A emergência do individualismo na cultura mediática contemporânea

João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior

(2001)

Qual é o estatuto da individualidade nas sociedades modernas? Qual será o papel  dos media na atribuição, consolidação  e configuração deste  estatuto? Este tipo de questões atravessa,  recentemente, grande parte do pensamento filosófico e sociológico, conhecendo sucessivas reposições, remetendo para a antítese entre a  normatividade implícita à afirmação da liberdade  individual e a facticidade inerente à manutenção  da ordem  social  e configurando, nuns casos, um olhar crítico sobre a construção das sociedades modernas em termos de ascese, de renúncia e de rejeição do princípio do prazer, noutros casos originando teorias que enfatizam o hedonismo e a afirmação de um sujeito descentrado e, noutros ainda, glorificando a erupção da reflexividade como fundamento de novos modos de pensar a emancipação.

 A individualização não é um fenómeno nem uma invenção da segunda metade do século XX. Durante muito tempo, teve-se em conta, nas ciências do homem, a dimensão relacionada com o devir colectivo. Hoje, compreende-se que o surgimento do individualismo moderno é um processo tão importante como a formação das novas concepções de Estado, de espaço público e de cidadania. Podemos admitir que há uma mudança de perspectiva epistemológica que leva a conceder ao individual o primórdio que outrora fora concedido ao colectivo. Formas de aprofundamento da individualização são já    conhecidas na voz interior agustiniana, no Renascimento, na cultura cortesã da Idade Média, no ascetismo protestante, na emancipação dos camponeses das formas de servidão feudal, e nos séculos XIX e XX, durante a crescente desintegração dos laços sociais tradicionais. A consolidação de um princípio de liberdade conhecido como liberdade dos modernos é um processo que ascende ao dealbar da aurora moderna e que se radicaliza  no seu período tardio, ao ponto de, como todos conhecemos, se questionar a si próprio enquanto vontade de poder e princípio de dominação do mundo através  de um modo de racionalidade calculista e instrumental.  A questão que se põe é “como compreender a presença conjunta, no nosso universo intelectual, de uma condenação da subjectividade fundadora como raiz longínqua da sujeição totalitária ou tecnocrática e o recurso, para descrever  e denunciar essa sujeição, a uma certa ideia de ser humano como aquele ao qual, num mundo inteiramente administrado, é recusada qualquer possibilidade (e, portanto, qualquer direito) de ser o fundamento dos seus próprios pensamentos e dos seus próprios actos, de ser um sujeito e não um objecto, suporte coisificado de uma manipulação infinita?” (Renault, 2000: 20) A resposta só pode ser dada se tivermos em conta uma certa ideia de sujeito simultaneamente, como núcleo potencial de ilusões perigosas e como um valor inultrapassável. É esta dualidade que nos surge  mais uma vez a propósito da relação dos indivíduos com os media.


1. Alguns traços da análise teórica da subjectividade

As transformações estruturais introduzidas pela cesura iluminista, objecto de uma radicalização recente na modernidade tardia, têm a ver sobretudo com a ausência de um telos inerente à condição humana: a existência passa a ser um conjunto aberto de possibilidades que implicam uma decisão (Sartre 1999: 49). Nas novas condições abertas pela modernidade, pode dizer-se: é-se sendo, o que faz cada uma das nossas maneiras de ser, estilos de vida e situações biográficas algo que podia ser de outro modo. A liberdade é assim “estrutura permanente do ser humano” (Sartre, 1999: 79).

A  afirmação moderna da individualidade transporta, todavia, duas linhas aparentemente contraditórias: uma hipersensibilidade à coisificação e reificação do indivíduo que enfatiza, pela  descrição sistemática e minuciosa da relação entre o poder e a subjectividade, a centragem no momento castrador e  repressivo da constituição do sujeito moderno. Simultaneamente, verifica-se a acentuação  do tema do sujeito de um modo em que este se dedica à construção de si mesmo através de um trabalho reflexivo, que se debruça sobre a estilização da relação consigo mesmo e com os outros (Foucault,1994:13).

Com o fenómeno da urbanização e desenvolvimento das cidades, a sociologia mostra estas tendências contraditórias em que simultaneamente se mesclavam os processos de afirmação da cultura objectiva e a tentativa do sujeito de escapar de certo modo, ao peso dessa cultura. Em Simmel, tornava-se já  extremamente clara a consciência de que nas novas sociedades urbanas emergem tipo sociais que configuram, de modo especial e mais acentuado, estes traços. “O problema mais profundo da vida moderna deriva da tentativa do indivíduo de manter a independência e a individualidade contra o peso da herança histórica e da cultura exterior”(Simmel, 1984: 324). A identidade tornar-se-ia um campo de forças conflituais, um percurso incessantemente percorrido entre escolhas múltiplas e contraditórias.

Com a urbanização, emerge a figura do flâneur, o passeante ocioso perdido na grande metrópole, livre de sonhar, observar, meditar e vaguear. Os habitantes da cidade são vistos como movendo-se através de um espaço fragmentado construindo a sua actividade com base na imaginação Este observador estabelece uma relação particular com a urbe que habita como se fosse sua casa: está fora de casa e, não obstante, em qualquer lugar se sente como se estivesse nela;  sente-se no próprio centro do mundo embora permaneça oculto para o mundo. O flaneur guarda ciosamente a sua individualidade e, obscurecendo-se por detrás da máscara do anónimo e insignificante homem da multidão, envereda por um percurso  que o aliena da eventual possibilidade de uma relação intersubjectiva mais aprofundada  com os outros agentes que se movimentam nessa multidão. A flânerie é  um modo de sociabilidade que diz respeito a Um.  Esta a vida que se vive olhando o mundo correr, não trocando com Outrem uma palavra sequer que dê conta da sua presença (Shields,1974:76-77). Na sua deambulação febril, o flaneur captura o carácter dinâmico do fenómeno urbano. A cidade cria e exige um novo modo de percepção, uma nova sensibilidade estética. É esta apreciação do efémero que Baudelaire chama de modernidade (Benjamin, 1977, p. 12).

Contemporaneamente, a emergência da individualidade compete com a experiência do destino colectivo. A tendência urbana e moderna dirige-se para a consolidação de formas individualizadas de experiência que compelem as pessoas a olharem-se a si mesmas como o centro do planeamento e condução da sua vida. O indivíduo torna-se a unidade de reprodução do social no mundo da vida (Beck, 1992, 90).  Com  a  emergência da reflexividade (Giddens,1996:27), à medida que as relações entre os agentes sociais passam a ser estudadas e conhecidas, os conhecimentos são levados em conta pelos próprios agentes sociais no decurso das interacções. “Quanto mais a tradição perde a sua influência, (...) tanto mais os indivíduos são forçados a negociar escolhas de estilos de vida de entre uma diversidade de opções” (Giddens, 1997: 5). As práticas sociais são rotineiramente alteradas à luz de  descobertas progressivas, com a crescente e inevitável aceleração da radicalidade na revisão das convenções. Os protagonistas deste processo já não podem ser sujeitos duma narrativa biográfica cujo percurso e telos essencial possam ser rigidamente determinados. São mais erráticos, experimentais,  fugazes nas relações, incertos quanto aos saberes adquiridos.

A discussão sobre o género tornou-se reconhecida como um dos mais interessantes elementos de reflexão acerca da instabilidade que paira sobre a definição do sujeito.  Porém, a sua aceitação relativamente pacífica fragiliza-se quando a reflexão passa da desigualdade de direitos para a desigualdade da condições, sendo que, nesse caso, mais do que os direitos  é a própria “feminilidade”, ou no caso da homossexualidade, a “masculinidade”,  que é posta em causa. Independentemente da apreciação que se faça, uma parte das correntes que se debruçam sobre os estudos do género lança a dominação sexual para o domínio das constantes antropológicas relacionadas com a natureza. O problema passa a ser a resposta a perguntas como sejam  “quem sou?”, “como posso ser?” e “porque sou obrigada a ser de certo modo”?  Ao enveredar-se neste caminho, a reflexão sobre o género interpela , de modo radical, as relações entre a natureza e a cultura. Neste domínio, o lesbianismo, o transformismo,  a que se juntam a afirmação das comunidades gay e dos direitos dos homossexuais tornam-se formas de negar a imposição de um destino e de um estatuto que se apresenta como biologicamente fundado. É um novo corpo, um outro ser, ou pelo menos a possibilidade de ser de modo diferente que anima a proliferação destas formas de diferença.

Finalmente, ao nível da vivência quotidiana, de modo explícito, a moda e o consumo tornaram-se simultaneamente indícios e catalisadores deste modo de ser urbano e incerto. A relação entre o uso das coisas e a identidade que o seu utilizador constrói é, talvez, uma das descobertas fundamentais do capitalismo moderno. Sobre ela  ergue-se todo o marketing, publicidade e moda modernos, os quais,  por seu lado, evidenciam uma nova natureza do consumo. Por mais que se despreze esta alteração estrutural em nome de uma permanência dos mecanismos de dominação, haverá que aceitar que ela constitui um dado novo que altera a economia e a vivência individual,  os padrões de consumo, a relação com o corpo e o self.  Talvez seja nessa arena que se tenham de se travar, também, as sempre inacabadas lutas pelas emancipações que marcam o destino humano


2. Os media electrónicos e a criação da individualidade : leituras contraditórias

Nas relações entre os media e o individualismo multiplicam-se os sinais de uma efervescência preparatória que devemos continuar a decifrar à luz de ideias especificamente modernas como sejam as de racionalidade crítica, autonomia e emancipação. Parece evidente que o desafio neo-liberal expresso de modo tão eloquente pelos media e pela forma como estes chamaram a si a tarefa de espectacularização e dramatização do real tem que ser enfrentada num terreno em que terá que se apelar a uma ideia de cidadania e de política mais ligada ao mundo da vida e aos direitos do indivíduo.

 Hoje, de um modo crescente, uma peculiaridade das formas de individualização reside na existência de consequências já não mais resultantes de uma referência a uma consciência colectiva ou por uma unidade de referência social clara na esfera da vida cultural. Os indivíduos tornam-se os agentes prioritários da sua vivência mediada hegemonicamente pelo mercado,  o  qual  penetra, com  escassez  de resistência no   universo sócio-cultural. Porém, este fenómeno não pode ser objecto de uma leitura linear.

Esta diferenciação das situações sócio-biográficas determinadas é acompanhada por um grau equivalente de standartização: os mesmos media que são responsáveis pela individualização são também responsáveis pela standartização. Através dos meios de comunicação e de informação, do dinheiro ou do mercado ou da lei, os indivíduos encontram a sua afirmação pessoal e uma não menos exaustiva dependência de uma mercantilização generalizada das formas de vida (Beck, 1992: 129-131).

A televisão enquanto meio de controlo social e de comunicação  foi, aparentemente,  a resposta a uma necessidade de um mecanismo de integração social criado pelo desenvolvimento de uma economia industrial que desenraizou uma parte substancial da população, e isolou as pessoas umas das outras em modos privatizados de vivência.

 Na realidade, porém, grande parte dos produtos televisivos, trabalha hoje com simulacros, com invenções, com imaginações e migrações de estéticas e estilos. Apresentam narrativas imbuídas de uma aura de verosimilhança, associando conotações, modos de estar e estilos de vida de um modo aparentemente inadequado à realidade, facilmente sujeitos a objecções em conexões dialógicas do tipo argumentativo mas fortemente efectivas ao nível do inconsciente e do imaginário, em que os efeitos na construção de posições subjectivas são, sem dúvida, poderosos ( Poster, 2000: 75-76).

Os reality shows televisivos apostam no estilo de vida como se este se tornasse a fonte de todos os desejos, de onde brotam todos os amanhãs cantantes e todas as promessas de mudar a vida. Centrados na aventura individual, os novos reality shows parecem apostados na criação de um espectáculo onde se joga com os desejos e as paixões. Como diz John De Mol, fundador da Endemol que criou o famoso Big Brother, os jovens “querem programas que se adaptem às suas necessidades aos seus objectivos. (...) As pessoas que agora têm 20 e 25 anos cresceram com a televisão comercial – de múltipla escolha -, com a Internet e com os telemóveis.  Consideram a televisão como uma ferramenta, neste sentido: «o que é que  ela me pode dar?» (Expresso Revista nº 1502, 11 de Agosto de 2001).  Sabendo o profundo esforço de mercantilização do Self que este tipo de programação implica, torna-se necessário interrogar o seu sucesso e a sua evidente capacidade apelativa enquanto sintoma significativo de uma agenda nova que tanto é objecto de uma apropriação sistémica e reificadora como, noutros domínios, se traduz numa nova oportunidade de repensar o espaço público e o exercício da cidadania. Será tudo isto uma ilusão induzida pelo funcionamento do mercado? Ou, por detrás, desta insistência no desejo e na fruição da subjectividade se esconde uma nova geração de direitos que implica a reconfiguração da ideia de cidadania? Dito de outro modo: o que significa a ascensão da gente vulgar à realização dos seus objectos e necessidades, na perspectiva claramente hedonista que lhes atribui o patrão da Endemol. Pode significar,  significa evidentemente a instituição do voyeurismo,  a instituição da bárbárie que se pressente em “O Ratinho” ou no Jerry Springler Show como no Big Brother como na generalização do infortainment, que se encontra um pouco por todas as televisões.  Porém, é também um sintoma de desprezo pelos projectos colectivos e pelas noções clássicas de cidadania que não pode deixar de nos interpelar. Será que a resposta terá que ser dada também através dos media através de mecanismos de resistência mais centrados no mundo da vida e menos diluídos nos projectos abstractos da modernidade, pelo menos do modo como eles se apresentaram  nas suas configurações clássicas e hegemónicas?

Com efeito,  um breve  olhar  retrospectivo desde os  anos  80  até   hoje  confirma  numerosas  decepções  em   relação às  consequências  dos  caminhos  que  se começavam  a  percorrer. Durante muito tempo supôs-se que o estilo rígido e piramidal dos media de massa   - associado a um conjunto de convenções de que a objectividade é um exemplo maior- seria, precisamente,  o elemento que conferia aos media um carácter predominantemente massificador, que obliterava a diferença e contribuia para a criação de um universo arredio às necessidades e objectivos dos indivíduos. Acreditava-se que o aumento da interactividade, o apagamento dos traços que afastavam os produtores de mensagens dos seus destinatários teria como como consequência  uma espécie de libertação das formas de alienação e de reificação introduzidas pela cultura de massa. Um exemplo desta crença é a crítica aos mecanismos censurantes instaurados nos próprios media – designadamente a crítica à linguagem esterotipada e “à ordem discursiva institucionalmente imposta” (Mendes, 1984:81) – os quais seriam ultrapassados por uma aproximação à ficção, pela narração dos acontecimentos em regime de maior aproximação à subjectividade do observador, e a possibilidade dos elementos noticiáveis passarem a constituir (sic) «elementos de intrigas e de novelas jornalísticas». Esta tendência para a novela jornalística era naturalmente pensada num âmbito de rotação da retórica do género que possibilitava a maior aproximação ao exterior e onde se abria espaço ao utopismo poético como forma positiva de comentário do real (Mendes, 1984:85). Esta tendência, detectada em 1984, era aliada então, à explosão das Tvs privadas, dasTvs locais, e das tvs por cabo, ao mercado das”videocassettes”, à proliferação das emissoras “locais ou de piratas, os quais produziriam ritmos de solução diversificados mas que, globalmente considerados, apontariam tendencialmente para um futuro de moderação do monopólio estatal (Mendes, 1984:84). Pelo tom optimista de ultrapassagem das censuras vigentes no domínio dos meios de comunicação de massa, é natural que esta crítica que apontava para a moderação do monopólio estatal não prevesse o furacão neo-liberal que não moderou mas, antes, arrasou esse monopólio em termos de uma violência desreguladora que dificilmente se podia adivinhar.  Estes elementos indiciaram a possibilidade de uma superação do carácter impessoal e massificador da narrativa dominante, adequados a um novo tratamento da subjectividade, mas mostraram-se simultaneamente adequados à espectacularização da informação e à erupção de novas e mais sofisticadas formas de dominação, perpetradas nomeadamente no âmbito do infortainment, da informação-espectáculo, da generalização à programação das regras dos reality-shows. (Correia,2001)

No domínio das redes,  também surgiram dispositivos e modos de interacção que, à primeira vista, pareciam apontar para uma espécie de libertação do sujeito dos constrangimentos da sociedade de massas. Referimo-nos  aos chats, ao IRC, ICQ , messengers proporcionados por diversos motores de busca e  outras formas de interacção mediada por computador  que se tornaram uma espécie de suporte do desejo do homem de pressentir os  limites do EU,  fazê-lo jogar novos jogos de linguagem, habitar novos papéis e estatutos, atribuir-lhe novas funções e  criar novas máscaras. Por mais que minimizemos a sua importância social, haverá que acolher a hipótese de que  a procura destas tecnologias  está de acordo com  o espírito do tempo, na medida em que os participantes nelas assumem a reflexividade da sua personalidade. 

Para alguns abordagens pós-modernas,  a experiência concreta das redes, designadamente através dos famosos  chats, procede a uma descontrução histórica dos factores que sustêm o conceito de normalidade próprio da era capitalista e moderna (Mayans i Plannels, 2001). As  histórias protagonizadas pela forma de subjectividade que emerge no cyberespaço são cada vez mais idiossincráticas e individualistas.  Segundo estudos empíricos efectuados por psicólogos, o self,  tal  como   se manifesta de modo mais frequente no chat que segue o modo de organização IRC (Internet Relay Chat) é fluído, flexível, heterogéneo, mutável inconstante e incoerente, polifacetado, pluridimensional e emotivo (Mayans i Plannels, 2001). A Internet encoraja a proliferação de histórias, de narrativas locais sem  vocação totalizante, colocando emissores e destinatários em relações aparentemente simétricas. O sujeito moderno na sociedade da informação seria objecto de uma deslocação em favor de um sujeito múltiplo, disseminado, descentrado, instável, experimentando um processo contínuo de formação de identidade múltipla (Poster, 2000: 71-72).

Por detrás das identidades virtuais joga-se uma relação real com a identidade que passa por diversos níveis de risco e de empenhamento: nome, aparência física, orientação sexual, género, projectos  de vida são objecto de um trabalho ficcional que não deixa de ter essa componente mesmo quando se aproxima da realidade.  Por detrás de cada identidade «fictícia» esconde – se a pergunta ou a admissão de uma hipótese: e se eu fosse de um outro modo diferente  daquele que eu sou? Dar à luz personagens é uma experiência enriquecedora com um alto teor dramatúrgico e lúdico.

Os ‘chats’, deste modo são  um  exemplo cabal da seguinte afirmação de Geertz: " (...) a sociedade está cada vez menos representada como uma máquina elaborada ou como um quase-organismo e cada vez mais como um jogo” (apud  Maians y Plannels, 2001). Epítomes da urbanidade, como outros campos de interaccão social no ciberespaço, devem ser considerados sempre tendo em conta a influência determinante da dimensão lúdica. Nessa medida, são uma manifestação  de um certo modo de estar em que a personalidade de certo modo se imagina  como um puzzle de peças de combinação ilimitada.

Nesse sentido, uma interessante proposta temática aponta para o facto de os flaneurs  de hoje poderem ser encontrados no espaço do WEB. Eles navegam pelo espaço virtual, usufruindo o erotismo imanente a uma visão privilegiada a partir de um ponto de vista que permanece oculto (Frisby, 1994:82). À lista de modos de flânerie contemporâneas já composta pelo zaping do ouvinte de rádio e do espectador de televisão de olho posto sobre o mundo ou à flânerie de tour-package associado ao turismo de massa  (Smart, 1994:162) temos de acrescentar a flânerie que se traduz na navegação pelo Cyberespaço

 O que a cidade e a estrada, a rua eram para o flaneur, a Internet e a  super auto-estrada da informação  seriam para o cyberflaneur.

Porém, a verdade é que a afirmação crescente da individualidade é acompanhada pela multiplicação crescente da vigilância: firmas de estudos de mercado como a Claritas Corporation deslumbram-nos com as possibilidades emergentes de realização de um policiamento de novo perfil. Esta firma registava, em 1995, mais de 500 milhões de consumidores individuais e respectivos dados provenientes de várias bases de dados fundamentais.  A empresa combina mais de 1200 bases de dados do sector público e do sector privado, a partir das quais gera a sua base de dados, sendo a jóia da coroa uma base  chamada prizm que individualiza leituras de magazines favoritos, hábitos alimentares,  compras prioritárias, automóvel e programa de televisão favoritos, etc, conseguindo obter a caracterização  fíníssima de segmentos correspondentes a 1,1% da população dos Estados Unidos. (Poster, 2000:105).

Em face destes dados apresentados não é possível deixar de reflectir: será que devemos reduzir toda a insistência no entretenimento e na afirmação individual a um  puro apelo às forças de mercado ou devemos, pelo contrário, ter em conta o facto de que a insistência na fruição individual é um elemento   com   potencial emancipatório que tem a ver com a vontade de realização que é uma das conquistas da modernidade e que se pode  traduzir em  modos de cidadania que fujam à  subordinação  aos media   sistémicos?

A resposta  a este  dilema terá que ser encontrada  através de uma atitude normativa e  reformista que urge pelo  regresso da política. Uma abordagem semelhante tem que passar por alguns pressupostos  todos eles herdados de uma leitura da modernidade equidistante quer em relação aos modelos capitalistas e neo-liberais prevalecentes, que em relação às soluções clássicas conhecidas, algumas das quais já provaram o seu esgotamento como o socialismo burocrático ou dificuldades de manutenção  como o Estado Previdência, quer ainda em relação às hipóteses pós modernas, as quais muitas das vezes se limitam  a uma espécie de anything goes complacente.  Assume-se que “vivemos num tempo em que a experiência privada de ter uma identidade pessoal por descobrir, e um destino pessoal por cumprir, se tornou uma força subversiva de grandes proporções” (Theodore Roszack,1979: 193). Esta força subversiva passa por assumir uma articulação entre o que Giddens designa por política da emancipação e política da vida (Cfr. Gidens, 1997:193). Pela primeira, entende-se  uma política que  visa libertar grupos desprivilegiados da sua condição infeliz ou eliminar as diferenças relativas entre eles, procurando-se reduzir ou eliminar a exploração, a desigualdade e a  opressão, tomando por primordiais a justiça, igualdade e participação. Quanto à segunda, diz respeito a questões políticas que emanam dos processos de realização pessoal em contextos pós-tradicionais e decisões que afectam a identidade em si mesma. A articulação entre ambas  será tanto mais perfeita  quanto mais as circunstâncias sociais se aproximarem de uma situação de discurso ideal,  tendente  para uma ordem social baseada na acção autónoma de indivíduos livres e iguais.  A concretização de uma situação deste género exige   a dinamização de contextos comunicacionais que permitam a criação de condições de autonomia para os indivíduos. Como tal, implica a mobilização de recursos mediáticos, os quais se encontram, todavia, sujeitos, a um conjunto de pressões provenientes da ordem sistémica que tornam difícil a realização desse objectivo.   Está-se consciente de que a natureza da lógica económica em que os media estão envolvidos implicará um conjunto de factores dos quais se sugerem, com as devidas cautelas, os seguintes:

 i) a criação de condições para que o sistema democrático mediático seja capaz de representar todos os interesses significativos presentes na sociedade. Este objectivo pode ser alcançado através da abertura moderada de canais de acesso público, negociando-se no sentido de que as companhias concessionárias tornem disponíveis equipamento e tempo de antena a fim de que    seja   possível   fazer uso do canal apenas com as restrições decorrentes da lei vigente;

ii) o lançamente de incentivos no sentido de um pluralismo regulado, com um enquadramento institucional que assegure a existência de centros de produção que mantenham uma radical independência em relação aos monopólios privados e ao Estado, podendo ser variáveis os regimes de propriedade. Entende-se o serviço público como a assunção de que o princípio da liberdade de expressão tem uma dimensão pública, sendo  política e moralmente legítimo defender formas flexíveis de intervenção regulamentadora que visem garantir tendencialmente a possibilidade de exercício dos direitos por todos os cidadãos, dificultando as formas de concentração excessiva da propriedade que se traduzam numa redução significativa da diversidade, utilizando meios e recursos disponíveis para assegurar níveis de pluralidade aceitáveis;

 iii) discutir formas de  conduzir essa filosofia para o interior das redes. Importa,   talvez, começar   a  discutir o   serviço público de Internet: o que significa, que contornos pode assumir?

iv) incrementar a literacia mediática, na perspectiva de que públicos esclarecidos sejam mais críticos, na perspectiva de que , hoje, uma sociedade civil democrática, é uma sociedade de comunicação;

v) incentivar a dimensão literária, publicista, cívica e utópica da escrita mediática, mesmo correndo o risco de uma dimensão minoritária que se limite a algumas universidades e canais alternativos.  Este aspecto merece ser sublinhado porque só uma cega análise economicista pode negar o papel da  forma  e do   estilo como elemento estruturante do campo mediático.  Ao  propor que    se comece  a pensar este percurso,  sugere-se, enfim,  a   possibilidade de redescobrir novos caminhos estéticos que não sejam uma mera subjugação às forças comerciais dominantes, aproveitando a interactividade e a escolha múltipla para abrir  percursos estéticos mais criativos, essenciais para  percursos políticos mais audaciosos. Nesta matéria,poder-se-á aprofundar o  ambicionado desejo de um realismo utópico  - de  que já  se falava em  84 - onde a emergência da individualidade sobressaia pelas suas potencialidades transformadoras e não apenas por uma exploração sensacionalista e necessariamente subjugante da diferença.  Isso já se fez : “Portugalmente”, lembram-se? Nesse sentido, pensa-se que um dos caminhos porque passa a ideia de serviço público em Portugal pode ser o  de pensar  uma política global de comunicação,  em que o estímulo à criatividade constitua um pólo possível de  colaboração entre instituições e media. Assim, não é estulto sustentar  que  é necessário sustentar a necessidade   de  um  novo  modo de jornalismo. A  descoberta  de  novos modos de complementaridade entre os media tradicionais e os media interactivos,  o repensar da escrita mediática,  aproveitar as potencialidades estéticas dos novos media não  é de modo nehum  esquecer a dimensão social  dos media, mas dar uma outra centralidade a uma certa dimensão do social frequentemente esquecida como tal. Aqui, as universidades terão, naturalmente, uma palavra  obrigatória.


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