A FIGURA DO TRABALHADOR

Edmundo Cordeiro

 

ERNST JÜNGER

A FIGURA ENQUANTO UM TODO QUE ENGLOBA MAIS DO QUE A SOMA DAS SUAS PARTES

("Die Gestalt als ein Ganzes, das Mehr als die Summe Seiner Teile Umfasst" é o terceiro capítulo da primeira parte da obra Der Arbeiter, de Ernst Jünger - Ernst Jünger, Werke. Band 6. Essays II, "Der Arbeiter", Ernst Klett Verlag, Stuttgart, 1960-1965, pp. 38-53. Os parágrafos estão no original numerados de sete a doze. Esta versão para português, da nossa autoria, foi cotejada com a tradução francesa de Julien Hervier - Le Travailleur, Christian Bourgois Editeur, Paris, 1989, pp. 61-78 - e com a tradução espanhola de Andrés Sánchez Pascual - El Trabajador, Tusquets Editores, Barcelona, 1990, pp. 38-51. No entanto, esta versão só foi possível com revisão de Maria Filomena Molder, a quem agradecemos.— N.d.T.: Edmundo Cordeiro, Revista de Comunicação e Linguagens, nº 20, Dezembro de 1994)

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Para dar resposta à questão que acaba de ser formulada - <a questão de saber se não se esconde algo mais na figura do trabalhador do que aquilo que pudemos adivinhar até aqui> - está pressuposto o que se deve conceber com o termo figura <Gestalt>. Esta elucidação não pertence a notas marginais, por pouco que seja o espaço que aqui lhe pode ser dedicado.

Se no que se segue acontece por vezes falar-se de figuras como de uma pluralidade, isso acontece devido a uma carência provisória de ordem hierárquica que é remediada ao longo destas investigações. No reino da figura não é a lei de causa-efeito que decide da ordem hierárquica, mas uma lei de outro género, a lei do selo <Stempel> e do cunho <Prägung>; veremos que na época em que entramos, o cunho do espaço, do tempo e do homem, é reduzido a uma única figura, a saber, a do trabalhador.

Provisoriamente - e independentemente dessa ordem - daremos o título de figura ao género de grandezas que se oferecem a um olhar capaz de conceber que o mundo no seu conjunto pode ser compreendido segundo uma lei mais decisiva que a da causa-efeito, ainda que não possa discernir a unidade mediante a qual esta compreensão é realizada.

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Na figura assenta o todo, que engloba mais do que a soma das suas partes, e que era inalcansável na era da anatomia. É característico da época que se anuncia o nela sermos levados a ver, a sentir e a agir sob o encantamento das figuras. A categoria de um espírito, o valor de uma visão, dependem da capacidade em perceber a influência das figuras. Os primeiros e significativos esforços aparecem já: eles podem ver-se quer na arte, quer na ciência, quer na fé. Também na política tudo depende de se combater com figuras e não com conceitos, com ideias ou com simples fenómenos.

Desde o momento em que a nossa experiência toma a forma de figuras, tudo se torna figura. A figura não é pois uma nova grandeza, que fosse necessário, para além das já conhecidas, descobrir; ao invés, o mundo, a partir de uma nova maneira de abrir os olhos, aparece como um palco das figuras e das relações entre elas. Isto apresenta-se para apontar para um erro típico das épocas de transição e não como se a pessoa singular <der Einzelne> se desvanecesse e tivesse de receber o seu sentido unicamente nas corporações, nas comunidades ou nas ideias enquanto unidades superiores. Também na pessoa singular está representada a figura, cada uma das unhas dos dedos, cada átomo, é nela figura. E de resto, a ciência do nosso tempo não começou já a ver os átomos não como as mais pequenas partes possíveis, mas como figuras?

Claro que uma parte é tão pouco uma figura, como uma soma de partes dá como resultado uma figura. Isto deve ser tomado em consideração se quisermos, por exemplo, empregar a palavra "homem" num sentido que evolua para além das maneiras habituais de falar. O homem possui uma figura na medida em que é concebido como pessoa singular concreta, palpável. Mas isso não é válido para o homem em geral, que mais não é do que um dos chavões do entendimento e que pode ao mesmo tempo significar tudo e nada, mas em nenhum caso alguma coisa de determinado.

Isto é válido também para as figuras mais englobantes às quais pertence a pessoa singular. Esta pertença recíproca não pode calcular-se nem por multiplicação nem por divisão - muitos homens não dão ainda como resultado uma figura e nenhuma partição da figura conduz à pessoa singular. Pois a figura é o todo que contém mais do que a soma das suas partes. Um homem é mais do que a soma dos átomos, dos membros, dos órgãos e dos fluidos que o constituem, um casal é mais do que um homem e uma mulher, uma família é mais do que um homem, uma mulher e um filho. Uma amizade é mais do que dois homens e um povo é mais do que aquilo que podem expressar os resultados de um recenseamento ou uma soma de votos políticos.

Habituámo-nos no século XIX a remeter para o reino dos sonhos todo o espírito que procurasse reclamar-se desse mais, dessa totalidade (Sobre a palavra total, que é chamada a desempenhar um papel no que se segue, encontrar-se-ão esclarecimentos mais precisos no ensaio "A Mobilização Total" <Die Totale Mobilmachung> (Berlim, 1930) — N.d.A.; Tradução francesa de Marc B. Launay, in Recherches, n&ordm;32/33, septembre 1978 e Ernst Jünger - L'État Universel suivi de La Mobilisation Totale, Paris, Gallimard, coll.Tel, 1990. — N.d.T), sonhos que poderiam ter o seu lugar num mundo mais belo, mas não certamente na realidade.

Mas não há dúvida de que é precisamente a valorização inversa que é feita, e de que, mesmo na política, é de categoria inferior todo o espírito a que falte o sentido desse mais. Pode ser que desempenhe um papel na história do espírito, na história da economia, na história das ideias, mas a história é mais do que isso; ela é tanto figura, tanto quanto tem como conteúdo o destino das figuras.

Por certo - e possa esta observação intercalada indicar da maneira mais nítida o que se deve entender por figura - por certo que a maioria dos adversários dos lógicos e dos matemáticos da vida também não evoluíram num plano de categoria diferente daquele em que se situavam aqueles a quem combatiam. Pois não há nenhuma diferença no reclamar por uma alma ou por uma ideia liberta de laços em vez de por um homem, por um entendimento e por uma economia libertos de laços. Neste sentido, nem a alma e a ideia são figuras nem há oposição convincente entre elas e o corpo ou a matéria.

A isto parece opor-se a experiência da morte em que, segundo a representação tradicional, a alma abandona a habitação do corpo, e portanto, a parte imperecível do homem abandona a parte perecível. É todavia um erro, uma doutrina estranha, que o homem ao morrer abandone o seu corpo - a sua figura entra antes numa nova ordem diante da qual toda a comparação de natureza espacial, temporal ou causal é inaceitável. Deste saber nasce a visão dos nossos antepassados em que o guerreiro era conduzido ao Walhalla no momento da morte - e ali não era enquanto alma que era recebido, mas nesse radioso elemento vivo de que o corpo vivo do herói na batalha constituía um símile <Gleichnis> elevado.

É muito importante para nós avançar de novo para uma plena consciência do facto de o cadáver não ser uma espécie de corpo privado de alma. Isto é dado a entender pelo facto de que entre o corpo no segundo da morte e o cadáver no segundo que se segue não há a menor relação; essa é uma sugestão imediata derivada do facto de o corpo englobar mais do que a soma dos seus membros, ao passo que o cadáver é idêntico à soma das suas partes anatómicas. É erróneo que a alma deixe atrás de si, tal como a chama, poeira e cinza. Mas é do maior interesse que a figura não seja submetida aos elementos do fogo e da terra e que, por conseguinte, o homem como figura pertença à eternidade. Na sua figura - independentemente de toda a apreciação exclusivamente moral, de toda a redenção e de todo o "esforço aplicado" - reside o seu mérito inato, imutável e imperecível, a sua suprema existência e a sua mais profunda confirmação. Quanto mais nos votarmos ao movimento, mais intimamente nos teremos de convencer de que sob ele se esconde um Ser em repouso <ruhendes Sein>, e que toda a intensificação da velocidade mais não é do que a tradução de uma língua originária <Ursprache> imperecível.

Desta consciência resulta uma nova relação com o homem, um amor mais ardente e uma impiedade mais terrível. Dá-se a possibilidade de uma anarquia alegre que coincide ao mesmo tempo com a ordem mais estrita - um espectáculo tal como se esboça já nas grandes batalhas e nas cidades gigantescas, cuja imagem se ergue no limiar do nosso século. Neste sentido, o motor não é o soberano mas o símbolo <Symbol> da nossa época, a imagem simbólica <Sinnbild> de um poder em que explosão e precisão não são opostos. É o audacioso brinquedo de um tipo de homem capaz de se fazer ir pelos ares com alegria vendo nesse acto uma confirmação da ordem. Desta atitude - que não é realizável nem pelo idealismo nem pelo materialismo e que se deve qualificar como um realismo heróico - resulta esse extremo grau de força ofensiva de que estamos precisados. Os seus representantes são do tipo desses voluntários que saudaram a Grande Guerra com entusiasmo e saúdam ainda tudo o que a seguiu e seguirá.

Também a pessoa singular, como foi dito, possui uma figura, e o direito vital, mais inalienável e sublime, que ela partilha com as pedras, as plantas, os animais e as estrelas, é o seu direito à figura. Enquanto figura, a pessoa singular engloba mais do que a soma das suas forças e das suas capacidades; ela é mais profunda do que o pode suspeitar nos seus mais profundos pensamentos e mais poderosa do que ela pode exprimir no seu acto mais poderoso.

Transporta assim consigo o padrão de medida; e a arte de viver suprema, na medida em que ela viva enquanto pessoa singular, consiste em tomar-se a si própria enquanto padrão de medida. Isso constitui ao mesmo tempo o orgulho e o luto de uma vida. Todos os grandes momentos da vida, os sonhos ardentes da juventude, a embriaguez do amor, o fogo da batalha, coincidem com uma consciência mais profunda da figura, e a recordação é o retorno mágico da figura que comove o coração e o persuade do carácter imperecível desses momentos. O desespero mais amargo de uma vida está em não se ter cumprido, não se ter estado à altura de si próprio. Neste caso, a pessoa singular assemelha-se então ao filho pródigo que em terra estranha e na ociosidade desbaratou a sua parte da herança, por considerável ou reduzida que ela tenha sido - e todavia ele não poderia ter qualquer duvida sobre o acolhimento na pátria. Pois a parte da herança que é inalienável da pessoa singular está na sua pertença à eternidade, e, nos momentos supremos e indubitáveis, a pessoa singular está plenamente consciente disso. A sua tarefa é dar disso expressão no tempo. Neste sentido, a sua vida torna-se num símile <Gleichnis> da figura.

Além disso, a pessoa singular insere-se numa grande ordem hierárquica de figuras - de poderes reais, físicos, necessários. Diante deles, a pessoa singular torna-se ela própria num símile, num agente; e o peso, a riqueza, o sentido da sua vida dependem da medida da sua participação na hierarquia e no combate das figuras.

As figuras autênticas reconhecem-se no facto de a soma de todas as forças lhes poder ser dedicada, de a maior veneração lhes poder ser testemunhada, de o ódio mais extremo lhes poder ser votado. Uma vez que elas contêm em si mesmas a totalidade, também reclamam a totalidade. Daí que o homem descubra, ao mesmo tempo que descobre a figura, a sua vocação e o seu destino, e é esta descoberta que o torna capaz do sacrifício, que obtém a sua expressão mais reveladora no sacrifício do seu sangue.

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A época burguesa <bürgerliche Zeitalter> não foi capaz de ver o trabalhador numa ordem hierárquica determinada pela figura, porque não lhe era dado estabelecer uma relação autêntica com o mundo das figuras. Tudo se resumia então a ideias, conceitos ou simples fenómenos, sendo a razão e a sentimentalidade os dois pólos deste espaço fluido. A Europa, o mundo, estão ainda mergulhados nesse fluido chegado agora ao seu último grau de diluição, e impregnados por esse pálido verniz de um espírito que se tornou auto-suficiente.

Mas nós sabemos que, na Alemanha, esta Europa e este mundo, possuem apenas a categoria de uma província, cuja administração não foi a tarefa nem dos melhores corações nem das melhores cabeças. Cedo neste século se viu os alemães em revolta contra este mundo, e isto fazendo-se representar através do combatente alemão, enquanto o portador de uma autêntica figura. Isto foi também o início da revolução alemã, anunciada já no século XIX por espíritos elevados e que só pode ser entendida como uma revolução da figura. Se, todavia, essa revolta não passou de um prelúdio, o erro está em que ela, em toda a sua amplitude, prescindiu ainda da figura, da qual cada soldado, que, solitário e desconhecido, caía dia e noite em todas as fronteiras do império, era já um símile.

Pois, por um lado, os governantes estavam demasiado impregnados, demasiado convencidos dos valores de um mundo que reconhecia a uma só voz a Alemanha como o seu mais perigoso adversário; a isto correspondeu então a justiça de serem esses governantes vencidos e corridos, ao passo que o combatente alemão se revelava não apenas invencível mas imortal. Cada um destes soldados caídos na frente está hoje mais vivo do que nunca, e isso vem de que ele, como figura, pertence à eternidade. O burguês, pelo contrário, não pertence às figuras; é por isso que o tempo o corrói, mesmo que se enfeite com a coroa do príncipe ou a púrpura do chefe de guerra.

Mas, por outro lado, nós vimos que a revolta do trabalhador tinha sido preparada na escola do pensamento burguês. Não podia, pois, coincidir com a revolta alemã, como o indica o facto de a capitulação ante a Europa, a capitulação ante o mundo, ter sido levada a cabo, de um lado, por uma classe superior burguesa de velho estilo, e de outro, pelos porta-vozes também burgueses de uma pretensa revolução, e, portanto, no fundo, pelos representantes de um único e mesmo tipo de homens.

Mas na Alemanha nenhuma revolta, que estiver orientada contra a Alemanha, pode possuir a categoria de uma nova ordem. Está desde logo por isso, condenada ao fracasso, porque viola uma legalidade, a que nenhum alemão se pode subtrair, sem cortar, ele próprio, as raízes mais secretas da sua força.

Por conseguinte, entre nós só podem combater pela liberdade aqueles poderes que são ao mesmo tempo portadores da responsabilidade alemã. Como é que o burguês poderia transferir a responsabilidade para o trabalhador uma vez que dessa responsabilidade nada lhe coube? Tal como, enquanto governava, ele fora incapaz de conduzir a força elementar do povo a uma mobilização irresistível, assim, ele não tinha sido capaz, enquanto se esforçava por governar, de pôr em movimento de modo revolucionário essa força elementar. Por conseguinte, tentou comprometê-la na sua traição contra o destino.

Esta traição não tem consequências na sua qualidade de alta traição, na qual deve ser reconhecido um processo de autodestruição da ordem burguesa. Mas ela é ao mesmo tempo traição à pátria, na medida em que o burguês tentou arrastar a figura do império na sua autodestruição. Como não lhe é dada a arte de morrer, procurou custasse o que custasse retardar a hora da sua morte. A culpabilidade burguesa relativamente à guerra consiste não em ter conduzido realmente a guerra, isto é, no sentido de uma mobilização total, nem de a perder - e poder assim ver a sua suprema liberdade reduzir-se a nada. O que distingue o burguês do combatente <Frontsoldaten>, é que mesmo na guerra o burguês estava à espera da menor ocasião para negociar, enquanto que para o soldado a guerra significava um espaço onde o que estava em jogo era morrer, isto é, viver de tal forma que a figura do império fosse confirmada - aquele império que, mesmo quando ela nos tire a vida, tem de permanecer para nós.

Há dois tipos de homens: reconhecemos o primeiro por estar sempre pronto para negociar a todo o preço, o segundo por estar sempre pronto a bater-se a todo o preço. A pedagogia do burguês quanto ao trabalhador consistiu em ensinar-lhe a tornar-se um parceiro na negociação. O sentido, que se esconde atrás disso, e que consiste no desejo de prolongar a todo o custo o tempo de vida da sociedade burguesa, pôde permanecer secreto durante todo o tempo em que essa sociedade possuiu, no equilíbrio dos seus poderes, um equivalente em política externa. Mas era forçoso que a sua tendência dirigida contra o Estado tinha de ser posta a descoberto naquele momento em que uma relação diferente da negociação se manifestasse entre as potências. Porém, a última vitória da Europa ajudou ainda uma vez mais o burguês a possibilitar-se um desses espaços artificiais a partir dos quais se pode considerar figura e destino como noções equivalentes a absurdo. O segredo da derrota alemã é que a manutenção desse espaço, a manutenção da Europa, constituía o ideal melhor escondido do burguês.

A partir daí se desvendou muito claramente o papel indigno que ele tinha reservado ao trabalhador, na medida em que ele soube fazer-lhe assumir com grande habilidade a consciência de uma dominação <Herrschaft>, cujas exigências no que toca a uma culpabilidade em política externa se evidenciavam de novo, sempre uma vez mais, como letras sem provisão. Este tempo de crédito é também o último tempo de sobrevivência da sociedade burguesa, e nele se exprime ainda a sua aparência de existência que procura apoiar-se nos capitais há muito esgotados do século XIX.

Tal é pois o espaço no qual, o trabalhador deve, não digo combater, pois ele aí não encontrará nada a não ser negociações e concessões, mas do qual precisa de se livrar com desprezo. É o espaço cujo limite extremo nasceu da impotência e cuja ordem interna nasceu da traição. Assim a Alemanha se torna numa colónia da Europa, numa colónia do mundo.

Quanto ao acto pelo qual o trabalhador se pode desembaraçar desse espaço, ele consiste precisamente em reconhecer-se como figura, no seio de uma hierarquia de figuras. Aqui funda-se a justificação mais profunda do seu combate pelo Estado, que deve reclamar-se doravante não de uma nova interpretação do contrato, mas de uma missão imediata, de um destino.

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A visão das figuras é um acto revolucionário na medida em que reconhece um Ser na inteira e unitária plenitude da sua vida.

A grande superioridade deste processo provém do facto de se realizar para lá das apreciações morais, como das estéticas e científicas. Neste domínio, o que importa primeiramente não é saber se qualquer coisa é boa ou má, bela ou feia, falsa ou exacta, mas saber o género de figura a que pertence essa coisa. Deste modo, o círculo da responsabilidade alcança uma extensão absolutamente inconciliável com tudo o que o século XIX entendia por justiça: pertencer a esta ou àquela figura, é a legitimação ou a culpa da pessoa singular.

No próprio momento em que isto é conhecido e reconhecido, desaba a monstruosamente complicada armação que uma vida que se tornou demasiado artificial construiu para sua protecção; porque aquela situação que caracterizámos no início da nossa investigação como uma inocência mais selvagem já não lhe é doravante mais necessária; isto é a revisão da vida pelo Ser e aquele que conhece uma possibilidade da vida nova e maior, saúda esta revisão na medida e na desmedida do seu carácter inexorável.

Um dos meios para se proporcionar uma vida nova e mais audaz consiste na aniquilação das apreciações de valor do espírito que perdeu os laços e se tornou auto-suficiente, consiste na destruição do trabalho de educação que a era burguesa levou a cabo sobre os homens. Para que esta tarefa tenha lugar de modo radical e não na forma de uma reacção orientada para conduzir o mundo cento e cinquenta anos atrás, foi necessário ter passado por esta escola. Importa agora educar um tipo de homem que possua a certeza desesperada de que as reivindicações da justiça abstracta, da livre investigação, da consciência artística, devem dar provas da sua legitimidade perante uma instância mais elevada do que as que se podem encontrar no seio de um mundo de liberdade burguesa.

Se isto sucede em primeiro lugar no pensamento, é porque é necessário ir procurar o adversário no terreno da sua força. A melhor resposta à alta traição do espírito para com a vida é a alta traição do espírito para com o "espírito"; e um dos maiores e cruéis prazeres do nosso tempo é participar nessa dinamitagem.

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Uma consideração figural <gestalmäb ige> do trabalhador poderia ligar-se a dois fenómenos a partir dos quais o pensamento burguês extraiu o conceito do trabalhador, a saber, a comunidade e a pessoa singular, cujo denominador comum residia na representação que o século XIX possuia do homem. Estes dois fenómenos mudam de significação quando uma nova imagem do homem neles irrompe.

Valeria a pena estudar como é que a pessoa singular nos seus aspectos heróicos aparece por um lado como o soldado desconhecido, exterminado nos campos de batalha do trabalho, e como, por outro lado, e pela mesma razão, ela entra em cena como o mestre e o organizador do mundo, como um tipo imperioso dotado da perfeição de um poder que até aí apenas obscuramente se tinha pressentido. Estes dois aspectos pertencem à figura do trabalhador, e isso é o que ela própria reune da maneira mais profunda, mesmo quando eles se afrontam um ao outro num combate mortal.

Assim a comunidade aparece, por um lado, como sofredora, na medida em que é aquela que suporta o peso de uma obra ante a qual mesmo a mais alta pirâmide se assemelha a uma ponta de alfinete, e no entanto, por outro lado, ela aparece como uma importante unidade cujo sentido depende inteiramente da existência ou da não existência dessa obra. É por isso que entre nós é costume discutir muitas vezes de que espécie deve ser a ordem na qual a obra tem de ser servida e dominada, enquanto a necessidade dessa obra releva ela própria do destino e se situa pois para lá de toda a interrogação.

Isto é expresso pelo facto, entre outros, de que mesmo no interior dos movimentos de trabalhadores conhecidos até aqui não houve nunca negação do trabalho enquanto dado fundamental. É um fenómeno que deve encher o espírito de respeito e de confiança - o facto de que, mesmo quando esses movimentos, formados na escola do pensamento burguês, conquistaram já o poder, a consequência imediata não foi uma diminuição mas um aumento do trabalho. Isto está em que, por um lado, como o exporemos em pormenor um pouco mais adiante (No antepenúltimo capítulo da Primeira Parte intitulado Innerhalb der Arbeitswelt tritt der Freiheitsanspruch als Arbeitsanspruch auf. — N.d.T.), já o nome "trabalhador" não pode significar mais nada do que uma atitude que reconhece no trabalho a sua missão e, por conseguinte, a sua liberdade. Mas por outro lado, surge à luz do dia que o móbil essencial não é a opressão mas um novo sentimento da responsabilidade e que não se deve considerar os verdadeiros movimentos de trabalhadores - como o fazia o burguês, quer lhes dissesse que sim ou que não - como movimentos de escravos, mas como movimentos de senhores disfarçados. Todo aquele que reconheceu isto reconhece também a necessidade de uma atitude que o torne digno de ostentar o título de trabalhador.

Não é necessário pois partir da comunidade e da pessoa singular, ainda que uma e outra possam ser concebidas figuralmente. E é certo que, todavia, se modifica o conteúdo destas palavras, e veremos a que ponto, no interior do mundo do trabalho, a pessoa singular e a comunidade diferem do indivíduo <Individuum> e da massa do século XIX (Isto é tratado por Jünger nos segundo, terceiro e quarto capítulos da Segunda Parte: Der Untergang der Masse und des Individuums; Die Ablösung des bürgelichen Individuums durch den Typus des Arbeiters; Der Unterchied zwischen den Rangordnungen des Typus und des Individuums. — N.d.T.). A nossa época esgotou-se nesta oposição da mesma maneira que se esgotou naquelas outras oposições entre a ideia e a matéria, o sangue e o espírito, a força e o direito; das quais apenas resultam interpretações segundo perspectivas particulares que apenas evidenciam esta ou aquela reivindicação parcial. É necessário em vez disso ir procurar a figura do trabalhador a um nível em que o olhar capta necessariamente como símiles <Gleichnisse>, como representantes, tanto a pessoa singular como as comunidades. Neste sentido, as maiores sublimações da pessoa singular, como as que cedo foram entrevistas com o Übermensch (E entrevistas, por certo, através do medium do indivíduo <Individuum> burguês. — N.d.A.) são representantes do trabalhador tanto quanto essas comunidades que levam uma vida de termiteiras ao serviço de uma obra e que consideram toda a reivindicação de uma personalidade própria como uma manifestação ilícita da esfera privada. Estas duas atitudes perante a vida desenvolvem-se na escola da democracia; podemos dizer que as duas passaram por ela e que participam doravante na aniquilação das antigas apreciações de valor, ainda que sejam provenientes de duas direcções aparentemente opostas. Mas as duas, como como foi dito, são símiles da figura do trabalhador e a sua unidade interna revela-se em que, no espelho de uma nova ordem, a vontade de ditadura total se reconhece como vontade de mobilização total.

Mas toda a ordem, qualquer que ela seja, assemelha-se a uma rede de meridianos e paralelos sobrepostos num mapa e que não recebe significação a não ser pela paisagem <Landschaft> a que se refere - assemelha-se à mudança de nome das dinastias, das quais o espírito não tem necessidade de se lembrar ao comover-se pelos seus monumentos.

A figura do trabalhador está mais profundamente e mais tranquilamente incrustada no Ser do que todas as parábolas e as ordens por intermédio das quais se afirma, e mais profundamente do que as constituições e as obras, mais profundamente do que os homens e as suas comunidades - que são como as diferentes marcas de um rosto cujo carácter fundamental permanece inalterável.

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Vista na plenitude do seu ser e na violência de um cunho <Prägung> que precisamente começou agora mesmo, a figura aparece em si pródiga em contradições e tensões, e no entanto plena de uma maravilhosa unidade e de uma consistência própria de um destino. Ela revela-se-nos então, por vezes, em momentos em que nenhum fim e nenhuma intenção turbam o nosso espírito, como um poder em repouso e preformado.

Assim, às vezes, quando subitamente a tempestade dos martelos e das rodas, que nos cerca, se silencia, parece-nos que entramos quase fisicamente na quietude que na desmesura do movimento se esconde; e é um excelente costume do nosso tempo o de ordenar a paragem do trabalho por alguns minutos, como se obedecesse a uma ordem superior, a fim de honrar os mortos ou de imprimir na nossa consciência um instante dotado de uma significação histórica. Pois este movimento é um símile da mais íntima das forças, no sentido em que, por exemplo, a secreta significação de um animal é revelada com o máximo de clareza no seu movimento. O espanto suscitado pela sua paragem é no fundo o espanto suscitado pela ideia de que o nosso ouvido possa aperceber-se por um momento das fontes mais profundas, que alimentam o curso temporal do movimento, e isto eleva este acto à altura de um acto de culto.

As grandes escolas do progresso caracterizam-se pela ausência de relação com as forças originais <Urkräften>, assim como por uma dinâmica fundada no curso temporal do movimento. É a razão pela qual as suas conclusões são em si convincentes e todavia condenadas a desembocar no nihilismo, como que sob o efeito de uma matemática diabólica. Nós próprios fizemos a experiência viva disso na medida em que participámos no progresso, e consideramos o restabelecimento do contacto imediato com a realidade como tarefa maior de uma geração <Geschlecht> que durante muito tempo viveu no seio de uma paisagem originária <Urlandschaft>.

A relação do progresso com a realidade é de natureza derivada. O que se vê é a projecção da realidade na periferia do fenómeno; pode demonstrar-se isso em todos os grandes sistemas do progresso, o que também vale para a relação do progresso com o trabalhador.

E todavia, assim como as Luzes são mais profundas do que quaisquer luzes, assim não há progresso sem um pano de fundo. Também ele conheceu esses instantes aos quais nos acabámos de referir. Há uma embriaguez do conhecimento, que está para lá da origem lógica, e há um orgulho das conquistas da técnica e da posse ilimitada do espaço que possui um pressentimento da mais secreta vontade de poder, para a qual tudo isto não passa de armamento para combates e revoltas imprevistas, e precisamente por isso tão custosos e necessitados de cuidados mais afectuosos do que aqueles que alguma vez um guerreiro dedicou às suas armas.

Está, por conseguinte, fora de questão para nós adoptar a atitude que procura opor ao progresso os meios inferiores da ironia romântica e que é o sinal mais certo de uma vida cujo cerne definhou. A nossa tarefa é jogar o tudo por tudo e não sermos os antagonistas deste tempo, tempo do qual é preciso compreender plenamente o que está em jogo, tanto na sua amplitude como na sua profundidade. O sector que os nossos pais iluminaram, expuseram à luz numa focagem tão nítida, altera a sua significação quando o observamos no conjunto do quadro. O prolongamento de um caminho que parecia conduzir ao conforto e à segurança guina doravante para a zona do que é perigoso. Neste sentido, o trabalhador aparece acima do sector a que o progresso o queria confinar, como o portador da substância heróica fundamental que determina uma nova vida.

E quando sentirmos essa substância em acção, então estaremos próximos do trabalhador, e seremos trabalhadores na medida em que ela faz parte da nossa herança. Tudo aquilo que achamos maravilhoso no nosso tempo e o que nos fará aparecer ainda nas lendas dos séculos mais longínquos como uma geração de mágicos poderosos, pertence a essa substância, pertence à figura do trabalhador. É ela que está em acção na nossa paisagem que sentimos como infinitamente estranha apenas porque nascemos nela; o seu sangue é a energia que arrasta as rodas e lhes lubrifica os eixos.

Considerando este movimento apesar de tudo monótono, que lembra um campo cheio de moínhos de culto tibetanos, considerando esta severa ordenação semelhante aos contornos geométricos das pirâmides, considerando estes sacrifícios tais como nunca foram exigidos por nenhuma Inquisição e nehum Moloch, e cujo número aumenta com uma certeza mortal em cada passo em frente - como é que aqui um olhar disposto a ver realmente poderia subtrair-se à compreensão de que, sob o véu das causas e dos efeitos, que se agitam sob os combates do dia, trabalham o destino e a veneração?