A FIGURA DO TRABALHADOR

Edmundo Cordeiro

III. A FIGURA DO TRABALHADOR E A MOBILIZAÇÃO DA TÉCNICA

1. a mobilização total

Àquilo que é técnico concede-se geralmente o carácter de imediato, superficial, neutro. É muito mais imediata a caixa metálica de electricidade que se encontra no passeio do que a pedra solta que encontramos nesse mesmo passeio. O que é técnico justifica-se, cada vez mais, por si. Trata-se de algo a que não se pergunta o que pretende. E quando surgem as "razões técnicas", deparamos com um campo que está vedado à discussão. Se é certo que se está ligado àquilo que não se sabe, e mesmo àquilo que se recusa, não será menos certo que se esteja ligado com aquilo que de tão bom grado se aceita.

Isto são traços de uma relação com a técnica em que esta, justamente, já não é objecto de interrogação — desde logo nos colocamos no lugar da resposta. Serão talvez os traços da entrada da técnica numa fase segunda, ou o culminar de um processo, uma fase "construtora" que se segue à fase "destruidora", fases essas que correspondem à cabeça de Jano da técnica(T205/A172) - um processo de destruição, inicialmente, simulado com todas as vantagens empreendedoras do progresso, e depois enquanto destruição activa visível ao nível da "paisagem industrial" <Werkstättenlandschaft> e, nesse mesmo carácter, inegável aos olhos de Jünger nas destruições maciças da Primeira Grande Guerra. À destruição seguir-se-ia a construção: a segunda fase prognosticada por Jünger. Claro está que Der Arbeiter descreve o início do primeiro processo, mas a partir da visão do todo, da totalidade que é a figura do trabalhador: esta, enquanto potência metafísica, é simultaneamente destruidora e construtora, o seu domínio <Herrschaft>, e a consequente possibilidade de construção, implicam a destruição dos obstáculos.

 

É neste processo de dominação que entra a técnica: ela é a mobilização do mundo pela figura do trabalhador — é o nome deste processo de mobilização. Trata-se, também, de uma potência, mas de uma potência que está "ao serviço"(T211/A177). Uma mobilidade é investida sobre o mundo, tornando-o mobilizável, mas é lançada a partir de um ponto imóvel, a figura (1).

Enquanto potência, também possui um carácter de culto, entrevisto por exemplo — e isto segundo um dos exemplos que Jünger dá — no ar beato dos espectadores de corridas de automóveis (2). Mas este aspecto de culto é no entanto dissimulado na sua aparente neutralidade, o que faz com que outras potências procurem pô-la ao seu serviço, falar a sua língua, como por exemplo a Igreja, mas com isso acabam antes por facilitar um processo de secularização generalizada(T203/A170). Nesse afrontar de todas as potências estabelecidas — ela nega pela sua própria existência (3) —, a técnica é a única delas que escapa ao declínio.

Mas Jünger tem então de mostrar como é que a técnica diz apenas respeito ao representante da figura, o "trabalhador". O "trabalhador" é o tipo humano que possui uma relação elementar com a técnica, por conseguinte, ela não é um instrumento em geral do homem em geral. Isso porque, por um lado, não é dado ao homem em geral, ao homem qualquer, mobilizar o mundo, e por outro lado, porque a relação do homem com a téncica não é puramente instrumental: "(...) entre l'homme et la tecnhique il n'y a pas une relation de dépendence directe mais indirecte. La technique possède son propre cours que l'homme ne peut pas arrêter arbitrairement quand l'état des moyens semble lui suffire."(T256/A191-192) O homem em geral não tem uma relação imediata com a técnica, e neste sentido ele não é nem o seu criador nem a sua vítima (T197/A165) — considerá-lo como criador ou como vítima eis a concepção antropológica em que assentam tanto as rejeições românticas ou apocalípticas como as adesões entusiastas, nomeadamente dos técnicos. Com isto não se quer dizer que a concepção antropológica seja um erro a que só os menos avisados estão sujeitos, ela é, se é permitido usar de ânimo leve estas palavras, a mais imediatamente humana, a mais imediatamente natural. No entanto, isso não pode ser um limite para o pensamento da técnica, que deverá começar, precisamente, por pensar estes pressupostos. Será isso o que fará Heidegger. Jünger faz uma coisa diferente, no entanto originariamente semelhante, ele "vê": "Pour posséder une rélation réelle à la technique, il faut être quelque chose de plus qu'un simple technicien."(T197/A165) Como se verá, Heidegger vai traduzir esta visão para o seu pensamento.

Que o homem, nas palavras de Jünger, não tenha uma relação imediata com a técnica, isso não quer dizer, no entanto, que o humano e a técnica sejam dois blocos irredutíveis — quer dizer, aliás, precisamente o contrário, e tudo se explica uma vez mais pela figura do trabalhador. É enquanto o homem é "trabalhador" que a técnica está ao seu serviço. A técnica marca no espaço o domínio da figura do trabalhador, serve outros poderes, e se ela é um instrumento, evidentemente que não o é do homem em geral, mas da figura do trabalhador. É a técnica que faz aparecer o homem enquanto "trabalhador". "Partout où l'homme tombe sous la coupe de la technique, il se voit placé devant une alternative inélutable. Il s'agit pour lui d'accepter ses moyens particuliers et de parler sa langue ou de périr."(T208/A175) Justamente, ele torna-se "trabalhador" na medida em que aceite os seus meios e fale a sua língua: "La technique est l'art et la manière dont la Figure du Travailleur mobilise le monde. Dans quelle mesure l'homme entretient avec elle un rapport décisif, dans quelle mesure il n'est pas détruit par elle mais favorisé: cela dépend du degré auquel il représente la Figure du Travailleur."(T198/A165)

A mobilização é total <die totale Mobilmachung>, e, tal como a figura é um todo metafísico, a mobilização é total na medida em que respeita ao planeta inteiro. Pode-se considerar que ela é o processo visível, a face concreta do dispositivo total — traduziremos assim o termo Gestell, que procede de Heidegger —, dispositivo que Heidegger tematizará como essência da técnica, ou como um determinado desenvolvimento epocal do ser, como se Die Totale Mobilmachung(1930) e Der Arbeiter(1932) constituíssem a óptica necessária para que o seu pensamento pudesse desenvolver o que desenvolveu. Seja isto considerado, claro, como sugestão de um encontro do engenho de dois homens que não pensam da mesma maneira mas que se movem no mesmo pensamento, ao menos quanto à técnica, e não como relato de uma qualquer corrida ao mais fundo.

Ernst Jünger introduz pela primeira vez a expressão mobilização total <totale Mobilmachung> no referido ensaio de 1930, antecedendo de dois anos Der Arbeiter. Nele indica o que de essencial se lhe revelou na Primeira Grande Guerra, aquilo que a tornou possível: a ligação da guerra ao trabalho por intermédio de uma mobilização que converte toda a existência em energia: "(...) l'image de la guerre, et qui la représente comme une action armée, s'estompe de plus en plus au profit de la représentation bien plus large qui la conçoit comme un gigantesque processus de travail. A côté des armées qui s'affrontent sur le champ de bataille, des armées d'un genre nouveau surgissent: l'armée chargée des communications, celle qui a la responsabilité du ravitaillement, celle qui prend en charge l'industrie d'équipement — l'armée du travail en général. Dans la phase terminale de l'évolution dont nous venons de parler, et qui déjà correspond à la fin de la Première Guerre mondiale, il n'y a plus aucune activité — fût-ce celle d'une employée domestique que travaillant à sa machine à coudre — qui ne soit une prodution destinée, à tout le moins indirectement, à l'économie de guerre. L'exploitation totale de toute l'énergie potentielle, dont on voi un exemple dans ces ateliers de Vulcain construits par les États industriels en guerre, révèle sans doute de la façon la plus significative qu'on se trouve à l'aube de l'ère du Travailleur, et cette réquisition radicale fait de la guerre mondiale un événement historique qui dépasse en importance la Révolution Française. (4)" Note-se que Jünger não se refere aqui ainda à figura do trabalhador, figura estática, decisiva no entendimento do processo de mobilização, aludindo, em vez disso, a uma "exigência secreta": "La mobilisation totale(...) ele est, en temps de paix comme en temps de guerre, l'expression d'une exigence secrète et contraignante à laquelle nous soumet cette ère des masses et des machines. (5)" Ao encarar os traços da paisagem industrial, da rígida disciplina de vida das massas, das cidades que são uma intricada rede técnica, Jünger tem o "aperçu" de que não há aí nenhum átomo estranho ao trabalho (6). É uma mobilização que, deste modo, não respeita em exclusivo à guerra, ela é revelada na guerra, num desenvolvimento que a guerra tomou, mas implicará uma transformação radical da própria guerra, dito de outro modo, apagará a fronteira, doravante apenas linguística, entre a guerra e a paz — a mobilização total implica a generalização de uma ameaça (7) que nenhum armistício cala: "L'armistice ne met qu'en apparence un terme au conflit, en réalité il encercle et mine en profondeur toutes les frontières de l'Europe par un système complet de noveaux conflits, et il laisse donc subsister un état où la catastrophe apparaît comme l'a-priori d'une pensée métamorphosée."(T89/A63)

Trata-se de uma mobilização em que a técnica tem a sua parte conjugada com a força de culto do "progresso", essa abertura ao infinito da perspectiva finalista da utilidade: "Une chose est pourtant sûre: seule une force cultuelle, seule une foi peut s'aviser de l'audace qu'il faut pour ouvrir sur l'infinit la perspective finaliste de l'utilité. Et d'ailleurs qui mettrait en doute que le progrès soit la plus grande église populaire du XIXéme siècle — la seule qui puisse se targuer d'une autorité réelle et d'un credo pur de toute critique?" (8) Por consequência, tão ou mais importante do que a face activa da mobilização — a própria técnica —, é essa face receptiva, a "disponibilidade para se ser mobilizado" (9). Ela é mais importante do que toda a espécie de armamento, visto que recruta as suas tropas mesmo no campo do adversário (10). O exemplo do "mobilizado" — e isto no que se refere à Primeira Grande Guerra, pano de fundo das reflexões de Jünger em Die Totale Mobilmachung — é H.Barbusse, o pacifista que se alista como voluntário porque quer matar a guerra, lutando "pelo progresso, pela cultura, pela humanidade e pela paz" (11). Por sua vez, Ludwig Frank, chefe da social democracia alemã, representa o "mobilizado parcial": vai para a guerra ainda enquanto "filho da Alemanha" (12). Isto serve para indicar o que, no entender de Jünger, se deu nessa guerra: foi o afrontamento entre dois tipos de mobilização, o afrontamento das duas eras a que elas respeitam — "La guerre mondiale s'est livrée non seulement entre deux groupes de nations mais entre deux époques, et en ce sens il ya dans notre pays aussi bien des vainqueurs que des vaincus"(T88/A62) —, numa luta da Europa contra a Europa, com vencedores e vencidos dos dois lados dos contendores. "Dans la mesure où elle a tiré le trait final sur le XIXéme siècle, la guerre mondiale a fourni une prodigieuse confirmation des principes efficaces dans notre siècle. Elle n'a laissé subsister sur le globe aucune autre forme d'État que la démocracie nationale plus ou moins masquée."(T300/A263) E isso faz parte do nivelamento implicado na mobilização.

A técnica, já o dissemos, é o nome do processo de mobilização do mundo por uma potência metafísica, ou seja, uma potência que não é propriamente histórica, mas originária: é a história que depende da figura e não a figura que depende da história. Trata-se evidentemente de um pensamento original, no sentido em que se considera a técnica na sua natureza radical, extrema, para lá das maneiras habituais de falar. Ainda que se possa apontar que, ao fazer depender a técnica de uma figura, Jünger não logra uma visão da técnica que esteja à altura desta, i.e., que seja verdadeiramente secularizada; mas o arrojo de Jünger está precisamente em fazer da figura do trabalhador uma figura técnica. A técnica é o instrumento da figura de um tipo humano, a sua mão. Não será arriscado afirmar que esta visão da técnica esteve na origem das famosas reflexões de Heidegger sobre a mesma: ele foi talvez dos poucos que lhe souberam responder. Heidegger salienta esta mesma ligação em "Zur Seinsfrage" (13).

Mais ou menos no início desse texto fundamental dedicado por este autor à interrogação sobre a técnica (14) surge o enunciado guia para a sua compreensão: a essência da técnica não é nada de técnico (15). Este é o modo fundamental de Heidegger interrogar, modo com que interroga "o sítio" do nihilismo em resposta a um texto que lhe fora dedicado por Jünger (a essência do nihilismo não é nada de nihilista), modo como procura responder à aparente "circularidade" entre o carácter total do trabalho e a figura do trabalhador: a essência do homem não é nada de humano (16). Trata-se de uma interrogação sobre a essência. Há lugar à interrogação sobre a essência de qualquer coisa quando se procura, por assim dizer, o seu lado verdadeiro. Donde, passo decisivo na exposição de Heidegger, pressupomos que o lado verdadeiro, o ser, está oculto. Esta interrogação é um caminho onde nos movemos do visível para o invisível, por conseguinte, a interrogação sobre a técnica busca para lá daquilo que temos em presença. Por ela interrogamos o ser.

A filosofia de Heidegger é uma interrogação sobre o ser e isto a partir da ligação entre aquilo a que chama metafísica Ocidental — que coloca o ser metà — e o esquecimento do ser. Segundo Heidegger, a metafísica é, desde Platão, um pensamento do ser na forma de um pensamento que pensa o ser como ser do ente. Um pensamento do ser que é um pensamento do ser do ente — do ente enquanto ente — não é outra coisa senão um esquecimento do ser. Este pensamento atingirá um ponto decisivo com Descartes: com ele, o pensamento que interroga o ser do ente volve-se em representação do ente na forma do cogito — a partir de Descartes, o ser é aquilo que é representado (17). Se todo o pensamento Ocidental tem o seu esteio num esquecimento, e se com ele prodigiosas realizações puderam ocorrer, às quais surge ligada, acelerando-as, a técnica, resulta daí a não necessidade de o mundo estar na verdade para que seja mundo, para que o seja tal como é. Isto leva Heidegger a pensar num esquecimento originário: "Nous restons encore très éloignés d'une détermination de l'essence de l'oubli.(...) Ainsi a-t-on représenté, de mille façons, l'"oubli de l'être" comme si l'être, pour prendre une image, était le parapluie que la distraction d'un professeur de philosophie lui aurait fait abandonner quelque part. (18)" A técnica tornaria este esquecimento, por assim dizer, num facto.

A questão da totalidade do dispositivo técnico [Gestell, a que chamaremos dispositivo total, palavra intraduzível com que Heidegger designa a essência da técnica, justamente aquilo que não é técnico na técnica e que a determina — armadura, esqueleto, estante, "chassis", são palavras que se aproximam quanto a uma tradução literal. Trata-se de um pôr à disposição do ente como fundo disponível (19)] — a questão da totalidade do dispositivo técnico, dizíamos, reside em a técnica moderna ser o ponto culminante da metafísica Ocidental. Ela realizaria o acabamento da metafísica — isto na medida em que a essência da técnica moderna é o Gestell, o dispositivo total. Com o Gestell Heidegger pensa um vértice em que o perigo supremo — que seria a total ocultação do ser (20), a expropriação daquilo que o homem tem de próprio, cujo fundamental está em "ver" em cada ente o "Totalmente Outro" que não é um ente (21) — se reune com a sua identificação. Nesse ponto, a identificação do perigo poderá proporcionar à humanidade uma nova apropriação de possibilidades ontológicas (22). Este acontecimento não pode ser determinado nem quanto ao tempo nem quanto ao modo, não está, por conseguinte, no âmbito da previsão dos técnicos.

Na sua recusa das palavras da metafísica [E em Der Arbeiter Jünger, por seu turno, começa também, como o dissemos, por apostatar as "concepções do século XIX"; numa outra obra de 1959 Jünger referir-se-á de passagem a alguns termos, "termos técnicos", da história, da geografia, da biologia, dizendo-os "semelhantes a locuções obscenas, fortemente marcados pela vontade" (23)] Heidegger toma como chão a poesia, no caso dois versos de Hölderlin, divisa délfica do seu texto: "Mas onde há perigo, cresce/Também o que salva." Heidegger considera que na poesia se mantém o eco do tempo anterior à metafísica. As possibilidades poiéticas que o dispositivo total congrega são pois a chave do seu pensamento sobre a técnica.

Mas há antes de mais que interrogar, e debelar, as concepções da técnica que estão, por assim dizer, mais à mão de semear, as que mais ocultam: as concepções instrumental e antropológica da técnica. A técnica não é a mesma coisa do que a essência da técnica: quer Heidegger dizer com isto que aquilo que está em causa com a técnica não é a manipulação de um determinado número de instrumentos — i.e., a essência da técnica não está em esta ser um meio para certos fins cujo sentido seria ou melhorar a vida do homem ou destruí-la conforme o uso que se desse a esses meios. A técnica não é um jogo do homem, é o próprio homem que é jogado pela técnica. Ele começa, sim, por interrogar essa instrumentalidade — diz ele: "Là où des fins sont recherchés et des moyens utilisés, où l'instrumentalité est souveraine, là domine la causalité (24)". Os quatro tipos de causas que foram objecto de distinção por Aristóteles são apresentados por Heidegger enquanto quatro modos de deixar-vir à presença, para, fundamentalmente, apresentar uma relação originária entre poiésis e técnica. O deixar-vir à presença é poiésis, produção: é um advir da não presença à presença. Por consequência, a produção é o movimento pelo qual a presença advém. A poiésis está tanto na natureza como na arte e na técnica tradicional. A produção, enquanto movimento da não-presença para a presença, é um desvendamento (aletheia). Deste modo, a técnica antiga, enquanto produção que é, é um modo do desvendamento — está ligada a esse desvendar que é a vinda da não presença à presença. Ela desvenda o que não se produz por si mesmo. A sua essência é um desvendamento.

Mas há que estabelecer uma diferença em relação à técnica moderna, a partir da sua relação com a natureza. Ela é também um desvendamento, mas agora sob a forma da provocação ["Herasfordern"; "Herausfördern": extrair]. Para a técnica moderna a natureza desvenda-se não como produção a partir de si própria (poiésis), mas como fundo <Bestand>. Esse fundo é aquilo que se desvenda sob o acto de "encomendar/convocar" <bestellen> (25). A técnica moderna, enquanto desvendamento que encomenda, não é um acto de determinação humana: o homem é convocado a interpelar sob a forma da provocação, ele é um sujeito passivo da acção de encomendar (26). Gestell é, finalmente, este dispor simultâneo do homem e da natureza, o que vale também, na medida em que dispõe o homem, para as chamadas técnicas imateriais: justamente, na reflexão de Heidegger não é a materialidade da técnica que está em causa.

Na medida em que é desvendamento, a técnica tem sempre algo de poiético, mas, na sua forma provocativa, quer da natureza quer do próprio homem, ameaça o desvendamento. Donde — para conclusão deste resumo das teses de Heidegger —, o dispositivo total é a essência da técnica moderna, esse dispositivo é um desvendamento, mas ao mesmo tempo nele se joga o "supremo perigo" (27), ao mesmo tempo ameaça o desvendamento, tende a ocultá-lo na sua forma provocativa, tal como tende a ocultar sobretudo a sua forma produtiva, a da poiésis. A essência do dispositivo total é este perigo — mas o que é o perigo <Gefhar>? Resposta de Heidegger: o perigo é um desvio do ser em relação à sua própria essência. Este desvio é a viragem <Kehre> que é própria do destino do ser. Por conseguinte, perigo e esquecimento do ser, consumados na essência da técnica moderna, podem ser salvadores na medida em que a essência da técnica seja tomada em consideração (28).

 

Notas:

1. "On s'est longtemps représenté la technique sous la forme d'une pyramide posée sur sa pointe et prise dans une croissance sans limites, dont les côtés s'agrandissaient à perte de vue. Nous devons au contraire nous efforcer de la voir comme une pyramide dont les côtés se rétrécissent continuellement et qui aura atteint dans un avenir très prévisible son point terminal. Mais cette pointe encore invisible a déjà déterminé les dimensions du tracé initial. La technique contient en soi les racines et les germes de son ultime potentialisation."(T220/A186).

2. "(...)il est déjà loisible d'observer aujourd'hui dans le cercle des spectateurs d'un cinéma ou d'une course automobile une piété plus profonde que celle que l'on rencontre sous la chaire ou devant l'autel."(T204/A171).

3. "(...)elle nie par sa propre existence. Il ya une grande différence entre les anciens iconoclates et incendiaires d'eglises et le haut degré d'abstraction qui permet à un artilleur de la guerre mondiale de considérer une cathédrale gothique comme un simple point de repère dans sa zone de tir."(T203/A170).

4. Ernst Jünger, "La Mobilisation Totale", in L'État Universel suivi de La Mobilisation Totale, trad. Henri Plard et Marc B. De Launay, Gallimard/tell, Paris, 1990, pp.107-108.

5. Ob.cit., p.113.

6. Id., id.

7. Temos um exemplo disso, e não será o menor, no trânsito. Ele é aliás revelador dessa ameaça sem rosto, "moralmente neutra": "La circulation a vraiment pris les proportions d'une espèce de Molloch qui engloutit bon an mal an un nombre de victimes qu'on ne peut comparer qu'a celles de la guerre. Ces victimes succombent dans une zone moralment neutre; la matière dont elles sont perçues est de nature statistique."(T134/A105)

8. Ibid., pp.101-102.

9. Ibid., p.115.

10. Ibid., p.102.

11. Ibid., p.129. Nota do tradutor na mesma página: "Não será inútil recordar que H.Barbusse, alistado como voluntário ainda que pacifista, obteve em 1917 o prémio Goncourt (Le Feu, Paris, 1916); fundou com Romain Rolland o grupo Clarté, militou no comunismo desde 1920 (Staline, 1935) e morreu na Rússia soviética."

12. Ibid., p.131. Nota do tradutor na mesma página: "L.Frank, alistado como voluntário, morreu de um ferimento na cabeça em Setembro de 1914, num combate próximo de Noissoncourt. O discurso citado <por Jünger, na mesma página> é de 29 de Agosto de 1914."

13. Martin Heidegger, "Contribution à la question de l'être", Questions I et II, trad. Gérard Granel, Gallimard/tel, Paris, 1990, p.206: "Pour une bonne part ce que vos descriptions ont révélé et dont elles ont inveté le langage est aujourd'hui ce que tout le monde voit e dont tout le monde parle. Outre cela, La Question de la tecnhique est redevable aux descriptions du Travailleur d'un soutient qui s'exerça tout au long de mon travail."

14. Martin Heidegger, "La Question de la technique"(or. "Die frage nach der Technik"), Essais et Conférences, trad. André Préau, Gallimard/tel, Paris, 1958 para a 1ª edição, pp.7-48.

15. Ob. cit., p.8.

16. "Si la technique est la mobilisation du monde para la forme du travailleur, elle advient par la présence prégnante de cette volonté de puissance particulière de type humain. Dans la présence et la représentation s'annonce le trait fondamental de ce qui s'est dévoilé à la pensée occidentale comme "être"." Martin Heidegger, "Contribution à la question de l'être", op. cit., p.218. Como refere Jean-Michel Palmier, que em Les Écrits politiques de Heidegger, L'Herne, s/d, estabelece um paralelo entre certas obras de Jünger, com relevo para Der Arbeiter, e o pensamento "político" de Heidegger, este busca mostrar, nomeadamente em "Zur Seinsfrage", que "toutes les questions posées par Jünger ne sont compréhensibles que par une élucidation de l'Être en tant que tel."(p.198)

17. Segundo a tese de Foucault em As Palavras e as Coisas, é esta a razão principal da inexistência do homem na "Idade Clássica". No Cogito, ergo sum o ser e a representação são a mesma coisa, melhor, a representação é o ser, o homem não está, pois, isolado da representação dos outros seres; se se trata do homem, trata-se sempre duma representação — mesmo que se fale do espírito, este não é senão uma representação do espírito, mesmo que se fale do seu corpo, este não é senão uma representação da natureza. Cf. Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, trad. Ramos Rosa, Ed.70, Lisboa, s/d, pp.347-351.

18. Martin Heidegger, ob. cit., p.238.

19. Cf.Martin Heidegger, ob. cit., p.26:"(...)cet appel pro-voquant qui rassemble l'homme (autour de la tâche) de commetre comme fonds ce qui se dévoile, nous l'appelons - l'Arraisonement <Gestell>". p.27: "Arraisonement (Ge-stell): ainsi appelons-nous le rassemblement de cette interpellation (Stellen) qui requiert l'homme, c'est-a-dire qui le pro-voque à dévoiler le réel comme fonds dans le mode du "commettre"."

20. Idem, p.37: "La menace qui pèse sur l'homme ne provient pas en premier lieu des machines et appareils de la technique, dont l'action peut éventuellement être mortelle. La menace véritable a déjà atteint l'homme dans son être. Le règne de l'Arraisonnement <Gestell> nous menace de l'éventualité qu'à l'homme puisse être refusé de revenir à un dévoilement plus originel et d'entendre ainsi l'appel d'une vérité plus initiale."

21. Cf. Martin Heidegger, "Contribution à la question de l'être", ob. cit., p.242.

22. Este aspecto é valorizado por Gianni Vattimo nas suas reflexões sobre a sociedade da técnica, "a sociedade de comunicação generalizada", nomeadamente nos textos que compõem A Sociedade Transparente, trad. Carlos Aboim de Brito, Edições 70, Lisboa, 1991.

23. Trata-se de Le Mur du temps, trad. Henri Thomas, Gallimard/idées, Paris, 1963, p.18.

24. "La Question de la technique", ob. cit., p.12.

25. Id., pp.20-23.

26. Cf. a nota nº62 da p.78 deste estudo.

27. Cf. Ibid., pp.36-37. E Cf. Martin Heidegger, "Le Tournant" (or. "Die Kehre"), Questions III et IV, Gallimard/tel, Paris, s/d, pp.313-315.

28. Ibid., pp.36-38.

29. Cf. Martin Heidegger, "Le Tournant", ob. cit., p.313: "L'essence du Gestell est le péril. Comme péril l'être se détourne de son essence vers l'oubli de cette essence, et se tourne ainsi du même coup contre la prise en garde de son essence. Dans le péril règne ce se-tourner encore impensé. C'est pourquoi dans l'essence du péril s'abrite en retrait la possibilité d'un tournant, dans lequel l'oubli de l'essence de l'être prend une tournure telle que la vérité de l'essence de l'être, lors de ce tournant (Kehre), fait en propre son entrée (einkehrt) dans l'étant". E pp.314-315: "Mais où est le péril? Quel est pour lui le lieu? Dans la mesure où le péril est l'être lui-même, il est partout et nulle part. Il n'a aucun lieu qui lui serait seulement imparti du dehors. Il est lui-même le site sans lieu de toute présence. Le péril est l'époque de l'être déployant son essence comme Gestell."

 

 

 

 

2. a construção orgânica

 

 

Se dissermos que de dia para dia os meios técnicos se tornam cada vez mais perfeitos, com isso fazemos uma afirmação que muito dificilmente encontrará opositores, e isto tanto naqueles que com renovada ânsia esperam por essa perfeição, talvez por a terem como certa, como naqueles que a sentem como uma agressão cada vez mais forte ao seu elemento vital. A "perfeição" é a mesma e no entanto ela é sentida diferentemente. Interessa aproximarmo-nos dessa perfeição e ver como se caracteriza, ver aquilo que tem de próprio.

A figura mobiliza o mundo e o homem, a sua influência traz como resultado tanto a transformação do dado humano quanto a transformação da paisagem, as quais são acompanhadas também pela transformação dos meios técnicos. Para uma determinada concepção do homem, aquela que o representa como indivíduo, referida com maior proximidade no ponto II, e para uma determinada concepção da paisagem que lhe está ligada, concepção que é fruto da separação entre o homem e a natureza, as transformações não podem deixar de ser vistas enquanto deformações. Por exemplo, à luz destas concepções, uma forma típica de experiência como a do automobilista não pode senão surgir como uma deformação se comparada com a forma individual de experiência do cidadão na praça pública, e da mesma maneira, a paisagem dos andaimes não pode senão surgir, na sua aparência caótica e de destruição, como uma deformação da paisagem natural concebida enquanto espaço idílico e harmonioso: o espaço da paisagem romântica. No entanto, mesmo quando não se vê nenhuma aquisição nestas novas formas de experiência e nestas novas formas da paisagem, quando não se vê nelas nem o desenvolvimento de nenhum poder nem nenhuma possibilidade de construção, de bom grado, porém, se concede que a transformação dos meios técnicos que está ligada a estas novas formas não é uma deformação. De bom grado se vê que nos meios técnicos se trata da transformação de uma certa rudeza numa perfeição e versatilidade cada vez maiores tanto na sua eficácia como na sua forma. E aqui, mais uma vez, os meios técnicos tendem a aparecer como neutros, mas, no entanto, "se a técnica é "neutra" não o será nunca no sentido de receber "sentido" do exterior, mas precisamente por no seu caminho de perfeição ser indiferente a qualquer doação de sentido. (1)"

Ora, o que é relevante aqui é que nesta perfeição a eficácia e a precisão das suas realizações estão conjugadas com a perfeição das formas, e mais ainda — isto o que Jünger pretende mostrar —, esta está implicada naquelas num processo unívoco. Esta perfeição é, antes de mais, somente a irradiação <Ausstrahlung> com que a figura toca o olhar. A perfeição <Perfektion> que se vê é um símbolo da perfeição da figura, perfeição que é designada com o termo Vollkommenheit: trata-se também de perfeição, mas no sentido em que não está sujeita ao movimento, portanto, uma consumação, uma perfeita plenitude, a qual não é visível. Desta diferença nos dá Jünger a explicação nestas palavras: "Nous parlons ici de perfection (Perfektion) et non de perfection (Vollkommenheit) parce que la perfection (Vollkommenheit) fait partie des attributs de la Figure mais non de ses symboles qui seules sont visibles à nos yeux. L'État de perfection (Perfektion) occupe de ce fait un rang secondaire tout comme celui d'évolution: derrière eux se dresse la Figure, grandeur supérieure et immuable. Ainsi l'enfance, la jeunesse et la veillesse de l'homme pris individuellement ne sont que des états secondaires par rapport à sa figure qui ne commence pas plus avec sa naissance qu'elle ne se termine avec sa mort. La perfection (Perfektion) en revanche ne signifie rien d'autre qu'un degré auquel le rayonnement <Ausstrahlung> de la Figure touche particulièrement l'oeil éphémère - et là aussi il semble difficile de décider si elle se reflète plus clairement sur le visage de l'enfant, dans l'activité de l'homme ou dans cet ultime triomphe qui perce parfois à travers le masque de la mort."(T221/A187)

Por outro lado, sendo uma irradiação da figura, ela é, Jünger de novo, uma das marcas da conclusão <Abschlub > da mobilização total. Logo, na percepção desta perfeição já se passa algo de novo, ela requer outros olhos, olhos que não podem deixar de estar implicados desde logo na visão dessa perfeição. Vê-se essa perfeição porque já se têm outros olhos. Deste modo, tal como, enquanto potência, a técnica é a única que escapa ao declínio, aqui é também significativo que ela apareça perfeita diante dos mesmos olhos que vêem imperfeições em certos dos seus usos e em alguns dos efeitos que deles relevam. Daí que Jünger atribua à técnica um carácter de língua, e nessa medida é uma língua com poderes especiais, visto que transforma em técnicos todos aqueles que a falam, é a língua planetária, o modo e maneira <die Art und die Weise> como a figura do trabalhador mobiliza o mundo, mais poderosa que as outras línguas, pois não é, por exemplo, por se falar português que de imediato alguém se torna português. Trata-se, por conseguinte, de uma perfeição com um significado diferente: "(...) la perfection (Perfektion) est aujourd'hui quelque chose d'autre qu'en d'autres temps. Elle se trouve peut-être surtout lá où l'on se réclame le moins d'elle. Elle s'exprime peut-être le mieux dans l'art de manier les explosifs. En tout cas, elle ne se trouve pas là où l'on se réclame de la culture, de l'art, de l'âme ou de la valeur. De tout cela, on ne parle pas encore, ou on n'en parle plus."(T222/A188)

Pois bem, segundo Jünger, a perfeição em que eficácia, precisão e formas se juntam tem correspondência numa perfeição do mesmo género nas formas da vida, e por consequência no homem. A correspondência entre os meios, as formas da vida e o homem é designada por Jünger com a expressão "construção orgânica" <organhiche Konstruktion>, a qual depende de uma "implicação objectiva" (2), uma situação que não é redutível a uma suposta intenção criadora individual. E de resto, com a "intenção criadora" temos um paradoxo que de modo nenhum acha a sua realização numa relação com a figura: "La forme réelle <die wirkliche Form> n'est pas l'excepcionnel <Aub erordentliche> comme se le représente la pensée muséale <musealen Denken>(3) qui, en conséquence, fait dépendre la conversion à la forme, que ce soit en art ou en politique, de l'apparition soudaine de l'individu exceptionnel. Elle se trouve plutôt dans le quotidien et ne peut se manifester isolément, indépendamment des utensiles qui servent chaque jour à la nourriture et à l'économie de la vie dans sa simplicité. Or cela, ce moyen immuable d'une perfection qui va de soi, il faut le chercher au niveau du type où celui-ci reçoit de la Figure une empreinte passive."(T294/A257)

O tipo designa a transformação do homem que se processa a par da transformação dos meios técnicos e da paisagem. E o que importa acentuar é a circunstância de a transformação do homem e da paisagem não serem o efeito da transformação dos meios técnicos, mas, antes, o resultado da cunhagem do espaço e do homem pela figura do trabalhador. A própria mobilização total, diz Jünger, se refere a uma potencialidade própria da vida, e por outro lado, com a "construção orgânica" entramos num processo que já tem a mobilização como prévia, o processo da formação <Gestaltung>: "La tâche da la Mobilization Totale est la transformacion de la vie en énergie, telle qu'elle se manifeste dans l'économie, la technique et les transports par le crissement des roues, ou sur le champ de bataille comme feu et mouvement. Elle se rapporte donc à une potentialité de la vie, tandis que la mise en figure <Gestaltung> amène l'être à l'expression, et doit donc se servir non d'une langue du movement mais d'une langue des formes <Formensprache>."(T268/A232) No que se refere ao homem, na conformação com a figura — sendo a Gestaltung aquilo que a Gestalt faz —, as características individuais regridem cada vez mais em favor de uma totalidade típica, totalidade da qual Jünger nos dá uma imagem com a descrição do carácter de máscara <Maskenhaftigkeit> impresso nos rostos. Esse carácter de máscara corresponde ao rosto de um novo tipo de humanidade em que a pessoa singular <Einzelne> atinge a expressão, precisamente agora, enquanto tipo: "Le visage qui regarde l'observateur sous le casque d'acier ou celui du pilote s'est aussi modifié. Dans la gamme de ses différentes versions, telles qu'on peut les observer dans une réunion ou sur des photos de groupes, il a perdu en diversité et par lá en individualité, tandis qu'il gagnait en acuité et en précision de la frappe individuelle <Einzelausprägung>. Il est devenue plus métallique, pour ainsi dire galvanisé en surface, la structure osseuse ressort nettement, les traits sont simplifiés et tendus. Le regard est calme et fixe, entraîné á contempler des objets qu'il faut saisir è grande vitesse. C'est le visage d'une race (4) qui commence à se développer selon les exigences particulières d'un nouveau paysage et que l'"individu" <Einzelne> ne représente pas comme personne ou comme individu mais comme type."(T149/A119)

Jünger nomeia a impressão metálica e cosmética, metallichen e kosmetichen Eindruck, que resulta da observação dos traços da "construção orgânica", da Gestaltung do homem: "Ce qui frappe d'abord, de façon purement physionomique, c'est l'aspect figé des visages semblables à des masques, cet aspect lié à une modification interne mais qu'accusent et accentuent également des procédés extérieurs tels que l'absence de barbe, la coupe de cheveux, les coiffures ajustées. Qu'un phénomène très radical se fasse jour dans cet aspect de masque qui provoque une impression métallique chez les hommes et cosmétique chez les femmes, ont peut déjà le déduire du fait qu'il parvient même à estomper les traits qui rendent le caractère sexuel physionomiquement visible.(...) Ce caractère de masque peut s'étudier non seulement sur la physionomie de l'individu mais dans toute sa silhouette. Il faut ainsi observer qu'on accorde une grande attention à modeler le corps <Durchbildung des Körpers> tout entier, et cela de façon très particulière, très planifiée, dans ce qu'on appele le training. Dans ces dernières années se sont multipliées les occasions qui habituent l'oeil à la vue de corps nus qu'un même discipline a rendu très uniformes."(T159-160/A129-130)

Mais à frente, Jünger vai referir-se à diferença entre as estátuas gregas e as esculturas góticas(T283/A246-247). A sua comparação ilumina, segundo ele, a diferença entre a alma e a figura. Nas estátuas gregas há uma ausência de originalidade, no sentido que é normalmente atribuído a esta palavra, portanto, enquanto expressão singular de um indivíduo, e no entanto, ao olharmos para elas não podemos deixar ser tocados pela sua poderosa irradiação humana, como se ali a figura se aproximasse de nós no mais íntimo, nos tocasse e envolvesse, ao passo que na estatuária gótica somos movidos mais a uma identificação de índole psicológica, no entanto poderosa também, visto que aí a pessoa singular alcança a sua máxima expressão individual. Todavia, difilcilmente se podem representar hoje os nossos vizinhos dessa maneira sem provocar com isso o riso mais fundo. Aí, é o tipo que se ri do indivíduo, como diz Jünger ao referir-se às gargalhadas dos espectadores dos filmes de Chaplin, nos quais a originalidade se revela inábil nas situações típicas(T173-174/A142-143).

Por tudo isto, está pressuposta na "construção orgânica" uma unidade entre o mundo mecânico e o mundo orgânico — a qual também espera pela a sua estatuária(5), e certamente que a vem encontrando. Teremos aí então em pleno a expressão das possibilidades de formação da figura do trabalhador: "(...) on assistera au passage de la pure construction à la construction organique, de la planification intellectuelle et dynamique à la forme stable où la Figure se manifeste avec plus de puissance qu'en aucun mouvement. La construction organique ne sera possible que lorsque que l'homme apparaîtra en pleine unité avec ses moyens et qu'on aura mis bon ordre au pénible désaccord qui aujourd'hui(...) lui fait ressentir ces moyens comme révolutionnaires. Alors seulement se dissipera la tension entre nature et civilization, entre monde organique et monde mécanique, alors seulement on pourra parler d'une mise en oeuvre définitive de la figure <endgültiger Gestaltung>, à la fois originale e d'aussi haut rang que toute référence historique."(T275/A238-239)

Resta no entanto saber, e o que resta é muito, se esta unidade entre os meios e o homem pode ser pensada mesmo em termos de uma fusão da carne com o metálico. Essa seria uma consequência a tirar da acção da figura do trabalhador, e no entanto pode muito bem ser que essa consequência esteja sujeita já a outra figura (6).

De qualquer modo, se a "construção orgânica" não é apenas uma metáfora, naquele sentido em que esta é considerada despojada de ligações, apenas uma outra coisa para dizer outra coisa, e que, no fim de contas, não corresponde a nada — e Jünger não pensa assim: por exemplo, numa nota já citada anteriormente, na qual se refere aos conceitos empregues em Der Arbeiter, ele salienta que não são eles que interessam, "On peut sans ambages les oublier ou les mettre de côté une fois qu'ils ont été utilisés comme grandeurs de travail afin de saisir une certaine réalité qui subsiste en dépit et au-delà de tout concept" ; e um pouco antes ele diz que a medida para avaliar do sucesso da apreensão desses conceitos é "la façon dont on peut utiliser ces concepts selon la loi du sceau <Stempel> et de l'empreinte <Prägung>. Le mode d'emploi ne concerne pas un surface, il est "vertical" <Die Anwendungsweise ist also nicht flächig, sondern "vertikal„>."(T364/A324) Se, dizíamos, não é esse o caso, então essa fusão é uma das consequências a tirar, e tendo em vista sobretudo aquilo a que a noção de "construção orgânica" se refere.

Destas palavras de Jünger seria todavia arriscado tirar essa conclusão: "(...) <le concept de construction organique> en ce qui concerne au type, s'exprime sous la forme d'une fusion sans trace de contradiction entre l'homme et les outils qui sont à sa disposition. En ce qui concerne ces outils eux-mêmes, il est possible de parler de construction organique lorsque la technique va de soi à se supreme degré d'évidence que l'on rencontre dans l'anatomie d'un animal ou d'un plante."(T231/A197)

Tal como destas: "La pince de l'écrevisse, la trompe de l'éléphant, la valve du coquillage: aucun instrument, quelle que soit sa nature, ne saurait les remplacer. Nous aussi, nous moyens nous sont appropriés, non seulement dans un futur proche ou lointain, mais à chaque instant. Ils demeurent des outils dociles de destruction tant que l'esprit pensera à la destruction, et ils deviendront constructifs pour autant que l'esprit se décidera à de grandes constructions."(T248/A213)

Mas pode-se no entanto pensar que temos aqui a haver com algo mais do que uma simples adequação, ou melhor, que se tratará precisamente de uma adequação: "L'approche <Annäherung> de cette unité <a unidade constituída pela totaliade do tipo e pela totalidade do espaço técnico> s'exprime dans la fusion indifférencié <Verschmelzung des Unterschiedes> du monde organique et du monde mécanique; son symbole est la construction organique."(T220/A187) Pensar numa separação irredutível entre o humano e os meios, que corresponde a um modo de pensamento sobre a técnica a que Heidegger, por exemplo, e como já foi referido, chama concepção instrumental, traz como consequência que se considere os meios técnicos e os utensílios em si — e aí temos um dos resultados daquilo que é designado por Jünger como visão conceptual e da sua tendência para a abstracção. Ora, Jünger vê homem e técnica enquanto um todo, desse todo temos na mão — o utensílio dos utensílios — um dos símbolos: "Il n'y a point de moyens en soi, et une mécanique qui ne serait liée à rien relève des préjugées inventées par la pensée abstraite. La simultanéité de certains moyens et d'une certaine humanité ne dépend pas du hasard mais s'inscrit dans le cadre d'une nécessité supérieure. De ce fait, l'unité de l'homme et de ses moyens est l'expression d'une unité de nature supérieure.// Pour rendre ce rapport tangible, revenons encore une fois au rôle de la main comme outil des outils: il est à prévoir que lorsque l'homme apparaîtra comme le maître, lié à ses moyens sans aucune contradiction, la main assumera de nouveau les services auxquels elle se dérobe aujourd'hui.// Certes, dans cette situation elle ne sera pas un organe créateur de formes individuelles mais typiques."(T290) (7) Embora possa parecer que estas palavras resultam ainda de um certo humanismo — "o homem aparecerá enquanto o mestre" —, elas serão provenientes, no entanto, de um humanismo que não joga à defesa, e que está, antes de mais, seguro de si: podemos incluí-las no "realismo heróico", aplicado agora ao pensador, o qual, por conseguinte, vence o arrepio que a "impensável" fusão da carne com o metal provoca. E aqui o título de uma obra de Nietzsche não pode deixar de ressoar como um poderoso enigma ao qual não se atribuiu ainda significado certo nem uma maneira de o entoar adequada: Männlich allzumännlich.

A fusão indiferenciada, ou fusão das diferenças, entre o orgânico e o mecânico está ligada à fase "construtora" da técnica, processo em que a técnica seria, por assim dizer, o intermediário — ela no entanto já o era —, mas agora enquanto tecido, uma língua das formas de que se serve a figura do trabalhador na formação <Gestaltung> do mundo.

Quanto a isto, indicamos por fim duas afinidades: uma delas pode ser encontrada em Mille Plateaux, obra de Deleuze e Guattari. A ideia de um "phylum maquínico" apresentada por estes autores revela um pensamento próximo de Jünger. O "phylum maquínico" está próximo de uma consideração da técnica enquanto Formensprache, enquanto um intermediário vital: "(...) o princípio de toda a tecnologia está em mostrar que um elemento técnico permanece abstracto, perfeitamente indeterminado, se não o relacionarmos a um agenciamento que ele supõe. Aquilo que está primeiro por relação com o elemento técnico, é a máquina: não a máquina técnica, que é ela própria um conjunto de elementos, mas a máquina social ou colectiva, o agenciamento maquínico que vai determinar aquilo que é elemento técnico num determinado momento, quais os seus usos, a extensão, a compreensão..., etc." Ora, a "máquina social", o "agenciamento maquínico", pensado nestes termos, corresponde às formas típicas de experiência que Jünger nos apresenta enquanto resultado da "construção orgânica". Nestes agenciamentos, " (...) o phylum selecciona, qualifica e mesmo inventa os elementos técnicos"; "(...) o phylum maquínico, é a materialidade, natural ou artificial, e as duas ao mesmo tempo, em fluxo, em variação, enquanto portadora de singularidades e de traços de expressão. (8)" Este fluxo da matéria seria "essencialmente metálico ou metalúrgico", o que Deleuze e Guattari explicam pela existência de "uma relação especial primária entre a itinerância e a metalurgia", a qual teria correspondência no próprio pensamento — não é, por conseguinte, apenas uma questão de carne : "A metalurgia é a consciência ou o pensamento da matéria-fluxo, e o metal o correlato dessa consciência. Como é expresso pelo panmetalismo, há coextensividade do metal com toda a matéria, e de toda a matéria com a metalurgia. Mesmo as águas, as ervas e as madeiras, os animais são povoados de sais ou de elementos minerais. Nem tudo é metal, mas há metal em tudo. O metal é o condutor de toda a matéria. O phylum maquínico é metalúrgico ou pelo menos tem uma cabeça metálica, a sua cabeça investigadora, itinerante. E o pensamento nasce menos com a pedra do que com o metal: a metalurgia, é a ciência menor em pessoa, a ciência "onda" ou a fenomenologia da matéria. (9)" Teríamos à luz destas palavras um Jünger metalúrgico, e a grande figura da metalurgia na figura do trabalhador. O metal, o aço, são palavras recorrentes em Der Arbeiter. Aliás, Jünger é um dos inspiradores, pode-se dizê-lo, destas palavras de Deleuze e Guattari. Junto delas há uma citação de Der Arbeiter não referencidada e uma nota onde se indica que há uma concepção da "linha", nomeadamente em Der Waldgang, que Heidegger não aborda: veremos na conclusão deste estudo algumas das diferenças entre Heidegger e Jünger quanto à consideração da "linha". Em Deleuze e Guattari ela é apresentada enquanto linha de fuga, portanto, uma linha que se estende à nossa frente (10).

Segunda afinidade: Marshall McLuhan. McLuhan "reformula" toda a "história da humanidade" a partir dos meios técnicos de comunicação. Na Galáxia de Gutenberg analisa as transformações na percepção e nas formas de vida provocadas pelo alfabeto fonético e, mais tarde, pela tipografia. Em Understanding Media McLuhan refere-se aos meios de comunicação da "era eléctrica" (11). As transformações da percepção e das formas de vida que lhe estão associadas conduziriam à "aldeia global". Nesta era — aquela em que nos movemos — dar-se-ia um retorno do "tribalismo", consequência da interacção de todos os sentidos, que, segundo ele, são desse modo, em interacção, mobilizados pelos meios de comunicação modernos. Exemplo maior na sua teorização: a televisão.

A afinidade entre McLuhan e Jünger, indicamo-la aqui deste modo: McLuhan pensa os meios técnicos de comunicação como "prolongamentos tecnológicos do homem" — nas palavras de Jünger, diríamos que os meios técnicos de comunicação são "construções orgânicas". Neles está implicada, por isso, uma conjugação da técnica e da percepção cuja base é a articulação entre o corpo do homem e as máquinas, entre o orgânico e o mecânico. Eles são "exteriorizações dos sentidos", prolongamentos, desenvolvimentos da potência destes: não são meras próteses, incorporam-se. Mil vezes repetida, a expressão medium is message quer sobretudo dizer duas coisas: em primeiro lugar, que os meios são uma forma, consequentemente, os efeitos são internos a essa forma, eles amplificam ou aceleram processos existentes — como salienta McLuhan, o que é relevante com a tecnologia são os princípios em que assenta, não os seus "conteúdos" ou "mensagens": como ele diz, não interessa se a tecnologia mecânica, por exemplo, dá origem a Cadillacs ou a Cornflakes, é o seu princípio que importa. Por conseguinte, as mensagens não se podem separar do meio, são conformadas por ele, estão dependentes dele até naquilo que mais as faz parecer "independentes". Em segundo lugar, quer dizer também que os conteúdos são, eles próprios, meios. Como as bonecas russas: o meio é uma forma e o seu conteúdo é outra forma. Se o meio é uma forma de percepção, a sua mensagem também é uma forma de percepção: a mensagem é esse efeito, melhor essa cunhagem. Por outras palavras, se chamarmos ao meio "maneira de ver", a mensagem de uma "maneira de ver" é uma "maneira de ver".

Na medida em que um meio técnico de comunicação se torne dominante, como é hoje o caso com a televisão, ele amplifica um dos sentidos e, desse modo, provoca transformações no todo dos sentidos, provoca uma transformação na percepção — mas com a televisão não se trata apenas da amplificação de um único sentido, ela está ligada à "aldeia global". Vejamos isso com um brevíssimo resumo das teses de McLuhan.

Na Galáxia de Gutemberg McLuhan distingue a era tipográfica, dominada pela visão, da era pós-tipográfica, a era da electricidade, caracterizada pelo audiotáctil. Com a invenção do alfabeto fonético, e mais tarde com a tipografia, o sentido da visão torna-se dominante; como consequência disso, todos os sentidos se desagregam. Esta dissociação dos sentidos provoca a "destribalização", processo em que o homem se separa do todo comunitário e se torna, propriamente, indivíduo — da mesma maneira que se dá a separação dos sentidos, que passam a actuar isoladamente, assim o homem se separa dos outros homens pela consciência individual. Mas com a electricidade dá-se de novo a possibilidade de uma reunificação dos sentidos, um retorno ao audiotáctil, termo com que McLuhan designa a interacção dos sentidos sem sobreposição de nenhum deles e que tem equivalência, nas formas de vida, numa "retribalização". A "aldeia global" está ligada a este processo de reunificação dos sentidos pelos meios eléctricos. Embora haja grandes diferenças entre o corpo unificado do homem primitivo e o neo-tribalismo da era da electricidade, uma vez que este se dá ao nível da consciência (12).

E em Jünger reencontramos também essa aliança entre o elementar e a consciência no tipo do trabalhador, aliança de que um dos retratos é uma vez mais o do soldado da Grande Guerra: "Or le fait que le retour de pulsions fortes et immédiates et de passions que rien n'a brisé s'accomplit dans un paysage où règne la conscience la plus aiguë, rendant ainsi possible une exaltation mutuelle des moyens et des puissances de la vie telle qu'on n'en a encore jamais pressentie ni éprouvée, ce fait est précisement ce qui confère à ce siècle son visage extrêmement particulier. Cette image dont un esprit prophétique tenta de suggérer l'aspect d'après les Figures de la Renaissance devient clairement visible pour la première fois sous les traits du soldat de la Grande Guerre, vrai et invaincu, qui dans les instant décisifs où l'on luttait pour donner à la terre son nouveau visage, devait être compris tout à la fois comme une créature issue de la préhistoire et comme le porteur de la plus froide et de la plus cruelle conscience. Ici se recoupent les lignes de la passion et de la mathématique."(T92-93/A66)

 

Notas:

1. Palavras de José A. Bragança de Miranda em Fundamentos de uma Analítica da Actualidade: Contributos para uma Teoria Crítica da Experiência Moderna, Tese de Doutoramento em Comunicação Social, UNL-FCSH, Lisboa, 1990, p.552. Onde as "doações de sentido" conduzem, isso é evidenciado por Bragança de Miranda no facto de estas, ao pretenderem controlar a técnica mais não fazerem do que controlar a experiência. Por outro lado, Bragança de Miranda faz coincidir tanto as tentativas de controlo quanto a angústia pelo descontrolo da técnica numa mesma ideia, instrumental, da técnica: "O problema do controlo da técnica provém da inquietação perante a sua neutralidade diante dos valores humanos, tendendo a aparecer como "descontrolada". Mas esta interpretação já depende daquilo que precisamente provoca o descontrolo, a ideia de que a técnica é um instrumento." (Id., n.2 da p.563) Para Jünger também estas doações de sentido falham o alvo, pois é a figura que doa o sentido, para a qual a técnica é uma pele. O que tem a sua importância, dado que é uma pele da figura: "(...) la technique relève de la nouvelle peau. Elle aussi n'est qu'un vêtement, le voile changeant de la Figure. En face d'elle, l'indigence des systèmes: pendant la mue, le serpent est aveugle." (Ernst Jünger, Maxima-minima, ob. cit., p.25.)

2. "On ne fait pas partie d'une construction organique par une décision individuelle et donc en accomplissant un acte de liberté bourgeoise mais par une implication objective que détermine le caractère spécialisé du travail. Ainsi, pour choisir un exemple banal, il est aussi facile d'entrer dans un parti ou d'en sortir qu'il est difficile de sortir d'une communauté du genre de celle à laquelle on appartient, disons comme consommateur d'électricité."(T157/A127)

3. O pensamento e a actividade de museu correspondem a uma atitude de desenfreada conservação daquilo a que se dá valor no passado, ou a tudo indiferenciadamente, a qual não dá espaço à experimentação. Uma espécie de "fetichismo histórico", como Jünger lhe chama. Mas com a mobilização total, mesmo este tipo de actividade entra no quadro de ordenação e administração geral. "Nous vivons dans un monde qui d'un côté ressemble tout à fait à un chantier et de l'autre tout à fait à un musée."(T253/A217)

4. Rasse: raça. Este termo traz hoje consigo todo um conjunto de significações que de maneira nenhuma o podem honrar. Jünger refere-se, já se viu, a um tipo de humanidade — que é planetário. Ele mesmo se encarrega - o livro é de 1932 — de desfazer as associações biológicas: "Répétons-le ici, la race au sein du paysage du travail n'a rien à voir avec les concepts biologiques de race. La Figure du Travailleur mobilise tout l'emsemble humain sans distinction. Si elle parvient à engendrer justement dans certaines régions des formes supérieures et suprêmes, cela n'altère en rien son indépendence."(T193/A160) E mais tarde, nas Adnoten: "Si l'on veut conserver le mot "race", il faut le concevoir comme empreinte de la Figure. Elle forme le type à travers les différentes couches ethniques.// Si le Travailleur se concevait comme race au sens ancien, il pourrait en résulter un Imperium stable."(Ob. cit., p.16)

5. Uma estatuária que será a expressão da dignidade do tipo, introduzindo aqui de passagem um termo que, segundo E.R. Curtius, adquire um significado profundo em Goethe, e que estas palavras de Curtius iluminam: "No seu ensaio sobre o granito (1784), Goethe menciona que esta pedra sofreu "uns momentos de humilhação„, pois um naturalista italiano expôs a opinião de que os egípcios a fabricaram artificialmente, a partir de uma massa fluida. "Mas logo esta hipótese se desvaneceu e a dignidade [Würde] desta pedra foi finalmente confirmada pelas observações exactas de muitos viajantes„. Na Teoria das Cores diz ele do vermelho: "Esta cor, atendendo à sua alta dignidade, designámo-la várias vezes com o nome de púrpura...„. Da "precisão consumada dos seus membros„ deriva "a dignidade dos animais mais perfeitos„. O princípio objectivo de toda a escultura é, segundo ele, "representar a dignidade do homem no interior da forma humana„. O latim e o grego são línguas "em que com maior pureza nos foi transmitido o valor e a dignidade do mundo antigo„. Mas Goethe pode também falar da "natural dignidade do reino da Boémia„, "cuja forma quase quadrangular, cercada a toda a volta por montanhas, não mostra nada de supérfluo em lado algum... Um continente dentro do continente„." Ernst Robert Curtius, "Goethe — Grunzüge seiner Welt" in Kritiche Essays zur europaïschen Literatur, Francke Verlag, Bern, 1950, pp.70-71. [Estas palavras são um excerto de uma passagem citada e traduzida por Maria Filomena Molder em O Pensamento Morfológico de Goethe, Dissertação de Doutoramento em Filosofia apresentada à Universidade Nova de Lisboa, UNL—FCSH, 1992, p.697.]

6. "Permanece uma outra questão, a de saber até que ponto o espírito transformador se transforma a si próprio, até que ponto, portanto, por exemplo o cérebro não só produz novos pensamentos, como também mutações substanciais. As aventuras, que estão ligadas à penetração na matéria, ao meter-se com as suas potências, entre as quais também se contam novas formas de êxtase <der Rausches>, ainda não se podem prever."(TNG,§46)

7. Damos aqui o original da passagem da tradução citada: "Es gibt keine Mittel an sich, und eine beziehungslose Mechanik gehört zu den Vorurteilen, die das abstrakte Denken erfunden hat. Die Gleichzeitigkeit bestimmter Mittel mit einem bestimmten Menschentum hängt nicht vom Zufall ab, sondern ist eingefab t in den Rahmen einer übergeordneten Notwendigkeit. Die Einheit des Menschen mit seinen Mitteln ist daher Ausdruck einer Einheit von übergeordneter Art.// Um dieses Verhältnis zu veranschaunlichen, sei noch einmal die eben erwähnt Rolle der Hand als des Werkzeugs der Werkzeuge gestreift: es ist vorauszusehen, dab dort, wo der Mensch als der Herr und in widerspruchsloser Verbindung mit seinen Mitteln erscheint, auch die Hand den Dienst wiederaufnehmen wird, den sie heute versagt.// Freilich wird sie in diesem Zustande nicht das Organ indivudueller, sonderen typischer Bildungen sein."(A253)

8. Gilles Deleuze/Félix Guattari, ob. cit., Minuit, Paris, 1980, p.495.

9. Id., pp.510-512.

10. Ibid., pp.501-502.

11. Cf. Marshall McLuhan, A Galáxia de Gutenberg - a formação do homem tipográfico, trad. Leônidas Carvalho e Anísio Teixeira, Companhia Nacional Editora, São Paulo, 2ªedição, 1977. (Or. The Gutenberg Galaxy, 1962.) E do mesmo autor, Pour Comprendre Les Médias - les prolongements technologiqies de l'homme, trad. Jean Paré, Mame/Seuil-points, 1968. (Or. Understanding Media, 1964.)

12. Cf. McLuhan, Pour Comprendre Les Médias, ob.cit., pp.21-22: "Aujourd'hui, après plus d'un siècle de technologie de l'électricité, c'est notre système nerveux central lui-même que nous avons jeté comme un filet sur l'ensemble du globe, abolissant ainsi l'espace et le temps, du moins en ce qui concerne notre planète. Nous approchons rapidement de la phase finale des prolongements de l'homme: la simulation de la conscience. Dans cette phase, le processus créateur de la connaissance s'étendra collectivement à l'ensemble de la société humaine, tout comme nous avons déjà, par le truchement des divers média, prolongé nos sens et notre système nerveux. Que ce prolongement de la conscience, dont les publicitaires désirent depuis si longtemps disposer pour des produits en particulier, soit "une bonne chose" ou non, cela reste une question dont la réponse n'est pas simple. Il n'est guère possible de répondre à pareille question sur les prolongements de l'homme sans les considérer dans leur ensemble. Tout prolongement, que ce soit de la peau, de la main ou des pieds, influe sur l'ensemble du complexe psychique et social."