A FIGURA DO TRABALHADOR

Edmundo Cordeiro

 

II. O TRABALHADOR, O TIPO E A PESSOA SINGULAR

Nos dois primeiros capítulos de Der Arbeiter, Jünger introduz o "conceito orgânico" de trabalhador, que surge, enigmático, no seio de considerações que são um libelo contra-iluminista — contra a dominação dos valores, nascidos, nas suas palavras, das núpcias sangrentas da burguesia com o poder(T44/A22), valores cujo rosto e divisa são o burguês/cidadão <Bürger> e a liberdade universal. A este propósito, salienta Jünger, tal como não há uma potência abstracta, também não há uma liberdade abstracta. Uma liberdade universal, abstracta, é uma liberdade que tende a negar o elementar. A esta consideração da liberdade, abstracta, opõe Jünger uma liberdade que é indissociável da responsabilidade, quer dizer, uma liberdade em que se responde pelo poder próprio. Só à custa de muita abstracção sobre a realidade, segundo Jünger — e "a fin de cuentas ésta no es ni un producto de la imaginación ni algo casual (1)" — se pode pensar uma liberdade que não seja obediência, uma liberdade sem potência, uma liberdade que não seja uma maneira de ser própria: "l'importance de la liberté dont dispose une force correspond exactement à la force du lien auquel ele est soumise, et que dans l'ampleur de la liberté libérée se manifeste l'ampleur de la responsabilité qui confère à cette volonté sa justification et sa validité."(T41/A19). E para Jünger, no nosso tempo, é no trabalho que essa vontade tem expressão, o trabalho é o lugar de "une conscience nouvelle de la liberté et de la responsabilité"(T43/A20). Por conseguinte, responsabilidade e consciência são pensadas em uníssono, numa maneira de ser própria. É esta maneira de ser própria, a maneira de ser de um novo tipo de humanidade, que não pode ser a de um indivíduo no seio da massa, mas sim a da pessoa singular <Einzelne> no seio de uma "grande ordem hierárquica de figuras — de poderes reais, físicos, necessários." (T67/A43) (2). E o trabalhador é o tipo em que essa nova consciência e responsabilidade são representadas. É por isso que este trabalhador não pode de modo algum ser decifrado com as lentes que resultam da aliança entre o razoável e o moral(T48/A25) e que são a liberdade universal, a separação entre a sociedade e o Estado (3) e aquilo a que Jünger chama a ditadura do pensamento económico em si(T57/A34) — o que quer dizer que o trabalhador não é um fenómeno ou um tipo subsumível a uma liberdade abstracta, não é uma nova classe que, na sociedade, luta contra o domínio de uma outra, e, por consequência, não emerge no seio de uma realidade económica enquanto pretendente a novas condições ou a uma nova ordem económica. Ver o trabalhador através destas lentes, eis o traço da dominação dos valores de apreciação iluministas, presentes tanto naqueles que, por essa apreciação, não são trabalhadores, não são os trabalhadores de que falam, como nos chamados movimentos de trabalhadores: "Les représentations auxquelles on a tenté d'assujettir le Travailleur restent cependent incapables de résoudre les amples tâches d'un nouvel âge. Aussi subtilment que soient établis les calculs dont il ne devait résulter que du bonheur, il demeure toujours un reste qui échappe à toute solution définitive et se manifeste chez l'être humain sous la forme d'un renoncement ou d'un désespoir croissant"(T61/A37). É desse resto que Jünger vai procurar fazer ressoar o eco, visto que, mais uma vez, se suspeita que "a renúncia e desespero crescentes" sejam provenientes de uma desadequação entre as concepções e a realidade, melhor, entre a maneira de conceber e a realidade da "nova era", aquilo que há de novo.

Os desenvolvimentos iniciais de Jünger em Der Arbeiter assemelham-se a uma monda — é feita uma limpeza ao jardim para que se possam ver as mais belas plantas. Estas estão envoltas em concepções e num tipo de vida, que, não lhe correspondendo, as podem condenar ao definhamento caso nelas não haja uma vida própria suficiente. E é assim que as próprias plantas acabam por se confundir com a luta do mondador: "Ce qui détermine tout, c'est plutôt que le Travailleur reconnaisse sa supériorité et crée à partir d'elle les critères personnels de sa Domination future."(T59/A36) Jünger quer aperceber-se de uma nova realidade. Essa realidade é a que se desenha com a aparição <Erscheinung> do trabalhador. É nessa medida que ele desenvolve nas páginas iniciais de Der Arbeiter alguns argumentos pretendendo mostrar que a nova realidade não encontra a sua aclaração nas concepções que, justamente, provém de uma "velha realidade" — a da era burguesa <bürgeliche Zeitalter>. Muito embora nomes como bürgeliche e Bürger — este há-de surgir a seguir com mais insistência — pertençam àquilo que de menos conseguido, póstumo mesmo, se inclui em Der Arbeiter, o que aliás Jünger vem a reconhecer mais tarde, e que se podem pôr de lado, contando no entanto aquilo a que se referem. A bürgeliche Zeitalter é a era — e de novo surge o termo — do pensamento burguês <bürgerlichen Denken>, o qual se caracteriza por três modos principais: o materialismo, o idealismo e o liberalismo económico. Mas talvez se possam dar outros nomes a estes "modos". No materialismo podem-se incluir alguns desenvolvimentos do marxismo, os quais atribuem ao trabalhador o significado de uma nova classe. No idealismo assentariam as teorias sociológicas que visam incluir e envolver o trabalhador na dinâmica da sociedade. No liberalismo económico, modo que, claro, mais corresponde àquilo a que Jünger chama a ditadura do pensamento económico em si, o trabalhador é um fenómeno económico, cuja liberdade individual ou de "classe" se funda numa reivindicação económica(T56-57/A33). Mas, no fim de contas, é este último modo a base da "disputa" entre os outros dois (4). Por conseguinte, para Jünger, o trabalhador não pertence a uma nova classe, "dá-se mal" com a sociedade e não é uma mera consequência económica. Os primeiros capítulos de Der Arbeiter começam por se defrontar com estes modos principais de não ver o trabalhador. Nas Adnoten que Jünger acrescentou em 1963 à reedição de Der Arbeiter, este escreve ainda: "Le monde du travail attend, espère qu'on lui donne un sens. (5)"

Relativamante ao burguês/cidadão <Bürger>, o trabalhador não se lhe contrapõe numa dialéctica do interesse enquanto representante de uma nova "classe" ou "estado" <Stand>. O que está aqui em contraposição é o elementar <Elementaren> e a sociedade. Jünger vê que no trabalhador há algo de próprio que não se encaixa na sociedade tal como ela é definida desde o século XVII: "Est société l'ensemble de la population du globe qui s'offre au concept comme l'image idéale d'une humanité dont la division en États, nations, ou races ne repouse au fond sur rien d'autre que sur une erreur de raisonnement. Cette erreur de raisonnement sera cependant corrigée au fil du temps par des contrats, par les "lumières", par une moralization générale, ou tout simplement par le progrès des moyens de transport.// Est société l'État dont l'essence s'estompe dans la mesure même où la société le soumet à ses critères."(T50/A27) Esta sociedade foi erigida a partir de uma necessidade de segurança cujos esforços se centram em calafetar o espaço da vida com o objectivo de que aí não irrompa o perigo(T46-47 e 79/A24 e 54). Personagens como o crente, o guerreiro, o artista, o navegador, o caçador, o criminoso e o trabalhador, os que trazem o perfume do perigo, estes estão numa relação de proximidade com o elementar — embora esta proximidade se possa dar a vários níveis e não tenha em todos eles o mesmo sentido. Mas todos suscitam a mesma aversão por parte do burguês/cidadão(T80/A54). Nestas formas de vida, a segurança e o perigo não estão entre si sobrepostos pelo valor. O contrário, no entanto, se passa com o burguês/cidadão: "(...) il faut concevoir le bourgeois comme l'homme qui reconnaît la sécurité comme valeur suprême et détermine en fonction d'elle la conduite de sa vie."(T81/A56) É aqui que os deuses se retiram, quando não são postos à porta (6): faz-se do mundo um deserto inteiramente racionalizado e moralizado(T102/A75).

Por conseguinte, a sociedade assenta numa negação do elementar. Esta dá-se sob várias formas: "Cette négation s'effectue en rejetant l'élémentaire dans le domaine de l'erreur, du rêve ou d'un volonté forcément mauvaise, elle va même jusqu'à confondre l'élémentaire avec le non-sens pur. L'accusation de bêtise et d'immoralité est ici décisive, et comme la société se détermine d'après les deux concepts suprêmes de la raison et de la morale, cette accusation permet de bannir l'adversaire hors de l'espace de la société, donc de l'espace de l'humanité et ainsi de l'espace de la loi."(T47/A24-25) Se a sociedade assenta num processo de negação, ela não é, por consequência, uma forma em si, não se impõe a partir de si mesma. Trata-se antes de um dos modos fundamentais da representação burguesa <bürgelichen Vorstellung>(T50/A27): é uma representação que visa à dominação. É nesta medida que a bürgelichen Vorstellung tem a necessidade de que o trabalhador lhe seja assimilado enquanto peão dessa dominação. E por consequência, por esta mesma razão, aí reside também a necessidade de o trabalhador não se incluir dentro dessa representação, e isto tanto quanto ele próprio vise à dominação. No trabalhador falaria o Estado (7) — "(...) la plus haute exigence que puisse formuler le Travailleur ne consiste pas à être le support d'une nouvelle société mais celui d'un nouvel État."(T55/A32) —, no cidadão-burgês fala a sociedade. Com a sociedade está em causa uma dominação cujos mecanismos são a negociação e o contrato, no Estado, por sua vez, joga-se a dominação de uma força que se impõe a partir de si própria.

Com este tipo de dominação que é próprio das representações "burguesas", a força que se impõe a partir de si própria, o elementar, é alvo — a par da negação referida — de um processo de assimilação por parte da sociedade, de uma submissão aos seus critérios: é isso que confere ao "moralismo", à "delicadeza" <Gesittung> a sua dupla face — "(...) les étroits rapports qui règnent entre la fraternité et l'échafaud, entre les droits de l'homme et les batailles meurtrières ne sont que trop connus."(T47/A24) Corre-se aí então um risco que é o de se agir por conta alheia: é que a sociedade precisa de oposições internas, de disputas contra si própria, de "radicalismos". Estas oposições internas actuam como simulacros do seu dinamismo, são os reflexos da sua dominação dialéctica: "La société se renouvelle par des attaques simulés contre elle-même; son caractère imprécis ou plutôt son absence de caractère lui permet d'absorber même la plus violente négation d'elle-même. Ses moyens sont de deux sortes: ou bien elle renvoie la négation à son pôle anarchiste individuelle et l'incorpore à son propre fond en la subordonnant à son concept de liberté; ou bien elle l'inclut dans le pôle apparemment opposé de la masse et l'y transforme en acte démocratique par la statistique, par le vote, par la négociation ou la discussion.// Sa nature féminine se trahit en ce qu'elle ne tente pas d'éliminer les oppositions mais bien plutôt de les assimiler. Partout où elle rencontre une revendication qui s'affirme résolument, sa tactique la plus subtile consiste à la dénaturer: elle l'explique comme une manifestation de son concept de liberté et la légitime sous cette forme sur le forum de sa loi fundamentale: c'est-à-dire qu'elle la rend inoffensive."(T51-52/A28-29)

Mas que a dominação das representações burguesas se possa apreciar pelo grau de retraimento do elementar e do "perigo", de que uma das faces é a criação de um espaço romântico, refúgio em que o burguês/cidadão está disposto a conceder um lugar ao elementar, longínquo no espaço e remoto no tempo (8), isso não quer dizer, no entanto, que o elementar não deixe de estar presente. Ele está sempre presente e sempre pronto a irromper: o elementar tem as suas fontes tanto no mundo como no coração humano(T84/A58). E nomeadamente com a guerra — Jünger tem em mente sobretudo a Primeira Grande Guerra, embora, como sobretudo se poderá ver no ponto III, esta faça parte do processo de mobilização técnica do mundo pela figura do trabalhador —, aí dá-se a metamorfose do espaço romântico em espaço elementar: o que é perigoso passa a dominar o presente(T88-90/A63). Mas o que importa aqui entender é que o elementar não é, como se disse, unicamente aquilo que é exterior ao homem, não está apenas no mundo — o elementar é sobretudo a sua natura e o seu daimon: "(...) l'élémentaire n'appartient pas seulement au monde extérieur (...) il fait aussi partie de l'existence de chaque "individu" <Einzelne> comme une dot inaliénable. L'homme vit selon l'élémentaire dans la mesure où il est à la fois un être naturel <natürliches> et un être démonique <dämoniches>. Aucun syllogisme ne peut remplacer le battement du coeur ni le fonctionnement des reins et il n'y a aucune grandeur, fût-ce la raison elle-même, qui ne se soumette parfois aux basses ou fières passions de la vie."(T83-84/A58)

Nesta última passagem citada de Der Arbeiter, Jünger diz que o elementar é um dote inalienável da pessoa singular <der Einzelne>. A pessoa singular, o homem a sós consigo mesmo, é uma espécie de reduto do humano, é o seu Inseparado <Ungesonderten>, união da natura e do daimon. Sendo assim, esse reduto é o mesmo tanto para o indivíduo <das Individuum>, que constitui a representação do humano para o bürgerlichen Denken e cujo maior grau na hieraquia é representado pelo génio, como o é também para o tipo, forma como o humano tende a aparecer no espaço elementar e no espaço de trabalho. Que o humano apareça como tipo, isso surge a par da mobilização do mundo pela figura do trabalhador e será o resultado da mobilização do humano por essa figura, o que implica a dissolução do indivíduo <Auflösu ng des Individuums> em todos os níveis. Isto é sentido, antes de mais, como uma perda, uma "desumanização", e tanto maior é esse sentimento quanto não esteja pressuposta a acção da figura. Mas a figura, por sua vez, é uma potência elementar, por conseguinte, "Também na pessoa singular está representada a figura, cada uma das unhas dos dedos, cada átomo, é nela figura."(T63/A39) É naquilo a que se pode chamar o concreto do homem, no seu elementar, que reside nele a figura, não numa representação geral, como é o caso do indivíduo enquanto homem em geral: o que vale por dizer que o homem possui uma figura na medida em que é um homem e não o homem — esta última é uma abstracção recorrente, que nos persegue na medida em que somos dominados por uma determinada representação —: "O homem possui uma figura na medida em que é concebido como pessoa singular concreta, palpável. Mas isso não é válido para o homem em geral, que mais não é do que um dos chavões do entendimento e que pode ao mesmo tempo significar tudo e nada, mas em nenhum caso alguma coisa de determinado."(Id.) (9)

Deste modo, a mobilização que incide sobre o humano através do carácter do trabalho, a mobilização da figura do trabalhador, traz como consequência a dissolução daquilo que, por uma concepção abstracta da liberdade, faz o indivíduo parecer único — no carácter especializado do trabalho, nas especializações, distinções, separações que o definem, é muito mais requerida uma aptidão, um carácter típico, do que uma individualidade. Aqui a pessoa singular já não se manifesta, não se pode manifestar, enquanto indivíduo, mas enquanto tipo. Com este termo, aplicado ao homem, Jünger procura dar a ver o humano na medida em que é investido pela figura do trabalhador, a qual é apreendida numa intuição. O tipo não é uma forma acabada, não é visível enquanto forma acabada, ele é um símile, uma imagem especular <Spiegelbild> da figura do trabalhador — "O tipo não se dá na natureza e a figura não aparece no Universo"(TNG, §4); "Figura e tipo são expressões da intuição mais elevada."(TNG, §1)

Voltemos a Typus.Name.Gestalt, muito embora o exemplo aqui seja o do gato e não o do homem: "Concebendo o tipo como uma imagem especular, não encontramos nenhuma determinação em relação à realidade. Nem tudo o que não aparece na natureza precisa de ser irreal. Que aqui temos de tomar cuidado mostra-o já a experiência, já que a imagem típica possui duração mais longa que a imagem histórica ou biológica, e também possui efectividade mais forte.//Na verdade, o tipo do gato não dispõe da realidade palpável do gato que encontramos na nossa casa; ele pode, contudo, concorrer com ele em realidade. Quando nós apreendemos o tipo como imagem especular, talvez mesmo como a mais elevada imagem especular, ainda nada foi dito, com isso, sobre o espelho.// Podemos imaginar no fundo a relação simples desta maneira: o fenómeno palpável do gato procede da natureza e do seu poder sem nome, que os escolásticos classificaram como Natura naturans. Como tipo ele é apreendido pelo homem intuitivamente, e, na verdade, na sua essência mais profunda que repousa no fundo da natureza."(TNG,§29) Temos então que entre o trabalhador, qualquer homem que trabalha, e o tipo do trabalhador — o "trabalhador" — joga-se a intuição que apreende o trabalhador num poder mais efectivo. Esta a imagem especular. O espelho, sobre o qual, nesta passagem citada, "ainda nada foi dito", é a figura.

À manifestação da pessoa singular quer enquanto indivíduo quer enquanto tipo corresponderão duas espécies de experiências: as experiências únicas e individuais e as experiências típicas <typischen Erlebnissen>. Jünger convocará aqui, de novo, a experiência da Primeira Grande Guerra, como se das suas cinzas renascesse a pessoa singular enquanto tipo, em cuja existência se dá o declínio do indivíduo, como é mostrado de um modo muito significativo no §32: "Le théâtre à l'intérieur duquel s'accomplit le déclin de l'individu (Idividuum) est l'existence de l'"individu" (Einzelne). C'est question secondaire de savoir si la mort de l'individu coïncide avec la mort de l'"individu", comme, par exemple, dans le cas du suicide ou de l'anéantissement, ou si l'"individu" survit à cette perte et trouve le contact avec de nouvelles sources de force.// Ce phénomène dont on constate aujourd'hui que l'être le plus humble a pu faire l'expérience <Erfahrung> s'offre avec une particulière évidence dans la manière dont la guerre a modelé le destin de l'"individu".// Rappelons ici la célèbre charge des régiments volontaires à Langemark (10). Cette événement dont la signification relève moins de l'histoire de la guerre que de celle de l'esprit possède un très haut rang quant à la question de savoir quelle attitude est véritablement possible dans notre temps et dans notre espace. Nous voyons ici la débâcle d'une charge classique, malgré la force de la volonté de puissance qui anime les individus <Individuen>, la force des valeurs morales et spirituelles qui les distinguent. Volonté libre, culture, enthousiasme, ivresse du mépris de la mort ne suffisent pas à surmonter la force d'inertie des quelques centaines de mètres sur lesquels règne la puissance magique de la mort mécanique.// Cela entraîne l'image unique et véritablement fantomatique d'une mort dans l'espace de l'idée pure, d'une destruction où, comme dans un cauchemar, même un effort de volonté absolu ne parvient pas à dompter une résistance démoniaque.// L'obstacle qui fige ici le battement du coeur le plus hardi ne vient pas d'un homme qui s'adonnerait à une activité de qualité supérieure — c'est l'entrée en scéne d'un nouveau et térrible principe qui se manifeste comme négation. L'abandon où s'accomplit ici le destin tragique de l'individu est le symbole de l'abandon de l'homme dans un nouveau monde encore inexploré dont la loi d'acier est ressentie comme absurde.(...) Ce qui se trouve au coeur du phénomène de Lagemarck, c'est l'intervention d'un contraste cosmique qui se répète chaque fois que l'ordre du monde est ébranlé et qui s'exprime ici par les symboles d'un âge technique.(...) Ce qui meurt, ce qui succombe, c'est l'individu comme représentant d'un ordre affaiblit et voué au déclin. L'"individu" doit parvenir à traverser cette mort, que celle-ci mette ou non un terme à sa carrière visible: et c'est un beau spectacle s'il ne cherche pas à l'éviter mais s'efforce de la trouver dans l'ofensive."(T145-147/A115-117)

Deu-se relevo na Introdução à dificuldade em reconhecer a figura ao nível do espaço em que nos confrontamos com o mundo — esse reconhecimento passaria, antes de mais, por uma nova consciência da liberdade, referida atrás. Aqui Jünger interroga-se: "Est-il donc possible que cette conscience d'une nouvelle liberté, la conscience d'être placé à un point stratégique puisse s'éprouver aussi bien dans l'espace de la pensée que derriére de rapides et bruyantes machines et dans la cohue des cités mécaniques?"(T101/A75) Dela, dessa consciência, podemos ter um reconhecimento precisamente na atitude com que a pessoa singular se entrega tanto ao combate "desumanizado" quanto ao trabalho "desumanizado", havendo que perceber aqui "desumanizado" no sentido de que é chamado à liça mais o indivíduo do que a pessoa singular, é ele que mais sofre, tendo o tipo outros recursos. São dadas outras significações ao humano, tal como à morte e à vida. Por exemplo, quanto à necessidade de se ter uma outra relação com a morte, diferente da do indivíduo, diz Jünger: "É muito importante para nós avançar de novo para uma plena consciência do facto de o cadáver não ser uma espécie de corpo privado de alma"(T65/A41) (11). Na entrega da pessoa singular tanto ao combate quanto ao trabalho reside aquilo a que Jünger chama "realismo heróico" e que corresponde no humano ao símbolo da época — o motor: "(...) o motor não é o soberano mas o símbolo <Symbol> da nossa época, a imagem simbólica <Sinnbild> de um poder em que explosão e precisão não são opostos. É o audacioso brinquedo de um tipo de homem capaz de se fazer ir pelos ares com alegria vendo nesse acto uma confirmação da ordem. Desta atitude - que não é realizável nem pelo idealismo nem pelo materialismo e que se deve qualificar como um realismo heróico - resulta esse extremo grau de força ofensiva de que estamos precisados."(T66/A42) (12) O "realismo heróico" é a imagem da abdicação e da entrega conjugadas com a acção e a criação de possibilidades genéricas, típicas. Para empregar os termos de Jünger: é a união entre a nova consciência e a liberdade. Não se trata, bem entendido, de um realismo ou de um heroísmo com um pano de fundo dado pelo valor ou pela moral. Segundo este pano de fundo, o realismo e o heroísmo são atitudes distintas, estando em ambas presente o cálculo das vantagens e das desvantagens, quer como móbil esclarecido, racional, do primeiro, quer como reconhecimento posterior do segundo. Poderíamos chamá-los de realismo e heroísmo técnicos.

Na experiência extrema descrita por Jünger no citado §32, bem como em todas as experiências típicas, nenhum dos que nelas participam as podem reivindicar como únicas, como sua propriedade individual. Aí reside também a dificuldade principal quanto ao reconhecimento da relação essencial <wesentliche Beziehung> entre o trabalhador e o mundo do trabalho — o mundo do trabalho também não se oferece a uma experiência única: "De même qu'il n'est possible qu'aujourd'hui, avec retard et grâce, seulement, à la force du poète, de montrer que ce qui se passait au milieu d'un feu d'enfer alimenté par des instruments de précision se situe au-delà de tout questionnement et possède un sens en dehors de lui, de même il est très dificille de reconnaître le rapport essentiel du Travailleur au monde du travail dont ce paysage en feu est le symbole guerrier.(...) L'ampleur de la détresse et du danger, la destruction des liens anciens, l'abstraction, la spécialisation et le rythme de chaque activité coupent les positions individuelles les unes des autres avec une brutalité toujours croissante et nourrissent chez l'homme le sentiment d'être perdu dans un fourré inextricable d'opinions, d'événements et d'intérêts."(T93/A66-67)

No que se disse sobre o trabalhador e sobre o seu "realismo heróico" está pressuposto que o trabalho tem "por detrás de si" a figura do trabalhador. Esta está representada num tipo humano que vive consoante a figura, consoante o seu princípio: "Le processus selon lequel une nouvelle Figure, la Figure du Travailleur, s'exprime dans un type humain particulier, se présente, en ce qui concerne la maîtrise du monde, comme l'entrée en jeu d'un nouveau principe qu'il faut qualifier de travail."(T123/A95) Esse princípio é, então, o trabalho. Deste modo, o trabalho é a expressão dessa figura e não uma espécie de actividade entre outras ou uma actividade de alguns. Na medida em que a figura domine, o trabalho é expressão da própria vida do trabalhador, é o seu modo de vida <Lebensart>, não pode, por conseguinte, ser apropriável por desígnios económicos ou por desígnios de poder estritos. A figura do trabalhador tem tanta necessidade, digamos, do trabalhador enquanto forma humana, quanto esta dela, bem como é impensável esta forma sem o homem que trabalha. Pode-se então responder à pergunta sobre o que é o trabalho dizendo que o trabalho é aquilo que faz o homem que trabalha, mas, como tudo está ligado, também o trabalho estará ligado ao homem que trabalha de um modo mais fundamental: o trabalho é um modo de vida, é-o tanto quanto a figura esteja representada no trabalhador. Mas o trabalho ainda é mais do que isso: "Travail est le rythme du poing, des pensées, du coeur, la vie de jour et de nuit, la science, l'amour, l'art, la foi, le culte, la guerre; travail est la vibration de l'atome et la force qui meut les étoiles et les systèmes solaires."(T101/A74) Isso faz com que o trabalho, num grau de realização ainda maior, se torne num estilo de vida <Lebenstil>(T321/A283), i.e., que a dominação passe de um carácter anónimo, subterrâneo, ao exercício de um estilo(T129/A101) — os trabalhadores não são escravos mas mestres disfarçados.

Ao pensarmos a relação figura do trabalhador-trabalho-trabalhador segundo, nas palavras de Jün ger, a lei do selo e do cunho, podemos recorrer por analogia ao selo — ao carimbo — e às suas impressões, às suas marcas, ou à "figura da tempestade" e à tempestade. O selo não tem já as suas impressões, bem como a chuva o os raios caindo sobre a terra são uma coisa e a tempestade é outra. A chuva e os raios caindo sobre a terra corresponderiam ao trabalho, tal como a tempestade ao trabalhador — e a figura da tempestade à figura do trabalhador. A chuva e os raios caindo sobre a terra, por um lado, não têm já as impressões da tempestade, nem, por outro lado, aprisionam, determinam, a figura da tempestade: tal como o selo é "libertado" na impressão, tal como a figura da tempestade é "libertada" na tempestade, assim também podemos conceber a "libertação" da figura do trabalhador no trabalhador. O trabalho seria a chuva e os raios caindo sobre a terra, por conseguinte, não a potencialidade da tempestade, mas a sua expressão, não a potencialidade da figura do trabalhador, mas a sua expressão. Pode-se de bom grado aceitar, neste sentido, que o trabalho seja o ritmo do punho, dos pensamentos, do coração, a vida de dia e de noite, a ciência, o amor, a arte, a fé, o culto, a guerra, mesmo a vibração do átomo — mas como compreender que o trabalho seja a força que move as estrelas e os sistemas solares? Jünger responderá com uma identidade particular do trabalho e do ser: "(...) il faut changer de point de vue; il ne faut pas regarder selon la perpective du progrès mais depuis le point où cette perspective perd son intérêt — et cela parce qu'une identité particulière du travail et de l'être assure une nouvelle sécurité, une nouvelle stabilité."(T126/A98) Isto coloca questões que têm o seu desenvolvimento tanto a partir da "totalidade" da figura, já abordada atrás, quanto a partir da "mobilização total" da técnica, que adiante se encontrará.

Mas, relativamente a esta consideração do trabalho, é evidente que aqui Jünger não se pode socorrer das etimologias, pelo menos tal como têm sido geralmente estabelecidas. Aliás, não é de maneira nenhuma isso que ele pretende. Ele pretende "ver". E a figura transforma também os nomes, estes são uma resposta. Segundo as suas palavras, é preciso conceber o trabalho diferentemente da maneira tradicional(T100-101/A74), ver a palavra "trabalho" na sua significação modificada, para o que são precisos novos olhos(T124/A96).

Mantendo-se o objectivo de uma aproximação à singularidade da concepção de Jünger, apresentam-se agora aqui em contraposição com ela alguns breves traços do pensamento de Hannah Arendt sobre o trabalho. Esta não se refere a Jünger em lado nenhum da sua obra Human Condition, onde trata do trabalho dentro do quadro da "vita activa". No que se segue, o desencontro apresenta-se sobretudo na consideração de uma acção livre, cujo esforço em Hannah Arendt vai no sentido de a limitar à "condição humana", àquilo que é pensável, e isto porque as "boas intenções" dos contratos, das leis e dos costumes não são suficientes para impedir o mal. Pode-se dizer que em Jünger essa acção, num sentido pleno, seria inumana, na medida em que a figura é inumana; estando o humano, neste caso o mais livre, livre do humano, na capacidade de dar resposta, corresponder, a esse inumano. Um pensamento deste género assentaria, nos termos de Hannah Arendt, numa sobreposição da "vita comtemplativa" em relação à "vita activa". Esta sobreposição pode ser uma porta de entrada para o "tudo é possível" (13) do mal, do horror, do terror, daquilo que é impensável para a "condição humana". Aqui, para Jünger, haveria que considerar no "mal", no impensável, uma das manifestações do elementar: "(...) l'homme n'est pas bon, il est à la fois bon et mauvais. Dans tout calcul prévisionnel qui prétend résister à l'épreuve de la réalité, il faut inclure ce fait qu'il n'y a rien dont l'homme ne soit capable."(T246/A211) No entanto, a diferença não está, evidentemente, em um se dirigir ao bem e o outro se dirigir ao mal — isso seria uma simplificação sem sentido. Contrapõem-se aqui, ainda, duas maneiras de estar em comum, mesmo duas maneiras de ir ao encontro com outros homens, que são talvez irredutíveis uma à outra, mas não podem de maneira nenhuma negar-se uma à outra: a maneira do indivíduo entre indivíduos e a do homem isolado entre homens isolados <Einzelner>, a do "homem social" e a do "homem só" — o "homem só" nem sempre é "só" por se ter aliviado dos outros homens. Neste sentido, aquilo que Hannah Arendt considera "a condição da política", pode representar para Jünger um constrangimento. Por sua vez, aquilo que Jünger considera participação na acção comum, na qual sofrer a acção é mais poderoso, pode muito bem ser aquilo que a todo custo Hannah Arendt queira evitar.

Mas ainda quanto ao que se disse anteriormente sobre o facto de as etimologias não ajudarem à concepção de Jünger: podemos ler o seguinte numa nota etimológica de Hannah Arendt em Human Condition (Condition de L'Homme Moderne), nota sobre a significação do termo "trabalho": "Tous les noms européens du "travail", labor en latin et en anglais, ponos en grec, travail en français, Arbeit en allemand, signifient fatigue, effort et servent aussi à désigner les douleurs de l'enfantement. Etymologiquement labor est de même racine que labare ("trébucher sous un fardeu"); ponos et Arbeit évoquent la "pauvreté" (penia en grec, Armut en allemand). Même Hésiode, qui passe pour l'un des rares défenseurs du travail dans l'antiqueté, fait du travail dur (ponon alginoenta) le premier des fléaux de l'homme (Théogonie, 226).(...) En allemand, Arbeit et arm viennent du germanique arbma qui signifiait solitaire, négligè, abandonné (cf. Kluge-Götze, Etymologisches Wörterbuch, 1951). En allemand mediéval, le mot servait à traduire labor, tribulatio, persecutio, adversitas, malum (cf. Klara Vontobel, Das Arbeitsethos des deutschen Protestantismus, Berne, 1946). (14)"

Por outro lado, a par do termo "trabalho", as línguas têm normalmente outro termo para o processo de realização de obras duráveis: "(...) chaque langue européenne, ancienne ou moderne, possède deux mots sans lien étymologique pour ce que nous en sommes venus à considérer comme la même activité: ainsi, le grec distinguait ponein et ergaxesqai, o latin laborare et facere, le français travailler et ouvrer, l'allemand arbeiten et werken." (15) (16) Hannah Arendt salienta também que o trabalho não faz parte das maldições bíblicas, ao contrário da interpretação corrente. A maldição tornou, antes, o trabalho doloroso (17). De qualquer modo, mesmo com a "glorificação teórica" (18) de que o trabalho é objecto por parte dos pensadores modernos, este é normalmente definido enquanto uma necessidade dolorosa — a sua glorificação tem apoio nos proveitos, físicos e morais, que dele resultam, quando encarados pelo lado utilitarista ou pelo do moralismo: o "trabalho produtivo". Necessário, mas um sacrifício. Hannah Arent dá ela própria uma definição do trabalho dentro do quadro mais geral da "vita activa" — o trabalho é uma das "três actividades fundamentais", sendo as outras a obra e a acção <Labor, Work, Action>. Evidentemente que esta consideração, como se disse, não corresponde à de Jünger, na qual, contemplação e acção — "vita contemplativa" e "vita activa" [e porque a acção é no fundo o grau mais alto da vita activa, o mais contemplativo, diríamos] nos termos de Arendt — com o domínio da figura do trabalhador, assumem a mesma forma: trabalho. Hannah Arendt define o trabalho desta forma: "Le travail est l'activité qui correspond au processus biologique du corps humain, dont la croissance spontanée, le métabolisme et éventuellement la corruption, sont liés aux productions élémentaires dont le travail nourrit ce processus vital. La condition humaine du travail est la vie elle-même. (19)" Temos aqui uma identificação do trabalho com a vida biológica. Certamente que esta identificação concede ao trabalho uma justificação diferente daquela que se baseia unicamente em razões utilitaristas ou morais; aqui o trabalho surge como natural — daí a expressão, que parece remontar a Marx, de animal laborans.

Mas há que assinalar que este natural foi sempre a parte mal amada do pensamento, pelo menos na maior parte das suas realizações depois dos gregos. O animal laborans é apresentado por Hannah Arendt como prisioneiro do ciclo perpétuo do processo vital (20). E Marx — seguimos aqui as palavras de Arendt —, a par da consideração do trabalho como "necessidade eterna imposta pela natureza", teria em mente a abolição do trabalho: temos aqui o "equívoco", apontado por Hannah Arendt. Nas suas palavras: "(...) il faudra que le travail soit aboli pour que le "domaine de la liberté„ suplante le "domaine de la nécessité„. Car "le domaine de la liberté ne commence que lorsque cesse le travail déterminé par le besoin et l'utilité extérieure„, lorsque prend fin la "loi des besoins physiques immédiats„. (21)" Ora, Jünger tem de pensar a liberdade de outra forma. Este modo de a encarar corresponde, segundo ele, a uma visão da liberdade enquanto negação — "(...) prisonniers du schéma moral d'un christianisme corrompu où le travail lui-même apparaît comme mauvais, et qui transpose la malédiction biblique dans le rapport matériel entre exploitateurs et exploités, ils se révèlent incapables de concevoir la liberté autrement qu'en termes de négation, comme délivrance d'un mal quelconque. (...) Or, au sein d'un monde (...) dont le travail est conçu comme la nécessité la plus intime, rien n'est plus éclairant que le fait que la liberté se présente précisément comme l'expression de de cette nécessité ou, en d'autres termes, que toute exigence de liberté apparaît ici comme une exigence de travail."(T99-100/A73)

Por seu turno, Hannah Arendt também procura pensar a liberdade no quadro da "vita activa", e isto por todas as razões, como não podia deixar de ser, as quais estão exemplar e dolorosamente demonstradas na sua vida. Ela quer mostrar os limites de uma liberdade, as facilidades, os perigos para ela mesma, que apenas tenha a sua morada na "vita contemplativa". Também o pensador é menos livre na tirania. Quanto à "vita activa", será na acção que a liberdade vai ter o seu lugar, ou melhor, é esta que define aquela. Esta concepção depende de uma diferenciação individual, trata-se de uma acção voluntária, "uma iniciativa" em que não só o homem se opõe à natureza como ao outro homem, ainda que o fim ou o princípio dessa oposição assista no facto de serem iguais : "L'action, la seule activité qui mette directement en rapport les hommes, sans l'intermédiaire des objects ni de la matière, correspond à condition humaine de la pluralité, au fait que ce sont des hommes et non pas l'homme, qui vivent sur terre et habitent le monde. Si tous les aspects de la condition humaine ont de quelque façon rapport à la politique, cette pluralité est spécifiquement la condition — non seulement la conditio sine qua non, mais encore la conditio per quam — de toute vie politique. (22)"

A acção não pode ser finalizada: "Elle est inconditionnée; son impulsion surgit du commencement qui est entré dans le monde lorsque nous sommes nés et auquel nous répondons en commençant quelque chose de neuf de notre propre inititive. Agir, en son sens le plus général, signifie prendre une initiative, commencer, comme l'indique le mot grec: arcein, ou mettre quelque chose en mouvement, ce qui est la signification originelle du latin agere. (23)"

A acção está estreitamente ligada à palavra, à fala: "L'action et la parole sont si étroitement liées parce que l'acte primordial et spécifiquement humain doit toujours aussi répondre à la question posée à tout nouvel arrivant: "Qui es-tu?„. La manifestation de "qui est quelqu'un„ est implicite dans le fait que l'action muette n'existe en quelque sorte pas, ou si elle existe, est sans portée; sans parole, l'action perd l'acteur, et l'agent des acts n'est possible que dans la mesure où il est en même temps celui qui dit des mots, qui s'identifie comme l'acteur et annonce ce qu'il fait, ce qu'il a fait, ou ce qu'il a l'intention de faire. (24)"

Não há acção muda, por conseguinte, a mudez corresponde a um agir que não é um agir humano, melhor, um agir que não é livre. E entramos aqui de novo no desencontro principal quanto à concepção da liberdade. Mas, como diria Jünger, ambas dão o seu lugar ao Leviathan — "Vis-à-vis du Léviathan, il y a de nombreux points de vue. Ils ne le définissent pas; ils lui donnent son lieu. Il ne faut pas non plus prendre trop aux sérieux son propre point de vue. (25)"

Assinale-se, por fim, que quanto a este desencontro, é muito significativo o que ambos os autores dizem a respeito do Soldado Desconhecido, embora Hannah Arendt se refira em primeira instância aos seus monumentos. As diferenças na apreciação do significado do Soldado Desconhecido podem ser iluminadas pela distinção entre experiências típicas e experiências individuais. De ambas as apreciações resulta claro que a experiência do Soldado Desconhecido já não pode ser a de um indivíduo, mas as consequências que os dois autores daí retiram são muito diferentes. Para Hannah Arendt, os monumentos erigidos ao Soldado Desconhecido dão testemunho da necessidade de encontrar um "quem" e foram inspirados pela dificuldade em aceitar que o agente da guerra não era/era Ninguém. As mortandades não foram acção livre de ninguém, ninguém pôde, humanamente, responder por elas. Por seu lado, para Jünger, o Soldado Desconhecido é Alguém — o único alguém que pode responder. Ele é "representante do tipo activo", como se pode ler na passagem de Der Arbeiter a citar, ou o único alguém que se revela capaz de "assumir a responsabilidade no meio das aniquilações mecânicas", na passagem de Der Waldgang. [Esta é uma sua obra de 1951 onde Jünger constrói uma figura que constitui uma resposta ao totalitarismo, ao Leviathan, da era do trabalhador — a figura do desterrado <Waldgänger> — e que diz respeito àquele que se dá a si próprio um desterro quando já não pode viver no colete de forças em que a dominação da era do trabalhador se tornou. Tal como o trabalhador só pode ser "trabalhador" depois de passar pela escola do bürgelichen Denken (26), assim o "desterrado" também só pode estar na continuidade ao "trabalhador", i.e., não se trata de uma figura que possa estar ao dispor de quem não represente de alguma maneira o "trabalhador". A figura do desterrado não se pode dar, por conseguinte, no cidadão; este, na medida em que não é verdadeiramente trabalhador, está preso nas malhas da dominação da era do trabalhador.]

Portanto, para Hannah Arendt, o Soldado Desconhecido é aquele que não responde. Para Ernst Jünger ele é a coisa comum que responde. Aqui dá-se uma perda de acção "ao nível psicológico" e entra-se em lugares onde falta a linguagem. Não se está preparado para eles. Jünger fala numa "revolução sans phrase". Entra-se num domínio em que talvez a acção seja anterior à palavra. Mas é preciso esperar por ela.

Vejamos então essas passagens:

Hannah Arendt: "Permettez-moi de vous rappeler les monuments au Soldat Inconnu après la Première Guerre Mondiale. Ils portent du besoin de trouver un "qui", quelqu'un d'identifiable, que quatre années de tuerie de masse auraient dû révéler. La répugnance à se résigner au fait brutal que l'agent de la guerre n'était en réalité Personne inspira l'érection de monuments dédiés aux inconnus — c'est-à-dire à tous ceux que la guerre avait échoué à faire connaître, les privant par là, non de ce qu'ils accomplissaient, mais de leur dignité humaine. (26)"

Ernst Jünger em Der Arbeiter: "L'un des premiers exemples de représentant du type actif s'incarne dans le soldat inconnu — exemple où, d'ailleurs, le rang cultuel du travail s'exprime dejà très clairement. (...) De là vient que le héros de ce processus, le soldat inconnu, apparaît comme le porteur d'un maximum de vertus actives: le courage, la disponibilité et l'esprit de sacrifice. Sa vertu réside dans le fait qu'on puisse le remplacer et que derrière chaque tué la relève se trouve en réserve. Son critère de référence est celui de la performance objective, de la performance sans beaux discours; aussi est-il en un sens éminent porteur de la révolution sans phrase."(T194-195/A162)

O mesmo autor em Der Waldgang: "Na mesma medida, porém, em que a acção começa a afundar-se psicologicamente, tipologicamente torna-se mais significativa. O ser humano penetra em contextos que não apreende conscientemente de modo imediato, para já não falar das configurações <Gestaltungen> — só com o tempo se tece uma óptica que torna compreensível o espectáculo. (...) Com as catástrofes vemos aparecer figuras, que se mostram à sua altura e que hão-de sobreviver-lhes, quando os nomes acidentais há muito tiverem sido esquecidos. (...) Entre elas conta-se a do soldado desconhecido, o do sem-nome, que, precisamente por isso, vive não só em cada capital, como também em cada aldeia, em cada família. (...) Os incêndios arrefecem e fica uma outra coisa, uma coisa comum, a que não se dedicam vontade nem paixões, mas arte e veneração. // Ora, por que é que se dá o caso de esta figura estar nitidamente ligada à recordação da primeira e não da segunda Guerra Mundial? Isso procede da clareza com que agora aparecem as formas e os objectivos da Guerra Civil Mundial. Com isso o que pertence ao elemento militar <das Soldatiche> recua para segundo plano. O Soldado Desconhecido é ainda um herói, um domador dos mundos ígneos, que assume a responsabilidade no meio das aniquilações mecânicas. (28)"

 

Notas:

1. Passagem da carta a Henri Plard já referida, tradução castelhana de Der Arbeiter, ob. cit., p. 344. O domínio das maiores abstracções foi sempre o terreno fértil para as mais "fortes realidades", para o melhor e para o pior. A questão não reside na oposição, talvez inútil, entre abstracções e realidade, mas na inclinação de Jünger pela matéria e pelas mutações, a despeito das ideias gerais que temos delas, máscaras que acabam por ficar nas nossas mãos — "O ser toma como máscara o tempo e os tempos, mas não podemos descobri-lo, porque, quando o desmascaramos, a máscara fica-nos nas mãos. E já nos desorienta, já nos cega uma moda nova, uma nova cara. Mas o seguinte: pôr-se em estado de conquistar o lugar onde se compreende, se não o que se transmuda, pelo menos as suas transmutações, é a aproximação. É aqui que os caminhos divergem: um chora a máscara caída ou troça dela, enquanto que o outro sucumbe à fascinação da nova máscara. Existe contudo, como entre os túmulos etruscos, ainda uma terceira perspectiva: o olhar sereno pousado no que se vai passando." Ernst Jünger, Drogas Embriaguez e Outros Temas, tradução de Margarida Homem de Sousa, revista por Rafael Gomes Filipe e Roberto de Moraes, Arcádia, Lisboa, 1977, p.313.

2. Cf. tradução em apêndice.

3. Este termo, como já foi referido, deve ser entendido sem a habitual significação histórica. Refere-se a uma ordem que é constituída por uma situação elementar, o que pode ficar mais claro com a leitura do que se segue.

4. O idealismo e o materialismo são, segundo Jünger, expressões abstractas que não se explicam nem pela ideia nem pela matéria, mas por uma forma de representação particular que corresponde a um ideal, uma utopia económica do mundo: "L'image idéale du monde, raisonable et vertueuse, coïncide ici avec une utopie économique du monde, et c'est à des revendications économiques que se rapporte tout questionnement."(T57/A33-34) E umas linhas antes: "Le débat suscité par cette revendication <économique> entre les écoles idéalistes et matérialistes constitue l'un des épisodes de l'interminable dialogue bourgeois; c'est une nouvelle mouture des premières discussions des encyclopédistes dans leurs mansardes parisiennes. On représente encore une fois les anciennes figures (Figuren) et rien n'a changé que le schéma qui les oppose et qui est désormais devenu purement économique."(Id.) Finalmente: "Idéalisme ou matérialisme? — Voilà une opposition bonne pour des esprits impurs dont l'imagination n'est à la hauteur ni de l'idée, ni de la matière! La dureté du monde ne cède qu'à la dureté, non à des tours de passe-passe."(T58/A35)

5. Ernst Jünger, Maxima-minima — notes complémentaires pour Le Travailleur, trad. Julien Hervier, Christian Bourgois, Paris, 1992, p.13.

6. "Les dieux aiment se manifester dans les astres incandescents, dans le tonnerre et dans l'éclair, dans le buisson ardent que la flamme ne consume pas. Zeus tremble de joie sur son trône suprême tandis que la terre répercute avec fracas les combats des dieux et des hommes, car c'est là qu'il voit confirmé avec violence l'ampleur de sa puissance."(T81/A56)

7. De novo quanto ao entendimento desta palavra, citamos as Adnoten: "Le mot 'Etat' ne doit pas non plus être mesuré à des exemples historiques; il signifie statut, état, situation, ordre."(Ob. cit., p.22.)

8. "Il n'est pas donné à l'espace romantique de posséder son centre propre: il consiste uniquement dans une projection. Il se situe à l'ombre du monde bourgeois dont la source lumineuse ne détermine pas seulement son étendue mais peut aussi le faire disparaître avec aisance, partout et en tout temps. Cela s'exprime dans le fait que l'espace romantique n'apparaît jamais comme présent, que l'éloignement constitue même le trait essentiel qui le caractèrise - un éloignement dont les critères de mesure sont cependant tous empruntés au présent. Le proche el le loitain, le clair et l'obscur, le jour et la nuit, le rêve et la réalité, voilà les noms des repères qui guident le romantisme pour faire le point."(T84/A54)

9. Para ambas as passagens citadas, cf. tradução em apêndice.

10. Nota do tradutor francês na mesma página: "Comuna belga a oito quilómetros a norte de Ypres que conheceu combates bastante sangrentos.(...)"

11. Cf. tradução em apêndice.

12. Id. [A este propósito podemos também considerar a repercussão da morte recente do corredor de Fórmula 1 Ayrton Senna. Podem-se encontrar as razões da comoção generalizada pela sua morte para além do fenómeno da persuasão dos sonhos do dinheiro ou dos média. Ele representa um ponto extremo da relação do homem com a técnica. O "realismo heróico" corresponde nele a um grau maior do que o do astronauta: o culto não é prestado ao indivíduo, mas ao tipo. Podemos supor que as coisas seriam diferentes caso sucedesse o mesmo a outro corredor, como Alain Prost: este é uma "individualidade".]

13. Cf. prefácio de Paul Ricoeur a Hannah Arendt, ob. cit., (Or. The Human Condition, 1958), trad. Georges Fradier, Calmann-Lévy, Paris, 1961 e 1983, pp. 5-32.

14. Cf.ob.cit. p.88.

15. Cf. Hannah Arendt, "Travail, Ouvre, Action", in Études Phénoménologiques, tome I, nº2, 1985, Éditions Ousia, Bruxelles, 1985, p.8.

16. Segundo José Pedro Machado (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte), a palavra portuguesa "trabalho" é um derivado regressivo de trabalhar, que, por sua vez, deriva do latim tripaliare — " 'torturar com o tripaliu', este de tripalis, derivado de tres + palus, pois aquele instrumento era formado por três paus". Também temos a palavra "labor", que deriva do latim labore, "trabalhar, esforçar-se por...", e que se usa mais para situações que implicam cuidados especiais, maior atenção e aplicação. A palavra "obrar" significa executar e está mais relacionada com o objecto, a "obra", do que com o processo — derivará do latim operare, no entanto é usada também para "defecar" e podemos supor que neste caso estará implícita uma depreciação relativamente às "obras" humanas. Isto é o que nos é dado pelas etimologias, segundo o modo superficial como aqui são apresentas. Com todos os riscos inerentes, a partir de uma percepção de semelhanças, e evidentemente sem nenhum conhecimento filológico, podemos deter-nos na palavra "trabalho". "Tra-balho": tra é empregue geralmente para indicar movimento, como em "tradução"; em balho há, por sua vez, semelhanças com a palavra latina valeo, tal como entre balhar e valere, que significam ter força, poder, robustez, vigor.

 

17. Cf. ob. cit., p.154. Na nota dessa página é feita uma referência aos autores católicos, que, de ordinário, segundo Hannah Arendt, não cometem esse erro: "Les auteurs catholiques évitent d'ordinaire cette erreur (cf. par ex. Jacques Leclrerq, Leçons de droit naturel, vol.IV, 2e partie, "Travail, propriété, 1946, p.31): "La peine du travail est le résultat du péché originel... L'homme non déchu eût travaillé dans la joie, mais il eût travaillé"."(Id.) [Segundo a tradução do P.e Matos Soares, Depósito: Arte no Templo e no Lar, Porto, 1927: Génesis, 2, 15: "Tomou pois o Senhor Deus ao homem, e collocou-o no paraiso de delicias, para que o cultivasse e guardasse" e 3, 17: "E disse Adão: Porque deste ouvidos á voz de tua mulher, e comeste da arvore, de que eu te tinha ordenado que não comesses, a terra será maldita na tua obra, tirarás d'ella o sustento com trabalhos penosos todos os dias da tua vida." ; segundo a tradução de João Ferreira de Almeida, Edição da Sociedade Bíblica, Lisboa: Gén. 2, 15: "E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden, para o lavrar e o guardar." e 3, 17: "E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz da tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela: maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela, todos os dias da tua vida."]

18. Cf. Hannah Arendt, ob. cit., p.37 e art. cit., mod., p.6.

19. Ob. cit., p.41.

20. Id., p.301.

21. Ibid., p.151. As palavras entre aspas pertencem a Das Kapital, III, p.873, conforme nota da mesma página. O "equívoco" está em Marx dizer ao mesmo tempo que é unicamente pelo trabalho que o homem se distingue dos animais. Mas, como diz Hannah Arendt na mesma página: "Des contracdictions aussi fondamentales, aussi flagrantes sont rares chez les écrivains médiocres; sous la plume des grands auteurs elles conduisent au centre même de l'oeuvre."(Ibid.)

22. Ibid., pp.41-41.

23. Art. cit., p.21. e cf. ob. cit., mod., pp.231 e sgs.

24. Id., Id..

25. Ernst Jünger, Maxima-minima, ob. cit., p.8.

26. Cf. tradução em apêndice.

27. Id., p.22-23 e Id., mod., p.238.

28. O Passo da Floresta (O Desterro), (or. Der Waldgang), trad. inédita de Maria Filomena Molder, a publicar por Edições Cotovia, Lisboa. A passagem procede do §10.