx, tal como o De Tracy, era  expor os ídolos da mente que obscurecem  a luz da razão (Hekman, 1990: 41). Era a crença que a verdade podia ser racional e cientificamente alcançada  que permitia e exigia a crítica da ideologia. O  percurso efectuado por K. Marx centra-se na determinação do contraste entre  o que é «o  real» e, a ideologia que é, justamente,  o que não é real.  Na  “Ideologia Alemã”, Marx estabelece a praxis como fonte real da atribuição de sentido do homem ao mundo.  “Não é a consciência que determina a vida é a vida que determina a consciência.” (Marx e Engels, 1982: 1057) Seguindo de perto as investigações marxistas com uma  originalidade assinalável,  Althusser  considera que  o contraste é entre ideologia e ciência e não entre  ideologia e real. Ao contrário da ciência, “a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições de existência.” (Althusser, 1980-b:77) (Althusser, 1980-a: 24). Numa concepção coentífica de ideologia , a forma específica de prática que é a prática ideológica  relaciona-se com as restantes formas de prática (científica, económica, política, técnica) com um grau de independência e de autonoma relativas, fixada em última instância pela dependência em relação à prática económica determinante. (Althusser, 1979: 62) Ao contrário da ciência, “a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições de existência.” (Althusser, 1980-b:77) (Althusser, 1980-a: 24). Toda a ideologia tem por função «constituir» os indivíduos como sujeitos, os quais se oferecem, nesta concepção, como mero efeito ideológico elementar (Althusser, 1980-b:95), conseguido através de uma adestramento perpretado na vida quotidiana até obter o carácter de evidência.
Numa relação interessante com a quotidianeidade que permite uma certa aproximação coma fenomenologia e a Hermenêutica, a  linguagem surge, aos olhos de Raymond Willims,  como instância fundamental de formação da  ideologia afirmando-se sempre em total contraposição com Althusser, no que respeita à interdição da possibilidade da luta ideológica a esse nível. Grande parte da luta ideológica é uma luta pela determinação social do significado das palavras, numa rejeição de qualquer aproximação estruturalista.  De certa forma, a luta ideolológica é um combate que se desenvolve no plano semântico e pragmático, quando se procede a uma inquirição das condições de produção do enunciado ( Higgins, 1989: 120).
 A escola de Frankfurt utiliza o conceito de ideologia para analisar de modo detalhado e quase obsessivo, a emergência de uma indústria cultural reificante  que controla os indivíduos originando a submissão e a obediência. A indústria cultural como ideologia só tem sentido quando entendida em relação directa com a interiorização das formas de dominação emergentes com a racionalidade instrumental: “ durante a era burguesa, a teoria prevalecente era ideologia e a praxis estava em directa contradição com ela. Hoje, a teoria já nem existe  e a ideologia soa a partir das engrenagens de uma praxis irresistível”  (Adorno, 1995: 29) . A ideologia funde-se com a realidade, é nela absorvida, limitando-se a reproduzi-la de modo a constranger e mudar a consciência das massas.  Mais recentemente, num percurso que se incia em “Ciência Técnica como Ideolologia” e que, presentemente, conhece um dos seus desenvolvimentos mais recentes em “Bwetween Facts and Norms”, a  ideologia em Habermas, com nuances diversas emerge como comunicação sistematicamente distorcida que coloca obstáculos à realização do consenso racionalmente fundado e livre de toda a coerção.Os obstáculos à obtenção do consenso parecem passar a ser as verdadeiras cadeias que oprimem a humanidade. A emancipação deixa de dizer respeito a uma determinada classe  parra passarem a dizer respeito aos interesses emancipatórios universais da espécie, identificáveis com o desenvolvimento da competência comunicativa.   (Habermas: 1996; 1987-a); 1987-b)


A abordagem da fenomenologia e da Hermenêutica:  Alfred Schutz e Paul Ricoeur

É graças à intervenção da Fenomenologia Social, da Hermenêutica e da Sociologia Compreensiva que é possível pensar um conceito de ideologia que não se traduz, necessariamente, na distorção. Alfred Schutz pode,  sem reservas ser considerado um teórico com grande importância para  uma concepção de ideologia, alternativa à do marxismo,  designdamente quando  analiza a  concepção relativamente natural do mundo tal como é produzida no interior do mundo da vida quotidiana por cada grupo específico. Nesta concepção relativamente natural do mundo, têm lugar as normas sociais de integração, os costumes, as representações partilhadas pelos membros do grupo, etc. (Schutz, 1975:5). O homem na vida diária tem a qualquer momento um sedimento de conhecimentos à mão que lhe serve como um código de interpretações das suas experiências passadas e presentes, e também determina a sua antecipação das coisas que virão. Apesar desta visão, não se deve cair num equívovo acerca de uma defesa do conformismo. A Fenomenologia Social abordou, de frente, a questão da particularidade, reconhecendo de modo explícito a existência do fenómeno que hoje entendemos como pluralização dos mundos da vida. Cada um percebe o mundo e as coisas dentro do mundo desde o particular ponto de vista  em que está colocado em cada momento. Em “The Stranger”, Schutz demonstra que como o estrangeiro não partilha destas assunções básicas, elas nunca farão parte da sua biografia. Do mesmo modo o regressado, como Ulisses, de uma viagem distante, não reconhecerá o mundo da vida a cuja experiência tinha acesso através da memória.  “Sentir-se em casa é uma expressão de um elevado grau de intimidade e familiaridade”- dirá Schutz, ele próprio recordando a sua experiência de retorno da frente de guerra . A atenção de Alfred Schutz à multiplicidade de realidades, a consciência da existência de grupos diversificados, dotados de mitos centrais próprios, a análise exaustiva das relações  intergrupais, a atenção dedicada  ao papel do outro, do estrangeiro e do marginal ; a consciência que se faz sentir da pluralidade de mundos de vida abrem o caminho à  conclusão de que os mecanismos de formação do preconceito e do esterótipo , em suma os mecanismos ideológicos no interior de cada grupo são uma realidade que pode  ser pensada de um ponto de vista reflexivo, tendo em conta o sentido fortemente etnocêntrico que os caracteriza. Todas estas experiências demonstram que os consensos ideológicos sobre a realidade social  estabelecidos em cada grupo interno  são, cada um per si,  um entre outros possíveis.
Contrariamente a Marx,  Ricoeur penda  que toda a acção social é já simbolicamente mediada, sendo a ideologia que desempenha este papel no domínio social.  Sem essa função integradora, atribuidora de sentido ao mundo, a função de distorção  exclusivamente atribuída pelo marxismo à ideologia jamais poderia ser compreendida. (Ricoeur, 1991, p. 78-80; 324). A ideologia desempenha uma função de mediação constituitiva da  sociabilidade  e da existência social, no interior da qual se reconhece a dimensão simbólica integradora da constutição básica do ser humano. O “ mais básico para o contraste ideologia-praxis não é a oposição; o que é mais fundamental não é a distorção ou dissimulação da praxis pela ideologia. O que é mais básico é uma conexão interna entre os dois termos.” (Ricoeur, 1991: 78) Ou dito de outro modo: “(...) onde existem seres humanos não pode existir um modo de existência não simbólica e, menos ainda um modo de acção-não- simbólica.” Ricoeur, 1991: 81)  Restará, portanto, saber se a ideologia é constituída preferencialmente na participação de agentes sociais que buscam o aprofundamento democrático das relações sociais e políticas existentes ou, se pelo contrário, ela se torna o lugar privilegiado de exercício da reificação. Para responder a esta questão, uma das formas – a forma privilegiada para Ricoeur – de fazer com que uma ideologia se não reduza à sua função reificadora é interpretá-la a partir de uma posição utópica.  (Ricoeur, 1991: 69).    Se a utopia  é o lugar do momento crítico, ela  aponta essencialmente para uma distanciação: “Sugiro”, propõe Ricoeur, “que comecemos pela ideia principal de nenhures, implícita na própria palavra “utopia” e nas descrições de Thomas Moore: um lugar que não existe em nenhum lugar real, uma cidade fantasma; um rio sem água; um principe sem povo, etc.  O que há que acentuar é a  vantagem desta extraterritorialidade especial. Deste «lugar nenhum», é lançado um olhar exterior à nossa realidade, que repentinamente parece estranha, nada sendo já tido como certo. (...)Trata-se portanto de um campo para maneiras alternativas de viver.” (Ricoeur, 1991: 88). Seguidamente Ricoeur a utopia abre uma inquirição acerca de todos os modos pelo qual uma coisa pode ser . Como pode ser o governo? A sociedade? O poder? 
Deste modo, a realidade do mundo da vida, das normas que procedem à integração dos sujeitos que nele agem, é sujeita a uma interpelação na qual, politicamente se define que cada representação do mundo pode ser substituída por outra, o mesmo é dizer que cada mundo pode ser de outro modo.
A questão de saber se neste modo de inquirição toda a cultura seria ideologia desfaz-se precisamente graças ao confronto com o conceito de utopia.  O que hoje é ideologia – o manutenção do staus quo, integração à volta de um conjunto de princípios , definição de modos de vida e de visões do mundo que se tem por adquiridas –  já foi utopia, negação do existente e abertura de um horizonte. O que hoje surge como horizonte de possibilidades – ou seja utopia- demonstra-se amanhã como horizonte de possibilidades realizadas que se olham a si mesmas como dotadas de uma universalidade que oculta os riscos da sua eventual reificação. A ideologia, no limite, é a cultura reificada, que se contempla como natural e a-histórica. Ao invés o que caracteriza a utopia é, sob o ponto de vista negativo, a capacidade de identificação do carácter histórico e finito das normas e convenções vigentes e, sob o ponto de vista positivo,  uma forma de afirmação cultural que ainda não conhece a sua objectivação exterior e a sua eventual reificação. Toda a integração cultural possui um momento idológico que é o esquecimento da dimensão histórica das normas que permitem o consesnso graças ao qual a estabilidade do grupo, a visão predominante no mundo da vida quotidiana são aceites e permitem a integração.  Uma reflexividade total – isto está demonstrado no plano clínico – implicaria uma insegurança premanente e um estado de sobressalto. Porém, quando esse momento ideológico perde o grau de autoridade baseada no reconhecimento que lhe confere a sua força integradora  e pretende negar , de modo patológico,a  dimensão erosiva da reflexividade, a ideologia petrifica-se e o seu carácter reificador é exposto.  É nessse momento que a utopia parece brilhar de modo mais eficaz.

Gramsci:um anovidade nos estudos marxistas

Em Gramsci podemos encontrar a ponte que permite estabelecer a relação entre uma certa ideia de quotidianeidade, a reprodução cultural e a crítica da ideologia, que aliás ressoou em Althusser e Williams. Afastando-se do determinismo economicista que perpassa por grande parte da teorização marxista, Gramsci introduziu o conceito de hegemonia definindo a sociedade civil como arena de luta política e de luta simbólica.  A ideia de quotidianeidade que envolve a noção de hegemonia confere-lhe uma presença real, uma efectividade que ultrapassa a noção eventualmente mais débil de ideologia, especialmente quando considerada do ponto de vista da relação determinista entre bases e estrutura.   O  conceito de hegemonia caracteriza a liderança cultural-ideológica de uma classe sobre as outras. Etimologicamente, hegemonia deriva do grego eghestai, que significa "conduzir", "ser guia", "ser chefe", e do verbo eghemoneuo, que quer dizer "conduzir", e por derivação "ser chefe", "comandar", "dominar".Na luta pela obtenção da hegemonia, os mundos imaginários funcionam como matéria espiritual para se alcançar um consenso reordenador das relações sociais, consequentemente orientado para a transformação. O regime de hegemonia comporta, assim, espaços de lutas e deslocamentos no seu próprio interior, nomeamente os que se expressam nos campos cultural e comunicacional. Lugar de luta simbólica, o domínio da sociedade civil opera sem «sanções» e sem «obrigações» taxativas, mas não deixa de exercer uma pressão colectiva e obter resultados no  plano dos costumes, do modo de pensar e de agir, da moralidade, etc. Com efeito, Gramsci considera que, com a emergência das democracias de massa, se verificou uma ruptura histórica (Gramsci, 1977: 1824) . A actividade na sociedade civil passa a valorizar a persuasão e os conflitos relacionados com a produção ideológica e cultural.  O elemento decisivo deixa de ser o exercício da coacção pelo Estado para passar a ser a habilidade em obter um poder hegemónico enraizado nas organizações da sociedade civil e na mediação exercida pelos intelectuais (Gramsci, 1977; 1824). Acentua–se o peso da cultura e dos elementos simbólicos, essenciais  na sociedade civil como factores de obtensão da hegemonia política. Enquanto mundo das  relações sociais, das livres inciativas, dos conflitos ideológicos, dos cruzamentos culturais e da definição do  consenso, a sociedade civil emerge como espaço  de movimentação de diversas forças concentradas em partidos, organizações, grupos, associações capazes de determinarem  definições hegemónicas mais ou menos estáveis ou provisórias sobre toda a sociedade (Gramsci, 1977: 1854).

2.  A questão do consenso

No decorrer desta reflexão, a figura do consenso emerge como algo de incontornável, s como um conceito intimamente ligado à possibilidade de assegurar a coesão social em face das tensões introduzidas pela reflexividade moderna. A dinâmica social subjacente à formulação da hegemonia pressupõe a necessidade de dar conta da dialéctica entre a força coactiva que permite à sociedade manter-se enquanto tal e a força fragmentadora que resulta da diversidade das pretensões de legitimidade que emergem, de modo crescente, nas sociedades pluralistas, desde que as narrativas tidas por seguras foram afectadas, de modo erosivo, pela reflexividade moderna. Em  Comte e e m Durkheim o consenso era, ainda,  definido como uma pura e simples assimilação das consciências individuais entre si, que resultaria da sua imersão na consciência colectiva (Comte: 1986: 96). “A sociedade adora-se a si propria , adora o seu constrangimento todo poderoso.” (Adorno, DN, 247).  Com o funcionalismo o problema que emerge é o da forma de coordenar a pluralidade de fins perseguidos pelos diversos sujeitos, continuando a manter a ordem social, sem que surja a guerra de todos contra todos.
Por isso, esta teoria, tal como a de Hobbes, se baseia na hipótese da improbabilidade, aceitando que se torna patente que “toda a destruição de uma ordem remete para a improbabiliade de uma reconstrução”. (Luhmann, 1992:40) O consenso surge, mais uma vez, como a superação da instabilidade provocada pela generalização da diversidade.

Habermas surge, juntamente com Apel, como um dos autores centrais a teorizar a ética comunicacional, tendo como elemento estruturante da sua abordagem o o consenso racionalmente fundado, de natureza normativa e contrafactual, obtido através da troca dialógica de argumentos entre actantes que suspendem os seus interesses pessoais e estatuto social, como forma de fundamentação da norma ética. Trata-se de uma concepção de consenso social  que exige, assim, uma componente normativa e crítica que ultrapassa a busca do mero equilíbrio.  A diversidade e o pluralismo como factos sociais deixam de ser considerados como uma ameaça para a sobrevivência das relações sociais.  O consenso ganha uma dimensão normativa resultante da fixação de elementos estruturantes que se visam atingir como sejam a  ausência de coerção, o estabelecimento de condições igualitárias para o debate e para a comunicação pública e o reconhecimento mútuo das pretensões de validade apresentadas pelos agentes sociais Admite-se explicitamente a possibilidade de estabelecer um consenso acerca do interesse geral,  resultante da concorrência pública entre argumentos privados, e que se opõe ao “consenso fabricado”  graças à “acção das relações públicas, “sem relação com a acção dialógica desenvolvida no espaço público” .

3. Ideologia e consenso

Podemos, assim, considerar a existência de duas noções de ideologia e de consenso.  Uma primeira noção que considera ideologia enquanto discurso que, sob o pretexto de procurar justificar a realidade ralidade, serve sobretudo para mistificá-la. Correlativamente a esta noção, o consenso ganha uma dimensão organicista em que a busca do controlo social, do equilíbrio e da adesão â norma prevalace sobre as incertezas  e a entropia resultante das dinâmicas sociais.  Uma segunda possibilidade com a qual nos encontramos privilegiadamente comprometidos, é a de  que a ideologia tem que ser encontrada no próprio mundo da vida.  A busca da integração social é uma componente incontornável de qualquer sociedade, graças ao qual se consegue fazer com que a diversidade de projectos dos agentes sociais não ponham em causa a continuidade das relações sociais. A questão é manter em aberto a possibilidade de uma distância crítica graças à qual se compreende que cada novo consenso é sempre susceptível de ser enfrentado graças à emergência de novas pretensões de validade emergente. Nesta perspectiva, a dimensão utópica de Ricoeur é a que permite que se negue o que existe a  partir das suas variações possíveis. Esse é afinal, o irredutível espaço da política.

Os termos “hegemonia” e ”ideologia” encontram-se hoje extremamente relacionados entre si, de uma forma que ultrapassa o modo clarividente como há 70 anos António Gramsci já os equacionava na prisão: a hegemonia, com o reconhecimento da dimensão conflitual das sociedades,  com a aceleração da luta simbólica pela nomeação do mundo que o ressurgimento das identidades e a fragmentação cultural despertaram,  dispensa cada vez mais  (como já o intuía Gramsci)  uma  concepção unilateral e totalizante do  monopólio dos aparelhos ideológicos do estado ou a sua dependência determinista em relação aos aparelhos produtivos. A ideologia já não é  vista como uma variável dependente, uma mera reflexão de uma realidade pré-dada, mas um local de luta entre definições conflituais da realidade.  Perdeu o seu carácter puramente negativo de ocultação da verdade e de obliteração dos processos de dominação, dependente em primeira ou última instância dos aparelhos produtivos  para, pelo contrário, adoptar outro significado mais vasto: ideologia como corpo de crenças que visam assegurar a integração dos agentes sociais, graças a processos de mediação simbólica, inerentes à constituição da própria sociabilidad (Taylor,1981:22)  Isto implica que “ o centro dos conflitos sociais têm de ser repensado: hoje em dia ele já não se situa nas esferas de reprodução material, como supunha o marxismo, mas também nas esferas da vida simbólica.” (Esteves, 1997: 64-65)  Nesta luta pela hegemonia simbólica, é impossível, hoje, pensar sem os media.

4. Media , consenso e ideologia

Independentemente das numerosas questões de natureza que a companham esta transformações dos conceitos de ideologia e de consenso  - designadamente uma eventual polémica mal resolvida entre as concepções universalistas modernas e as concepções pós modernas- há uma problema de natureza sociológica que se prende directamente com o devir dos media.
É possível à luz de análises provenientes da Fenomenologia Social proceder a uma relação entre o profissionalismo jornalístico e o desempenho de uma determinada missão ideológica.  A profissão jornalística define-se como uma actividade profissional de especializada na construção da realidade social, mediante determinados processos de objectivização, tipificação e autolegitimação. Á luz da fenomenologia social das investigações nela inspiradas, o jornalista desempenha um papel social  que consiste em transmitir uma forma de conhecimento relevante para todos. Nesse sentido, os jornalistas são detentores do papel de representação simbólica da ordem institucional.  Como afirma Giorgio Grossi , a profissão jornalística pode definir-se como uma actividade social especializada na construção social da realidade, como uma segunda e ulterior construção da realidade que se agrega às restantes construções da realidade, integrando-as em função de uma referencialidade pública e colectiva. Gaye Tuchman demonstra em Making the News o papel da tipificação no profissionalismo jornalístico.  A tipificação é uma forma de generalização praticada na vida quotidiana  no decurso da qual se procede à institucionalização de uma prática social. Graças à tipificação transcendem-se os momentos particulares da acção e os actores que os praticam, alcançando uma significação geral que se aplica a todos os agentes sociais envolvidos. Na prática jornalística quotidiana  usa-se a tipificação, entendida como classificação em que são tidas em conta certas características básicas para a solução das tarefas práticas que se apresentam aos profissionais.. A percepção própria do senso comum é efectuada com base em tipos. “Estruturamos o mundo de acordo com tipos e relações típicas entre tipos.” (Schutz, 1975:  94-96) . As tipificações fazem parte das antecipações e planeamentos que se empreendem na vida quotidiana porque implicam  um certo estilo que Schutz classifica de “pensar como sempre.” As tipificações dependem de dois tipos de idealizações ;  “a de que assim foi, assim será” e a de que “posso fazer isso de novo.”  Ou seja,   em face de cada nova situação, o actor agirá do mesmo modo partindo do princípio de que as coisas se apresentarão idênticas àquelas que se apresentaram da última  vez. O homem, neste caso o profissional de jornalismo,  na vida diária tem a qualquer momento um sedimento de conhecimentos à mão que lhe serve como um código de interpretações das suas experiências passadas e presentes, e também determina a sua antecipação das coisas que virão. No limite, corre-se o risco que um esquema rígido de normas de especificação produtiva que permeia toda a indústria cultural, e o jornalismo em particular, designadamente no âmbito da formação de um estilo e de géneros que buscam a  sua adequação ao “homem comum”,  se torne o elemento que estrutura a positividade da linguagem mediática, pervertendo a possibilidade da inovação e da dissidência e contrariando as possibilidades de reforço do pluralismo. Nesta hipótese, a negação da diversidade faria parte da própria natureza da linguagem e práticas discursivas da instituição mediática e do jornalismo. Nesta abordagem , o  jornalismo pressupõe a existência de um conhecimento prévio, de pré-conceitos sobre o que é a norma e o desvio no seio de uma comunidade. Implica uma comunidade de interesses e uma reciprocidade de expectativas que tornam o discurso inteligível e que suportam o próprio conceito de novidade - até porque o tipo de mensagem que o caracteriza visa precisamente tornar o cidadão comum seu receptor privilegiado e protagonista preferencial. O próprio conceito de actualidade, cerne da narrativa noticiosa, pressupõe um poderoso sentimento de pertença na medida em que o que é actual tem sempre subjacente um discurso sobre as regularidades vigentes. Assim, graças à sua identificação com o sentido popular, o jornalista esforça-se em identificar quais os temas, pessoas e interesses que se revelam mais apelativos para os consumidores de informação  Simultaneamente, tenta-se descobrir as formas de tornar a sua mensagem mais acessível, mais conforme às próprias competências linguísticas e culturais dos membros da audiência, que funcionaria como menor denominador comum. O problema deste tipo de relação com a realidade é que o conhecimento de senso comum  disponível pelas notícias não fornece instruções acerca de «como as coisas são» mas sim acerca de como elas se «encaixam» na ordem das coisas. Ao contar histórias acerca de como é a ordem das coisas, as instituições noticiosas oferecem, simultaneamente, uma avaliação moral, uma concepção de procedimento e uma percepção da hierarquia social que se torna visível nos valores notícia representados nos livros de estilo. Nesse sentido, as notícias oferecem-se como discursos disciplinadores e normalizadores que pretendem definir quais os arranjos institucionais e práticas sociais mais adequadas. O jornalismo e a linguagem por ele desenvolvida pode tornar-se um operador de convergência. A epistemologia jornalística tende a favorecer a experiência, o recurso às formas de tificação previamente estabelecidas para reconher um acontecimento e proceder à sua classificação na grelha classificatória de cada medium. Esta  grelha implica a intersecção  entre os valores  identificados como preferidos na comunidade em que o medium está inserido e à qual se dirige, a política editorial, as práticas sancionadas pela profissão e as respectivas rotinas organizacionais. O conjunto de recursos com os quais o jornalista reconhece o mundo - normas, valores, precedentes - leva-o a enfatizar determinados tópicos, fontes e ângulos.
Porém, este tipo de análise que pode contribuir para aumentar a lucidez  no que respeita ao papel dos media no reforço da coesão e controlo social exige que seja feita uma contra-análise. Com efeito, de   uma sociedade em grande parte assente na produção, onde relevavam a ética do trabalho passou-se a uma sociedade de consumo onde, como afirma Lipowetsky, ganhou uma concepção ligeira, incolor e inodora traduzida num certo hedonismo e individualismo balizada por um entendimento mitigado da responsabilidade para com o outro. O lyfe style predomina claramente sobre o compromisso político. A concepção da cultura de massa como um modo de homegeneização da diversidade e de triunfo da «mesmidade», aparelho ideológico que procura realizar o consenso através da ocultação das dinâmicas sociais conflituais parece desafiado de um modo que era escassamente previsível nas primeiras versões da Teoria Crítica. A cultura dos meios de comunicação torna-se cada vez mais lugar de intensa luta entre as diferentes raças, géneros e grupos sociais e, por conseguinte, teoriza-se melhor como um terreno de disputa, aberto às vicissitudes da história do que apenas como um campo de dominação. Nos países democráticos, a luta política é, em grande medida, uma luta de caris simbólico, uma luta de palavras contra palavras, cujo objectivo é impor uma visão do mundo, uma representação da realidade social e uma certa concepção da ordem social, a fim de a conservar ou, ao contrário de a subverter. Nesta luta, os jornalistas e os media desempenham um papel estratégico.  Em face da acentuação desta dinâmica pluralista, os media apesar da forte componente hedonista que ostentam, podem ser também os veículos de afirmação da diferença e de regresso das identidades, graças aos quais se torna possível  multiplicar espaços públicos de afirmação de cidania.  Por outro lado, apesar de já ser visível um movimento de concentração de propriedade no univreso das redes, é provável que nos instersticios da concentração de propriedade se acentuem fenómenos que conferem uma dimensão nova à pratica jornalística; sem que a interactividade se torne a panaceia para todos os males dos media de massa, neste momento já surgem mecanismos tecnológicos que permitam a formação de jornaalimos mais próximos dos públicos: open  source – journalism; jornalismo cívico e outras formas de jornalismo de proximidade.  Estes poderão possibilidades mediáticas de construção, não de um espaço público, mas de espaços públicos em torno de uma agenda cada vez mais pluralista e com laivos de multiculturalismo cada vez mais visíveis.
Afirma Ricoeur – e, confesso, estamos tentados a concordar com ele – que  a utopia  é o lugar de onde se interpela a ideologia e , consequentemente, os consensos estabelecidos. Só desse lugar distante se pode imaginar outro mundo e outra maneira de o nomear. A elegância da metáfora seduz e parece ser substancialmente rica, e dir-se-ia, poderosa, na capacidade de sugerir uma espécie de desenraizamento radical que parece estar implícito no desejo de mudança que a utopia transporta.  Porém, há uma perplexidade que anima este desejo de utopia.  A realizaçãoda utopia implicava, até há década e meia, a existência de um sujeito colectivo capaz de desempenhar práticas democráticas que se traduzissem na abolição de todasa s formas de dominação particularisticamente fundadas.   Os resultados desta configuração da utopia são conhecidos. Hoje, a utopia possível parece ganhar uma configuração autolimitada: impedir qualquer visão particular de conquistar uma hegemonia absoluta, ou seja, negar a qualquer agente social em particular o direito de se afirmar como detentor de uma visão universal. Porém, este horizonte parece irremediavelmente conduzir a um voluntarismo sem rumo ou à  exaltação de uma concepção defensiva da política.  Esta é certamente tema para uma conferência futura.

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