Jornalismo regional e cidadania

João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior



Será que a imprensa regional tem virtualidades para se constituir como um dos pilares possíveis para a criação de um espaço público, na medida em que a proximidade entre a decisão política, o espaço mediático e a vida quotidiana anula os efeitos indesejáveis da massificação? A questão tem vindo a ser reflectida por diversos autores.
 
 

O jornalismo como indústria cultural.O conceito de cultura de massas é fundamental para a compreensão dos contextos económicos, sociais e culturais em que surgiu o jornalismo, entendido no seu sentido contemporâneo como indústria jornalística.

Os jornais, na sociedade de massa, ganharam cada vez mais o perfil de um bem que resulta de uma produção em série, para a qual se encontrou uma fórmula e um mercado. O jornalismo contribuiu assim para para a rotinização da própria dinâmica social, estabilizando-a em acontecimentos - tipo, comportamentos previsíveis e irupções controladas. A linguagem jornalística, em vez de ser, como se usa pensar, a linguagem do acontecimento puro - correntemente relacionada com uma espécie de inflacção anárquica da realidade imprevista - seria, então, uma forma de estabilização e de controlo da experiência. Esta estabilização seria tanto mais violenta quanto deveria deveria resultar de uma composição de normas onde a identificação do que é relevante resultaria de um esquematismo pré-determinado. "Assim, a construção da notícia implica a utilização de enquadramento (frames), um conceito aplicado por Erwin Goffman à forma como organizamos a vida quotidiana para compreendermos e respondermos às situações sociais."(1) A novidade limita-se ao incidente que assegura, pela negativa, através do seu carácter excepcional, a permanência das grandes regularidades.

A primeira hipótese que se coloca neste texto é a de que o jornalismo de massa, apesar de fundado à luz de uma racionalidade que se pretende intersubjectiva, tem traços de uma indústria cultural com caracteristicas bem vincadas do paradigma da produção reflectidas na existência de normas específicas, escritas ou não, sobre a construção dos seus produtos, a escolha das suas matérias primas e a preparação dos seus profissionais. Há um esquematismo dominante que está relacionado com as normas e hábitos que estruturam o funcionamento do campo jornalístico, e de cada jornal enquanto instituição social. São essas normas e hábitos que definem as rotinas produtivas de selecção, produção e confecção do produto noticioso, os comportamentos prescritos nas relações com as fontes e a socialização dos profissionais no interior do campo jornalístico .

Jornalismo, espectáculo e integração social. A segunda hipótese é a de que o jornalismo e os media de massa em geral, exercem um efeito poderoso de normalização e integração sociais. O carácter industrial do jornalismo pode reforçar o conformismo da esfera pública moderna, na medida em que reforça o conhecimento do mundo como ele é, assinalando o que é desvio e o que é norma, naturalizando as relações sociais e as construções culturais vigentes e dominantes. Neste contexto, o espectáculo constitui uma das formas pelas quais algum jornalismo se furta ao exercício da racionalidade e se centra na mera agradabilidade. Nesse sentido ainda, a publicidade pode ter constituído uma poderosa forma de constrangimento em ordem à consolidação deste devir espectacularizante das mensagens. Como todos sabem, a publicidade, no Século XIX, possibilitou a baixa dos preços dos jornais, tornando-os acessíveis às massas. Os editores e proprietários buscavam (e buscam) formas e conteúdos do produto jornalístico que proporcionassem maiores tiragens e o tornassem mais apetecível aos olhos dos anunciantes enquanto mero suporte publicitário.

Esta transformação catalizou o surgimento do jornalismo como indústria dotadas de regras de fabricação do produto às quais o lucro não é, de modo algum, alheia. Alguns autores consideram que a introdução da publicidade resulta numa maior autonomia sobretudo em relação a projectos político ideológicos.(2) Esta pretensão de independência proclamada pela maior parte dos jornais identificados com a imprensa de massa foi aceite por vezes de forma acrítica numa concepção liberal da história da imprensa.(3) Esta posição merece ser relativizada.

Com o advento da imprensa de massa, os governos criaram taxas e impostos sobre a publicidade de forma a que os jornais ficassem (como dizia um dos legisladores) nas mãos de homens "dotados de respeitabilidade e propriedade." (4) Os anunciantes mantiveram uma relação com a imprensa que provocou um reforço dos valores dominantes, designadamente pelo interesse em atigirem públicos -alvo dotados de meios económicos avultados.

A análise do caso inglês é exemplar.

Os jornais conotados com os movimentos trabalhistas e socialistas depararam com pouca receptividade por parte dos anunciantes predominantemente conservadores receosos de suportar económicamente jornais com tendências que contrariassem os seus interesses económicos ou preconceitos polítiticos. Uma crescente sofisticação das agências levou os publicitários a analisarem a composição do universo de leitores dos jornais, através de sondagens. Os consumidores dos jornais trabalhistas e reformistas coincidiam em grande parte com públicos alvo de mais fracos interesses económicos.(5) Alguns dos jornais optaram por se despolitizarem adoptando fórmulas sensacionalistas. A publicidade teve um papel de controlo beneficiando jornais que se identificavam com os valores sociais dominantes, restingindo indirectamente outras possibilidades de pensamento que veiculassem valores alternativos. Por outro lado, beneficiou de forma explícita ou emplícita opçõesmercantis, assentes numa escrita avessa à crítica e ao efeito catalizador do debate público. O relato de um crime ou a identificação da notoriedade de uma personalidade são mensagens que pressupõem ou denotam opções sociais, culturais, políticas e éticas. Tais mensagens são comunicadas todos os dias a uma audiência que lhes dedica quotidianamente um tempo decerto escasso. Se for tido em conta que essas mensagens são sancionadas ao nível económico na compra e na publicidade - no caso da imprensa - e apenas ao nível da publicidade no caso da rádio e da televisão, teremos de admitir também que um vasto leque dessas mensagens e consequentes conotações, muitas das vezes, serão construídas tendo em conta critérios de aceitabilidade fácil coincidentes com o gosto médio e a comprensão rápida em detrimento do raciocínio crítico, mesmo que isso não seja conscientemente percebido ou intencionado.

Com o reforço da categoria do espectáculo tudo se torna mais complexo. A categoria do espectáculo que se torna hegemónica na informação de massa dá lugar ao puro consumo de mensagens. No produto mediático em geral, mas também no jornalismo em particular, o estilo como já vimos é determinado pela obcessão da acessibilidade psicológica. A informação e a sedução tornam-se perigosamente inseparáveis. Neil Postman relata a emergência dos comunicadores, aos quais ele aplica o epíteto de grandes abreviadores.(6) A narrativa é condicionada pela perspectiva do "maior denominador comum". O conteúdo, muitas das vezes, enfatiza o estereotipo. A problematização da experiência, muitas das vezes, é abandonada em detrimento do maniqueísmo e da distinção fácil, ainda que inconsciente, entre o que é socialmente inaceitável e o socialmente aceitável. Os estudos empíricos, mesmo por parte de autores que não partilham de pressupostos críticos, evidenciam que o jornal "serve como fonte de segurança num mundo conturbado."(7) Ora a segurança é, muitas vezes, um sossego conformista que induz à alegre ausência de problematização.

O resultado pode reforçar uma opinião pública acomodada e consumista, seduzida e embrenhada na contemplação das mensagens e nos múltiplos efeitos cada vez mais aperfeiçoados pelos mecanismos técnicos. À opinião pública falta-lhe o público: atento, participativo, questionante, instado a passar do pensamento à acção. Muitas das vezes, na sociedade de massas o pensamento é o consumo e a acção é a mudança de canal.

É do lugar de espectadores que contemplamos o Mundo trazido sobre a forma de espectáculo mediático à nossa mesa. Com o fortalecimento da indústria cultural, estamos diante de um novo tipo de acontecimento de novo tipo, cujo significado intelectual se esvazia em detrimento das suas potencialidades emocionais. Hoje, em especial depois do novo movimento de privatização das televisões, o acontecimento sobreleva cada vez mais a sua dimensão espectacular.

A lógica do acontecimento gera uma voracidade autofágica. A actualidade vive segundo uma lógica da proliferação do acontecimento que desemboca numa cruel ambiguidade: ao invés do silêncio acerca do que é novo, é a inflacção da novidade que anula a emergência do novo. Os factos, ou aquilo que como tal é identificado, diluem-se na busca de efeitos. Mais: os factos são, desde logo, configurados em função dos efeitos. A ausência de participação na esfera pública é complementada pelo carácter discursivo dos acontecimentos mediáticos: acontecem ao dizerem-se e o seu relato constitui um acontecimento que nos é apresentado sempre envolta na estratégia do espectáculo de massas: apelativo, envolto em retóricas pesuasivas.

O político, enquanto espaço de mediação da opinião dos cidadãos, esvazia-se do seu conteúdo racional para ser contaminado por este devir espectacular. A diferença entre informação e entretenimento, ainda na lógica do velho debate entre objectividade e agradibilidade, se salda cada vez mais por um predomínio da segunda. Nesse sentido, o preenchimento dos tempos vazios passa cada vez mais por uma certa trivialidade: divertirmo-nos até à morte.(8)

Jornalismo, ética e liberdade.A terceira hipótese é a que os dois primeiros pressupostos não conduzem necessariamente a uma espécie de fatalidade: os media são, apesar de tudo, uma encruzilhadada de possibilidades que se jogam no campo do político, do social e do cultural.

Não esquecendo as inevitabilidades dos mecanismos de selecção e dos constrangimentos organizacionais que existem em todas as organizações jornalísticas o que importa é, no que respeita ao produto informativo, defender claramente que os contributos para uma formação da opinião pública esclarecida impõem algumas condições susceptíveis de serem fundadas apenas e só numa perspectiva normativa. É o caso da recusa da manipulação; da tentativa de obter informações completas e confirmadas sobre a matéria noticiável; da obrigação de proporcionar ao leitor informação adequada ao exercício esclarecido da cidadania; da rejeição do sensacionalismo que explora a emoção alheia; de suscitar a participação cívica em detrimento dos consumismos passivos suscitadas pela pura informação- espectáculo.

A crise da realidade como referência segura não pode ser um alibi para esquecer a ética nem da deontologia. ". (...)Justamente a derrocada do modelo referencial de comunicaçao constitui uma das causas da actual crise ética dos MCS, no parecer de investigadores como Boris Libois e Niceto Blasquez. Este último escreve: A grande novidade produziu-se com a introdução técnica da voz, da música e da imagem viva com os seus correspondentes silêncios, insinuações e manipulações distorcedoras. Qual a objectividade de uma imagem de primeiro plano do criminoso levado a tribunal ou dos familiares da vítima nomomento da dor? E questões semelhantes também se podem colocar à imprensa. A mesma notícia nao é a mesma consoante a página em que é inserida, o local da página, o tamanho de letra do título e do corpo da notícia, e as notícias ao lado das quais é colocada. Pelo menos desde os primórdios da fenomenologia sabemos que a percepçao do objecto tem um campo de percepçao e que o campo condiciona de modo essencial o objecto percebido. Uma primeira página, um tamanho de letra de 18, são completamente diferentes de uma página esquerda do interior ou de um tamanho de letra de 12. (...) Na situação actual, de mutaçao acelerada dos media, de alteração de paradigmas, de crise ética, de embriaguez do poder, a virtude da distância constitui, em meu entender, uma das principais virtudes de quem trabalha na comunicaçao."(9) Se a estas preocupações aduzirmos o facto de que muitas destas opções são feitas a pensar num mercado, ditadas pelo desejo de sedução, ainda que legitimadas por uma crença genuína num genuíno interesse público que justifica a vontade de comunicar, há razões de sobra para uma preocupação ética.

Será sempre através da consciência crítica e deontológica que passam as condições necessárias para que o jornalismo não passe cada vez mais ao lado do exercício da cidadania. Por isso, respostas tão evidentes como a formação de conselhos de opinião que representem a "sociedade civil", a aposta na investigação jornalística, a defesa do rigor, a declaração dos compromissos editoriais em tempo de debates públicos como sejam campanhas eleitorais ou de referendo, a presença de procuradores de leitor, a defesa cerrada da investigação, da abundância de pormenor, a insistência numa análise distanciada que não deve ser confundida com a objectividade cega (nada há de mais enganador do que o mito da notícia como espelho da realidade) continuam a ser as respostas possíveis. Isto não impede que devamos reflecir, de uma forma mais vasta sobre algumas oções éticas, susceptíveis de serem traduzidas de uma nova filosofia de serviço público.

Jornalismo, cidadania e regionalização. Uma quarta hipótese prende-se desta forma com um olhar sério sobre a imprensa regional. Na hipótese que aqui tornamos pública, o jornalismo terá tudo a ganhar com o aprofundamento das especificidade de algumas formas de Comunicação Social que mantém, infelizmente, uma situação marginal, sob o ponto de vista da consideração que lhes é dada nomeadamente por parte das organizações profissionais e das instituições de ensino. Pensamos que na Comunicação Social Regional portuguesa, sobrevivem alguns dos traços típicos do jornalismo pré-industrial que não devem ser absolutamente descartados como se tratassem apenas e só de puros anacronismos. Referimo-nos à conexão escassa com a publicidade, a uma relação forte entre as elites locais e os media,a uma enfâse no artigo de opinião e na colaboração externa, a uma contiguidade acentuada entre os artigos e colaborações e as preocupações manifestadas nos espaços de reunião dos públicos, à tendência para estruturar o discurso em torno de alguns assuntos recorrentes em torno dos quais se veiculam opiniões, debates e polémicas, a presença de marcas discursivas que remetem para formas de sociabilidade que pressupõem um saber comum partilhado pelos produtores de mensagens e pelos públicos, o conhecimento recíproco e partilhado pelos produtores e receptores quanto aos factos e realidades que servem de referentes para as mensagens jornalísticas. Ao invés, na Comunicação Social Nacional já se terá verificado todo o ciclo de industrialização do jornalismo que coincide com a formação de um tipo de empresas especializadas no tratamento da matéria prima informativa.

Assim, curiosamente pode ser profícuo tentarmos estabelecer um paralelo entre o projecto regionalista ou regionalizador e o projecto subjacente e a uma certa ideia de interactividade que ainda pode sobreviver no interior do campo dos media regionais, dos existentes e dos que se anunciam. Num caso e noutro, as intenções são, sob o ponto de vista da sua idealização e concepção, semelhantes. No plano explicitamente político tornar-se-ia necessário voltar a ligar o que a representação diferira. No caso das ambições interactivas que se encontram por detrás dos media tratar-se-ia de fornecer mensagens que não fossem destinadas ao mero consumo dos tempos vazios mas que dissessem respeito à "próprio vida" dos públicos, entendida esta "própria vida" como a sua quotidianeidade. Em suma, em ambos os casos tratar-se-ia de superar a massificação e a virtualização crescentes resultantes do gigantismo introduzido pela transformação da noção de espaço, tentando voltar a relacionar os assuntos que dizem respeito à polis com a própria vida quotidiana.

Dito isto, parece-nos que a definição de um campo jornalístico regional pode comportar estas hipóteses. A identidade de regiões comporta a necessidade de mecanismos de produção simbólica que contemplem o reforço do sentimento de pertença. Não se trata de propor um engajamento panfletário da imprensa regional a esta ou aquela região. Os traços atrás descritos podem constituir reminiscências de uma forma de exercício da racionalidade parcialmente banida dos media de massa e que podem ser mantidas dentro do âmbito de uma proposta que tenha em conta, nomeadamente, a necessidade de superar os anacronismos que ainda residem no específico campo da comunicação social regional.

Trata-se de um pensamento utópico e provavelmente ingénuo, mas cuja sedução compartilho convosco: um campo jornalístico regional que mantenha tais especificidades e que simultaneamente, supere a presença dos caciquismos, o constrangimento resultante da omnipresença dos poderes locais e a ausência da formação e da profissionalização que ainda imperam em muitas empresas jornalísticas localizadas fora da capital.

1-Nelson Traquina, O Paradigma do "Agenda- Setting": Redescoberta do Poder no Jornalismo in Revista de Comunicação e Linguagens- Comunicação e Política, nºs 21/22, Lisboa, Edições Cosmos, 1995, pg. 202.

2-James Curran, Power Without Responsability, Londres, Routledge, 1980, pg. 9

3-Curran, pp. 7-9.

4-Curran,pg . 13

5-Curran, pp. 39-41.

6-Neil Postman, Amusing Ourselves to Death, 1986, pg. 6.

7-B. Berelson, What Missing the Newspaper Means, apud John W. Riley Jr. e Matilde W. Riley, A Comunicação de Massa e o Sistema Social in Gabriel Cohn (Org.), Comunicação e Indústria Cultural, São Paulo, T A Queiroz Editora, 1987, pg. 124.

8-Neil Postman, Amusing Oursellves to Death, Nova Iorque, Penguin Books, 1986, pg. 4.

9- António Fidalgo, Universidade da Beira Interior A distância como virtude. Considerações sobre ética e deontologia da comunicação. (comunicação apresentada no Painel Ética, Deontologia e Direito da Comunicação, no âmbito do Seminário, Ética e Credibilidade dos Media)