A FIGURA DO TRABALHADOR

Edmundo Cordeiro

"De qualquer modo, é bem mais fácil comunicar um pensamento novo a um homem que pensa do que comunicar-lhe a visão de uma imagem que aparece surpreendente. Ele vê o mesmo, mas não da mesma maneira."

Ernst Jünger

PREFÁCIO

"As despesas aumentam e os rendimentos diminuem, quando o espírito cognitivo triunfa sobre o perceptivo". A estas palavras de Ernst Jünger em Typus.Name.Gestalt podemos colocá-las no lugar de escudo ante a previsível estranheza — nossa, antes de mais — pelo facto de uma figura poder estar associada ao trabalho. Apesar de a figura ser um mundo de que Jünger detém a chave, pode-se supor nela a designação do espírito formativo do tempo. Ela é uma pura possibilidade na história ou no tempo, pressupondo-os — à história ou ao tempo — como matéria. Se ela é uma força formativa, nada mais temos a fazer com ela senão vê-la nas formas que nos rodeiam — a figura não explica nada, tal como não pode ser tomada como coisa.

Quanto ao trabalho, trata-se de um modo de vida no qual a figura do trabalhador se revela, aparece, ao "espírito perceptivo". O trabalho não é causador, ele é o próprio processo de causação da figura do trabalhador — temos a haver com uma metafísica da forma. Esse processo é uma Prägung, uma cunhagem. "Trabalhamos", sempre, com alegria ou tristeza, alienados ou exercendo o mais íntimo poder, sonhando ou bebendo água, existindo sobre o domínio da figura do trabalhador. Esta é uma imagem a que Jünger chega pela mediação dos homens ligados ao trabalho, e que representa a possibilidade do "trabalhador", uma figura humana, que não está dependente de uma forma determinada, como por exemplo o operário na oficina, ou o médico na sala de operações, ou uma classificação sociológica. Tal como a flora, em Goethe, já está antecipada na Urpflanze, a planta originária, a planta supra-sensível.

É à figura do trabalhador que este estudo pretende chegar por meio de sucessivas aproximações em que o debate com essa estranheza não está isento da ingénua perseguição de um pensamento naquilo que ele tem de próprio. E todas as explicitações só fazem sentido dentro dos limites desta tarefa votada ao fracasso.

Com todos os planos em permanente intercomunicação, móvel, assim deve ser entendido o triedro com que se procede a essa explicitação: a) a figura do trabalhador é em simultâneo visível e possível na experiência de trabalho, b) actuando aí a técnica enquanto elemento dinâmico com que a figura mobiliza o mundo e c) nesta mobilização planetária reside o traço original da figura do trabalhador, que prepara, propicia a sua irrupção histórica — "não tendo em vista de modo algum fundar as coisas e a sua essência, mas, apenas, dar conta de certo modo dos fenómenos e comunicar aos outros o que se reconheceu e viu.(1)"

 

Nota:

1. Johann Wolfgang von Goethe, Werke, 13, "Betrachtung über Morphologie", Hamburger Ausgabe. Citado da "Introdução" a Goethe, A Metamorfose das Plantas, trad., introd., notas e apêndices de Maria Filomena Molder, IN-CM, Lisboa, 1993, p.29.

 

 

Agradecimentos:

Ao Prof. Dr. José Augusto Bragança de Miranda a orientação dada a este trabalho, a sua disponibilidade, o seu incentivo e a sua faculdade de espera. Estou grato a Maria Filomena Molder pela entrega generosa de textos e traduções inéditas e pela correcção da tradução que vem em apêndice a este trabalho. Um agradecimento é devido ao Prof. Dr. Adriano Duarte Rodrigues e ao Prof. Dr. Aníbal Alves. E ao José Neves pelas leituras e conversas.

 

 

 

 I. INTRODUÇÃO (*)

  

1. a figura

 

A visão da figura do trabalhador tem a sua apresentação em Der Arbeiter, obra que Ernst Jünger escreveu no início da década de trinta. Este trabalho tem por objectivo apresentar tanto a visão dessa figura quanto a sua possibilidade: no facto de ambas não poderem ser consideradas senão indistintamente centra Jünger o seu esforço. Deve-se, por conseguinte, começar por responder à pergunta sobre o que é a figura: ela é a noção principal, o núcleo, de Der Arbeiter. Der Arbeiter, o trabalhador, é um nome, mas ele só surge como título da obra porque o trabalhador é a figura.

O subtítulo de Der Arbeiter é Herrschaft und Gestalt. A Gestalt — a figura — surge desde logo ligada à Herrschaft, à dominação: esta relação é essencial, visto que não há figura, tal como Jünger a concebe, sem o correspondente espaço, sem um domínio. Num domínio há dominação, mas com o termo dominação não se quer significar um aprisionamento daquilo que existe, ele refere-se, pelo contrário, às próprias possibilidades de desenvolvimento da matéria. Dominação significa que a potência está ligada a um ponto, uma figura, um todo concreto, se se pode dizer, significa que na figura não há separações — que não é estética, política ou económica, mas uma totalidade que não está sujeita a um principio único, mas a uma forma-princípio, uma figura que se desenvolve e em cujos desenvolvimentos se pode chegar à figura, ter a visão da figura. O trabalhador, enquanto figura, suporta muitas espécies de trabalhadores, estas são-lhe mesmo necessárias, visto que alargam o seu domínio. Isto resulta de que a potência — indissociável da figura — não pode, para Jünger, ser considerada em abstracto. Ela não é o tudo é possível. A figura é uma potência — e não é abstracta. Dominação seria o nome a dar ao estado, à condição <Zustand>, ao exercício dessa potência: "Domination est le nom que nous donnons à un état <Zustand> où l'espace illimité de la puissance <schrankenlose Machtraum> est rapporté à un seul point d'où il apparaît comme espace de droit <Rechtsraum>."(T104/A77) Esta potência da figura é uma força figurativa, um selo, um selo que marca todos os fenómenos, que são fenómenos, reconhecíveis, precisamente por essa unidade do selo: só a partir de uma unidade se podem distinguir as diferenciações fenoménicas e estas, por sua vez, reenviam sempre para aquela, melhor, é nestas que podemos chegar à unidade, reconhecê-la — reconhece-se o que esteve presente. A unidade não é, deste modo, uma subtracção, um resumo, uma síntese, mas pressupõe antes a passagem pelo múltiplo, pressupõe a sua variabilidade, não a fusão do múltiplo na unidade.

Numa carta a Henri Plard, Jünger escreve que o que está em causa na Gestalt é a matéria: a matéria é a densidade concreta que é representada pela figura — a força de uma figura, o seu poder, deriva dessa densidade: "La "figura", la Gestalt (esa palabra alemana es en sí de difícil traducción), es la representante del Espíritu del Mundo, del Weltgeist, para una época determinada; lo representa de manera dominante, entre otras cosas también en lo que respecta a la economía. El problema fundamental es el poder; él determina los detalles. (...) La Materia, no la Idea, es lo que está detrás de la representación del Espíritu del Mundo. No es la teoría lo que determina la realidad, como recalca Hegel de manera frecuente y decidida, sino que la realidad alumbra las ideas y las cambia por sí misma. (...) Con lo dicho está en correspondencia una concepción de la materia que llega en el tiempo hasta una época anterior a Platón - no es una concepción materialista, sino una concepción material.(1)" Mais à frente, na mesma carta, Jünger indica as afinidades: "La figura tiene más afinidad con la mónada de Leibniz que con da idea de Platón, y más con la protoplanta <Urplflanze> de Goethe que con la síntesis de Hegel."

Jünger quer significar com a figura uma correspondência entre as manifestações da matéria e o perceber. Esta correspondência dá-se na intuição, a qual implica uma passividade, passividade que é capacidade de recepção e que Jünger no §24 de Typus.Name.Gestalt, obra de 1963, nos apresenta assim: "A força formativa de forças actua imediatamente sobre a intuição. Ela produz imediatamente espanto ou então um conhecer sem nome: intuição. "Intueor" é um Verbum, que os antigos não sem razão só conheciam na forma passiva."(TNG, §24) E pode-se ler em Der Arbeiter uma passagem onde se torna claro que a figura é uma unidade que é recebida pela intuição: "daremos o título de figura ao género de grandezas que se oferecem a um olhar capaz de conceber que o mundo no seu conjunto pode ser compreendido segundo uma lei mais decisiva que a da causa-efeito, ainda que não possa discernir a unidade mediante a qual esta compreensão é realizada."(T62/A38) (2)

Em relação à percepção da figura, pode-se ter dela uma aproximação a partir da distinção de duas maneiras de perceber o que se passa no espaço de uma grande cidade moderna, maneiras que nos são apresentadas por Jünger no §18 de Der Arbeiter: uma maneira que corresponde a uma deslocação ao nível do solo, e que é por via disso assaltada por uma diversidade de linhas, de pontos, de interesses, de estilos imbricados uns nos outros; e uma outra que se socorre da ajuda de um telescópio desde a superfície da Lua: "A une si grande distance, la diversité des buts et des projects se confond en un même unité."(T97/A71) À primeira corresponde, enquanto possibilidade de aceder a essa diversidade, a "visão conceptual" <begrifflichen Anschauung>, base sobre que assenta a possibilidade de diferenciação infinita das ciências: "Pour le sociologue, l'ensemble est sociologique, pour le biologiste biologique, pour l'économiste économique, et cela jusqu'au dernier détail, depuis les systèmes de pensée jusqu'aux pièces de un pfennig. Cet absolutisme est le privilège incontestable de la vision conceptuelle(...)"(T97/A70) À segunda corresponde a visão da figura: nesta última está implicado um olhar que capta e que simultaneamente é subjugado pela figura, o olhar que percebe "a lei do selo e do cunho": "No reino da figura não é a lei de causa-efeito que decide da ordem hierárquica, mas uma lei de outro género, a lei do selo <Stempel> e do cunho <Prägung> (...)."(T62/A38)(3) E percebe-a, quanto mais não seja, porque para este olhar os efeitos não podem ser explicados pelas causas: é um olhar que olha de uma distância a partir da qual os "efeitos" não têm significado, visto que com essa distância ele fica mais perto da unidade. Causas e efeitos — para manter estes termos que são dominantes na begrifflichen Anschauung — são, em conjunto, o cunho de um selo, de uma unidade, o selo da figura: "A un regard libéré par son recul cosmique du jeu contracdictoire des mouvements, il ne peut échapper qu'une unité a créé ici son image spatiale. Ce genre de contemplation se distingue des efforts pour concevoir l'unité de la vie sous son aspect le plus plat, celui d'une addition, en ce qu'il saisit sa forme créatrice, l'oeuvre qui en résulte malgré toutes ces contradictions ou grâce à elles."(T98/A71)

Mas tal como não podemos contemplar o nosso próprio tempo com os olhos do arqueólogo, também não somos astrónomos (4). Cabem aqui outros telescópios, entre os quais o da linguagem, o telescópio do Sem-nome <Namelosen>. A linguagem entra na correspondência estre as manifestações e o perceber, e entre o perceber e o agir — está ligada tanto às manifestações quanto ao perceber, e, por consequência, ao agir. Desta correspondência e da natureza desta ligação trata Typus.Name.Gestalt (5). Resumamo-las: para Jünger as manifestações da matéria e os nomes formam uma "unidade imperturbável"(TNG, §30). Ao Inseparado <Ungesonderten> corresponde o Sem-nome <Namelosen>, ao manifestado corresponde o nome. Muito embora o nome seja um empréstimo: "as coisas não trazem nenhum nome, pelo contrário, os nomes são-lhes emprestados"(TNG, §24). Os nomes são uma resposta, a linguagem é a possibilidade de responder. Se nomear é a primordial possibilidade que a linguagem nos dá, com ela, contudo, não descrevemos propriamente, pois não é através dela que nos separamos das coisas nomeadas. "Quando um homem, por exemplo como testemunha diante do tribunal, diz: 'Esta é a minha mãe', a palavra é pronunciada com um sentido diferente daquele que toma no momento da saudação após uma longa separação e, uma vez mais, num outro sentido, no momento da súplica poderosa com a qual, ao morrer, ele chama pela mãe"(TNG, §106). O nome é aqui sempre o mesmo.

À manifestação corresponde também, por sua vez, a visão. Mas do fenómeno ao tipo, do tipo à figura, as dificuldades aumentam. Se o típico se manifesta, manifestação que é, por conseguinte, de maior alcance do que a do fenómeno, a dificuldade com as figuras está precisamente em que elas não podem ser vistas — "as manifestações extraordinárias do Inseparado não aparecem, contudo, desta maneira palpável"(TNG, § 109). Elas apenas se podem pressentir naquilo que mais longe — mas, no fundo, igualmente perto — delas está: os fenómenos. O que requer uma atenção aos fenómenos, uma visão que vê o único no muito e o muito no único. Com a captação das figuras delimita-se um domínio, um reino, uma maior parcela do Inseparado. A palavra que "nomeia" a figura deixa de apontar directamente, como diante de um fenómeno, e alcança dimensão, aproxima-se do Sem-nome. Aqui o nome funciona como um foco — com ele nos podemos mover "de uma harmonia visível para uma invisível"(TNG, §4). É a possibilidade que lhe é conferida por uma força maior, a "força formativa de forças" ou a "força formativa de tipos"(TNG, §§24-25), a qual actua, justamente, tanto na manifestação como na visão. Ao nomear desencadeia-se um processo semelhante ao da revelação em fotografia: um tipo que se ergue do Inseparado, uma palavra que se ergue do Sem-nome(TNG, §11). Por relação com o fenómeno, o tipo detém menor realidade do que este, mas a sua efectividade é mais intensa (idem). "(...) A natureza naturante manifesta-se aos olhos, como se emitisse ondas cada vez mais fortes. O homem responde-lhe numa relação semelhante com a precisão em primeiro lugar do olhar e depois da linguagem."(TNG, §23) E a figura é, por sua vez, "menos real" que o tipo — mas é ela que forma tipos.

Na concepção de figura joga-se, por conseguinte, um ver mais amplo do que aquele que reconhece a coisa só ou que reconhece um conjunto de características comuns a várias coisas. Se, com o estabelecimento do tipo, o homem coloca todo o seu poder no encontro da imagem com a palavra, quando se trata da figura, essa não pode ser estabelecida pelo homem — dá-se aí um encontro de uma outra espécie: a figura subjuga.

É desse ver mais amplo que se trata em Der Arbeiter no que respeita a uma figura particular — a figura do trabalhador. Trata-se, primeiramente, da visão do tipo do trabalhador — e é a essa visão que ao mesmo tempo corresponde a figura, melhor, essa visão é determinada pela figura, figura de uma nova era, que dá figura e que é a figura dessa era que se desenha com a Primeira Grande Guerra e com os anos subsequentes. O encontro com a figura é primordial, originário, e isto na justa medida em que só o igual pode ser penetrado pelo igual: "o homem só é capaz de chegar à apreensão e, por consequência, à preensão das figuras, porque vive nele algo de afim, mesmo de semelhante(...) O homem é da mesma estirpe que as figuras"(TNG, §§119-120). Quanto ao tipo, este contém o comum <Gemeinsames>(TNG, §126) — por ele se estabelecem comparações, afinidades. Mas quanto à figura, esta está para além desta relação com os objectos e as suas diferenças e semelhanças: "Por conseguinte, o espírito não é desafiado, como acontece em relação ao tipo, para o estabelecimento e a nomeação, mas cede diante da preensão pela imagem e pelos nomes. Do mesmo modo que o Sem-nome no homem pela intuição responde ao tipo, assim pela adivinhação responde à figura. A nomeação pode seguir ambas as espécies de encontro, ou pode não ser levada a cabo; no entanto, a figura, não pode ser estabelecida. Sobre ela a vontade não actua. A este nível, por conseguinte, sofrer a acção é mais poderoso do que agir; disto temos um sinal simbólico quando na oração as mãos se juntam."(TNG, §128)

Detenhamo-nos agora na palavra. A palavra Gestalt (6) é, como Jünger considera, de difícil tradução. Em alemão existem as palavras Figur, Form, Gestalt — a todas podemos traduzir por forma ou figura. No entanto, não se diz Gestalt da aparência física de qualquer coisa nem se emprega para "figura de estilo" — em ambos os casos usa-se em alemão Figur; também não se emprega Gestalt no sentido de molde, forma (ô), ou enquanto maneira, ou no sentido de aparentar boa disposição, ou de se estar "em forma" ou de se ter boa forma física — para estes casos é a palavra Form a usada. Gestalt estará, por conseguinte, mais associada à matéria — e isto nos dois movimentos distintos de tomar forma e de dar forma, palavra na qual Ge terá a função de juntar, reunir, congregar (7). É a palavra Gestalt aquela empregue por Hegel para "Figura do Espírito", é Gestalt a palavra empregue por Goethe para aquilo que é designado no conceito de Urpflanze, planta originária — "a forma, enquanto origem de todas as configurações possíveis da planta e enquanto possibilidade da sua identificação" (8). E também Gestalt é empregue por Schiller em "lebende Gestalt", figura viva, uma beleza sensível, não determinada (9). Para Jünger, leitor de Hegel e Goethe, mas cujo pensamento tem "mais afinidade" com Goethe (e é sob a sua inspiração que redigirá mais tarde, em 1963, Typus. Name. Gestalt), Gestalt nem é uma forma que se opõe a um conteúdo nem uma pura forma ideal, mas uma totalidade. Esta totalidade é "particular e orgânica": "La Figure ne peut pas être saisie par le concept général et intellectuel d'infini mais par le concept particulier et organique de totalité"(T185/A153). E quanto a este "conceito orgânico": "On reconnaît (...) le concept organique à ce qu'il peut déployer une vie propre, à ce qu'il peut donc 'croître'"(T364/A324). Ora estas palavras contradizem em boa parte a hipotética suspeita de uma ligação às concepções da Gestalttheorie da época — que definições tais como "na figura assenta o todo, que engloba mais do que a soma das suas partes", poderiam dar a entender — e parecem estar em sintonia com a morfologia goethiana, tal como Goethe a define nestas palavras: "A morfologia repousa sobre a convicção de que tudo o que é tem também de se significar a si próprio. Admitimos este princípio desde os primeiros elementos físicos até à exteriorização espiritual do homem. Nós voltamo-nos imediatamente para o que tem forma. O inorgânico, o vegetativo, o animal, o humano, tudo se significa a si próprio e aparece como o que é ao nosso sentido externo e ao nosso sentido interno. A forma é algo em movimento, algo que advém, algo que está em transição. A doutrina da forma é doutrina da transformação. A doutrina da metamorfose é a chave de todos os sinais da natureza. (10)"

 

Notas:

(*) Abreviaturas:

A: Ernst Jünger, "Der Arbeiter", Werke. Band 6. Essays II, Ernst Klett Verlag, Stuttgart, 1960-1965.

TNG: Ernst Jünger, "Typus.Name.Gestalt", Werke. Band 8. Essays IV, Ernst Klett Verlag, Stuttgart, 1960-1965.

T: Ernst Jünger, Le Travailleur, tradução e apresentação de Julien Hervier, Christian Bourgois Éditeur, Paris, 1989.

1. Excerto de uma carta de Jünger a Henri Plard, tradutor para francês de muitos dos seus textos, incluída na edição castelhana de Der Arbeiter: El Trabajador, trad. Andrés Sánchez Pascual, Tusquets, Barcelona, 1990, p. 344.

2. Passagem do capítulo Die Gestalt als ein Ganzes, das Mehr als die Summe Seiner Teile Umfasst, o terceiro de Der Arbeiter, cuja tradução está em apêndice a este estudo.

3. Id.

4. "Nous savons, certes, qu'il n'est pas donné à l'homme de contempler son temps avec les yeux d'un archéologue auquel sons sens secret se manifeste, par exemple à la vue d'une machine électrique ou d'une arme à tir rapide. Nous ne sommes pas non plus des astronomes auxquels notre espace se présente sous la forme d'une géométrie qui rend immédiatement intelligibles les forces et contre-forces d'un système secret de coordonnées."(T98/A71-72)

5. Nisto seguimos uma indicação expressa de Jünger nas Adnoten à reedição de Der Arbeiter, de 1963: "Mi libro Tipo, nombre, figura vuelve una vez más al núcleo del asunto", El Trabajador, ob. cit., p.294. Como já se indicou, Typus.Name.Gestalt é também de 1963. Estas Adnoten surgirão citadas a partir daqui na sua recente versão em francês.

6. Os tradutores francês e castelhano de Der Arbeiter traduziram Gestalt por figura. Uma justificação para o facto — da nossa responsabilidade —, poderá ser encontrada nesta passagem da história etimológica que Erich Auerbach faz do termo latino figura: "Comment est-il possible que ces deux termes<forma e figura> — mais sourtout figura, dont la forme rappelait avec netteté son origine, se soient si rapidement chargés d'un sens purement abstrait? C'est le fait de l'hellénisation de la culture romaine. Avec son vocabulaire scientifique et rhétorique autrement plus riche, le grec possedait un grand nombre de mots pour le concept de forme: morphè, eidos, skhèma, tupos e plasis, pour ne citer que l'essentiel. En philisophie et en rhétorique, le travail réalisé sur la langue platonicienne et aristotélicienne avait permis d'assigner un champ spécifique à chacun de ces termes. On traçait, en particulier, une ligne de démarcation bien tranchée entre morphè ou eidos d'une part, e skhèma d'autre part. Morphè et eidos étaient la Forme ou l' Idée qui "informe" la matière; skhèma, la pure forme perçue par les sens. L'exemple classique est celui de la Métaphysique d'Aristote (Z, 3, 1029a): alors que la discussion porte sur l' ousia (la Substance), morphè est défini comme skhèma tès ideas (la forme de l' Idée). (...) en parfait accord avec le sens de "forme plastique" et en le dépassant, put apparaître un concep beaucoup plus général de forme perceptible, qu'elle soit gramaticale, rhétorique, logique, mathématique et même, plus tard, musicale et chorégraphique. Il est vrai que le sens primitif ne se perdit pas complètement, carfigura, comme son radical fig- l'indicait, servait souvent à rendre tupos ("marque, empreinte"), de même que plasis e plasma ("forme plastique"). A partir du sens de tupos s'est répandu un usage de figura compris comme "empreinte d'un sceau", métaphore dont l'histoire vénérable va d'Aristote (De memoria et reminiscentia, 450a, 31: hè kinèsis ensèmainetai hoion tupon tina tou aisthèmatos; "o stimulus imprime uma espécie de cunho da sensação"); en passant par Augustin (Epist., 162, 4; Patrologia latina, 83, col. 63); jusqu'à Dante (come figura in cera si suggella; "comme une figura empreinte dans la cire; Purg., 10, 45, ou Par., 27, 52). Par delà cette dimension plastique, c'est l'orientation de tupos vers l'universel, le législatif et l'exemplaire (cf. l'usage qui l'associe à nomikôs chez Aristote; Político, 1341b, 31) qui exerça son influence sur figura et contribua à son tour à effacer la frontière déjà indistincte le séparant de forma. (...) En somme, bien que l'on puisse affirmer de manière générale que le latin substitue figura à skhèma, cela n'épuise en aucun cas la force de ce terme, sa potestas verbi. Figura a une plus vaste extension, il est quelquefois plus plastique et, en tout cas, plus dynamique et d'un plus grand rayonnement que skhèma. Il est vrai que le terme même de skhèma présente, en grec, un aspect plus dynamique que dans l'usage actuel. Chez Aristote par exemple, les gestes de la mimique, ceux des acteurs en particulier, sont appelés skhèmata. Le sens de forme dynamique n'est en aucun cas étranger à skhèma, mais figura accentue bien autrement cette composante de mouvement et de transformation." Erich Auerbach, Figura, tradução de Marc André Bernier, Belin, Paris, 1993, pp.12-14. Original: Francke AG Bern, 1944.

7. Veja-se a nota de André Préau, tradutor francês de "Die Frage nach der Technik", de Heidegger, a propósito do termo Ge-stell, em Martin Heidegger, Essais et Conférences, Gallimard, Paris, 1958, p.26.

8. Palavras de Maria Filomena Molder na introdução a Goethe, A Metamorfose das Plantas, ob. cit., p. 14.

9. Cf. José Luis Molinuevo, "La reconstrucción estética de la historia del trabajador (Un diálogo casi posible entre Jünger et Weiss)", in Isegoría, revista de Filosofia Moral y Política, nº4, Octobre, Madrid, 1991. Retomado em, do mesmo autor, La Estética de lo Originario en Jünger, Editorial Tecnos/col. Metropolis, Madrid, 1994, p.88 para a referência.

10. Goethe, ["Aufsätze, Fragmente, Studien. Zur Morphologie", LA <Leopoldina Ausgabe> I, 10, p. 128], citado e traduzido por Maria Filomena Molder em Goethe, "Introdução", ob. cit., p. 27.

 

 

 

2. tornar visível a figura do trabalhador

 

 

 

Nestes dois parágrafos de Typus.Name.Gestalt, dos quais as palavras acima são a citação de dois excertos — que seria impossível resumir — estão condensados tanto um entendimento da figura (excerto do §19) quanto uma descrição do olhar que a vê (excerto do §21). O saber cego que se dirige às coisas últimas pertence tanto àquela como a este e a questão da figura é levantada, precisamente, por aquele que quer ver. Quando Jünger emprega a palavra "ver" ou a palavra "visão", sehen e das Sehen, não se trata de figuras de retórica. A visão por intermédio de um olhar que se dirige às transformações, às metamorfoses, para o qual forma não quer dizer forma acabada, é da sua parte o fundamental.

 

Ora Jünger não é nem um filósofo profissional nem o seu trabalho corresponde àquele que é normalmente desenvolvido pelas chamadas ciências humanas, e até à data de Der Arbeiter também não era um romancista. Nascido em 1895, alistara-se como voluntário no início da Primeira Grande Guerra e foi um combatente da frente. Recebeu a mais alta condecoração militar, a qual apenas foi atribuída a ele e a outro. Poder-se-ia concluir destas breves palavras introdutórias que estamos perante um "guerreiro" ou um aventureiro decidido entre a morte, atitudes cuja honra está dependente da cobertura das causas, e atitudes das quais há que abdicar uma vez alcançada a vitória destas. Mas há também a possibilidade de a experiência da guerra estar para além das causas e neste sentido estas seriam um manto que velaria o principal — a própria guerra. Nietzsche também atribui à guerra uma significação originária: "Em desfavor da guerra, podemos dizer: ela torna o vencedor brutal e o vencido maldoso. A favor da guerra: ela introduz a barbárie nas duas consequências citadas e assim reconduz à natureza vencedor e vencido; ela constitui para a civilização um sono ou uma hibernação, do qual o homem sai mais forte para o bem e para o mal. (1)" Como ter uma verdadeira experiência da guerra senão a partir do momento em que quaisquer causas se tornam secundárias? Só assim, porventura, se poderia falar dessa experiência. Essa atitude sem causas tem a sua importância na visão da figura, há nela uma predisposição para a totalidade e a unidade. Às grandes mortandades, às grandes destruições da paisagem, incomparáveis, que ocorreram com a Primeira Grande Guerra, às quais correspondem as destruições da hierarquia dos valores, num processo de rasura em que não é pacífica, muito menos clara, nítida, a ordem hierárquica que se lhe substitui, é nessa situação que Jünger diz ser necessário, primeiramente, "aprender a ver": "Cela vient de ce qu'un ordre hiérarchique n'a pas été immédiatement relayé par un autre, mais qu'au contraire la marche passe par des étapes où les valeurs sont plongées dans la pénombre et où les ruines semblent plus importantes que le gîte éphémère qu'on abandonne chaque matin."(T119/A91) De entre as destruições, de entre as ruínas emergirá a figura do trabalhador com a máscara de aço do soldado, para o qual a guerra não é uma dialéctica — mas não no sentido em que qualquer coisa de concreto possa corresponder à figura em substituição, visto que ela não é uma forma acabada. É, porém, no concreto da transformação que ela pode ser captada. "Aprender a ver" não significa ver por, mas aprender a ver uma realidade em transformação, ver uma expressão que se desenvolve.

 

Jünger, entretanto, nos intervalos dos combates, lia e escrevia: "Parece-me que li mais durante as guerras do que noutros períodos, e não sou o único a quem isso aconteceu", escreve ele no primeiro parágrafo de Annäherungen. Drogen und Rausch, obra de 1970 (2). Terminada a guerra, publicou o relato das suas experiências em In Stahlgewittern: rapidamente essa obra alcançou uma enorme repercussão devida à fidelidade daquilo que nela era descrito. De ambos as partes contendoras muitos nela se puderam reconhecer — não era uma descrição parcial, de uma parte, mas do todo, total. Jünger fez depois estudos em filosofia, botânica e zoologia, começou a dedicar-se à entomologia, actividade em extremo dependente da observação e da qual é dos maiores especialistas. Estaremos agora perante um contemplador? Jünger foi contemplador na acção e a contemplação corresponde nele indistintamente à acção — e deve-se talvez entender isto fora do lugar comum, ou então que se entenda como o lugar comum, pressupondo que o lugar do comum é o lugar dos muitos e que, por conseguinte, porque é comum, não lhes pertence.

 

O lugar comum é o lugar do autor. Um lugar de aquiescência: "(...) l'auteur doit aspirer à un état où il acquiesce à la grande marche des choses, même si elle lui est contraire, même si elle menace de l'écraser au passage. On comprend d'autant mieux le destin que l'on détourne foncièrement les yeux de son bonheur et de son malheur propre. Alors il devient fascinant même dans sa menace: "Tout ce qui survient est admirable.„ (3)" Esse lugar não está, no entanto, em contradição com o nil admirari: "(...) tout tenir pour possible — nil admirari, non par tempérament blasé, mais parce que l'admiration troublerait le caractère de l'expérience, pourrait laisser supposer qu'elle s'approche du terme.(4)" E a propósito da reunião da contemplação e da acção no autor, Jünger refere em Autor und Autorschaft o exemplo de um poeta alemão do século XIX, de glória efémera, Georg Herwegh, que nos seus poemas exaltou as suas experiências de luta pela democracia: "Comme nous le disions, les poèmes d'Herwegh ont sombré dans l'oubli, après avoir brièvement suscité l'enthousiasme, et on peut se demander si maint d'entre eux n'aurait pas vécu plus longtemps s'il l'avait dédié à une fleur, un fleuve, une montagne, et non à ces idées à la mode — en un mot: non à la volonté, mais à la contemplation." Estaríamos aí ante uma determinação por parte da vontade e das ideias — das causas — em relação à contemplação despojada, para a qual o poder é um motivo e não um objectivo, o que requer a atitude de um platónico ou de um Olímpio: "(...) Il nuit à celui-ci <ao poema> lorsqu'il se mêle des questions de pouvoir et des efforts qui visent à le conquérir. Pour lui, le pouvoir n'est pas, en lui-même, un mal; c'est bien plutôt, dans ses tournoiments semblables à ceux d'un kaléidoscope, une déception, lorsqu'il va au fond des choses — champ clos d'efforts meutriers et, du moins en ce qui le concerne, inutiles.// La faculté de contemplation agit tout autrement. Ici, c'est le pouvoir qui donne à l'oeuvre son grand sujet, des comédies d'Aristophane aux tragédies de Shakespeare. Le poète seul peut s'en rendre maître, puisqu'il prend, devant le pouvoir, l'attitude d'un platonicien, et même d'un Olympien. Chez lui, le vaincu, lui aussi, se voit rendre justice. (5)"

 

Jünger revela nas primeiras linhas do prefácio à primeira edição de Der Arbeiter, de 1932, que o projecto do livro consiste em tornar visível a figura do trabalhador: "Par-delà des théories, les partis pris et les préjugés, le project de ce livre consiste à rendre la Figure du Travailleur visible <sichtbar zu machen> comme une grandeur en action qui est déjà puissament intervenue dans le cours de l'histoire et qui détermine impérativement les formes d'un monde métamorphosé."(T35/A13) É essa intenção que, segundo ele, marca com o seu cunho todos as frases do livro - tornar visível a figura do trabalhador. Isto significa que a figura não se vê imediatamente, e no caso da figura do trabalhador, também ela não se vê imediatamente: ela não está limitada, por isso, ao aspecto genério do homem que trabalha. Ao designarmos esse aspecto genérico com o termo trabalhador, com isso temos uma definição restrita, nominalista, do trabalhador. A figura pode, no entanto, estar diante dos nossos olhos: sendo assim, também pode estar no fenómeno económico e social do trabalho e do trabalhador — mas não está aí presa, esse não é o seu lugar mas um dos lugares da sua visibilidade, e pode até ser o seu lugar mais nevoento. É que nós não vemos a figura no seu poder de tomar forma, vêmo-la nos fenómenos como qualquer coisa que não lhes pertence e ao qual eles pertencem.

 

Trinta anos depois, no prefácio da reedição de Der Arbeiter nas suas Obras Completas, de 1963, Jünger dá nele relevo à atitude pela qual é possível tornar visível a figura do trabalhador: Der Arbeiter corresponde à tentativa de atingir um ponto donde os acontecimentos sejam, mais do que compreensíveis, homenageados (T31/A11). Assinala assim a distância que há entre o esforço que visa tornar visível a figura, o que requer uma "homenagem" ao que acontece, e a compreensão. Esse esforço de tornar visível implica um despojamento de instrumentos conceptuais, os quais são a rede pronta das "compreensões". Até porque aqui a pesca é outra - nesta, é o pescador que pode ser pescado. Isso é sugerido por Jünger nestas palavras que vêm em sequência à introdução do "tema" da figura e do tipo em Typus.Name.Gestalt: "(...) nós vemos o cunho, mas não o molde de cunhagem; vemos as moedas, mas não a moeda. Se uma tal moeda existe na realidade e onde é que a tivermos de supor: aqui esteve, desde sempre, a pedra-de-toque mais rigorosa da faculdade de julgar. O tema não apresenta apenas questões, inversamente, ele transforma os homens que a elas respondem."(TNG, §4) Por conseguinte, na tarefa de tornar visível não são os conceitos compreensivos aquilo que é importante (6).

 

Der Arbeiter não é a narrativa da evolução de uma actividade que determinaria económica e socialmente o homem — não é, neste sentido, uma história do trabalho. Evidentemente que nesta obra se descreve o trabalho. Mas descreve-se o trabalho enquanto expressão dominadora de todas as formas de agir e de todas as formas de ser, o que está para além do âmbito da estrita actividade. O trabalho enquanto expressão dominadora de todas as formas de agir e de todas as formas de ser é o que corresponde ao poder que uma figura maior, uma força modelar que mobiliza o mundo, exerce sobre o mundo: a figura do trabalhador. É esta figura que transforma o mundo num espaço de trabalho. O trabalho é o jardim do trabalhador e a sua própria vida. Não se ser trabalhador implicaria uma não correspondência com a figura. Resulta daqui que o trabalhador não é uma realidade económica — mas uma realidade substancial. E o trabalho não é uma actividade — mas a expressão dessa realidade substancial, expressão de um ser particular: "Le travail n'est donc pas l'activité en soi, mais l'expression d'un être particulier qui tente de remplir son espace, son temps, sa légitimité. Il ne connait donc aucune opposition en dehors de lui-même; il ressemble au feu qui dévore et transforme tout ce qui est combustible et que seul son propre principe peut lui disputer par un contre-feu. L'espace du travail est illimité de même que la journée de travail englobe vingt-quatre heures. Le contraire du travail n'est pas le repos ou l'oisiveté, mais dans cette perspective il n'y a aucune situation qui ne soit conçue comme travail."(T125/A97) Esta relação entre trabalho e trabalhador não é uma simples inversão da maneira habitual de considerar o trabalho e o trabalhador. É como se a palavra "trabalho" aumentasse, "de maneira imprevista, em gravitação"(TNG, §93) Esta relação é essencial, e quanto mais não seja para vermos o que Jünger pretende tornar visível.

 

No trabalhador vê Jünger uma figura mítica — ele é Anteu, o filho da Terra, Geia, elemento primordial. Todo o seu poder deriva de estar em contacto com ela. Anteu foi vencido por Héracles num dos seus doze trabalhos porque este o levantou do solo. Héracles é aquele que divide a Terra em partes e domina as suas potências. Mas com a revolução de Geia, na medida em que Anteu tome de novo contacto com a Terra, essas divisões serão sujeitas a uma indiferenciação: "Le Travailleur (...) est comme Antée le fils direct de la terre; son intervention s'accompagne de secousses qu'il faut considérer comme tectoniques. La nuit qui précède son aurore est tout embrasée de feux de forges. Le partage de la terre lui est désagréable comme um vêtement artificiel où le corps se sent á l'étroit.// Celui qui continue à discuter aujourd'hui sur la couleur des drapeux ne voit pas que le temps des drapeux est révolu. Les bagarres aux frontières deviennent insolubles parce que les frontières perdent leur sens en tant que telles; elles perdent leur crédibilité parce que la terre revêt une nouvelle peau.// Avec la mue de Gaia, Antée reprend contact avec le sol face à Héraclès, et de nouveaux signes émergent. Après avoir été divisée en parties, la terre redevient chez-soi. Les signes matriarcaux gagnent en puissance. (7)"

 

Estas palavras surgem nas Adnoten a Der Arbeiter em contraposição à noção histórico-política de Estado, o Estado-nação, que tem a sua correspondência na representação do homem enquanto indivíduo <Individuum>. O Estado dos "trabalhadores" não é, por conseguinte, uma conquista universal do operariado. Este Estado corresponde à terra enquanto totalidade orgânica, a qual não tem conformidade nas noções políticas e estratégicas do Estado-nação. Ele representa uma situação em que a terra passa a ser considerada no seu todo, e que está tão longe de ser uma universalidade a que se chegue por conquista dialéctica tanto quanto o operário não é o detentor exclusivo da representação da figura do trabalhador. E, tal como não se chega a um Estado universal por uma conquista a partir de uma posição parcial, assim também não se é trabalhador por se ter a pretensão de o ser. O operário é apenas uma forma entre muitas outras que podem representar a figura, mas a figura pode assumir muitas formas.

 

Pois a figura do trabalhador não é uma característica geral. Com o trabalhador estamos diante de um tipo humano que é o resultado da figura que dá o ser ao mundo actual, os quais, tipo e figura, não são, propriamente, visíveis. Na verdade, não temos a haver somente com o operário metalúrgico, a figura do trabalhador pode estar representada num tipo humano de que fazem parte o sacerdote, o amante, o ocioso, o vagabundo quando sonha, o poeta e a mulher-a-dias. Todos são "trabalhadores" na justa medida em que resultem da figura.

 

Por conseguinte, com o trabalhador temos a haver não com um mártir das condições sociais, mas com uma figura poderosa, uma potência planetária, uma figura mítica, como diz Jünger em palavras quase de circunstância numa entrevista concedida a Julien Hervier quando do seu nonagésimo aniversário: "Je vois dans le Travailleur une figure mythique qui fait son entrée dans notre monde; et les questions du XIXéme siècle, qui portent pour l'essentiel sur l'économie, n'interviennent chez moi qu'en seconde ligne.(...) Ce qui importe, dans Le Travailleur, c'est la vision. (8)"

 

Notas:

1. Friedrich Nietzsche, Humano Demasiado Humano, trad. Carlos Grifo Babo, Presença, Lisboa, s/d, §444, p.311.

2. Ernst Jünger, Drogas, Embriaguez e Outros Temas, trad. Margarida Homem de Sousa revista por Rafael Gomes Filipe e Roberto de Moraes, Arcádia, Lisboa, 1977, p.15.

3. Ernst Jünger, Maxima-minima, notes complémentaires pour Le Travailleur, trad. Julien Hervier, Christian Bourgois Éditeur, Paris, 1992, p.44. (Escritas e publicadas no original em 1963.)

4. Ob. cit., p.28.

5. Ernst Jünger, L'Auteur et L'Écriture, trad. Henri Plard, Christian Bourgois Éditeur, Paris, 1982, pp.176-177.

6. Numa nota de Jünger ao índice analítico, este diz que todos os conceitos de que se trata em Der Arbeiter "sont là comme des nota bene pour aider à la compréhension. Ce ne sont pas eux qui nous importent. On peut sans ambages les oublier ou les mettre de côté une fois qu'ils ont été utilisés comme grandeurs de travail afim de saisir une certaine réalité qui subsiste en dépit et au-delà de tout concept. Cette réalité doit être entièrement distinguée de sa description; le lecteur doit voir à travers la description comme à travers un système optique."(T364/A324)

7. Ernst Jünger, Maxima-minima, ob. cit., pp.22-23.

8. Julien Hervier, Entretiens Avec Ernst Jünger, Gallimard, Paris, 1986, p.85.