Virtual: realidade da imagem, ou o que é que nos impede
de ver?
© Edmundo Cordeiro, Universidade da Beira Interior
(3º Congresso da Lusocom, Braga, 29 de Outubro de 1999)
Propomos aqui o esboço de um
ponto de convergência entre as reflexões de Marie-José Mondzain (1) e as de Gilles Deleuze (2) sobre a natureza das imagens. As
reflexões de Mondzain têm por objecto e ponto de partida a "querela das
imagens" de Bizâncio, no século IX, centrada na luta entre iconoclastas e
defensores dos ícones, os iconófilos, e que obrigou estes últimos a elaborar o
primeiro grande pensamento da imagem, o qual estaria na base do imaginário
contemporâneo, quer dizer, na base tanto da produção de imagens quanto da
relação com as imagens. (Estes aspectos não são simples. Têm que ver com a
justificação, digamos assim, do mistério da Encarnação do Verbo divino na
pessoa de Cristo, procurando, como diz Didi-Huberman, "(…) ultrapassar a
oposição secular dos deuses demasiado visíveis do paganismo greco-latino e do
deus demasiado invisível da religião hebraica (3) ". Mas não é esse o nosso objecto
aqui. Interessa-nos essa ideia de uma imagem que se desenvolve, que se estende,
para além da sua própria visibilidade.) Simplificando, para o que aqui nos
importa, tratou-se, para os defensores das imagens, de libertar a imagem de uma
avaliação feita pela "bitola do Ser", da semelhança e do verdadeiro -
"a imagem nunca é verdadeira (4) ", diz Mondzain -, para acentuar o seu
carácter fundamentalmente dinâmico, o seu carácter de mobilidade e manifestação
- "mobilidade específica da manifestação do Ser na medida em que ele não
está aí (5) ", diz ela;
por conseguinte, enquanto não é dado de antemão, enquanto é invisível.
Diz Marie-José Mondzain: "[A
imagem] não é nem um objecto que existe fora de nós ou longe do mundo, nem um
estado mais ou menos transitório da nossa subjectividade. Ela não pode existir
sem nós e é por ela que um mundo advém. Ela é a manifestação, face a nós, do
livre jogo das desaparições recíprocas entre o mundo e nós. A anulação do
sujeito e do objecto não faz com que a imagem caia no não-ser, mas instaura a
temporalidade própria à relação de imagem. A imagem não está no espaço, ela tem
que ver com o tempo. Diástole e sístole do presente e da ausência. A imagem
constitui-se na pulsação do real que nos captura e da vida que nos liberta. A
imagem é aparição do ritmo. (6) " Esta pulsação do real e da vida é por ela
também nomeada pulsação entre o que aparece e o que desaparece. E se aparece, é
pela imagem, e se desaparece, é pela imagem - e se aparece, é pelo tempo, e se
desaparece, é pelo tempo…
Ora, em que consistirá esta
"temporalidade própria" da imagem? E onde residirá então a
convergência entre isto que se acabou de dizer e Gilles Deleuze? Nisto: para
Deleuze, evidentemente com um vocabulário e um ponto de partida tanto
filosófico quanto material muito diferentes, "o carácter mais autêntico da
imagem é o movimento (7) ". É certo que a noção deleuziana de "imagem-movimento" se
refere antes de mais à especificidade da imagem cinematográfica, mas, tal como
em Bergson, donde parte Deleuze, isso tem um alcance mais vasto, de forma que
poderemos avançar que Deleuze se serve da imagem cinematográfica para mostrar o
carácter fundamental de toda a imagem, para mostrar que toda a imagem é
imagem-movimento e que esse movimento da imagem é um movimento fundamental da
matéria (para Bergson, matéria é igual a movimento), ou, como ele diz, a
"operação do Real"… A imagem-movimento é uma modulação: "(…) a
modulação é a operação do Real, enquanto constitui e não pára de reconstituir a
identidade da imagem e do objecto (8) " (p.42). Bergson diz que qualquer corte do
movimento, por conseguinte aquilo a que analiticamente poderíamos chamar
"imagem fixa", é um "corte móvel", isto é, toda a imagem é
móvel. E a modulação é o processo de virtualização e de actualização. É esse o processo
do tempo. É o tempo que realiza o movimento no olhar e, na medida em que se
trata de um espaço-tempo, o tempo impregna toda a figura de espaço e o
movimento habita já a imagem (mesmo "parada") independentemente de
qualquer manifestação temporalizada (9).
Quando dizemos no título que o virtual
é a realidade da imagem, ou que a realidade da imagem é virtual, isso não
significa que saibamos o que é a imagem ou o que são as imagens, significa,
sim, que colocamos a imagem na perspectiva da passagem do tempo. Não
está aqui em causa, evidentemente, responder à pergunta o que é o tempo?
Importa somente reter esta aproximação: o tempo é aquilo que passa, talvez
melhor, aquilo que se mantém na passagem ou a passagem daquilo que se mantém… E
aquilo que se manterá na passagem será a própria potência de passar… Esta passagem
do tempo seria um movimento fundamental próprio da imagem, a sua
temporalidade própria.
Esta passagem do tempo não
é um simples deixar para trás, como todos sabemos e experenciamos, não é
um processo linear, não se trata de uma simples sucessão. É um processo que
pressupõe uma "abertura infinita". Diz Deleuze que "a simples
sucessão afecta os presentes que passam, mas cada presente coexiste
com um passado e um futuro sem os quais ele próprio não passaria (10). " Ora, será esta coexistência
que definirá a existência da imagem, isto é, a passagem de imagem
para imagem, a passagem das imagens, a passagem do tempo. Diz Deleuze
ainda: "Não somente a imagem é inseparável de um antes e de um depois que
lhe são próprios, que não se confundem com as imagens precedentes e
subsequentes, mas, por outro lado, ela própria cai num passado e num futuro,
dos quais o presente não é mais que um limite extremo, nunca dado (11). " Como o ritmo numa obra musical -
a imagem é aparição do ritmo, dizia Mondzain - ao mesmo tempo um fluir e
a subtração a esse fluir.
Tarkovski: "Podemos
facilmente imaginar um filme sem actores, sem música, sem décors, e mesmo sem
montagem. Mas seria impossível conceber uma obra cinematográfica privada da
sensação do tempo que passa (12). " Tarkovski refere-se evidentemente aqui a
um tipo de imagem que não só reproduz o movimento como o faz sentir das
maneiras mais inesperadas uma vez que pode acrescentar de várias formas
movimento ao movimento, e com isso "esculpir o tempo", como ele diz. Mas
a hipótese que pretendemos esboçar aqui é a de que o tempo próprio das imagens,
de todas as imagens, independentemente de qualquer manifestação temporalizada,
é essa passagem. Todas as imagens seriam passagens do tempo. Como
se, não somente o tempo passasse por todas as imagens, quanto mais não seja com
a demora, o tempo, do olhar ou do pensamento, mas as imagens, elas
próprias, fossem a potência dessa passagem, esse "limite
extremo, nunca dado".
Ora, no reino da proliferação
tecnológica e mercantil das imagens, constantemente solicitados pela sua
produção, onde tudo, supostamente, dizem-nos, se pode ver, serve isto
para acentuar que o principal da imagem não é tanto o que se vê mas sim o que
não se vê, e que o seu exercício implica, muito mais do que reconhecimento,
e como diz Mondain, "perda de conhecimento (13) ". O perigo está e estará, como
esteve sempre, na obliteração do que não se vê pelo que se vê… Mas aí talvez a
própria imagem detenha, ela própria, os seus antídotos, essa "eficácia
sombria" de que fala Didi-Huberman: "Há um trabalho do
negativo na imagem, uma eficácia "sombria" que, por assim dizer, cava
o visível (a ordenação dos aspectos representados) e abala [meurtrit] o
legível (a ordenação dos dispositivos de significação) (14) ". E assim, quanto mais se vê,
menos se vê… É isso que importa. (Menos reconhecimento, mais perda de
conhecimento.)
E afinal, o que é que nos impede
de ver? Certamente aquilo que nos permite reconhecer.
Notas:
1 Mondzain, Marie-José, L'image naturelle, Le Nouveau Commerce, Paris,
1995 ; Image, icône, économie - les sources byzantines de l'imaginaire contemporain,
Éditions du Seuil, Paris, 1996.
2 Deleuze, Gilles, L'image-mouvement, Éditions de Minuit, Paris, 1983
; L'image-temps, Éditions de Minuit, Paris, 1985.
3 Didi-Huberman, Georges, "Poderes da Figura - exegese e visualidade na
arte cristã", in Revista de Comunicação e Linguagens, nº20,
"Figuras", Lisboa, 1994, p.163. (Or.: "Puissances de la figure -
Exégèse et visualité dans l'art crétien", Encyclopaedia Universalis -
Symposium, E.U., Paris, 1990, p.596-609.)
4 L'image naturelle, op. cit., p.19-20.
5 Ibid., p.22.
6 Ibid., p.15.
7 L'image-temps, op. cit., p.41.
8 Ibid., p.41-42.
9 Cf.
Ropars, Marie-Claire, L'idée d'image, Presses Universitaires de
Vincennes, Saint-Denis, 1995, p.29-33.
10 L'image-temps, op. cit., p.55.
11 Ibid., Ibid.
12 Tarkovski,
Andrei, Le temps scellé, Éditions Étoile / Cahiers du Cinéma, Paris,
1989, p.108.
13 L'image
naturelle, op. cit., p.28.
14 Didi-Huberman,
Georges, Devant l'image, Éditions de Minuit, Paris, 1990, p.174.