(Análise do filme Naked Lunch de David
Cronenberg)
1. As metáforas que pela ficção parecem realidade
“Não
podemos conhecer as coisas tal como elas são em si mesmas,
pois a aparência é o que está ao nosso alcance” [1]
O mundo moderno está repleto de
ficções. Vivemos na expectativa, no seio de uma cultura de ilusão. É a experiência
estética que nos faz perder essas ilusões e ganhar capacidade para conhecer
e definir as nossas apreciações de gosto “(...) A fruição estética é uma experiência
que nos garante consonância ou inadequação com o mundo, pelo que tem uma função
reflexiva que não está ao alcance de um grande esforço científico nem pode estabelecer-se
como precipitada moralização. Prescindir da experiência estética seria renunciar
a um meio de conhecimento insubstituível, o luxo a que não pode dar-se qualquer
um, e menos ainda numa época de escassas certezas”[2] . As obras de arte servem para nos atrair, para
nos atentar às seduções do real. É a experiência estética que amplia os nossos
horizontes, pluraliza ou desilude as expectativas, em torno do beau relatif.
“A racionalidade estética - a experiência estética que está presente nas nossas
apreciações de gosto – não é uma forma paralela da racionalidade; é antes a
urdidura de todas elas, confirmando-as ou reprovando-as. (...) A estética não
é um substituto da racionalidade, mas antes a sua expansão e alargamento, uma
atenção que amplia os seus horizontes e tempera a sua receptividade.”[3]
A arte da experiência aumenta a nossa crença na realidade, cria as ferramentas
que necessitamos para classificar o real e entendê-la. A arte assume as mais
variadas facetas e como afirmou o teórico Gilles Deleuze, “o mundo é o cinema”.
O cinema são imagens, imagens às
quais a câmara pode dar um significado determinado, um sentido único, torná-las
diferentes do que na realidade são. Imagens em movimento, dentro de cada plano
e com planos combinados entre si. Comparado com a pintura (especialmente a pintura
moderna), o cinema recolhe tudo o que está diante da câmara. Mas se a pintura
se detém por aqui, no cinema, tudo depende dos olhos que guiam a câmara: o cinema
são as imagens, a inspiração, a montagem e o ritmo. Trata-se da criação de um
espaço fílmico, diferente do real, onde se desdobra um enredo e se caracterizam
personagens. Reflexos de “uma realidade” – a do autor – que se podem transformar
em verdadeiras obras de arte. A realidade deve falar por si mesma, e o filme
deve ser um espelho fiel dessa realidade, tal qual existe, não deixando grande
margem para interpretações ou personalizações do real. “O que não vemos é o
inacreditável – no cinema o que interessa é mostrar isso”
[4] . Cabe ao espectador fazer a sua própria interpretação,
mediante o que lhe é oferecido.
Wim Wenders afirma que cada qual vê a sua realidade, com os seus
próprios olhos. “A «realidade». Não existe praticamente nenhum outro conceito
que seja mais oco e inútil em relação ao cinema. Vemos os outros, sobretudo
as pessoas que amamos, vemos as coisas à nossa volta, vemos as cidades e as
paisagens em que vivemos, vemos também a morte, a condição mortal dos homens
e a efemeridade das coisas, vemos e experimentamos o amor, a solidão, a felicidade,
a tristeza, o medo; em resumo: cada qual vê, por si mesmo, a vida. “Cada qual
sabe por si o que isto quer dizer: percepção da realidade. (...) Tornou-se raro
no cinema actual que tais instantes de verdade tenham lugar, que pessoas ou
coisas se mostrem tais como são.”
[5] Influenciado pela ficção romanesca e figurativa, o filme é como
uma impressão da realidade, despertando no espectador estranhas expectativas,
sobre as quais Christian Metz se debruçou. Negando a realidade, os filmes de
ficção criam uma ilusão referencial pela negação do significante na constituição
da figura do sujeito. O psiquismo do cinema não só elabora a percepção do real,
como também segrega o imaginário, e seguindo o raciocínio de Edgar Morin, ao
mesmo tempo que representa, significa. Parece que objecto e sujeito, não se
invertendo ou canibalizando, se tornam aspectos de uma mesma realidade, anulando
as contradições. É por isso que o mundo da ficção é mais desafiante que o real,
pois nele tudo é intencional. A participação activa do espectador – quando este
vê o que acredita estar a ver – transporta-o para um simulacro da realidade,
um sentimento de actualidade convicta que se desmonta só no final do filme quando
se abandona esta realidade fictícia para se afastar dos acontecimentos e regressar
à sala de cinema.
Os efeitos de ficção de que o cinema é capaz têm em si uma forte
aparência de real.
Tal como afirmou Bazin, «o cineasta vai criar um cinema
da hipérbole e da realidade».
Uma espécie de reprodução da vida, tal como ela é.
O cinema cria novas realidades, multiplicando, invertendo,
distorcendo ou alterando o seu movimento, fazendo nascer mundos mágicos que
não conhecem regras: “cria relações simbólicas entre acontecimentos e objectos
que não têm qualquer ligação na realidade (Arnheim)”
[6] . Os poderes da imagem remetem-nos para um domínio delicado e quase secreto:
perfeições técnicas à parte, como explicar que uma imagem nos fascine e outra
apenas nos desperte interesse pelo seu contéudo? Essa atracção vem do mistério
que cada imagem encerra em si, tal como o mistério dos seres e das coisas. A
imagem é sempre uma alteração voluntária ou não, da realidade, e constitui um
segundo mundo, com características próprias, pelo que nos coloca sempre perante
processos de derivação. São profícuas as realizações em torno da ficção científica,
que normalmente transportam o espectador para contextos que dificilmente verá
realizados para lá da sétima arte. Invasões de marcianos em “The War of the
Worlds” de Byron Haskin, a cidade futurista “Alphaville” de Goddard ou o épico
“2001: A Space Odissey” de Stanley Kubrik, são filmes que através da arte da
ilusão nos fazem crer que o perigo e a magia existente naquilo que nos parece
fisicamente impossível, é nada mais nada menos que pura realidade.
As imagens que vemos no cinema têm um forte sentimento
de realidade, pois dela estão muito próximas, muito embora se trate sempre de
uma realidade estética pessoal e subjectiva do cineasta, onde o belo e o feio
são facilmente misturados num mundo de magia e sonho, criando um casamento entre
as verdadeiras formas do universo e aquilo que somos capazes de inventar. Dizia
A. Bretton, que a vida é um criptograma que os cineastas decifram à sua maneira.
Filmar impõe-se-lhes como uma parte da sua vida, algo de que raramente se conseguem
afastar.
A riqueza do cinema está na capacidade de interpretação
que fazemos dessa realidade, tanto pelas mãos do cineasta como à
posteriori em cada espectador. O mais importante é a forma como o realizador vai
traduzir a sua visão do assunto, transmitindo de uma forma concreta aquilo que
até aí era apenas domínio da sua imaginação. “Um autor é um indivíduo que possui
um mundo particular e uma visão pessoal desse mundo particular”
[7] . Não tanto revelador de obsessões pessoais, o trabalho de David Cronenberg
tem sido visto como uma crítica irónica dos males que afectam a nossa sociedade.
Em alguns casos, explora as imagens até ao limite do possível, transformando-as
nos nossos piores pesadelos. Esta é uma das razões para que muitos dos seus
perturbantes trabalhos sejam encarados como fruto da insanidade do autor. No
entanto, ao longo dos últimos vinte anos, Cronenberg tem-nos presenteado com
alguns momentos memoráveis no cinema.
O seu interesse pela cisão entre o corpo e a mente
tem dominado os seus trabalhos. Recuemos a 1975, para recordar a história de
“Shivers”, um filme sobre um parasita que deveria ocupar o lugar de orgãos incapazes
de assegurar o funcionamento do corpo. A disseminação do parasita ultrapassa
os limites do corpo da personagem, acabando por se dispersar para outros corpos,
mergulhando-os numa orgia repugnante. Outros filmes rodavam histórias directamente
ligadas ao controle da mente sobre o corpo e em 1986, Cronenberg realizou “The
Fly”, sobre as mutações fisicas e mentais de que um cientista é vitima, depois
de uma experiência mal sucedida.
“Naked Lunch” enquadra-se numa trilogia específica, que embora não seja indiferente
ao tema do corpo, explora abertamente a questão da capacidade da mente para
controlar o nosso comportamento e o nosso destino. A tríade é composta por “Videodrome”
em 1982 e “Dead Ringers” em 1988. O primeiro é um dos mais complexos filmes
de David Cronenberg, no qual o realizador consegue fazer confluir a fantasia
na categoria do real, a ponto do espectador, tal como o protagonista da história,
não ser capaz de estabelecer os limites para cada conceito, experimentando violentas
alucinações de cariz sexual. “Dead Ringers” é baseado numa história real, a
de dois irmãos gémeos cuja consciência pugna por estar dividida em dois corpos.
O ano de 91 é marcado por “Naked Lunch”, um filme no qual os livros e a vida
de William Burroughs se fundem, para contar a história de um exterminador de
insectos que dependente da droga, consegue alucinar a sua existência e a sua
produção literária. Reconhecido pela sua capacidade para criar trabalhos que
exploram de forma inegável a alucinação e o fantástico, na sua adaptação de
“Naked Lunch”, Cronenberg ofereceu-nos uma obra dura, despojada de palavras
onde as imagens se fazem valer por si e nos permitem a interpretação. Os planos
equilibrados, as movimentações suaves da câmara, a iluminação que projecta sinuosas
sombras sobre os rostos das personagens, a decoração de cores pouco reais, a
interpretação dos actores quase bressoniana, os elementos fantásticos
que interagem com a realidade como se fossem organismos normais dentro dela,
e a música de inspiração jazzística encarregam-se de conceder a esta
obra toda uma atmosfera kafkiana [8]
. Comparáveis a Méliès, os trabalhos de David Cronenberg antecipam as transformações
da sociedade, recorrendo às maravilhas da técnica para criar metáforas que habilmente
se transformam em realidade. Debruçando-se sobre a imagem do corpo, Cronenberg
constrói uma semiótica muito particular à volta deste tema, usando as suas modificações
possíveis para representar os constrangimentos subjacentes às alterações que
o Eu tem vindo a sofrer. A dissolução da identidade do Eu, é igualmente um paradigma
das consequências da nossa existência, perante uma contemporaneidade individualista
e altamente tecnológica. A dualidade mente/corpo, é substituída pela trilogia
mente/corpo/droga, que resulta no entorpecimento da nossa noção de existência,
gerando fenómenos de violência, sexualidade, desejos incontroláveis e a própria
morte.
2. “Naked Lunch” a história
“- Bom filme.
- Sim – digo eu. – Bastante estranho.
- Não tão estranho como isso.
- Acho que não era essa a ideia.
- Mas o filme tinha alguma ideia?
- Acho que sim – digo eu. – E só isso já o torna estranho.”
In “Filmes Tristes”, de M. Lindquist
Com a assinatura inigualável de David Cronenberg,
“Naked Lunch” é um dos mais bizarros e desconcertantes filmes dos últimos anos.
Adaptado ao cinema a partir do romance não menos perturbante de William S. Burroughs,
o filme resulta numa obra peculiar, que não encontra paralelo entre o livro
e as imagens. O livro é um retrato da Interzone,
uma cidade ficcional na qual os homens se transformam em insectos durante o
sexo, o destino para onde Burroughs escapou depois de na vida real, acidentalmente,
ter morto a sua mulher. "Naked Lunch" é uma história sem enredo definido,
que David Cronenberg ousou adaptar, inventando novas formas para o cinema.
A liberdade criativa do realizador, baseada num fascínio pela vida e obra de
William Burroughs resultaram num filme que ultrapassa as expectativas, ao transpôr
para o grande écran a imagética do universo de Burroughs, povoando as imagens
da nossa experiência com fragmentos do mundo.
1953. Nova Iorque. "Naked Lunch" é um filme que nos conta
a trajectória de Wiliam Lee, um intelectual viciado na droga que se tenta afastar
do seu meio, para levar uma vida banal. Trabalha como exterminador de insectos,
tentando negar a sua personalidade e capacidade criadora. É esta acção de fuga
que vai sustentar a trama do filme e o desenvolvimento da personagem de Lee.
Enquanto procura manter-se «limpo», a sua mulher embarca numa rota de dependência
do veneno que o marido utiliza no trabalho. Joan Lee utiliza o pó insecticida
para se drogar e convida o marido a participar no novo prazer que descobriu.
Joan é-nos apresentada num estado alienado, com o aspecto degradado do corpo
de um drogado. Em desespero, Bill procura um especialista, Dr. Benway, um
verdadeiro charlatão que lhe fornece uma droga feita a partir do corpo de uma
centopeia brasileira, muito rara. A sensação de desassossego aumenta na perplexidade
das alucinações que começam a tomar forma. Lee é detido pela polícia, e na esquadra
é confrontado com um surpreendente insecto que fala por uma boca de formato
anal. A criatura assume-se como sendo sua chefe e dá-lhe ordens precisas para
assassinar a sua mulher, revelando-lhe que Joan é uma espia, uma agente encoberta
pelas formas humanas ao serviço da Interzone. Nesse dia, Lee chega a casa e encontra a mulher na cama com um dos seus
melhores amigos, enquanto outro lê para os dois amantes uma passagem do livro
"Naked Lunch" de William S. Burroughs. Facto no mínimo curioso, e
se atentarmos que é o capítulo “The Market”, onde Burroughs descreveu a fauna
que existia na Interzone, ficamos coma terrível sensação de que algo nos ultrapassou. Perante o
cenário que encontra, Bill Lee acaba por se injectar com a substância que o
Dr. Benway lhe havia entregue, e partilha do êxtase comum que se vivia em sua
casa. Resolve divertir-se com a sua mulher e tenta acertar num copo que ela
colocou em cima da cabeça. Através de um espelho, o espectador pode observar
o momento trágico em que a bala disparada atinge a cabeça de Joan, que morre
instantaneamente. É então que a rota de devaneio começa, com Lee a entrar numa
alucinogética viagem pela Interzone, num roteiro escapista em que experimenta todo o
tipo de alucinações. Em "Naked Lunch" a mente acaba distorcida pelo
uso do pó insecticida, levando o protagonista a embarcar numa rota delirante,
sob a capa de agente secreto na quimérica Interzone. A dependência atira-o para uma psicótica relação
de escravatura, que inclui encontros com figuras resultantes de estranhas metamorfoses,
na qual a sua máquina de escrever lhe dá as coordenadas para as suas missões.
A confusão instala-se: será "Naked Lunch" de David Cronenberg
um filme autobiográfico de Burroughs? Cronenberg não se limita a folhear "Naked
Lunch", usando para a construção da narrativa fílmica algum material sobre
a própria vida de William s. Burroughs. Depois da morte da mulher, Burroughs
fugiu para Tânger, e escreveu o romance "Naked Lunch", onde representa
todo o processo criativo de um escritor. O poder imaginativo da mente afectada
pela droga está presente em quase todas as cenas do filme, criando uma excentricidade
relativamente à ficção científica. A viagem pela mente das personagens, como
havíamos visto nos filmes “The Dead Zone“ ou “The Fly”, onde o corpo se assume
se assume como protagonista, confere-lhe uma inquietação pelo exagero dos devaneios
resultantes do estado de psicose em que William Lee mergulha. Este alheamento
da realidade, transporta-nos para um mundo ficcional com uma estrutura semelhante
ao mundo real, mas que no seu âmago se mostra perverso, e numa busca das nossas
emoções e prazeres mais caros, explora as capacidades aparentemente ilimitadas
de abstracção do ser humano, criando um universo muito próprio, onde é difícil
distinguir a realidade da alucinação. A sua criatividade desperta, em consequência
da morte da sua mulher, e vai tentar reparar a tragédia pelo acto criativo
de escrever. A história avança e Lee toma contacto com uma estranha criatura
que o introduz na Interzone. O Mugwump, alicia Lee a entrar neste
estranho mundo e para escapar às malhas da lei, Lee embarca na «viagem». Troca
a sua pistola por uma máquina de escrever e é na loja de penhores que podemos
perceber claramante a divisão entre as duas partes do filme. Na montra da loja,
o empregado substitui a máquina de escrever por uma estranha escultura: o pé
de uma centopeia. Neste momento abandonamos a realidade para entramos no mundo
ficcional que Lee vai criando à medida do seu desespero. Este universo não encontra
paralelo, confluindo as noções de alucinação e realidade a ponto de sermos incapazes
de as difenciar. O conceito de realidade já foi ultrapassado por este universo
que só Lee é capaz de reconhecer e desenvolver. A veracidade do mundo que circunda
a cidade de Nova Iorque deixou-se ultrapassar pela alucinação de Lee, num potente
conjunto de imagens tomadas como percepção, muito embora não tenham objectos
que lhes correspondam. Na primeira parte do filme, Cronenberg apresenta-nos
as personagens e cria a divisa que irá suportar o enredo. Nesta segunda parte,
desenvolve uma intriga complexa, num universo absurdo e surrealista que só as
personagens podem reconhecer como real. Cronenberg não deixa nunca as amarras
da realidade, provando em vários momentos as alucinações do herói. Na Interzone, Lee trabalha como agente encoberto,
para relatar uma série de estranhos acontecimentos. Integra uma organização
que não conhece, sendo obrigado a alterar a sua personalidade e orientação sexual.
“I want you to type a few words into me, words that I’ll dictate
to you” [9] . A frase é de Clark-Nova, a máquina
de escrever que Lee utiiza, e com quem desenvolve uma relação peculiar. A máquina,
com o formato de uma barata, encarna comportamentos demasiado humanizados: pensa,
fala e reage, esbatento as diferenças entre o humano e o inumano, tal como
todas as criaturas que têm contacto com Lee e o incitam na tomada de decisões
e atitudes. “First sentence is: homosexuality is the best all-around cover an
agent ever had” [10] . Esta relação com a sua máquina de escrever está numa subordinação directa
com o consumo de droga, da qual Lee vai cada vez depender mais. Os seus braços,
negros de tantas picadas, revelam a sua dependência narcótica. Deambula por
esta estranha cidade, misteriosa e decadente, em tudo semelhante à cidade de
Tânger, onde se cruza com as mais variadas criaturas e personagens. Hans que
lhe fornece a droga para alimentar a sua narcose, Ives Cloquet, um suiço refinado
e hedonista, atraído pelos jovens e as relações que com eles vai mantendo, o
adolescente Kiki, com quem Lee desenvolve o seu lado homossexual e Tom e Joan
Frost, um casal de escritores norte-americanos. Fechado no seu quarto de hotel,
deixa que a máquina de escrever, oriente a sua escrita e a sua existência ébria.
3.Good Girls go to Heaven, Bad Girls go Everywhere: a irresistível subliminação
narcótica, a entrada na Interzone
“N’importe où, n’importe où hors du monde” [11]
A conotação de exotismo que se dá a um certo consumo de droga, quando consumida por grupos bastantes restritos, está muito afastada do flagelo da toxicodependência - sintoma de crise social que nos atormenta há décadas e tem assumido dimensões muito preocupantes. O homem sempre procurou modificar as suas sensações, o seu humor e as suas percepções, assim como a sua orientação em relação a si mesmo e com relação ao seu meio. Estas «férias para fora da realidade» como A. Huxley referiu, têm feito parte da história da humanidade e seja o alívio das dores, a redução da ansiedade ou a tentativa de obter modificações no modo normal de percepção e de orientação frente ao seu próprio meio, a utilização de substâncias psicotrópicas serve para obter novas intuições, aumentar a sua criatividade e a intensidade das experiências sensoriais e estéticas na produção de um certo estado de narcose. Independentemente da razão, muitos são os que necessitam de um alheamento episódico da realidade. Abstraírem-se do seu mundo numa evasão puramente hedonista. De facto, os efeitos que essas substâncias produzem são uma motivação para a sua utilização, fortalecendo a crença no realismo dos efeitos produzidos por essa substância.
Há certamente uma predisposição
psicológica para o desfrute dos efeitos quando estes já são conhecidos. A sensação
mais próxima - a excitação pela velocidade - é apenas um dos parâmetros semelhantes
ao tentar atingir diversos graus de embriaguês, de atordoamento, de euforia,
aquela sensação de estar a voar ou de vertigem, como quando se rodopia até perder
o equilíbrio, quando se jejua ou quando se respira profunda e rapidamente
[12] . “Naked Lunch” é um filme que se inspira em factos passados
há quarenta anos atrás e num «projecto de escrita», como o próprio Burroughs
o define. Estávamos em plena Beat Generation. <
Mais do que um movimento cultural
e social, a Beat assumiu-se como um estilo de vida, uma forma de resistência,
de provocação, de valores e contra valores, de onde emerge a escrita crua, friamente
realista e sarcástica de Burroughs. Neste contexto, a relação sexual era determinante,
especialmente na homossexualidade, numa reivindicação do novo corpo amoroso.
O mesmo se passava no que diz respeito ao uso da droga: existiu todo um espectro
de experiência de drogas que chegou à autodestruição mais ou menos consciente
e ao uso experimental de alucinógenos, na procura de uma mística capaz de produzir
o que a lucidez artística era incapaz. A loucura que caracteriza os artistas
não é mais do que uma intimidação e desilusão em relação ao mundo e às pessoas,
à sociedade em última instância. A procura de novos prazeres acaba por ser um
desafio ao perigo que deles advém. Os paraísos artificiais que os constituem
esboçam-se na libertação espiritual que a embriaguês manifesta, estados da sensibilidade
mais vivos, capazes de uma produtividade sem igual, contra o «politicamente
correcto». Esta purga da consciência, obriga a dizer o que se sente, a viver
de maneira excêntrica, à margem do que é socialmente aceite.
Em “Naked Lunch” a viagem resulta
de um certo entupimento mental com todo o tipo de substâncias, criando uma realidade
distorcida, semelhante em alguns casos a uma verdadeira trip psicadélica.
Cronenberg relata a sua primeira experiência com LSD como uma grande trip,
“uma experiência reveladora, porque eu pensava que aquilo que nós consideramos
como realidade é a penas uma construção dos sentidos. Pode mostrar-te que existem
tantas realidades quantas consigas viver, e que as podes mudar e controlar” [13] . De facto, só
as drogas têm a capacidade de por em causa a identidade do indivíduo, trazendo
por vezes à consciência a identidade perdida no subconsciente. E se “as drogas
podem ser utilizadas na qualidade de excitantes e estimulantes (...) tanto servem
para diminuir como para aumentar a sensibilidade” [14] , resultando num espectáculo de embriaguês, pelas
alterações do espírito que a droga proporciona. Certas substâncias “modificam
o poder que há em cada um de nós para criar um universo sufocante, no qual a
metamorfose física, que não é reflexo da dependência mental, aniquila a liberdade
do sujeito” [15] .
Na relação de Bill Lee com o mundo, impera o inesperado, num constante efeito
narcótico a que, apesar da elevada estimulação dos sentidos, corresponde uma
apatia, observável nas cenas em que Lee se detém a observar, de olhar vago e
parado, algo que nunca percebemos de que se trata.
É a angústia criativa
do escritor em conexão com o seu mundo.
William S.Burroughs foi testemunha
do delírio que as drogas podem provocar, recordando-o através de apontamentos
e notas que foi tomando ao longo do tempo e que são um fiel retrato do universo
de um junky. “O drogado necessita cada vez de mais junk para manter
a forma humana. Junk significa o poço do monopólio e da posse. O drogado
fica de parte enquanto as suas próprias pernas o levam directamente à reincidência.
Quanto mais junk se utiliza menos se tem e quanto mais se tem mais se
usa. Todos os alucinogéneos são considerados sagrados pelos os que os ingerem
(...) Junk... o produto ideal, a mercadoria do sétimo céu. Não há necessidade
de se saber vender. O próprio comprador rastejará pelo cano de esgoto, implorando
a compra... O traficante de junk não vende o produto ao consumidor, mas
o consumidor ao produto. Não melhora nem simplifica a mercadoria.
Degrada e simplifica o cliente” [16] . Foi este estado de «doença»
que Burroughs chama à toxicomania, que lhe permitiu um certo atordoamento dos
sentidos, uma deriva da consciência que não conhecia o início ou o fim. O tempo
perdeu o seu conceito e o espaço tornou-se um mundo mágico no qual ao autor
vagueou, encarnando o seu alter-ego, William Lee.
Em “Naked Lunch”,
Burroughs foi escrevendo a sua «viagem», e o livro resultou numa obra ímpar,
de estrutura arrojada. A forma como traduziu as imagens da sua consciência resultaram
numa prosa discricionária, com transições abruptas e ordem aleatória, reflexo
da tormenta alucinogética que criou um novo género literário.
“Naked Lunch” rompeu com a tradição
norte americana e tornou-se uma espécie de livro de culto, emblema de uma geração,
que David Cronenberg escolheu para adaptar ao cinema. Filmar o livro de fio
a pavio seria incongruente, além de impossível. O filme resulta de uma mistura
que Cronenberg foi cozinhando a fogo lento: envolveu elementos deste livro de
Burroughs, bem como de outras das suas obras, misturando-os habilmente com a
vida real, acrescentando ainda algumas alucinações muito pessoais.
O «herói» do script de David Cronenberg é William Lee, um homem que havia
deixado a droga e a produção literária para se tornar um cidadão comum. Abraça
a profissão de exterminador de insectos e acaba por descobrir que a mulher Joan
tem vindo a consumir o pó insecticida. A frase “It’s a Kafka high. It makes
you feel like a bug”, revela-nos o estado de dependência de Joan, que Cronenberg
materializa pelas imagens, ao mostrar Joan a respirar para cima de uma barata,
que cai morta. Até aqui as semelhanças com a vida de William S. Burroughs ficam-se
pelas coincidências, mas são as correspondências entre as duas artes – literatura
e cinema – que deixam perceber no trabalho de Cronenberg a marca indelével
do escritor norte americano. Não só em “Naked Lunch”, como noutros filmes, a
temática de Cronenberg revela um estilo «Burroughsiano», que neste caso transpira
o espírito do livro. Com “Naked Lunch”, ninguém sabia o que esperar, pois a
obra em si era tão complexa, que permitiu a Cronenberg uma imensa liberdade
criativa, conduzindo a narrativa de uma forma especial, cruzando em variados
momentos a realidade e a ficção, impossibilitando o espectador de fazer a destrinça.
A história do exterminador deixa-se confundir com os vários níveis de realidade
que encontramos no filme: aquela que habitualmente concebemos como verdadeira,
aquela que faz parte dos elementos de ficção próprios do cinema, e a que o protagonista
cria, o seu mundo pessoal, derivado de potentes alucinações.
A alucinação, estimulada pelo uso
da droga, destrói a realidade que aglutina e asfixia Lee – a sua personagem
sente-se rodeada de insectos humanos e animais, numa cidade opressora e repressora.
É a fuga que dá o mote à narrativa fílmica. Essa fuga, fisicamente impossível,
consegue-se pela criação de uma nova realidade, diametralmente oposta à que
conhecemos como verdadeira. Tal projecto só pode conseguir-se pelo recursos
à estimulação dos sentidos para criar imagens puramente ilusórias. Quando Lee
descobre o estado de dependência em que Joan se encontra, começa também a consumir
o pó que utilizava no seu trabalho de exterminador. É por esta altura que a
riqueza visual começa a tomar conta daquilo que pensamos ser a realidade: Lee
é abordado por um agente da autoridade que é um estranho insecto. A partir daqui,
Cronenberg faz dissolver a metáfora que sustenta o denominador comum entre os
humanos – a aparência física - indiferenciando neste ser o humano e o inumano.
“Eu quis que o mugwump fosse semelhante ao corpo de um drogado, mais
humano do que no livro. Eles (as criaturas) falam, por isso tive de lhes criar
bocas. Fui praticamente provocado a criar coisas. Tal como os insectos que são
máquinas de escrever – que não estão no livro – mas que Burroughs adora” [17] . O corpo, que
Cronenberg tem orientado de acordo com uma suporta divisão do mundo e das suas
categorias, manifesta uma marca clara do monstro com o seu outro, na tendência
para a diluição do significante a favor do corpo amorfo, esbatendo as diferenças
perante o Mesmo, quer seja um hermafrodita ou a representação de uma figura
dos dois sexos sob uma aparência que transcende a normalidade e o humano, absorvendo
os signos pelo seu contrário, transformando o próprio corpo em signo delirante [18] , que significa
alternadamente, tudo e nada. O corpo é um conjunto de lugares onde a ordem se
revela como conflitual, e o lugar do encontro ou da coincidência de forças antinómicas.
Quando o corpo de um outro, ou um outro corpo intervém, o jogo das diferenças
atinge a sua máxima glória. O corpo é de facto, o lugar do duplo ou o lugar
do duplo onde a ordem se revela como conflitual, ele é de facto o campo onde
se afrontam objectivos tão inconciliáveis como a realização do prazer e a conservação
da vida. Inconciliáveis porque o prazer, como efeito de ruptura, não cabe na
coerência da ordem orgânica; porém, tudo se passa como se o prazer tendesse
para a dissolução da ordem orgânica. A experiência do prazer é um fenómeno de
ruptura que irrompe na coerência do sistema: a soma das pequenas diferenças
entre a percepção, a recordação e a espera tem como efeito a anulação de uma
ordem, efeito esse que se revela como sendo, por natureza, ilimitado
[19] .Pode tornar-se alvo de uma excitação de tipo sexual e é, virtualmente
uma zona «erógena». E todas estas zonas só têm uma função, a de produzir prazer
pelo efeito de ruptura que nelas se manifesta; a soma das «pequenas diferenças»
que mostram que não há nada que coincida perfeitamente – a soma dessas diferenças
constitui a ruptura onde o prazer se produz. O corpo de Cronenberg é um pólo
de comunicação onde tudo é referente de um todo que cabe a nós decifrar. As
figuras pelas de náusea parecem querer dizer qualquer coisa, numa expressividade
particular que acumula fórmulas humanas e animais, num lugar de metamorfose
irremediável. Bill Lee, rodeado de máquinas que são verdadeiros actores – quer
pela sua pertinência para a história, quer pela sua participação para o significado
do filme – é a imagem do «corpo sem órgãos», um fantasma à procura do seu corpo,
figura de um certo horror do orgânico, das funções naturais e da sexualidade
que tão bem caracterizam o trabalho de Cronenberg, numa imagética recheada de
misoginias, homossexualidade, atracção sexual, fetichismo e mutilação do corpo
e da própria mente. A originalidade de Cronenberg vem da extrema excentricidade
na abordagem que faz do corpo humano. É a partir do corpo físico que o autor
estrutura o resto, condicionando e afectando as extensões e projecções. Trata-se
de aceitar a existência e as regras da vida, pervertendo-as a nosso favor para
satisfazer um desejo do devir. Na história, são as transformações físicas decorrentes
da dependência que fazem desaparecer os contornos humanos das personagens, enviando-as
para um submundo degradante, em que o corpo - seco e desfigurado - é apenas
um veículo para a satisfação da necessidade, e a mente um balão flutuante num
universo criativo. Parafraseando Baudrillard, podemos dizer que Cronenberg consegue
que a linha de demarcação do humano se torne cada vez mais flutuante, à medida
que mergulhamos no biológico, à medida que saltamos a barreira da espécie, desregulamentando
as regras morais e simbólicas que têm regido o humanismo [20] . Toda esta iconografia em torno
das mutações físicas e dos insectos provém directamente da obra de Burroughs,
numa proximidade entre a realidade e a fantasia. O panorama da Interzone,
repleto de insectos e monstros prova que toda a imaginação do escritor se concretiza
perante as formas do mundo real, desafiando-as no permanente conflito que se
desenrola na consciência de William Lee e que dá alento à construção da narrativa
de “Naked Lunch”. O contacto com o «estranho» agente da autoridade é a porta
de entrada para uma nova forma de encarar a realidade, que impossibilita o espectador
de distinguir o real do irreal, por perceber que o protagonista perdeu a razão.
Cronenberg acumula índices que nos provam que William Lee está a ser vítima
das suas próprias alucinações. Apesar de termos mergulhado num universo único
desde o início do filme, é quando Lee recebe ordens para matar a sua mulher
que a décalage da realidade assume contornos preocupantes. Começa a viagem
pela Interzone, uma cidade imaginária onde Lee é confrontado com um universo
de pesadelos povoados por insectos, desejos repugnantes e conspirações secretas.
Crê que é um agente secreto ao serviço de um insecto. Começa a receber ordens
da sua máquina de escrever, uma barata com alguns contornos de humanidade. A
desorientação de William Lee é visível no consumo abusivo que faz das drogas,
desde um narcótico feito a partir de uma rara centopeia brasileira até ao sémen
dos mugwump (uma das estranhas criaturas que habitam a Interzone).
Esta desorientação cresce à medida da culpa que invade a personagem, depois
da morte – aparentemente acidental – da sua mulher Joan. Quando descobre que
jamais se livrará do peso da sua culpa, submerge num estranho universo surrealista.
Envolve-se com outro casal da Interzone, Tom e Joan Frost, os dois escritores
com quem Lee irá manter uma conturbada relação, especialmente pela obsessão
que desenvolve por Joan, uma cópia do semblante da sua falecida mulher. Por
esta altura o filme é uma mistura do mundo de Burroughs e de Cronenberg.
“Nothing is true, and everything is permitted”
As obsessões de Cronenberg já estão
a nú e a vida e obra de William S. Burroughs são plenamente indistintas, a ponto
de não sermos capazes de distinguir onde começa e acaba cada uma delas. Remetendo
em muitos momentos para a vida de Burroughs, “Naked Lunch” é um filme que se
centra na questão dos mistérios inerentes à criação artística, personificados
por Lee, marginal e toxicómano que retornou à literatura em busca da redenção,
numa tentativa permanente de exorcizar os fantasmas da grande tragédia que se
abateu na sua vida. Bill Lee é a representação da origem de uma «certa vontade
de criar», que ocorre depois de balear a sua mulher na cabeça. É isto que o
leva “a criar o seu próprio lugar - Interzone - como se de alguma forma
essa morte ocorresse uma e outra vez”
[21] .
Em “Naked Lunch”, os fragmentos
da vida de Burroughs remetem-nos para a sua retirada da realidade pelo uso de
drogas. Burroughs vivia perante uma constante ameaça tentando por todos os meios
escapar-lhe. Tomou contacto com o próprio invasor, que manobrou os seus pensamentos
para uma eterna luta, da qual só podia livrar-se pela escrita [22] . Jünger afirma que “ o pensador
ou o artista, se está em forma, conhece tais fases em que uma nova luz o invade.
O mundo começa a falar e a responder ao espírito num excesso exuberante. (...)
Esta «forma» é independente do bem-estar físico, opondo-se-lhe, às vezes, como
se um estado de debilitamento facilitasse o acesso das imagens à consciência“ [23] . Burroughs, perseguido
pelos espectros do acidente passado precisava de subtrair o peso da culpa, expiando
os seus pensamentos num reduto alucinatório que o deixava esquecer e criar um
amplo mundo novo. Esta fuga produzia-se na escrita, que Burroughs operou intensamente,
para se expurgar do que o assolava. A escrita, algo que tradicionalmente se
representa como vindo de dentro para fora, uma criação do autor que se expõe
ao mundo, é pervertida em “Naked Lunch”, para adoptar uma nova perspectiva que
a traz para o exterior, numa dissolução das fronteiras entre as coisas. Existe
um certo sentimento de esquizofrenia, fomentada pela criação do mundo como um
cenário claustrofóbico, pleno de universos interiores que não abandonam nunca
a mente do herói. O herói de Cronenberg vê-se confrontado com o seu imaginário
em imagens surrealistas que são a Interzone, a cidade que revela os meandros
da sua/nossa consciência. É a morte de Joan que leva Lee até à «sua» Interzone,
um ambiente totalmente criado pelo próprio. Quando escreve, o local físico onde
Lee se encontra é na realidade Nova Iorque, a cidade de onde nunca saiu e onde
decorreram as filmagens. Enquanto personagem da narrativa que ele próprio compõe,
Interzone é o espaço ficcional, num oscilar entre vida real e
ficção, que Cronenberg consegue tão bem retratar. O filme decorre em dois cenários
diferentes: Nova Iorque em 1950, que Cronenberg caracterizou com uma aura de
film noir e a Interzone, que com todo o seu misticismo característico
se materializa com o aspecto da cidade de Tânger. Sem nunca ter saído da mente
de Bill Lee, a Interzone resulta numa extensão dos desígnios da mente,
com todas as perversidades e abismos que lhe são próprios.
As criações de Cronenberg, profundamente
viradas para o interior do ser humano, conseguem criar universos paralelos.
A cidade de Tânger, no seu exotismo, não existe. Cronenberg explica que aquela
que construiu, “é mais fiel à cidade, completamente artificial” [24] . Esta versão decadente da cidade,
é uma das muitas referências ao género film noir, que encontra reflexo
no vestuário, na música, na iluminação e na trama de mistério que articula a
narrativa. Nos primeiros trinta minutos, Cronenberg apresenta as personagens,
situando-as na cidade de Nova Iorque. Depois, a Interzone é apresentada
com uma dimensão própria, envolta numa certa bruma e atmosfera musical. É aqui
que o espectador percebe que a existência banal de Lee terminou. A negação da
sua identidade e criatividade é-nos mostrada da forma mais desapaixonada possível.
Cronenberg não evoca qualquer emoção durante a apresentação das personagens,
nem quando levanta o véu da trama que se vai seguir. A manipulação que condicionou
a morte da mulher de Lee, acaba por o conduzir ao estado de alucinação capaz
de produzir uma nova vida, com todos os elementos que lhe são necessários. O
panorama da Interzone, repleto de insectos e monstros, prova que toda
a imaginação do escritor se concretiza perante as formas do mundo real, no
permanente conflito que se desenrola na consciência de William Lee e que dá
alento à construção da narrativa de “Naked Lunch”, enquanto Lee busca desesperadamente
uma forma de recuperar as sua vida.
4. A embriaguez no paraíso artificial da Interzone: a misoginia na ambivalência
das relações
A sexualidade faz parte da nossa existência, desempenhando um papel privilegiado
na nossa relação com o mundo. Indissoluvelmente ligada à nossa imaginação, a
sexualidade é uma representação do homem com o seu mundo, vivida de forma real
e imaginária. “Há osmose entre a sexualidade e a existência, ou seja, dizer
que a existência se difunde na sexualidade, reciprocamente a sexualidade se
difunde na existência, de sorte que é impossível indicar, para uma decisão ou
uma acção dada, à parte da motivação sexual e das outras motivações, impossível
caracterizar uma decisão ou um acto como sexual ou não sexual” [25] . A sexualidade não é somente física, não é somente genital.
Ela é desencadeada pelo desejo e incarna-se no corpo que transporta a existência
[26] . A bissexualidade, presente numa sexualidade ambivalente é outro dos
temas constantes em David Cronenberg. A perversidade em todas as suas formas
está presente, tal procura de extremos, possibilidades e limites, como se um
fantasma não deixasse outra alternativa senão a destruição, que os escritores,
de expressão vaga no rosto, reconhecem pelo seu cheiro adocicado. Como um círculo
que se fecha sobre si mesmo estes comportamentos que têm na sua génese uma forte
motivação escapista, tornam-se “uma cultura de servidão, sem a presença do outro,
uma vez que cada um se substitui ao outro no papel de opressor. É o cúmulo da
servidão voluntária” [27] .
Não se trata de sexualidade, mas de droga perversa que concretiza desejos e
fantasias. Em toda a narrativa, fílmica ou literária, ficção e realidade misturam-se
de forma magnífica. Entre as personagens criam-se relações de ironia e afecto
que propiciam toda a lógica sexual que lhes está inerente. A função tradicional
do sexo muda, e mudam também os pontos erógenos do corpo humano. O prazer retira-se
da exploração das novas formas do corpo, as fantasias eróticas são quase abstractas,
mantidas com base numa série de jogos de perversidade. A satisfação que obtêm
com estas novas aventuras sexuais vai muito além do simples prazer sexual, funcionando
como uma libertação total das suas emoções. A envolvente sexual sucumbe ao alheamento
do corpo, num conjunto de alucinações quimicamente estimuladas.
A mutação do corpo humano desencadeia a queda de tabus, vergonhas ou preconceitos,
traduz-se numa rejeição das formas mais tradicionais de expressão da sexualidade
para experimentar formas desiguais de viver e sentir. O poder de sedução, da
anatomia do corpo em estreita ligação com a produção imagética da narcose, desperta
interesses muito característicos no conformismo masculino – feminino. Essa relação
é determinante para um crescimento deliberado da perversidade das personagens,
que encontram na relação homossexual uma fuga ao modelo padrão, e nos corpos
desfiguradamente caracterizados, o potencial erótico do seu prazer sexual. Na
narrativa de “Naked Lunch”, Burroughs descreveu a Interzone como o lugar
da homossexualidade, num estado de permanente inconsciência. A perversão sexual
é exposta, ao mesmo tempo que se questiona as preferências pelo mesmo sexo,
como se a Interzone fosse “uma colmeia de sexo e negócio” [28] . É também pelo sexo que este filme se afasta
dos parâmetros da normalidade e nos perturba. A paranóia que as personagens
desenvolvem em torno dos vectores corpo-sexo-droga, numa estranha dependência
física que se afasta dos poderes narcóticos de algumas drogas, derruba por completo
as nossas fronteiras entre realidade e ficção, libertando o desejo, poluíndo
as margens entre o aceitável e o inaceitável, o possível e o impossível. Seguindo
o raciocínio de Junger, este efeito da droga age tanto sobre a acção como sobre
a contemplação, abrindo portas a paraísos artificiais onde as figuras centrais
da trama perdem a sua força interior, descaracterizam-se perante um desejo que
não preenchem por completo, fragmentando-se em torno das ligações que desenvolvem.
O sujeito transvia-se e busca mais do que pode ter, num desejo que é por natureza
descontrolado. O desejo insatisfeito, tão bem protagonizado pelo mito de Narciso,
compreende a satisfação/insatisfação que a droga proporciona. A embriaguez
dos sentidos torna-se cada vez mais ardente, imagem de uma espiral labiríntica
cujo preço do prazer é atroz e devorador. “O preço exigido pelo prazer não cessa
de subir; trata-se então de voltar atrás ou deixar-se arruinar, corpo e bens
(...) o puro e simples prazer já não chega”
[29] . A inconsciência do ser, perante o constante estado de embriaguez
proporciona novas experiências, uma atitude sexual que contorna a censura e
não conhece limites ou controle. A história concentra-se nas respostas estranhas,
muitas vezes chocantes de um grupo de pessoas que encaram novas ideias e formas
de estar, na redescoberta da sua sexualidade latente e uma nova vitalidade nos
seus corpos atrofiados de junkies. A homossexualidade está explícita,
muito embora Cronenberg fique longe da escrita implacável de Burroughs. A entrada
na Interzone implica uma atitude homossexual que Bill Lee aceita naturalmente,
talvez fruto da pressão e influência dos insectos que o rodeiam. Há no filme,
uma metáfora para a crise da identidade sexual. A repressão de desejos homossexuais
é caracterizada pela bissexualidade ambivalente e pelo extermínio das formas
de heterossexualidade, representadas pelo casal Bill e Joan Lee. Embora muito
reservado, Bill conviveu durante muito tempo com pensamentos e profundos desejos
homossexuais que sempre tentou reprimir. Joan quase que o força a tolerar esses
desejos em função do pó insecticida, sem o qual já não conseguia viver. A mente
de Bill entra num verdadeiro turbilhão e a revolta avassaladora conduzem-no
a matar a sua mulher, destruindo simbolicamente a sua heterossexualidade. Os
contornos da sua atitude são obscuros demais para percebermos os trilhos da
sua sexualidade, pois Bill não chega nunca a assumir a sua homossexualidade,
refugiando-se sempre na heterossexualidade, desta vez com Joan Frost, uma mulher
que conhece na Interzone e que a seus olhos é igual a Joan Lee. A heterossexualidade
fundamenta-se na reprodução da espécie, ao passo que a homossexualidade é a
sexualidade no seu estado mais puro, que não se justifica senão por ela mesma.
Esta ansiedade que as personagens de Cronenberg revelam em relação à homossexualidade
poderá espelhar-se nas figuras grotescas com que a mesma é representada. Seguindo
a ideia de Burroughs, que associa sempre os insectos a algo de negativo, Cronenberg
criou figuras de aspecto repugnante, semi-répteis com formas e atitudes humanas.
Em "Naked Lunch", as figuras masculinas revelam características tipicamente
femininas, como a timidez, a fragilidade e a insegurança. A misoginia é um tema
recorrente na filmografia de David Cronenberg, um fascínio paralelo à sua preocupação
com o corpo, na sua evolução pela simbiose, transformação parasitária e mutação.
Esta composição evidencia-se também em “Naked Lunch” , na figura de Joan Lee,
pela atitude inatingível que nutre pelo o seu marido. Mais do que as mulheres,
Cronenberg critica a heterossexualidade, representando a mulher como o mal latente,
numa luta entre a misoginia e a ambivalência sexual. Joan é uma metáfora da
figura mítica de Eva, que se deixa tentar, não pela serpente mas pelo pó insecticida.
Nesta relação, o pó torna-se mais forte, e Joan converte-se numa viciada, desrespeitando
todos os preceitos morais que até aí conduziam a sua vida. A infidelidade toma
forma com um dos amigos de Bill (enquanto outro lê para os adúlteros).
A corrupção do homem pela figura masculina atinge o auge quando Joan tenta seduzir
o marido para o consumo do pó insecticida, muito embora assuma no final do filme
a forma da salvação, pois sem Joan, Bill Lee não consegue escrever uma linha.
O paradoxo está presente, se não atentarmos aos dois lados da história: a contradição
desvanece-se quando percebemos a ambivalência do ser humano perante o mal que
seduz pela repugnância, tornando-se necessário.
Embora resistente, Lee embarca também nas maravilhas do pó de pireto amarelo,
alucinando a sua existência. Muitas vezes é difícil perceber a diferença entre
o real, a ficção e a alucinação, por isso, quando Lee é induzido a matar a mulher
por um insecto que conhece na esquadra, depois de ter sido apanhado na posse
de pó insecticida, ainda não se percebem as diferenças entre o mundo real e
o mundo de Lee. Depois de matar a mulher, a abordagem por seres estranhos continua,
e desta vez Lee é assediado por um mugwump, uma criatura grotesca, que
lhe diz para escapar para a Interzone onde deverá escrever um relatório
sobre o sucedido.
É através do relatório que a misoginia se começa a desenvolver, num tom pornográfico
personalizado pelas máquinas de escrever. Há uma certa ligação entre a violência
que vitimou Joan Lee e a pornografia que se segue, na transformação de máquinas
de escrever em criaturas hermafroditas, apropriadas de vaginas e elementos fálicos.
O ponto chave desta teoria da misoginia decorre de uma revelação da máquina
de escrever de Bill, quando afirma que «homens e mulheres são duas espécies
diferentes, com propósitos diferentes na Terra» [30] . As máquinas são uma alegoria da guerra dos
sexos, representando cada um deles pela voz que assumem. A Clark-Nova de Lee
tem uma voz masculina, enquanto a Martinelli de Tom Frost é vocalizada por uma
mulher. As máquinas encarnam também as duas espécies de insectos que existem
na Interzone – baratas e centopeias, homem e mulher, respectivamente
A alegoria vai mais longe e na imaginação de Lee, uma vez que a sua mulher Joan
correspondia a uma centopeia, uma agente especial cujo único intuito era matá-lo.
A ideia de fazer as mulheres pertencerem a outra espécie é uma forte representação
do Outro. Toda a simbologia em torno dos insecot pode funcionar como referente
do Outro. Tanto a mulher como o homossexual são a representação do outro, na
metáfora da barata e da centopeia. Lee embarca numa procura do seu Eu, mantendo
inequivocamente o eu e o outro fora da margem manipulada que existe em "Naked
Lunch" – a identificação não se completa nem na barata (o sexo masculino),
nem na centomeia (o sexo feminino), muito menos no hibridismo que existe na
homossexualidade enquanto representação do outro. Helmuth Plessner, filósofo
que se ocupou do papel próprio do corpo na vida humana concluiu que existência
física não é nem uma evidência nem uma coisa natural, mas uma relação entre
si (eu) e ele (corpo). Tal como todas as relações, é cheia de dificuldades,
pois não é só corpo, nem tem só corpo. É uma balanceamento entre ser e ter,
entre fora e dentro, enquanto síntese de todas as antíteses até aqui detectadas
no modo de conhecimento. Neste panorama, nem as mulheres nem os homossexuais
servem para desenvolver uma relação. A mulher pela sua alteridade vigente –
a centopeia – e o homossexual pela sua postura de assumida diferença em relação
ao sexo e à sexualidade. A atracção pelo mesmo não permite a relação de alteridade,
ainda que esta esteja virtualmente presente na desfiguração dos insectos que
povoam este universo irreal. O processo de mudança – que deriva da narcose e
crise de identidade – deixa o carácter das personagens num limbo flutuante,
do qual não conseguem sair nem observar progressos. O desespero é a única forma
de escape, que vai lentamente produzindo novas identidades, baseadas numa crença
imagética propiciante de novos conceitos e sensibilidades. A experiência do
mundo, conduz-nos quase sempre para fora daquilo que nos rodeia, resultando
muitas vezes num movimento sem destino traçado. A questão do outro, que nos
é exterior, implica o pensamento da heteronomia numa acção de transcendência
sob o signo da interrogação. A liberdade do pensador exprime-se na verdade,
por se alienar e ao mesmo tempo conservar a sua natureza e identidade, permanecendo
o mesmo, apesar das solicitações que o outro lhe apresenta. Lévinas reduzia
o outro ao mesmo, numa fórmula à qual se reduz a liberdade e a autonomia, que
equivale à conquista do ser pelo homem através da história. Nietzsche rejeitava
qualquer distinção entre este e outro mundo, afirmando que só existe um mundo,
rico de cores e movimentos, em perpétua mudança, da qual o homem participa,
valorizando o devir em relação à estabilidade e à permanência [31] . Nietzsche distinguia o mundo “verdadeiro”
do “aparente”, fundando-se na própria realidade, já que outro tipo de realidade
é indemonstrável. Além disso, o “verdadeiro ser” tem características do “não
ser” e o mundo real foi construído em contradição com o mundo aparente. Um outro
mundo é apenas um conjunto de fantasmagorias sobre uma vida melhor, para estabelecer
um contraponto com a vida “real” que levamos.
Na Interzone, outro casal vai corresponder a esta cisão entre o homem
e a mulher, numa espécie de horror às relações sexuais normais: Tom e Joan Frost
são dois escritores que ajudam a desconcertar a percepção de Bill Lee. Tom está
empenhado na morte da sua mulher, que vem preparando há muito tempo, através
de bruxaria e de um engenhoso plano para destruir a sua sanidade mental. Este
desejo de morte é estranho, uma vez que Tom e Joan vivem vidas independentes,
não existindo à partida razão para esta busca da sua destruição. O próprio
Tom é um verdadeiro paradoxo, por não admitir os factos. Ao desfiar o engenho
que criou, acaba por culpar a criada, a quem anteriormente tinha pedido colaboração
para os bruxedos. A noção de absurdo não é de todo nova nesta narrativa, uma
vez que também Bill Lee não consegue perceber se matou a sua mulher por acidente,
ou se realmente tinha intenção de o fazer. Acaba por se convencer da tese de
acidente por si criada. O caso de Joan Frost é explorado por Bill Lee da melhor
maneira possível, indiciando mais uma vez a sua culpa pelo acidente anterior.
É ele que vai acabar por salvar Joan Frost do cerco criado pelo marido, muito
embora acabe por ser ele a a matá-la mais tarde. Joan é o elemento essencial
da existência de Bill Lee, na representação do passado, no momento de cada cena
e nas cenas futuras. Cronenberg não deixa em nenhum momento que dela nos esqueçamos,
pela sua constante presença em cada momento criativo de Lee e no imaginário
que compõe a Interzone, pela figura de Joan Frost. Quando finalmente
consegue começar a reconhecer a perda, eis que se obriga – imaginando acatar
as ordens de um mugwump – a escrever um relatório sobre a morte de Joan,
revivendo esse momento constantemente, num sofrimento que alimenta a sua criatividade [32] e o leva numa fuga que retorna sempre ao
mesmo ponto. A narrativa construída na primeira pessoa faz mudar toda a realidade
e todas as regras em função do ponto de vista da personagem no qual Joan aparece
como uma abstracção, um ícone a partir do qual Lee irá tirar energia para eternizar
um momento que reproduz incessantemente.
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Internet:
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. BALDASSARRE, Angela, Cronenberg’s Naked Lunch – a Journey Beyond Reality
[1] HUSSERL
[2] INNEARARITY, Daniel, A Filosofia como uma das Belas Artes, Lisboa, Ed. Teorema, 1995, p. 15
[3] Idem
[4] Jean Luc Godard
[5] Wenders, A Lógica das Imagens, p. 45
[6] GEADA, Os Mundos do Cinema, pág. 102 Comentário falado de Wim Wenders sobre o diário de viagem filmado (Tokyo-Ga) rodado em 1983/84 in WENDERS, Wim, A Lógica das Imagens
[7] WEYERGANS, Tu e o Cinema, pág. 156
[8] GONZÁLEZ-FIERRO SANTOS, David Cronenberg: la estética de la carne, p. 187
[9] Quero que me escrevas algumas palavras que te vou ditar
[10] A primeira frase é: a homosseualidade é o melhor disfarce que um agente pode ter
[11] HUXLEY, Moksha, p. 23
[12] NOWLIS, A verdade sobre as drogas, p. 22
[13] SNOWDEN, Which is the Fly and Which is the Human, (revulsion nº 5), in http://zappa.users.netlink.co.uk/cronen.html
[14] JUNGER, Drogas, Embriaguez e outros Temas, p.34
[15] ROUYER, Les Faux Semblantes de l’ Interzone, in Positiv, p. 10
[16] BURROUGHS, Alucinações de um Drogado - «Refeição Nua», p. 9
[17] BALDASSARE, Cronenberg’s Naked lunch, a Journey Beyond Reality, in http://zappa.users.netlink.co.uk/cronen.html
[18] Seguindo neste caso, a linha de pensamento de José Gil
GIL in Metamorfoses do Corpo, p. 39 - 41
[19] LECLAIRE, desmascarar o Real, p. 54
[20] BAUDRILLARD, A Ilusão do Fim, p. 144
[21] GONZÁLEZ-FIERRO, David Cronenberg – La estética de la carne, p. 177
[22] “I live with the constant threat of possession, and a constant need to escape from possession, from control. So the death of Joan brought me in contact with the invader, the ugly spirit, and maneuvered me into a lifelong struggle in wich I have had no choice except to write my way out”, David CRONENBERG in RICHARDSON, Cronenberg Does Burroughs, p. 23
[23] JÜNGER, Op. Cit., p.33
[24] CRONENBERG in GRUNBERG, Sur les Terres de Conenberg, in Cahiers, 446, p.37
[25] MERLEAU-PONTY, Op. Cit., p. 197
[26] FONTOURA, O Corpo como Apropriação, p. 49
[27] BAUDRILLARD, A Ilusão do Fim, p.151
[28] BURROUGHS, Op. Cit., p. 189
[29] JÜNGER, Op. Cit., p.29
[30] “That women and men are different species, with «different purposes on Earth»” in SCOTT, David Cronenberg: Emergence of an Auteur, p. 5
[31] NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos
[32] ROUYER, Les Faux-semblants de l’Interzone, p.13