© Edmundo Cordeiro, Universidade da Beira Interior
(I congresso da SOPCOM, Lisboa, 23 de Março de 1999)
Avec l'expression «l'état du cliché», emprunté à Deleuze, nous voulons désigner à la fois ce que la perception occulte de l'image - on se défait difficilement de notre Bible, etc. - et ce que l'image devient elle même: l'image tomberait toujours en des clichés, et, une fois actualisée, elle serait le modèle de clichés. En outre, avec l'expression klossowkienne «invention du simulacre» nous voulons désigner le travail de "nettoyage" du cliché, lequel travail «présuppose le règne des stéréotypes prévalents». Nous affirmons que tout simulacre est en quelque sorte distorsion, différence, tant par rapport au cliché qu'en lui-même.«Faire que l'image soit immédiatement réelle pour moi» de Bacon, c'est-à-dire, l'aboutissement à une image nouvelle - un simulacre, cet «équilibre précaire» (Bacon), ce «signe instantané» (Klossowski) - l'atteindre, la toucher avec violence, la défigurer, signifierait travailler en elle de façon que le modèle et le discours (ou l'histoire) ne la surdéterminent d'une forme telle que figurativité et réceptivité seraient toujours en quête d'un réel séparé de l'image, ou, en somme, d'un lieu commun du sens et du visible... Atteindre l'image, faire qu'elle soit immédiatement réelle, ça veut dire, en somme, briser un schème de perception... Pas facile, tant de la part de la figuration que de la part de la réception. Et là, finalement, nous présentons l'affection (Bergson), et l'image-affection (Deleuze), comme une violence que l'image fait à la perception, quand, tout d'un coup, nous voyons que voyons... Quand, tout d'un coup, l'image nous regarde...
Chamemos «estado do cliché» (Deleuze)
à ocultação da imagem operada pela percepção
e àquilo em que a imagem se torna uma vez actualizada: a imagem
cairia em clichés e seria modelo de clichés. Chamemos
«invenção do simulacro» (Klossowski) ao trabalho
de limpeza do cliché, trabalho que «pressupõe
o reino dos esteriótipos que prevalecem». Afirmamos que todo
o simulacro é distorsão, diferença, tanto relativamente
ao cliché, quanto em si mesmo, caracterizando a não-distinção
entre real e imagem.O atingir a imagem, o fazer com que ela seja imediatamente
real (Bacon), significa trabalhar nela de modo a que o modelo e o discurso
não a sobredeterminem de forma tal que figuratividade e receptividade
estejam sempre a caminho de um real separado da imagem, de um lugar comum
do sentido e do visível. Significa, em suma, quebrar um esquema
de percepção.Apresentamos, por fim, a afecção
(Bergson) e a imagem-afecção (Deleuze) como uma violência
feita pela imagem à percepção, quando, de repente,
vemos que vemos... Quando, de repente, a imagem nos olha...
1.1
Numa entrevista sobre um trabalho de Godard para televisão, "Six fois deux", e tendo como base a concepção de imagem exposta no primeiro capítulo de Matière et mémoire de Henri Bergson, Gilles Deleuze classificava-o como uma tentativa de «(...) restituir às imagens exteriores a sua integralidade, fazer com que não percepcionemos menos, fazer com que a percepção seja igual à imagem, restituir às imagens tudo o que elas têm (1).» Por conseguinte, restituir às imagens tudo o que elas têm e que a percepção oculta. Chamemos a esta ocultação da imagem, inspirando-nos em Deleuze, «o estado de cliché». «Civilização da imagem? (pergunta ele) De facto é uma civilização do cliché onde todos os poderes têm interesse em esconder-nos as imagens, não forçosamente em esconder-nos a mesma coisa, mas em esconder-nos qualquer coisa na imagem (2).»
Por outro lado, chamemos «invenção do simulacro»
a esse trabalho de limpeza do cliché (que em Klossowski tem
o nome de esteriótipo): «O esteriótipo responde
em primeiro lugar aos esquemas normativos da nossa apreensão visual,
táctil ou auditiva, esquematização que condiciona
a nossa receptividade primeira. (...) estes esquemas, enquanto esteriótipos,
servirão para prevenir a sua menor alteração (...).
Ora, é a partir desta prevenção que começa
o duplo jogo do simulacro. Toda a invenção de um simulacro
pressupõe o reino dos esteriótipos que prevalecem [prévalents]:
é com os elementos decompostos destes que a fabricação
de um simulacro somente logra impor-se por sua vez como "esteriótipo".
(...) ao nível da expressão tanto da linguagem quanto da
figuração plástica, os esteriótipos são
resíduos de simulacros fantasmáticos caídos no uso
comum: mas, enquanto simulacros degradados, reflectem uma reacção
individual ou colectiva a algum fantasma esvaziado de conteúdo.
A invenção do simulacro procede sempre da consciência
deste processo (...) (3)»
1.2
Neste trabalho de limpeza do cliché podemos incluir
o processo de desfiguração, a busca do efeito de imagem que
é pópria de Francis Bacon. A imagem, ou de qualquer maneira
o efeito de imagem por ele procurado, ou ainda, diríamos nós,
o simulacro, a imagem nova é, diz ele, «(...) uma espécie
de equilíbrio num fio entre aquilo a que se dá o nome de
pintura figurativa e a abstracção (4).»
É portanto um lugar muito precário, o da imagem. À
imagem, é preciso, diz ele, «trazê-la ao de cima»,
trabalho que passa, no seu caso, pela distorção das formas
ilustrativas de aparências visuais. Ora, esta fórmula, não
esquecendo nós, evidentemente, que Bacon não criou "a" distorção,
mas "a sua" forma de distorção, esta fórmula vale
intrinsecamente para toda a invenção de simulacros, reconhecendo,
porém, que esse trabalho de «trazer a imagem ao de cima»
não tem de passar pela, diríamos nós agora, "aparência
visível da distorção". Quer dizer: todo o simulacro
é, de algum modo, distorção, ou, em termos mais suaves,
diferença. A invenção do simulacro implica a presença
ou a existência do cliché... Muito provavelmente não
haveria a necessidade de inventar simulacros se os clichés
não fossem simulacros degradados, como diz Klossowski. E o facto
de a imagem "cair" em clichés, e ser modelo de clichés, uma
vez actualizada, parece ser, por uma razão ou por outra, inevitável,
senão mesmo constitutivo (5)...
1.3
A dado passo das entrevistas com David Sylvester, Bacon enuncia
duas questões inerentes ao seu gesto enquanto pintor: «Como
é que eu sinto que posso tornar esta imagem mais imediatamente real
para mim?» ; «Quem é que nos nossos dias foi
capaz de registar o que quer que seja, e tocando-nos isso como uma realidade,
sem que a imagem tenha sido profundamente atingida?» Uma vez
mais, e próximo de nós no tempo, e dito por quem faz imagens,
uma vez mais está aqui em causa, não sei se por um lado e
por outro lado, mas aparentemente, pelo mesmo lado, o real e a imagem.
Talvez não por mera vicissitude de vocabulário, o que é
facto é que as interrogações de Bacon (a abertura
da primeira - como fazer para - é fechada pela segunda - como fazer
senão assim) referem que a imagem pode ser mais e menos real, e
pode sê-lo imediatamente. Donde, o material do pintor (a sua matéria)
são as imagens e o que este busca, o real imediato, é o efeito
de imagem, ou a imagem efeito, quer dizer: uma imagem nova. A questão
pode ser: como é que eu posso fazer deste cliché um
simulacro? O simulacro é, evidentemente, o que é mais real
para ele. Donde, com a questão da realidade da imagem opera-se um
deslocamento relativamente à questão da distinção
entre real e imagem. E a noção de simulacro pode justamente
servir-nos para caracterizar a não-distinção entre
real e imagem (6).
1.4
Klossowski define o simulacro como «um signo de um estado
instantâneo». Neste sentido, um simulacro não é
nem uma má realidade (uma realidade menos real) nem uma má
imagem (uma imagem segunda), e só «degradado» pode servir
para alguma coisa, só assim pode ser, digamos, apropriado. No entender
de Klossowski, ele é um signo, mas um signo especular, não
um signo significante: «a imagem é especular e não
especulação (7)».
O simulacro marca esse ponto, dizem Deleuze e Guattari, «(...)onde
a cópia deixa de ser uma cópia para se tornar [pour devenir]
o
Real e o seu artifício (8).»
E quando Deleuze em L'image-temps fala na necessidade de «arrancar
aos clichés [quer dizer às imagens de troca, imagens,
diríamos nós, cujo carácter especular foi apanhado
pela especulação significante] uma verdadeira imagem»,
podemos considerar que se trata de extrair o simulacro da "imagem". Ora,
atingir a imagem, como dizia Bacon, tocá-la com violência,
desfigurá-la, significará trabalhar nela de modo a que o
modelo e o discurso (ou a história) não a sobredeterminem
de forma tal que figuratividade e receptividade estejam sempre a caminho
de um real separado da imagem e que é sempre, ou qualquer coisa
que só aproximadamente pode ser figurada e recebida, ou um lugar
comum do sentido e do visível. Furar o cliché, será,
então, colocar a imagem numa posição em que, relativamente
a ela, deixamos de poder fazer o que normalmente fazemos (em função
da nossa situação, das nossas capacidades, dos nossos gostos
(9) ): desviarmo-nos e desviar o
olhar quando é demasiado desagradável, resignarmo-nos quando
é horrível, assimilar o que é belo. Atingir a imagem,
furar o cliché, será, no fim de contas, fazer dela
qualquer coisa de imediatamente real: quebrar um esquema de percepção.
2. Dor
2.1
Mas não será fácil quebrar um esquema de percepção. Não é fácil furar o cliché. Não é fácil ver de outra maneira. A concepção bergsoniana de imagem mostra-o: percepcionar é seleccionar em função de necessidades - é, por definição, ver pouco. E ver mais do que o suficiente para agir e reagir é quase sempre doloroso. Talvez o reverso do gesto de Bacon. Tratar-se-á agora da violência de ver a imagem.
Ora, o que é a imagem, para Bergson? Imagem é mais
do que uma "representação" e menos do que uma "coisa" (Matière
et mémoire, Iº capítulo). Existe a imagem: por isso,
nem as coisas existem apenas na representação, nem as representações
são somente fruto de representações e por essa razão
diferentes de coisas. Em suma, o que nos envolve, o que nos atravessa,
o que, por vezes, vemos, não são nem propriamente coisas
nem propriamente representações - são imagens. As
imagens são o universo-matéria em movimento. E a sua existência,
ainda que por vezes possam ser "vistas", é independente do facto
de serem ou não serem percepcionadas. Por conseguinte, não
há coincidência entre as imagens vistas e as imagens-movimento
do universo ou da matéria, não há coincidência
entre o mundo-matéria-imagem (imagens exteriores) e a imagem do
mundo (imagens interiores).Se há qualquer coisa como uma percepção,
se as imagens, algumas delas, são as imagens "vistas", é
porque há qualquer tipo de relação especial entre
as imagens: a percepção é a variação
das imagens em função de uma única que lhes serve
de écran. São essas as imagens vivas, isto é,
as que podem reagir, mas igualmente armazenar entre a acção
e a reacção, introduzindo um intervalo no incessante movimento
das imagens. Diz Deleuze: «É evidente que este fenómeno
de intervalo não é possível senão na medida
em que o plano de matéria contém tempo (10).»
(11) Não percepcionamos
independentemente do tempo. Por via disso, todo o actual que a percepção
é está envolto do virtual que é a memória.
Em sentido estrito, percepção e matéria não
se distinguem, ambas são movimento e imagem, imagem-movimento. Mas
por via de não haver, no fundo, percepção sem memória,
a percepção consciente distingue-se da matéria. Há
diferença de natureza entre percepção e memória.
2.2
Bergson diz na primeira frase do prefácio a Matière et mémoire que afirma a realidade do espírito e a realidade da matéria. Matéria e espírito serão potências que não sobrevivem uma sem a outra e ambas se cruzam na memória, em imagem, nessa matéria sinaléctica que é movimento e tempo também. Talvez muito rudemente seja esta a questão: o espírito conserva a matéria e a matéria enche o espírito; a matéria dá imagens ao espírito e o espírito dá novas imagens à matéria. Numa matéria sem espírito nunca chegaria a haver o novo, não haveria o "discernimento" (a distinção, a separação, a selecção) seria o perpetuum mobile. Num espírito sem matéria também nunca chegaria a haver o novo, seria o perpetuum imobile. Ou ainda: o espírito introduz a qualidade no movimento ou na imagem. « ... Não é difícil ver de que modo percepção e matéria se distinguem e de que modo coincidem. A heterogeneidade qualitativa das nossas percepções sucessivas do universo deve-se ao facto de que cada uma dessas percepções se estende, ela própria, sobre uma certa espessura de duração, ao facto de que a memória condensa aí uma multiplicidade enorme de estímulos que nos aparecem juntos, embora sucessivos. Bastaria dividir idealmente essa espessura indivisa de tempo, distinguir nela a multiplicidade ordenada de momentos, numa palavra, eliminar toda a memória, para passar da percepção à matéria, do sujeito ao objecto.» (Matière et mémoire, 217, 73 (12) ) Bergson pede-nos, neste primeiro momento, que nos esforcemos por pensar a percepção sem a memória (objecto do IIº capítulo de Matière et mémoire). E vai dizer quanto a estes dois pólos, que, contrariamente à diferença entre a coisa e a representação, entre a percepção e a memória não há diferença de grau, mas de natureza: é a diferença entre a matéria e o espírito. Vai ser a diferença entre o presente e o passado. Mas quando ele diz que entre a imagem real e a imagem percebida, não há diferença de natureza mas de grau, isso quer dizer que a imagem percebida é uma imagem presente por entre as imagens reais, e que esse "destacamento" da imagem não se dá em virtude de uma iluminação que incidiria sobre a imagem real, mas pelo obscurecimento de certos lados dela - um destacamento do objecto num quadro (num écran): é o nosso cérebro que é o écran. Como ele diz, a fotografia está já tirada nas coisas (Matière et mémoire, 188, 36): isto é, nós não acrescentamos nada às coisas, somente lhe colocamos na frente, digamos, uma tela negra, que lhes limita a propagação, e que as faz variar de outra maneira, mas que
igualmente as retém. Diz ele (Ibidem, 190, 38): «As
imagens exteriores atingem os órgão dos sentidos (...) propagam
a sua influência até ao cérebro. O movimento atravessa
o cérebro, detém-se aí um pouco, e irá expandir-se
em acção voluntária.» E conclui: «eis
o mecanismo da percepção.»
2.3
Ora, para Bergson, as imagens exteriores, as imagens-movimento, não podem ser restituídas por "imagens imóveis", isto é, por clichés, os quais lhe retirariam o carácter fundamental, o movimento.
Deixando aqui de lado a opção de Deleuze pelo cinema - para ele o cinema trabalha com um "o corte móvel" (L'image-mouvement, 11), isto é, à «imagem-média» do cinema, resultante de vinte e quatro cortes imóveis por segundo é inerente o movimento, a que se acrescentam outros movimentos: a montagem, a câmara móvel, a dimensão temporal do plano... - por que é que o movimento da imagem é assim tão importante? Porque o movimento da imagem-movimento, a imagem-
movimento, é afecção do todo das imagens. O
todo das imagens das imagens-movimento não é estanque, há
uma variabilidade inerente ao todo das imagens - o todo não está
imóvel, o todo não pára, não há nada
que o segure... O todo é transformável. E o movimento é
expressão dessa transformação (13).
Quer dizer: há um movimento vital, que não se dá no
espaço e que é transformação - a expressão
dessa transformação será a imagem nova... Um "corte
móvel" da transformação, um corte móvel das
transformações qualitativas que se dão no tempo. Um
"corte" nesta mobilidade (uma imagem) é um corte móvel da
duração (uma imagem-movimento): o movimento é um corte
móvel da duração (do tempo).Diz Bergson: «As
imagens exteriores atingem os órgão dos sentidos (...) propagam
a sua influência até ao cérebro. O movimento atravessa
o cérebro, detém-se aí um pouco, e irá expandir-se
em acção voluntária.» (Matière et
mémoire, 190, 38) Entramos nas três grandes variedades
de imagem-movimento, das quais Deleuze dá conta enquanto construção
cinematográfica. Na face receptora do cérebro (imagem especial,
centro de indeterminação) constituir-se-á qualquer
coisa como uma imagem-percepção. Nesse intervalo que medeia
entre a recepção e a reacção, imprimir-se-á
uma imagem-afecção. A resposta, a acção ou
reacção, é a imagem-acção. «E
cada um de nós, a imagem especial ou o centro eventual, nós
não somos outra coisa senão um agenciamento das três
imagens, um concentrado de imagens-percepção, de imagens-acção,
de imagens-afecção.» (L'Image-mouvement,
97) Em primeiro lugar, é a passagem do primeiro sistema de imagens
(variação universal de todas as imagens) para o segundo (variação
de todas as imagens em função de uma), ou seja, a relação
dos movimentos com um «centro de indeterminação»,
que dá origem à imagem-percepção. No primeiro
sistema de imagens poderíamos falar de uma percepção
pura, quer dizer, de uma percepção ideal em que não
haveria propriamente centro, mas seria uma percepção que
não veria nada, por assim dizer... - a não ser no cinema,
por causa da «consciência câmara»... Seria
este o pólo objectivo ou a imagem-percepção-objectiva.
No segundo sistema de imagens, poderíamos falar de um pólo
subjectivo ou de uma imagem-percepção-subjectiva. Por outro
lado, o enquadramento, a subtração ou a variação
das imagens em função de uma, vai implicar que o mundo se
reorganize justamente em função desse «centro de indeterminação»,
vai implicar, em suma, novos movimentos que constituem a resposta à
imagem-percepção: é a imagem-acção.
É como se o mundo reorganizado da imagem-percepção,
esse «arqueamento do mundo», como diz Deleuze, me empurrasse,
me obrigasse a agir.
2.4
Mas há um terceiro aspecto do movimento relacionado com o
«centro de indeterminação»: é que,
para além de poder ser percebido, ou para ser percebido, o movimento
é igualmente sentido: afecta. Afecta quando fica por instantes (por
vezes dolorosos) retido no intervalo entre a percepção e
a acção. É a imagem-afecção. Nela o
movimento deixa de ser movimento de deslocação para se tornar
movimento de expressão. «... Uma espécie de tendência
motriz sobre um nervo sensível» (Matière et
mémoire, 201, 57), diz Bergson, ou, como diz Deleuze, «
...um
esforço motriz sobre uma placa receptiva imobilizada»
(L'Image-mouvement, 96), uma espécie de viragem do lado activo
para dentro, para o lado da percepção, uma espécie
de viragem do lado activo para o lado receptivo, ou ainda, uma acção
virada para dentro... Uma afecção do exterior, das imagens
exteriores...Cinematograficamente, para Deleuze, a imagem-afecção
é o grande plano e que o grande plano é o rosto. Quer isto
dizer que não há grandes planos de objectos, ou que, havendo,
não são imagems-afecção? Não. O grande
plano é rosto porque opera uma "rostificação" (visagéification)
de tudo - «o grande plano é por si próprio rosto»
(L'Image-mouvement, 126), qualquer que seja o objecto. Dá-se
esta "rostificação" porque as imagens são extraídas
das coordenadas espacio-temporais (14),
tornando-se pura expressão de afectos, como se dilatassem, ou, noutras
palavras ainda, como se as imagens nos olhassem... O movimento deixa de
ser de deslocação para ser de expressão - e aquilo
que exprime, isso que na imagem exprime qualquer coisa, é sempre,
de alguma forma, um rosto, isso olha-nos... Isso olha o nosso olhar...
Esse intervalo, que permite a percepção e a acção
consequente, que se enche de clichés que arqueiam o mundo e facilitam
a acção, esse intervalo é também o lugar da
afecção do exterior e do interior, onde, de repente, vemos
que vemos, furando um cliché...
FIM
1 Deleuze, Gilles, Pourparlers, Minuit, Paris, p.63.
2 Deleuze, Gilles, L'image-temps, Minuit, Paris, pp.32-33.
3 Klossowski, Pierre, La ressemblance, Ryôan-ji, Marseille, 1984, p.77.
4 Cf. as entrevistas de Bacon com David Sylvester, última edição aumentada:
Entretiens avec Francis Bacon, Skira, Paris, 1996 (The Brutality of Fact: Interviews with Francis Bacon, 1993).
5 Deleuze (L'image-temps, p.33) refere duplo o movimento da imagem: «Por um lado, a imagem cai constantemente no estado de cliché (...) Por outro lado, e ao mesmo tempo, a imagem tenta incessantemente furar o cliché, sair do cliché.» Marie-Claire Ropars (L'idée d'image, Presses Universitaires de Vincennes, Paris, 1995), refere-se à duplicidade da imagem, ao seu «processo de dissimulação», dando-se a ver no mesmo movimento em que se dissimula. Marie-José Mondzain (L'image naturelle, Le nouveau commerce, Paris, 1995), põe em evidência a dificuladade em ver a imagem, dado que esta escapa sempre à captura, elegendo o visível para se dissimular.
6 Tomemos isso ao menos como ponto de partida, o que, podendo eliminar uma deriva circular real/imagem, pode dar lugar a uma heurística muito pouco timorata.
7 Klossowski, Pierre, La ressemblance, Ryôan-ji, Marseille, 1984, p.105.
8 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, L'Anti-dipe, Minuit, Paris, 1972, p.104.
9 Deleuze, Gilles, L'image-temps, pp.31-32.
10 Deleuze, Gilles, L'image-mouvement, Minuit, Paris, 1983, p.91.
11 A percepção das imagens será tanto maior, tanto mais "extensa", quanto mais a acção ou as acções possíveis forem indeterminadas, quanto maior for o intervalo entre a acção recebida e a acção devolvida, quanto mais tempo a acção possuir: uma navalha segurada por uma mão que nos tenta atingir, não pode ser "contemplada"; o rosto de alguém sentado placidamente à nossa frente já pode ser contemplado, até ao momento em que esse rosto se vire para nós, como uma navalha apontada, e implique por isso uma acção imediata, determinada. «... A percepção dispõe de espaço na exacta proporção em que a acção dispõe do tempo.» (Matière et mémoire, 183 [uvres, édition du centenaire], 39 [P.U.F]) «Nossa percepção pura, com efeito, por mais rápida que a supunhamos, ocupa uma certa espessura de duração, de modo que as nossas percepções sucessivas não são nunca momentos reais das nossas coisas, como suposemos até aqui, mas momentos da nossa consciência.» (Matière et mémoire, 216, 72) Toda a percepção real tem, pois, uma ligação fundamental com a memória.
12 O primeiro número corresponde à página da Édition du Centenaire (uvres) e o segundo à página de Matière et mémoire editada nas Presses Universitaires de France.
13 Deleuze apresenta-nos assim a "terceira tese" de Bergson sobre o movimento: « ( ) o movimento é um corte móvel da duração, quer dizer, do Todo ou de um todo. O que implica que o movimento exprime qualquer coisa de mais profundo, a mudança na duração ou no todo.» (L'Image-mouvement, 18)
14 Mas há lugar também à expressão da afecção no cinema por intermédio daquilo a que Deleuze chama «espaços quaisquer», espaços indeterminados, espaços sem conexão com as situações ou as acções, ou espaços vazios. Por conseguinte, o espaço qualquer, o espaço que sai fora das coordenadas espacio-temporais é, por um lado, um equivalente do rosto, mas, por outro, pode fazer com que outros elementos substituam o rosto na expressão de afectos. Trata-se então de um espaço que se torna expressivo, um espaço afectivo: deixa de ser um mero espaço para percorrer.