Técnica, mobilização e figura - a técnica segundo Ernst Jünger (1)

© Edmundo Cordeiro, Universidade da Beira Interior
e Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, nº 25/26, Março de 1999, Edições Cosmos.




1. figura e técnica: a figura do trabalhador

Diz Ernst Jünger em Der Waldgang (2) que a nossa época é pobre em grandes homens, mas produz figuras. Boa parte das suas obras, senão a totalidade, apresentam figuras (Gestalten): potências metafísicas, potências que se impõem no mundo, marcando-o, segundo um processo de afeiçoamento - elas não se impõem sem que, digamo-lo assim, a realidade as exija. Evidentemente, nada há de mais ambíguo que uma "exigência da realidade", só que esta realidade tem um nome para Jünger: Terra. As figuras são imagens cuja efectividade vem de baixo, efectividade inversa à das Ideias. Não há, por isso, uma oposição entre o homem e as figuras - e todas as figuras que Jünger nos apresenta têm de imediato uma ligação à experiência humana e ao estado do mundo ou da Terra. Os nomes "trabalhador", "soldado desconhecido", "desterrado", "anarca" (3), designam uma atmosfera, um estado da experiência, um modo de vida - e captando estes nomes uma esfera invisível (4), de que aqueles que entram nessas experiências e estão sob essas atmosferas são símbolos, então esses nomes designam figuras.

No caso da figura do trabalhador (Gestalt des Arbeiters), o nome "trabalhador" não aponta directamente para aquele que desenvolve uma actividade à qual se pode chamar trabalho - nesse caso nomeava apenas o exercício de um homem ou de todo aquele que entrasse num exercício semelhante. A palavra "trabalhador" aumenta de uma maneira imprevista, entra em "gravitação" (5). Escreveu Jünger numa carta que"(…) seria um erro ver no trabalhador o super-homem ou uma ideia platónica - há que vê-lo antes com figura no sentido da planta originária de Goethe (6). Também a planta originária não é um tipo, mas uma força formadora de tipos. Visto a partir da figura, que está imóvel, o mundo é concebido como movimento, desde os átomos até às galáxias. No que se refere à medida e ao número vemos com uma nitidez enorme os detalhes, ao passo que parecem escapar-se-nos cada vez mais o sentido e a meta do todo. Mas é justamente a precisão e a engrenagem dos detalhes que permitem suspeitar que existe algo por "detrás", não "mundos prévios", mas "o interior da Natureza". (7)"

Ora, não sendo a técnica uma figura, também ela terá a sua figura, que lhe garante a efectividade no mundo: "(…) a técnica - diz Jünger - enquanto modus vivendi, sobe, a partir de grandes profundezas" (8). E o facto de a técnica se ter tornado num modus vivendi não impediu a sua elevação a "questão", uma "questão" que certamente excede o ponto de vista que a tem por um sistema causal fechado sobre si mesmo (9), o qual, nas palavras de Jünger, prepara o cerco implacável do ser humano: "(…) através de teorias que aspiram a uma explicação lógica e sem falhas do mundo e que andam de mão dada com o desenvolvimento técnico. (10)" E quando Jünger diz que "O estudo da técnica só se torna fecundo se reconhecermos nela o símbolo de uma potência superior" (11), quer ele significar que essa potência abarca a técnica e o humano, não se limitando a eles: trata-se da figura do trabalhador.

Ernst Jünger pensa o exercício e dominação crescentes da técnica no mundo segundo o par destruição/construção, em que à fase "destruidora" se segue a fase "construtora", o culminar desse processo de dominação, fases essas que correspondem à cabeça de Jano da técnica [DA p.172]. O processo de destruição é inicialmente dissimulado por todos os vantajosos empreendimentos do progresso, mas passa depois a ser visível enquanto destruição activa na paisagem industrial (Werkstättenlandschaft), manifestando-se clara e gigantescamente aos olhos de Jünger no palco da Primeira Grande Guerra.

Der Arbeiter, livro que Jünger publicou em 1932, descreve justamente o início deste processo de destruição, mas procura vislumbrar o todo: todo pensado a partir da figura do trabalhador, potência metafísica, por isso destruidora e construtora ao mesmo tempo, cujo domínio (Herrschaft) e a consequente possibilidade de construção implicam a destruição dos obstáculos. É neste processo de dominação que entra a técnica: ela é a mobilização do mundo pela figura do trabalhador - o que significa que novos deuses se assenhoreiam do mundo. Trata-se, também, de uma potência, mas de uma potência que está "ao serviço" [DA p.177]: é investida uma mobilidade sobre o mundo que o torna, justamente, mobilizável - mas isso é o resultado de um lançamento feito a partir de um ponto imóvel, a figura, a qual é, também, um ponto de chegada (12). Isto marca pelo menos uma diferença fundamental entre a figura e a Ideia: é que a figura, fora desse contacto com o mundo, não tem efectividade. A figura tem de ter instrumentos: o instrumento da figura do trabalhador é a técnica.

Os deuses reclamam veneração - a técnica não está isenta do carácter de culto, muito pelo contrário. Mas este carácter de culto é dissimulado pela sua aparente neutralidade: a técnica não pede orações. E o facto de a técnica se apresentar neutra, à disposição, faz com que outras potências procurem pô-la ao seu serviço, falar a sua língua, como por exemplo a Igreja, acabando com isso por facilitar um processo de secularização generalizada [DA p.170]: a técnica não é neutra - é uma potência de neutralização. Nesse afrontar de todas as potências estabelecidas - ela nega pela sua própria existência (13) -, a técnica é a única que escapa ao declínio.

Mas Jünger tem então de mostrar como funciona a relação da técnica em simultâneo com a figura e com o humano. O homem, tocado pelo lançamento da figura, adequando-se à técnica (manejar, manobrar, têm que ver, na era da técnica, com capacidade de adequação, em que nem é o instrumento que se torce perante o homem, nem o contrário) tem de ser um homem especial, um homem novo. Jünger dá-lhe um nome: "trabalhador". É ele o representante da figura. O "trabalhador" é o tipo humano que possui uma relação elementar com a técnica, por conseguinte, a técnica não é um instrumento em geral do homem em geral; a relação do homem com a técnica não é puramente instrumental: "La technique possède son propre cours que l'homme ne peut pas arrêter arbitrairement quand l'état des moyens semble lui suffire."[T p.256/DA p.191-192] O homem em geral não tem uma relação imediata com a técnica, e neste sentido ele não é nem o seu criador nem a sua vítima [T p.197/DA p.165].

Que o homem, nas palavras de Jünger, não tenha uma relação imediata com a técnica, isso não quer dizer que o humano e a técnica sejam dois blocos irredutíveis - quer dizer, aliás, precisamente o contrário. É que a mediação pressupõe, de uma forma ou de outra, o contacto. Tudo isto encontra explicação na figura do trabalhador. É enquanto o homem é "trabalhador" que a técnica está ao seu serviço. A técnica marca no espaço e no tempo o domínio da figura do trabalhador, e se ela é um instrumento, evidentemente que não o é do homem em geral, mas da figura do trabalhador. É a técnica que faz aparecer o homem enquanto "trabalhador". "Partout où l'homme tombe sous la coupe de la technique, il se voit placé devant une alternative inélutable. Il s'agit pour lui d'accepter ses moyens particuliers et de parler sa langue ou de périr."[T p.208/DA p.175] Justamente, ele torna-se "trabalhador" na medida em que aceite os seus meios e fale a sua língua.
 
 

2. a mobilização total da técnica

A mobilização encetada pela figura do trabalhador - a mobilização técnica - é total (totale Mobilmachung). Da mesma maneira que a figura é um todo metafísico, a mobilização é total na medida em que concerne ao planeta inteiro, às acções, ao corpo, ao espírito (14). A expressão - mobilização total - é introduzida pela primeira vez por Jünger no ensaio Die Totale Mobilmaching, de 1930. Nele indica o que de essencial se lhe revelou na Primeira Grande Guerra, aquilo que a tornou possível: a ligação da guerra ao trabalho por intermédio de uma mobilização que converte toda a existência em energia: "L'exploitation totale de toute l'énergie potentielle, dont on voi un exemple dans ces ateliers de Vulcain construits par les États industriels en guerre, révèle sans doute de la façon la plus significative qu'on se trouve à l'aube de l'ère du Travailleur, et cette réquisition radicale fait de la guerre mondiale un événement historique qui dépasse en importance la Révolution Française. (15)" Ao encarar os traços da paisagem industrial, da rígida disciplina de vida das massas, das cidades que são uma intricada rede técnica, Jünger tem o "aperçu" de que não há aí nenhum átomo estranho ao trabalho. É uma mobilização que, deste modo, não respeita em exclusivo à guerra e que apagará a fronteira, doravante apenas linguística, entre a guerra e a paz - a mobilização total implica a generalização de uma ameaça que nenhum armistício cala. E tão ou mais importante do que a face activa da mobilização - a própria técnica - é essa face receptiva, a resposta humana, a resposta do "trabalhador": a disponibilidade para se ser mobilizado (16). Ela é mais importante do que toda a espécie de armamento, visto que recruta as suas tropas mesmo no campo do adversário (17).

A figura mobiliza o mundo e o homem, a sua influência traz como resultado a transformação do dado humano e da paisagem, acompanhada pela transformação dos meios técnicos. Para uma determinada concepção do homem e para uma determinada concepção da paisagem que lhe está ligada, concepção que é fruto da separação entre o homem e a natureza, as transformações não podem deixar de ser vistas senão como deformações. À luz destas concepções, uma forma típica de experiência como a do automobilista surge como uma deformação se comparada com a forma individual de experiência do cidadão na praça pública. Da mesma maneira, a paisagem industrial assoma, na sua aparência de destruição, como uma deformação da paisagem natural concebida enquanto espaço idílico e harmonioso - o espaço da paisagem romântica. Mas - e é aí que bate o ponto - mesmo quando não se vê nenhum melhoramento nestas novas formas de experiência e nestas novas formas da paisagem, quando não se vê nelas nem o desenvolvimento de nenhum poder nem nenhuma possibilidade de construção, mesmo assim se concede que a transformação dos meios técnicos que está ligada a estas novas formas não representa uma deformação. A transformação dos meios técnicos implica a passagem de uma certa rudeza para uma versatilidade e perfeição cada vez maiores, tanto na sua eficácia quanto na sua forma. O que é relevante é que a eficácia e a precisão das realizações dos meios técnicos estejam conjugadas com a perfeição das formas, e mais ainda - isto o que Jünger pretende mostrar -, que esta perfeição está implicada naquelas num processo unívoco.
 
 

3. técnica e perfeição

A perfeição (Perfektion) é a irradiação (Ausstrahlung) com que a figura toca o olhar. A perfeição visível é um símbolo da perfeição da figura, da Vollkommenheit - uma consumada perfeição, uma perfeita plenitude, a qual não está sujeita ao movimento, nem é visível. Desta diferença nos dá Jünger a explicação nestas palavras:

"Nous parlons ici de perfection (Perfektion) et non de perfection (Vollkommenheit) parce que la perfection (Vollkommenheit) fait partie des attributs de la Figure mais non de ses symboles qui seules sont visibles à nos yeux. L'État de perfection (Perfektion) occupe de ce fait un rang secondaire tout comme celui d'évolution: derrière eux se dresse la Figure, grandeur supérieure et immuable. Ainsi l'enfance, la jeunesse et la veillesse de l'homme pris individuellement ne sont que des états secondaires par rapport à sa figure qui ne commence pas plus avec sa naissance qu'elle ne se termine avec sa mort. La perfection (Perfektion) en revanche ne signifie rien d'autre qu'un degré auquel le rayonnement (Ausstrahlung) de la Figure touche particulièrement l'oeil éphémère - et là aussi il semble difficile de décider si elle se reflète plus clairement sur le visage de l'enfant, dans l'activité de l'homme ou dans cet ultime triomphe qui perce parfois à travers le masque de la mort."[T p.221/DA p.187]

Sendo a perfeição uma irradiação da figura, ela é uma das marcas da conclusão (Abschluss) da mobilização total. Há algo de novo na percepção desta perfeição: ela requer outros olhos, que não podem deixar de estar implicados desde logo na visão dessa perfeição. Vê-se essa perfeição porque já se têm outros olhos. Se a técnica é a única potência que escapa ao declínio, significativo é que ela apareça perfeita diante dos mesmos olhos que vêem imperfeições em certos dos seus usos e em alguns dos seus efeitos. Como se a técnica fosse um língua com poderes especiais, transformando em técnicos todos aqueles que a falam, uma língua planetária, mais poderosa que as outras línguas - pois não é, por exemplo, por se falar português que de imediato alguém se torna português.

A este poder da língua da técnica, à perfeição em que eficácia, precisão e formas se juntam em correspondência com uma perfeição do mesmo género nas formas da vida - e, por consequência, no homem - a isto chama Jünger "construção orgânica" (organhiche Konstruktion), que nada pode ter, evidentemente, de decisão individual. É uma "implicação objectiva" [T p.157/DA p.127], uma relação elementar com a técnica em que esta é o modus vivendi: é muito mais fácil hoje em dia quebrar a relação com o culto religioso e com os seus símbolos do que quebrar a relação com os símbolos da técnica, da electricidade ao telemóvel - sem esquecer o turismo e os óculos de sol!

Mas o que importa acentuar é a circunstância de a transformação do homem e da paisagem não serem o efeito da transformação dos meios técnicos, mas, antes, o resultado da cunhagem do espaço e do homem pela figura do trabalhador. A própria mobilização total, diz Jünger, refere-se a uma potencialidade própria da vida, e, por outro lado, com a "construção orgânica" entramos num processo que já tem a mobilização como prévia, o processo da formação (Gestaltung):

"La tâche da la Mobilization Totale est la transformacion de la vie en énergie, telle qu'elle se manifeste dans l'économie, la technique et les transports par le crissement des roues, ou sur le champ de bataille comme feu et mouvement. Elle se rapporte donc à une potentialité de la vie, tandis que la mise en figure (Gestaltung) amène l'être à l'expression, et doit donc se servir non d'une langue du movement mais d'une langue des formes (Formensprache)."[T p.268/DA p.232]

No que se refere ao homem, na conformação com a figura - a Gestaltung -, as características individuais regridem cada vez mais em favor de uma totalidade típica, totalidade da qual Jünger nos dá uma imagem com a descrição do carácter de máscara (Maskenhaftigkeit) impresso nos rostos, correspondendo esse carácter de máscara ao rosto de um novo tipo de humanidade em que a pessoa singular (Einzelne) atinge a expressão, não enquanto indivíduo - o cidadão, o Bürger -, mas enquanto tipo. Impressão metálica e cosmética, metallichen e kosmetichen Eindruck, que resulta da observação dos traços da "construção orgânica", da Gestaltung no homem:

"Ce qui frappe d'abord, de façon purement physionomique, c'est l'aspect figé des visages semblables à des masques, cet aspect lié à une modification interne mais qu'accusent et accentuent également des procédés extérieurs (...) Qu'un phénomène très radical se fasse jour dans cet aspect de masque qui provoque une impression métallique chez les hommes et cosmétique chez les femmes, ont peut déjà le déduire du fait qu'il parvient même à estomper les traits qui rendent le caractère sexuel physionomiquement visible.(...) Ce caractère de masque peut s'étudier non seulement sur la physionomie de l'individu mais dans toute sa silhouette. Il faut ainsi observer qu'on accorde une grande attention à modeler le corps (Durchbildung des Körpers) tout entier, et cela de façon très particulière, très planifiée, dans ce qu'on appele le training. Dans ces dernières années se sont multipliées les occasions qui habituent l'oeil à la vue de corps nus qu'un même discipline a rendu très uniformes." [T p.159-160/DA p.129-130]

Mas talvez mais do que uma adequação entre o mundo mecânico e o mundo orgânico, a "construção orgânica" implicará uma fusão - por exemplo, entre a carne e o metal. Pensar numa separação irredutível entre o humano e os meios técnicos - que corresponde à chamada concepção instrumental da técnica -, em que os meios técnicos não passam (nem "devem" passar) o limiar da prótese, acarreta como consequência que esses meios sejam pensados como utensílios em si, concepção männlich, allzumännlich, mas muito dificilmente sustentável. Jünger, em contrapartida, pensa o homem e a técnica como um todo - apresenta a mão, o utensílio dos utensílios [T p.290/DA p.253], como um símbolo desse todo. Esta fusão das diferenças entre o orgânico e o mecânico está evidentemente ligada à fase construtora da técnica, processo em que esta seria a língua das formas (Formensprache) de que a figura do trabalhador se serviria na Gestaltung do mundo (18).
 
 

4. técnica e nihilismo

Da mobilização da técnica, enquanto potência "ao serviço" da figura, resulta um desmoronamento e uma redução do que está estabelecido: ela nega pela sua própria existência, elimina os obstáculos, como se disse. Jünger pensa que a acção da técnica conduzirá ao ponto zero, ponto a partir do qual as suas possibilidades construtoras, a Gestaltung da figura do trabalhador, se assumiriam em pleno. Gestaltung que iria implicar uma nova estabilidade do modo de vida, nomeadamente com a "constância" dos meios técnicos:

"Une constance des moyens, quelle qu'elle soit, implique une stabilité du mode de vie dont nous n'avons plus la moindre idée. Cette stabilité ne doit bien sûr pas être entendue comme absence de conflit au sens rationaliste et humanitaire, comme ultime triomphe du confort, mais au sens où un arrière-plan fixe et objectif permet de reconnaître l'ampleur et le rang des efforts humains, des victoires et des défaites humaines, plus nettement et plus clairement que cela n'est possible au sein d'un état dynamique et explosif absolument imprévisible. Nous exprimerons cela en disant que l'achèvement de la mobilisation du monde par la Figure du Travailleur donnera la possibilité de vivre selon une Figure."[T p.227/DA p.193]

O ponto zero é marcado por uma linha, a linha do nihilismo. Über die Linie(1950) (19) é todo ele dominado pela seguinte pergunta: em que medida é que se passou a linha? A ultrapassagem da linha estaria pressuposta no nihilista activo, aquele que possui uma relação elementar com a técnica: o representante da figura do trabalhador. Se em Der Arbeiter estava implícita uma luta contra o Leviathan na sua face "iluminista" e redutora do elementar, em Über die Linie começam a ser pensadas respostas ao Leviathan da era do trabalhador: não somente o problema dos totalitarismos, também o das mais variadas formas de controlo.

Quando Jünger, no seguimento de Nietzsche (20), analisa o nihilismo considerando-o como uma fase de um processo maior, portanto necessário, afasta-se deste modo da perspectiva que identifica o nihilismo com a decadência, pensada esta como um termo, um final. O seu ponto de vista é de imediato optimista, mas trata-se de um optimismo que radica numa "expectativa vital", um optimismo que não se funda em provas (21): "El optimismo puede alcanzar estratos en los que el futuro dormita y es fecundado. En ese caso se le encuentra como un saber que alcanza más profundamente que la fuerza de los hechos - que incluso puede producir hechos -. (22)" O pessimismo, também enquanto expectativa vital, pode actuar aqui lado a lado: assim nos são apresentados Nietzsche e Dostoievski.

Jünger diz-nos no §4 deste texto o que pretende com a sua reflexão. Ela dirige-se à pessoa singular (Einzelne) - em oposição ao indivíduo (das Individuum) -, uma espécie de reduto do humano, o lugar fértil do humano, independentemente de todas as formas que o homem possa assumir enquanto indivíduo. O desmoronamento das potências históricas, dos valores, faz com que a potência gire em turbilhão, sem se estabilizar num ponto. Este é o estado que convém ao Leviathan, que se impõe como tirano exterior e interior, ameaças que surgem do vazio interior e do mundo demoníaco automatizado (23). Trata-se, então, de averiguar que comportamento pode ser recomendado à pessoa singular (24).

"Incluso puede decirse que por el destronamiento de los supremos valores, todos y cada uno ganan la posibilidad de la iluminación y dación de sentido cúlticas. No solo las ciencias de la naturaleza se introducen en ese papel. Las concepciones del mundo y las sectas prosperam; es un tiempo de apóstoles sin misión." (25) - Está caracterizada a linha crítica. As questões que nela se colocam não têm propriamente remédios a partir dela própria, não se pode esperar que aquilo que foi reduzido a pura função mantenha o seu ethos: a virtude do funcionário consiste em funcionar (26). A essas questões só pode responder a pessoa singular a sós consigo mesma, único reduto não penetrado pelo Leviathan. Na pessoa singular estão o Deserto e o Bosque virgem, que são formas originárias (27). Face à situação do nihilismo, na qual se operou uma redução a todos os níveis - "Por su esencia el mundo nihilista es reducido y se reduce cada vez más, como corresponde necesariamente al movimiento hacia el punto cero" (28) -, apenas há uma pergunta a colocar: em que medida é que se passou a linha? (29) Isto significa que há que explorar os espaços em que o Leviathan não penetrou: eles encontram-se na pessoa singular, como se disse, são a sua "terra selvagem":

"(...) la libertad no habita en el vacío, más bien mora en lo ordenado y no separado (Ungesonderten), en aquelos ámbitos que ciertamiente se cuentam entre los organizables, pero no para la organizacíon. Queremos llamarlos "la tierra salvaje": es el espacio desde el cual el hombre no sólo pude esperar a llevar la lucha, sino también desde él vencer. Pero sin duda ya no se trata de ninguna tierra salvaje romántica. Es el fundamento originario de su existencia, la espesura desde la que él irrumpirá un día como un león." (30)

Estaria ligado à figura do trabalhador, marcado pela categoria de totalidade, um sentido novo para o mundo - na medida em que, com o domínio da figura do trabalhador, está em causa todo o planeta, sobretudo com a acção anti-histórica, nihilista, da técnica: uma figura que não conhece continentes, culturas, raças. Este domínio só seria constrangedor, limitativo, destruidor, se considerado a partir de potências em declínio. Havendo na figura do trabalhador uma relação ao ser, ao Inseparado, com ela estariam em aberto novas possibilidades. Não se oporia à criação, seria, pelo contrário, a sua condição.

Em Die Schere(1990) Jünger leva a aliança entre a os meios técnicos da figura do trabalhador e a arte a um ponto visionário em que se produziria obras de arte como flores:

"Est-ce une pensée présompteuse d'imaginer qu'une photographie puisse acquérir des qualités qui avaient jusqu'ici réservées au peintre? Il faudrait au préalable que l'art soit entré en contact avec la monade - c'est l'une des mutations auxquelles on peut s'attendre. La qualité d'auteur perdrait alors sa signification. On produirait des oeuvres d'art comme des fleurs." (31)

Para Jünger, a técnica é o instrumento de uma figura cujo tipo é humano, a sua mão. Diz ele 30 anos depois de ter editado Der Arbeiter: "o cancro da técnica seria, não a rebelião romântica, mas o cepticismo dentro da técnica. (32)" Frase enigmática, que pode querer dizer uma coisa e outra. Talvez o cepticismo da técnica corresponda a uma segunda mobilização, à mobilização de outra figura, uma figura que tenha que ver com as musas. Quem sabe? Ernst Jünger "profetiza" essa nova era: depois de muito fogo, depois de muito sufoco e de muito sofrimento, o caminho da técnica é o de uma crescente espiritualização.

O cepticismo dentro da técnica? Nada é possível fora dela, nem a fé, isso parece seguro. Mas isso não implica que, dentro dela, não se possa actuar contra, dando efectividade a outras figuras (33) - e pressupondo que a Terra não deixa de ser selvagem, em qualquer lugar, como no nosso "coração".
 
 

FIM

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Notas

1. Este texto tem sustento numa dissertação de mestrado em Comunicação Social orientada pelo Prof. Doutor J.A. Bragança de Miranda, com o título A Figura do Trabalhador, apresentada à Universidade Nova de Lisboa em 1994. Para esse trabalho, agradeço a ajuda, o incentivo e a inspiração de J.A. Bragança de Miranda, de Maria Filomena Molder e de Moisés Martins.

Abreviaturas:

DA: Ernst Jünger, "Der Arbeiter", Werke. Band 6. Essays II, Ernst Klett Verlag, Stuttgart, 1960-1965.

T: Ernst Jünger, Le Travailleur, tradução e apresentação de Julien Hervier, Christian Bourgois Éditeur, Paris, 1989.

2. Der Walgang, 1951. Tradução portuguesa: O Passo da Floresta, trad. Maria Filomena Molder, Edições Cotovia, Lisboa, 1995.

3. Figuras mais de perto referidas por Ernst Jünger em Der Arbeiter, Der Walgang e Eumeswil (1977). Eumeswil (romance-ensaio) tem tradução portuguesa de Sara Seruya, Editora Ulisseia, Lisboa. Estão ainda traduzidas em português Das Abenteuerliche Herz, "2 fassung" (1938) fragmentos ensaísticos - O Coração Aventuroso, tradução de Ana Cristina Pontes, Edições Cotovia, Lisboa, 1991; Auf den Marmorklippen (1939) romance - Sobre as Falésias de Mármore, Tradução de Carlos Sampaio, Estúdios Cor, reeditada pelas Edições Veja, Lisboa; Annäherung, Drogen und Rausch (1970) ensaios - Drogas, Embriaguez e Outros Temas, tradução de Margarida Homem de Sousa, revista por Rafael Gomes Filipe e Roberto de Moraes, Arcádia, Lisboa, 1977; Aladins Problem (1983) romance-ensaio - O Problema de Aladino, tradução de Ana Cristina Pontes, Edições Cotovia, Lisboa, 1989; Eine gefärliche Begegnung (1985), romance policial - Um Encontro Perigoso, tradução de Rafael Gomes Filipe, Difel, Lisboa, 1987; o capítulo de Der Arbeiter intitulado "Die Gestalt als ein Ganzes, das Mehr als die Summe Seiner Teile Umfasst" - "A figura enquanto um todo que engloba mais do que a soma das suas partes", Revista de Comunicação e Linguagens, nº20, Figuras, Edições Cosmos, Lisboa, Dezembro de 1994.

4. Vd. Ernst Jünger, "Typus.Name.Gestalt", Werke. Band 8. Essays IV, Ernst Klett Verlag, Stuttgart, 1960-1965, §89. (Utilizada uma versão portuguesa inédita de Maria Filomena Molder.)

5. Id. §93.

6. Trata-se da planta das plantas - a qual não é uma planta. Vd. Goethe, A Metamorfose das Plantas, tradução, introdução, notas e apêndices de Maria Filomena Molder, IN-CM, Lisboa, 1993 e Maria Filomena Molder, O Pensamento Morfológico de Goethe, IN-CM, Lisboa, 1995.

7. Passagem do diário de Ernst Jünger, traduzida e publicada na versão castelhana de Der Arbeiter, El Trabajador, trad. Sánchez Pascual, Tusquets, Barcelona, 1993, 2ª edição, pp.348-349.

8. Ernst Jünger, "Anotaciones a El Trabajador", ibid., p.280.

9. Ernst Jünger, "Der Arbeiter", Werke. Band 6. Essays II, Ernst Klett Verlag, Stuttgart, 1960-1965, p.212.

10. Der Walgang, 1951. Tradução portuguesa: O Passo da Floresta, op. cit., p.28.

11. "Anotaciones...", op. cit., ibid..

12. "On s'est longtemps représenté la technique sous la forme d'une pyramide posée sur sa pointe et prise dans une croissance sans limites, dont les côtés s'agrandissaient à perte de vue. Nous devons au contraire nous efforcer de la voir comme une pyramide dont les côtés se rétrécissent continuellement et qui aura atteint dans un avenir très prévisible son point terminal. Mais cette pointe encore invisible a déjà déterminé les dimensions du tracé initial. La technique contient en soi les racines et les germes de son ultime potentialisation." [T p.220/DA p.186].

13. "(...)elle nie par sa propre existence. Il ya une grande différence entre les anciens iconoclates et incendiaires d'eglises et le haut degré d'abstraction qui permet à un artilleur de la guerre mondiale de considérer une cathédrale gothique comme un simple point de repère dans sa zone de tir." [T p.203/DA p.170].

14. E Heidegger, o "autor" da questão da técnica, título de um dos seus mais famosos textos, em sequência aos textos de Jünger e em sintonia com eles ao menos quanto a isto, pensa a técnica sob a forma do Gestell, tendo Die Totale Mobilmachung(1930) e Der Arbeiter(1932) constituído a óptica necessária para o seu pensamento. Vd. Martin Heidegger, "Contribution à la question de l'être", Questions I et II, trad. Gérard Granel, Gallimard/tel, Paris, 1990, p.206: "(…) La Question de la tecnhique est redevable aux descriptions du Travailleur d'un soutient qui s'exerça tout au long de mon travail."

15. Ernst Jünger, "La Mobilisation Totale", in L'État Universel suivi de La Mobilisation Totale, trad. Henri Plard et Marc B. De Launay, Gallimard/tell, Paris, 1990, pp.107-108.

16. Ibid., p.115.

17. Ibid., p.102.

18. Deleuze e Guattari, em Mille Plateaux (Minuit, Paris, 1980), ao apresentarem a ideia de um "phylum maquínico", acusam um pensamento próximo do de Jünger. O "phylum maquínico", uma espécie de mediador vital, tem afinidades com uma consideração da técnica enquanto Formensprache: é ele que dá consistência à "máquina social" e ao "agenciamento maquínico" - a "construção orgânica" jungeriana -, é ele que "inventa" aquilo que é técnico. Segundo Deleuze e Guattari, "(...) o princípio de toda a tecnologia está em mostrar que um elemento técnico permanece abstracto, perfeitamente indeterminado, se não o relacionarmos a um agenciamento que ele supõe. (...) o phylum selecciona, qualifica e mesmo inventa os elementos técnicos (...) o phylum maquínico, é a materialidade, natural ou artificial, e as duas ao mesmo tempo, em fluxo, em variação, enquanto portadora de singularidades e de traços de expressão."(p.495) Este fluxo da matéria seria "essencialmente metálico ou metalúrgico", o que Deleuze e Guattari explicam pela existência de "uma relação especial primária entre a deslocação (itinérance) e a metalurgia", que teria correspondência no pensamento: "A metalurgia é a consciência ou o pensamento da matéria-fluxo, e o metal o correlato dessa consciência. Como é expresso pelo pan-metalismo, há co-extensividade do metal com toda a matéria, e de toda a matéria com a metalurgia. Mesmo as águas, as ervas e as madeiras, os animais estão povoados de sais ou de elementos minerais. Nem tudo é metal, mas há metal em tudo. O metal é o condutor de toda a matéria. O phylum maquínico é metalúrgico ou pelo menos tem uma cabeça metálica, que fura, itinerante. E o pensamento nasce menos com a pedra do que com o metal: a metalurgia é a ciência menor em pessoa, a ciência "onda" ou a fenomenologia da matéria."(pp.510-512) Termos como metal, aço, são recorrentes em Der Arbeiter, mas não é só por isso que, nestes termos, podemos considerar a figura do trabalhador como essencialmente metalúrgica.

19. Edição utilizada: "Sobre la Línea", Acerca del Nihilismo ( Ernst Jünger, "Sobre la Línea"/Martin Heidegger, "Hacia la pergunta del ser"), tradução José Luis Molinuevo, Paidós/U.C.E./U.A.B., Barcelona, 1994.

20. Vd. Friedrich Nietzsche, "o niilismo europeu", tradução do grupo de estudos de alemão filosófico, in Prelo, nº 15 - Abril-Junho de 1987, IN-CM, Lisboa.

21. Em Der Arbeiter Jünger também exclui um optimismo ou um pessimismo como resultados imediatos de ganhos ou danos: "Le globe terrestre est recouvert de débris d'images fracassées. Nous assistons au spectacle d'un déclin qui ne peut se comparer qu'aux catastrophes géologiques. Ce serait perdre son temps que de s'associer à l'optimisme béat des destructeurs ou au pessimisme de ceux qui sont détruits." [T p.112/DA p.85]

22. Ernst Jünger, "Sobre la Línea", op. cit., p.18.

23. Id., p.57.

24. Id., p.22: "La persona singular es atraída y sucumbe a la seducción de la tensión nihilista. Por eso es realmente importante el averiguar qué comportamiento puede serle recomendado en esa tribulación. Pues su interior es el autêntico foro de este mundo, y su decisión es más importante que la de los dictadores y tiranos. Es su presupuesto."

25. Id., p.42.

26. Id., p.29: "No se pueden transformar los estamentos en puras funciones y esperar con ello que se conserve su ethos. La virtud del funcionario consiste en que funciona, y esto es bueno, si uno no se hace ilusiones sobre ello incluso en tiempos tranquilos."

27. Cf. Ibid., p.30.

28. Ibid., p.39

29. Cf. Ibid., pp.51-52: "En la medida en que la solución depende del carácter, todos participan en ella. Por eso, hay también una pergunta por el valor fundamental que hay que dar hoy a personas, obras e instituciones. Se formula así: en qué medida han pasado la línea?"

30. Ibid., p.62.

31. Ernst Jünger, Les Ciseaux, trad. Julien Hervier, Christian Bourgois Éditeur, Paris, 1993, p.200.

32. "Anotaciones...", op. cit., p.278.

33. Vd. J.A. Bragança de Miranda, "Algumas anotações sobre a ideia de figura", Revista de Comunicação e Linguagens, nº20, Figuras, Edições Cosmos, Lisboa, Dezembro de 1994; e o texto "O Controlo do Virtual": http://ubista.ubi.pt/~soccom/Jbm_ensaio2.html.