O penúltimo conflito de Immanuel Kant

Edmundo Cordeiro, Universidade da Beira Interior

Cadernos do Noroeste, Universidade do Minho, Braga, vol. 6 (1-2), 1993, pp.287-294.



 
 
 
 

"Hipocondria absoluta. A hipocondria deve tornar-se uma arte, ou uma educação." Novalis
à Teresa Mora

 

Em 1798 Kant tem setenta e quatro anos e escreve O Conflito das Faculdades(1) onde trata de três conflitos particulares que a filosofia, Faculdade inferior, mantém com as três Faculdades superiores, a teologia, o direito e a medicina. Procurarei dar conta da "dietética kantiana" exposta na terceira secção do Conflito, que trata do conflito entre a medicina e a filosofia. Procurarei também indicar, apenas, uma íntima relação entre essa dietética e os juízos estéticos, relação que suponho muito menos conflituosa do que aquela que serve a Kant de matéria de análise, a do corpo e da saúde - saúde de um homem de setenta e quatro anos - com o pensamento. Começarei por dividir a dietética em três partes.

Em primeiro lugar, o conflito reflecte a divergência entre o ponto de vista terapêutico e o ponto de vista dietético. Para o ponto de vista terapêutico só em última instância, ante a manifestação da doença, a saúde adquiriria relevância; o ponto de vista dietético procuraria que a doença se não manifestasse, e tenderia, no limite, a eliminar a possibilidade de haver sequer doenças. É este o primeiro aspecto do conflito: o que para a Faculdade de medicina é um fim, a eliminação da doença por factores externos, pode ser para a Faculdade de filosofia um modo de a razão suprema se impor. Esta última possibilidade, a da doença ser um modo de a razão se impor, não se infere dum ponto de vista dietético tido apenas como prevenção, e Kant, aliás, fala precisamente das suas doenças, não da sua inexistência ou da sua supressão. A prevenção não é, pois, da mesma ordem que a cura, uma vez que a cura supõe a doença e a prevenção não supõe a cura. Além disso, o sentimento da saúde não pode deixar de ser uma aparência, já que a saúde não se conhece de antemão; o sentimento da doença é que é, ele sim, infalível: viver de boa saúde não é uma condição necessária para se viver durante muito tempo (p.116) . A única garantia da saúde reside precisamente em ter-se vivido durante muito tempo; por outro lado, o facto de nos sentirmos bem não quer dizer que a doença não esteja efectivamente em nós. Assim, para se manter a base do pensamento, o que é primordial para o filósofo, é necessário, não a saúde - nunca podemos estar certos dela a não ser, como se disse, a posteriori - mas, um desvio da atenção (p.123) sobre os sentimentos mórbidos. Pode assim dizer-se que, em Kant, o ideal da filosofia já não é - como o era para Descartes - tornar-se medicina, mas sim a medicina tornar-se filosofia; isto é, na medida em que a medicina supere a simples relação meios-fins e se torne ela própria legisladora, na medida em que não atenda apenas ao uso e à habilidade, mas ao dever.

Ora, o desvio da atenção respeita a um interesse superior ao interesse da atenção que se fixa apenas na doença. Trata-se do interesse moral. Por que é que viver durante muito tempo possui um interesse maior do que viver de boa saúde? Porque significa um ganho de imortalidade, e nisso reside aquilo que a velhice tem de meritório (p.116). A honra que ofertamos à velhice não é uma compensação pela sua fraqueza, nem o reconhecimento duma sabedoria adquirida pelas múltiplas experiências. É à própria idade que ofertamos a honra, mesmo que a vida tenha decorrido quase sempre no erro e na vergonha. O lema bíblico Para que vivas durante muito tempo sobre a terra "contém a sentença mais poderosa - mais poderosa que o "para que prosperes" - quanto ao juízo da razão, enquanto dever cuja observação é igualmente meritória " (p.116) e é " unicamente porque o homem que, afectado por certo por alguma desonra, se conservou durante muito tempo, isto é, pôde durante muito tempo escapar à mortalidade, a essa sentença a mais humilhante que pode ser dada a um ser dotado de razão ("De pó és feito e em pó te tornarás") , e de certo modo ganhar em imortalidade, porque, como digo, se manteve durante muito tempo em vida e é indicado como exemplo" (idem).

Um segundo aspecto do conflito decorre consequentemente do primeiro. Quando o ponto de vista terapêutico persegue a eliminação da doença cuidando em exclusivo do corpo, pode não ter em conta o espírito ou, melhor, a pessoa como entidade universal. Mas só aparentemente, como sempre, a disputa corpo-espírito pode ser considerada, e neste caso ambos ganham em se acompanhar devidamente um ao outro. O que é imediatamente bom para o corpo, como a comodidade, é mau para o espírito e, em última instância, para o corpo. O que é imediatamente mau para o corpo, como lavar os pés com água fria no Inverno, acaba por ser bom para o corpo e, também, para o espírito. Se o espírito deve ceder ao corpo, como no apetite, ou o corpo ao espírito, como no hábito, é para que ambos não saiam desfavorecidos. E ainda que o corpo ceda inexoravelmente ao espírito, é porque, na verdade, o espírito precisa disso mesmo, como no caso do metafísico inválido (p.135). A saúde do corpo só pode ser considerada menos importante do que a saúde do espírito na medida em que apenas este possui a capacidade - pela sua força, e daí o conflito - de, graças a uma simples resolução firme, dominar os sentimentos mórbidos ; por outro lado, "a filosofia que se interessa pelo fim supremo da razão no seu conjunto encerra em si um sentimento de força capaz de compensar em certa medida a fraqueza física da velhice por uma estimação razoável do preço da vida" (p.120). É nesta estimação que se supera o que é meramente comum; ou o que não pode ser de modo algum universalizável segundo o carácter duma acção cuja máxima possa ser erigida em regra universal, como é manifestamente o caso do viver depressa e intensamente, morrer jovem e ter um cadáver bonito. Se só aparentemente a disputa corpo-espírito pode ser considerada, mais ainda o facto de a saúde ser para Kant um cálculo, um domínio de si sustentado pelas forças estóicas sustine et abstine, não quer de maneira nenhuma dizer que o espírito seja tomado como um refúgio. Como vimos, a filosofia encerra em si uma força; é essa força que instaura a superioridade da alma humana. O que está então permanentemente em causa é a animação da força vital (p.125), exercida tanto pelo espírito como pelo corpo. E a dietética kantiana terá sempre o cuidado de velar para que a animação se não extinga. Isto porque a força vital é algo de diferente quer da força animal quer da força da razão. A força vital depende destas na medida em que favorecem a sua animação, mas estas são absolutamente dependentes da animação daquela. O espírito não é um refúgio mas um outro trabalho(2).

Mas o que é peculiar na dietética kantiana é a sua base estética, pois trata-se de uma experiência que cada um fará por si. É também nesse sentido que Kant valoriza a ideia de jogo como o contrário da ilusão. Pode assim essa experiência ser considerada como um terceiro aspecto do conflito, visto tratar-se do oposto de uma economia médica que pressupõe que a ciência respeita ao médico e não ao doente. O poder da alma em ser mestra dos sentimentos mórbidos, proposição da dietética, funda-se na vontade e não na passividade: a posição clínica é posta de parte pela dietética, "a cama é um ninho para muitas doenças" (p.119). Kant dá um exemplo desse poder ao referir-se à sua própria hipocondria, hipocondria tópica, que ele distingue da hipocondria vaga cuja origem assiste na duplicidade do jogo involuntário da imaginação: se esse jogo é a causa do sucesso do desvio da atenção em relação a um sentimento mórbido, pode ser também causa da "doença das ficções" (p.121), sendo o mal sugerido pela actividade criadora da imaginação sem ligação com a sensibilidade. Na hipocondria tópica, há então a possibilidade de actuar o poder da imaginação como reflexo da firme resolução da razão(3). Trata-se de um poder, usando a sua terminologia, indeterminado, mas nele reside, precisamente, a condição transcendental duma saúde ela própria transcendental(4). Kant exclui assim uma indesejada determinação "científica" da sua dietética - por isso ela não é terapêutica; porque, desse modo, "a arte de prolongar a vida humana só nos conduziria enfim a não sermos mais do que tolerados entre os vivos, o que não é precisamente a condição mais agradável" (p.135). Por isso ele termina a terceira secção com ironia, também ela transcendental, ao fazer algumas perguntas cujas respostas, aliás, estão supostas no que temos vindo a dizer, perguntas que são como o lastro da dúvida necessário àquilo que se tem por certo ou por melhor.

Vimos que o papel da imaginação é duplo. No caso da hipocondria, enquanto "doença das ficções", toma-se uma representação ideal da imaginação como coisa sensível, ou como uma prescrição, um conceito do entendimento; a isso se chama ilusão transcendental e é propriamente um sonhar acordado, coisa que um ser dotado de razão deve de imediato domar. Por outro lado, no estado são, quando por exemplo se têm insónias, o jogo involuntário da imaginação origina, por um desvio do pensamento, a queda no sono e no sonho "onde por um tour de force admirável da organização animal, o corpo se relaxa quanto aos movimentos da animalidade, mas agita-se quanto ao movimento vital, graças aos sonhos(...)" (pp.124-125), ou ainda, para se evitar a vertigem ou a hipocondria, enquanto se caminha ou come, "deve-se pôr um freio no pensamento intencional e entregar-se ao livre jogo da imaginação" (p.129), neste caso não um sonhar acordado mas semelhante a um jogo mecânico. Uma coisa é o jogo, outra coisa a ilusão e os seus meios de contágio ante os quais já não basta simplesmente uma resolução, mas um princípio oposto, porque, mergulhados na ilusão, não há resolução que não seja ilusão(5). Na imaginação encontra a razão, enquanto saúde transcendental, a possibilidade quer dum desvio da sensação, quer dum desvio do pensamento, quando sensação e pensamento são opressores e entorpecem a força vital. A razão guia portanto a imaginação ao seu jogo próprio.

Descrevemos o modo como em Kant a imaginação influi no desvio da atenção do sentimento mórbido ou como, pelo contrário, o activa. Esse papel da imaginação na conservação da força vital é levado ao limite no caso do sentimento do sublime. Kant adverte-nos na conclusão da terceira secção que se todos os sentimentos mórbidos que a vontade humana pode dominar são do género das convulsões, inversamente "alguns são de uma natureza tal que procurar submetê-los à virtude duma resolução aumenta ainda mais a dor espasmódica" (p.133). Neste caso a imaginação seria confrontada com a sua impossibilidade. Kant refere-se ao seu "catarro epidémico acompanhado de dor de cabeça" (p.133), ou uma espécie de artrite cerebral, como lhe chama, que lhe perturba o seguimento dum raciocínio ou dum discurso. Essa afecção não enfraquece nem o pensamento, ou reflexão, nem a memória, mas "produz um estado convulsivo involuntário do cérebro, uma espécie de impotência em manter, na alteração das representações que se sucedem, a unidade na consciência" (p.134). Na Analítica do Sublime Kant diz-nos que o sublime "pode também ser encontrado num objecto sem forma, na medida em que seja representada nele uma ilimitação ou por ocasião desta e pensada além disso na sua totalidade"; e a satisfação - comprazimento - que lhe está ligado "é um prazer que surge só indirectamente, ou seja ele é produzido pelo sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas; por conseguinte enquanto comoção não parece ser nenhum jogo, mas sim seriedade na ocupação da faculdade da imaginação"(6). Não se trata pois de, por qualquer paradoxo, enquadrar a doença numa retórica do prazer, como algo donde se pode tirar um prazer, mas, sim, como algo que põe à prova duma maneira limite a imaginação no seu confronto com a vontade e com o sentimento (efusão). As perguntas que Kant é obrigado a fazer quando da convulsão discursiva - "onde é que eu ia? donde parti?" (p.134) - resultam daquilo a que chama falta de presença de espírito e originam uma briga que de bom grado se evitaria se não nos fosse dado pensar; mas ao pensamento deve ser tão necessária essa perda da presença de espírito quanto o sentimento dela, que actua como uma via de regresso, ou de encontro(7). O que há, para concluir, a opor a uma terapêutica é o facto de não ter em conta, ante a doença, o sentimento desta no sujeito. Particularmente, no caso da falta de presença de espírito, trata-se de um estado de facto que o espírito esteja ausente, e a sua supressão só poderia ser, pois, artificial e ilusória, dando a ilusão duma capacidade que as faculdades cognitivas do homem não possuem. A doença, como os juízos de gosto(8), pode interferir directamente com o sentimento de vida do sujeito, por esse modo saindo duma exclusiva relação com o objecto. Por isso a importância da terceira secção que, neste tempo em que o célere movimento do contágio corresponde à rápida disseminação da exclusão - social ou outra - por virtude do que é considerado uma boa saúde, nos vem lembrar que a doença pode ser tomada como uma possibilidade.
 
 

FIM

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Notas:

1. Edição utilizada: Le Conflit des Facultés, en trois sections, 1798, tradução, introdução e notas de J. Gibelin, Paris, Vrin, 1973. Original: Der Streit der Falkultäten, 1798.

2. "(...) é necessário também explicar por esse facto - o facto de o metafísico , isto é, o próprio Kant, se tornar mais cedo inválido pelo esforço de representar e examinar o seu objecto num todo sistemático - como é que alguém se pode gabar de estar bem para a sua idade, ainda que, considerando algumas tarefas que lhe incumbem, se deva inscrevê-lo na lista dos doentes; porque, como a impotência impede ao mesmo tempo o uso e com ele o gasto e o esgotamento da força vital, e desde que reconheça que viva de certa forma apenas num grau inferior (como um ser que vegeta), a saber, poder comer, andar e dormir, o que se chama estar de saúde quanto à existência animal, mas doente quanto à existência social (quando obrigado a tarefas públicas), quer dizer, inválido, este candidato à morte não se contradiz assim de nenhuma maneira" (p.135).

3. "Quanto a mim, por causa do meu peito achatado e estreito, que me deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, tenho uma disposição natural à hipocondria, que ia outrora até ao desgosto em viver. Mas a reflexão de que a causa dessa opressão do coração não era talvez senão mecânica e impossível de afastar, cedo fez com que não me preocupasse mais com isso, e, apesar de sentir ainda a opressão no peito, na minha cabeça reinavam a alegria e a serenidade, que não se dispensavam de se comunicar em sociedade (...) E como a alegria de viver provém antes daquilo que fazemos usando livremente da vida do que daquilo que desfrutamos, os trabalhos do espírito podem opor um outro género de acréscimo de consciência vital às opressões que respeitam unicamente ao corpo" (pp.122-123).

4. Expressão usada por Lyotard no artigo "Judicieux dans le différend", aliás tomada a Kant ( in La Faculté de Juger, VVAA., Paris, Minuit, 1985, p.195). Saúde transcendental na medida em que a convulsão discursiva, exposta por Kant na p.134, seria um sinal que desencorajaria a ilusão transcendental. Lyotard dá-lhe um sentido mais positivo, ao indicar nessa agitação, da qual a convulsão é o limite, a imagem da condição crítica na experiência, a que chama "compleição judicativa".

5 Kant refere um tipo particular de sentimentos mórbidos ante os quais a resolução é impotente. "Os sentimentos mórbidos que provêm dos trabalhos intelectuais empreendidos em contratempo não são ainda de uma natureza tal que possam ser eliminados directa ou imediatamente por simples resolução, mas somente pouco a pouco, desabituando-nos por meio de um princípio oposto" (p.129).

6. Cf. Crítica da Faculdade do Juízo, trad. de António Marques e Valério Rohden, Lisboa, INCM, 1992, §23, pp.137-138 . (Original: Kritik der Urteilskraft, 1790)

7. No §27 Kant fala-nos do movimento que o sentimento do sublime provoca no espírito, onde se jogam a atracção e a repulsão: "Este movimento pode ser comparado (principalmente no seu início) a um abalo - convulsão - , isto é a um repelir rapidamente variável e a um atrair do mesmo objecto. O excessivo para a faculdade da imaginação (ao qual ela é impelida na apreensão da intuição) é por assim dizer um abismo no qual ela própria teme perder-se; contudo para a ideia da razão do supra-sensível não é igualmente excessivo, mas conforme às leis produzir um tal esforço da faculdade da imaginação: por conseguinte é por sua vez atraente precisamente na medida em que era repulsivo para a simples sensibilidade " (§27, p. 154).

8. Conforme a terceira Crítica, §1, nos juízos de gosto, "a representação é referida inteiramente ao sujeito e na verdade ao seu sentimento de vida, sob o nome de sentimento de prazer ou desprazer; o qual funda uma faculdade de distinção e julgamento inteiramente peculiar, que em nada contribui para o conhecimento, mas somente mantém a representação dada no sujeito em relação com a inteira faculdade de representações da qual o ânimo se torna consciente no sentimento do seu estado" (p.90).