A DROMOLOGIA

 Edmundo Cordeiro

 Edições Relógio d'Água, Lisboa, prefácio à tradução de Vitesse de Libération, Paul Virilio, a publicar pelas Edições Relógio D'Água)



Por vezes basta olhar de outra maneira para ver melhor. Paul Virilio

I. Espaço, tempo, velocidade, imagem, política, ciberespaço, acidente: o conjunto de temas que atravessam o pensamento de Paul Virilio, aos quais se podem juntar mais dois termos: Terra e Universo. Todos eles remetem, neste seu livro dedicado às teletecnologias da informação, simultaneamente, para a matéria e para a sua aparente negação, a imaterialidade. Como se, com esta última, na forma da instantaneidade, nada viesse a restar da matéria-Mundo; como se, com ela, o espaço e o humano continuassem a retrair-se.

Ernst Jünger, numa das obras principais que neste século se escreveram sobre a técnica, dizia que esta "nega pela sua própria existência 1"; e pode ser que sim, adverte Virilio. De certo modo, talvez a coisa já esteja feita. Perante isso, resta àquele que pensa, mover-se, isso, justamente, usar os meios, mostrar o que está feito, ver o que se pode fazer para-além do que esses meios nos obrigam a fazer - com a sua mobilidade, a do pensamento. Jünger introduziu uma expressão incontornável relativamente ao ser da técnica e ao ser do mundo: mobilização total. O fundamental já era, para esse pensador, a velocidade. Dizia ele que "a mobilização total [...] é, em tempo de paz como em tempo de guerra, a expressão de uma exigência secreta e constrangedora à qual nos submete esta era das massas e das máquinas .2" Virilio várias vezes se refere à mobilização, expressão que é evidentemente afim daquela outra, mais sua, a velocidade. A mobilização do espaço público e do espaço doméstico, a "mobilização constante do nosso campo de percepção", essa "mobilização repentina da ilusão do mundo [...] vindo o corpo próprio da testemunha a ser o último território urbano." Mas é evidente que a mobilidade da era das teletecnologias já não é a mesma mobilidade da era das máquinas e da electricidade: a mobilização do trabalho seguiu o caminho, segundo Virilio, da "inércia crescente", tornou-se outra, mas mantém-se ainda assim, agora - mas "no mesmo lugar".

Paul Virilio é um ensaísta, tem por campo a experiência e o pensamento, sobretudo a experiência das tecnologias - da arquitectura, do cinema e dos transportes em geral ao vídeo, dos computadores ao ciberespaço. Actualmente começa a trabalhar sobre a "bomba informática", denunciada já por Einstein, como ele refere nas páginas deste livro. É urbanista, "especialista da velocidade e alvo preferido de muitos internautas", como é apresentado numa entrevista 3. Fundou com um outro um Centro Interdisciplinar de Investigação sobre a paz e estudos estratégicos.

As suas questões iniciais são as do ordenamento do espaço e do tempo. Do primeiro ordenamento nos dá conta a primeiríssima parte da sua obra. Mas cedo, desde sempre talvez, se interessou pelo problema da velocidade: Vitesse et Politique, 1977, é o seu segundo livro. A Terra e o Universo devém "dromosfera"; intitula os seus estudos de "dromologia". Drómos: acção de correr, corrida.

Se o reinado de uma política de médio e longo prazo, aquilo a que se poderia chamar uma política forte, se dá eminentemente num espaço "sem velocidade", com a velocidade propiciada pelo próprio ordenamento do espaço (estradas, auto-estradas, vias de caminho de ferro, aeroportos) algo se iria dar simultaneamente no político e no próprio espaço: uma política que perdia faculdades de controlo, um pensamento que, justamente, as denunciva, a insegurança que crescia, o espaço que se tornava crítico, o acidente que se vulgarizava.

Velocidade, mais espaço, mais política, tínhamos uma primeira soma. E daí resultava qualquer coisa - L'Espace critique, 1984: "A crise da noção de dimensão surge, pois, como a crise do inteiro, dito de outro modo, de um espaço substancial, homogéneo, herdado da geometria grega arcaica, em proveito de um espaço acidental, heterogéneo, onde as partes, as fracções, se tornam essenciais, atomização, desintegração das figuras, marcas visíveis que favorecem todas as transmigrações, todas as transfigurações, e que a topografia urbana não deixou de assumir, à maneira das paisagens e do solo perante a mecanização das empresas agrícolas"(p.28).

E mais tarde, L'Insécurité du térritoire, 1993, obra que se pode integrar também na outra soma, presente em simultâneo na sua obra: velocidade, mais tempo, mais imagem, mais novas tecnologias. Em 1984 publicou Logistique de la perception - Guerre et Cinéma. O cinema parece requerer a paralisação do espectador; a sua velocidade não dá qualquer possibilidade de ataque por parte deste - como é sabido, foi uma arma política e de guerra extremamente importante. Nessa guerra, o cinema sai sempre ileso, ele petrifica, cativa. As relações logísticas com a guerra tradicional são colocadas por Virilio numa correlação inquietante. Mas não só essas: "A guerra não se pode separar do espectáculo mágico, porque a produção do espectáculo é o seu próprio objectivo: abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir-lhe, antes da morte, o pavor da morte."(p.7)

A par da interrogação sobre o ordenamento do espaço, Virilio sempre se preocupou, como se disse, com o outro ordenamento correlativo, o ordenamento do tempo - e a tendência para o desaparecimento quer da extensão real quer da duração que lhe está associada, e isto, desde logo, com o desenvolvimento dos meios de transporte. Neste contexto, um fenómeno como o da morte, por exemplo - um limite tanto da velocidade quanto do tempo -, sobre o qual Walter Benjamin e Ernst Jünger escreveram páginas reveladoras sobre o seu carácter na primeira metade do século, é apresentado, também, estreitamente ligado à velocidade. Velocidade que mata as imagens, como num dos exemplos mais fortes de L'Esthétique de la disparition, 1980, o do milionário Howard Hughes, aquele que se queria em todos os lugares e "em nenhum lugar"(p.30). A morte assume a forma de mero acidente técnico, tal como a morte nos telejornais, quando não há sofrimento humano que possa estar em correspondência - e não pode haver, evidentemente, correspondência de facto, mas sim telepresença, por conseguinte, a morte, essa morte, "virtualmente", não é humana, é, ainda, o acontecimento que petrifica (e é usada, utilizada, justamente por essa razão, por imperativos de informação). Logo, petrificando, cria uma verdadeira inércia humana, pela impossibilidade de compaixão. Todas as tele-imagens se equivalem, por outras palavras, tudo é carne para a informação, o que, na sua mnemotécnica, leva ao esquecimento daquela, da carne real. Mesmo o da nossa morte. Virilio evoca a consciencialização disto mesmo por parte de Burroughs: "A velocidade trata a visão em primeiro lugar como matéria, com a aceleração, viajar é como filmar, produzir menos imagens do que marcas mnemónicas novas, inverosímeis, sobrenaturais. Num contexto destes, a própria morte deixa de ser sentida enquanto mortal, torna-se, como em William Burroughs, um simples acidente técnico, a separação final da banda de imagem e da banda de som."(Esthétique de la disparition, pp.69-70)

E relativamente à manipulação, "pessoal", das imagens pelo vídeo, Paul Virilio iniciava desta forma a resposta a uma entrevista aos Cahiers du Cinéma 4- Esthétique de la disparition tinha saído há pouco - quando interrogado sobre certos procedimentos e efeitos dessa tecnologia: "Julgo que tudo se joga no ordenamento do tempo: desde há muito tempo que já não estamos no ordenamento do espaço, estamos no ordenamento do tempo. [...] É verdade que o papel da tecnologia hoje em dia é o de ordenar o tempo; na organização social mas também na organização familiar."

II. Mas chegamos à banalização do uso de certas tecnologias avançadas - as teletecnologias, a sua velocidade, o tipo de acidente que podem gerar, são o assunto deste livro - o que trouxe consigo, também, uma certa banalização linguística. O que é normal, torna as coisas mais complicadas, mas isso é normal também. As palavras que lhes estão associadas deixam, por isso, em aparência - leia-se, em evidência -, de requerer qualquer justificação. Sustentam-se por si, e, no processo de mediatização, na impossibilidade da óptica e da troca directa, não parece haver "argumentação" que resista.

É claro que é difícil distanciarmo-nos daquilo que se impõe diante dos nossos olhos ou que está nas nossas mãos (supomos que sim) pronto para usos dos mais extraordinários. É das novas teletecnologias de informação que falamos agora, que propiciam qualquer transmissão instantânea em tempo real, interactiva, e nomeadamente de acontecimentos, e cujo efeito imediato é, segundo Virilio, uma "perturbação na percepção": indistinção entre perto e longe, entre vizinho e estranho, entre imagem e coisa, etc.. Afinal, aquilo que, como Paul Virilio nos mostra neste seu livro, mais do que ter que ver com essa Velocidade de libertação da força gravitacional da Terra, tem sim, antes, com a "realização constante da velocidade da luz no vazio". E, mais, com a "velocidade absoluta das ondas electromagnéticas": o tempo da velocidade da luz é essa Grande Óptica "que supera a noção clássica de horizonte" e que está na origem dos "espaços da realidade virtual".

Ver o que não há como o que efectivamente só pode haver, estar com o que não se está como única forma de se estar e de presença, estar onde não se está... Parece um caminho de possibilidades infindas. E, se real se opõe a virtual - não julgamos, contudo, que com essa "oposição" se dê conta da questão -, então o jogo parece manter-se, como sempre, sem decisão final. Talvez mais valha que assim se mantenha, pelo menos diante dos realistas, virtuais sempre, na melhor das hipóteses.

Mas a questão, para Paul Virilio, é a de saber se também a libertação fará parte desta velocidade das ondas electromagnéticas. E aqui, os efeitos de "deslocalização" das teletecnologias levam a que Virilio acentue a questão do acidente: em primeiro lugar, qualquer coisa súbita, inopinada, inexplicada, como em "Safe", de Todd Haynes, em que a contaminação deixou de ser localizável, a contaminação e a poluição passaram a ser sobretudo "dromosféricas" - "existe pois uma dimensão escondida na revolução das comunicações que afecta a duração, o tempo vivido das nossas sociedades." É que "a questão do acidente deslocou-se do espaço-matéria para o tempo luz", como em "Corte de Cabelo", de Joaquim Sapinho, em que a peripécia, a teatralização do "acidente" é aberta e encerrada precisamente pela Luz, e é isso que lhe dá a dimensão de acidente.

Mas igualmente o "acidente da espessura óptica", a antecipação da chegada, ou, eminentemente, o "acidente de transferência", a reunião informática das teletecnologias e das biotecnologias, o agir à distância, ou, para-além do "bébé-proveta", "o amor experienciado à distância graças à interactividade tele-sexual." Por conseguinte, "com a emergência do tempo mundial [o tempo directo, do instantâneo, o "live" - "segundo Epicuro, o tempo é o acidente dos acidentes"] nós vamos ficar todos expostos (ou mais exactamente sobre-expostos) ao acidente geral... A deslocalização da acção e da reacção (a interacção) implicam necessariamente a deslocalização de todo o acidente." É desta forma que, para Virilio, realidades não virtuais como a inércia, o enclausuramento, o medo do próximo, a claustrofobia pela redução do espaço terrestre a nada, ganham a primazia.

III. Perante esta nova realidade, a possibilidade de "distanciação crítica", à antiga, surge-nos de súbito ("soudain", a palavra que Virilio mais emprega ao longo do livro) como uma das DUAS alternativas perante as teletecnologias (o que repete, precisamente, a lógica binária destas). Os "críticos" usam termos como desumanização, controlo, ou então, mero divertimento, e, como nenhuma destas três coisas os parece atrair, afastam-se, não tocam. A outra alternativa é representada pelos "entusiastas" e pode dizer-se que já é clássica: escudam-se em termos como democracia e comunicação, justificados quase sempre em torno de um "ter de ser" político-económico. Também Virilio pensará que as teletecnologias "têm de ser", mas ele mostra que pouca relação há, por exemplo, entre democracia e ciberespaço (o mundo virtual das teletecnologias). Por outro lado, Virilio parece não querer deixar de ter, a seu modo, também, o ânimo leve do entusiasta - mas comunicação? Não: "medo do outro" em primeiro lugar (veja-se o capítulo "Da perversão à diversão sexual").

Ele pretende justamente evidenciar esta lógica dualista, como sendo, paradoxalmente, um dos efeitos das teletecnologias. É nesta medida que permanentemente interroga, põe questões, relativamente a esses efeitos, efeitos no humano e no espaço, na Terra, no Universo. E fá-lo sobretudo a partir daquilo que, estando em jogo nas teletecnologias elas próprias, as relaciona com estes últimos: a velocidade, a velocidade-luz, quer dizer, uma forma estranha de "iluminação" que cria o espaço e o tempo; não uma forma que dá a ver, mas que cria o espaço-tempo daquilo que se vê - "a velocidade não é um fenómeno mas uma relação entre fenómenos", diz Paul Virilio. E é esta, podemos dizê-lo, a fascinação de Virilio - porque também a há -, aquilo que o leva a pensar e a escrever sobre as teletecnologias: a criação do dia. "Jour" quer antes de mais dizer Luz. Todas as "janelas", desde a porta-janela até ao ecrã do computador são luz, com todas se cria o dia. Mas que luz será essa, a do écrã da "realidade virtual"?

Pode ser muito agradável, um novo dia. Uma nova luz, mas não apenas isso, também vida, de novo, à luz. E outro novo dia, ainda, a seguir, também pode ser maravilhoso. Mas pode ser, por outro lado, demasiado penoso. Pode ser que esse dia seja único, que não nos permita escolher já outro, que nos encerre numa possibilidade de vida estreita, cuja imagem, bem real hoje em dia, é aquela que várias vezes Virilio esboça, a da indistinção entre o indivíduo inválido motor, mas "sobre-equipado", e o "indivíduo válido sub-equipado", que, quando "sobre-equipado", se torna inválido motor. Imagem presente já em L'Inertie polaire, 1990.

"É-se livre, verdadeiramente livre de escolher aquilo que se vê? Evidentemente que não... Inversamente, somos obrigados, definitivamente constrangidos a ver contra vontade aquilo que se propõe e depois se impõe ao olhar de todos? Claro que não!" Como já se adiantou, a mobilidade do pensamento será uma das vias de resistência a esta imposição. Trata-se de uma tarefa que por inerência implica um desvio disciplinar: as disciplinas não são incólumes, todas-poderosas nas suas "abordagens", exercendo, diante do que se passa, um criticismo ingénuo: dando conta dos "aspectos negativos". Temos de novo aí a lógica dualista: "negativo" e "positivo"; interessando, naturalmente, a passagem de um a outro - pela mão de quem? Justamente pela mão de quem já está, diria Heidegger, sob o processo de encomendar (bestellen) e ser encomendado pelas teletecnologias. É que a técnica não é um jogo do homem, é ele próprio que é jogado pela técnica.

Esses "aspectos negativos» não se resolvem, por exemplo, com o direito - também a velocidade o afectou, naturalmente, e muito para-além de toda a "riqueza de informação" e "melhor democracia" suposta no ciberespaço: quando a resposta é dominada pelo imperativo de velocidade de resposta, este imperativo implica a ausência de resposta, pelo menos de muitas respostas que, sem ele, podemos supor importantes ou, pelo menos, existentes. Por outro lado, as posições, às vezes galhardamente "sindicais" de uma sociologia, correm o risco de se manterem num ecologismo do que não existe e de alinharem, a contrario, num pragmatismo que serve hoje o que tenazmente denunciavam ontem. E da filosofia parece restar o seu exercício; não será pouco; não aquela constantemente apropriável discursivamente, e por isso anódina, "interrogação sobre o mundo e o que somos", para nosso sossego; mas o exercício que se debate com o perigo, e que pode ser, ele próprio, perigoso. Podendo também estas palavras serem vãs, se não dissermos, com Virilio, que o pensamento é uma intensidade, uma velocidade...

Na entrevista citada, já antiga, Paul Virilio terminava com palavras que resumem todo o seu trabalho e que se mantêm válidas para os problemas que actualmente se colocam relativamente às teletecnologias e ao ciberespaço - interrogar a técnica nos seus efeitos sobre o humano e sobre a Terra, resistindo quando for caso disso, mas "do interior... guardando a liberdade de pensar e de manobra"5 : "Em qualquer lugar, pois, é preciso interrogar a técnica. Então por que é que não se a interroga? Por que é que as pessoas que resistem à técnica a rejeitam brutalmente? Julgo que é por pretenderem conhecê-la e isso é a pior das coisas. Sabem como se fabrica um automóvel, um microprocessador, etc., mas o facto de saber produzir não implica o saber-o-que-se-faz; há aí uma ruptura muito nítida; produzo uma casa enquanto arquitecto, produzo um gravador enquanto electrotécnico, sei fazê-lo, mas não é por isso que eu sei o que isso é .6"

FIM

Setembro de 1996.

Mail

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1. Ernst Jünger, "Der Arbeiter", Werke. Band 6. Essays II, Klett Verlag, Stuttgart, 1960-1965, p.170.

2. Ernst Jünger, "La Mobilization Totale", L'État Universel suivi de La Mobilization Totale, Trad. Henri Plard et Marc De Launay, Gallimard/tell, Paris, 1990, p.108.

3. Entrevista ao Libération, Maio de 1996.

4. "La Troisième Fenêtre", entretien avec Paul Virilio, Cahiers du Cinéma, nº322, Abril de 1981.

5. Entrevista ao Libération, Ib..

6. "La Troisième Fenêtre", Ib..