Os media e os poderes locais

José Ricardo Carvalheiro

Novembro de 1996


Uma reflexão sobre os media e o poder tem alguma relação com o desenvolvimento regional? Julgo que sim, se pensarmos que só há verdadeiro desenvolvimento se houver democracia e que só há democracia onde há informação relativamente livre dos poderes. Mais: informação que vigia os poderes.

Entre os vários poderes com que os media se relacionam, privilegiarei o poder político local. Só brevemente aludirei a outras sedes de poder: as instituições da ciência, a administração central do Estado, o poder económico, os poderes corporativos e as esferas políticas internacionais.

Previamente, é preciso dizer, ainda, que esta reflexão inclui a autocrítica, uma vez que o autor deste texto faz parte da comunicação social regional e, portanto, tem uma quota parte de responsabilidade no estado de coisas.

A relação dos media com o poder político local

Do ponto de vista da atitude para com os media, há, basicamente, dois tipos de políticos locais. O primeiro é o dos que seguram o braço do jornalista para lhe fazerem supostas confidências. Põem o jornalista à vontade e contam-lhe anedotas. Sabem como os jornalistas apreciam a intimidade com os famosos e que poucos resistem à vaidadezinha de contar aos amigos uma conversa com o presidente da Câmara, para mostrar que estão no círculo. Quem anda com os importantes torna-se importante.

O segundo grupo é o dos políticos que escolhem manter a distância e preferem infundir respeito. É a velha táctica do simbólico. Cultivar a aura de inacessibilidade do poder. Manter os jornalistas intimidados pela importância da personalidade.

Em ambos os casos, é crescente a consciência de que o poder, para se afirmar, precisa de mediatização.

As estratégias do poder local face aos media ganham hoje maior importância porque Portugal, cuja imprensa regional era, até aos anos 80, uma imprensa de notícias sobre "cães atropelados", começa a ter uma rede de jornais e rádios com alguma capacidade crítica. E, porque se foi desfazendo a sobreposição entre partidos e órgãos de informação, também com alguma independência política.

A tendência é (ou devia ser) para o jornalista ser cada vez mais um intermediário entre o poder e o público e cada vez menos um simples veículo de informação. Como intermediário, o jornalista gera um valor acrescentado, conduz a sua acção por critérios que lhe são próprios e que obedecem a uma finalidade. Se se mantiver como veículo, o jornalista faz de mera câmara de ampliação das mensagens do poder. Esta distinção é fundamental e, embora o conceito de objectividade seja por vezes adulterado para induzir o jornalista no acriticismo, é bom lembrar que o jornalismo existe precisamente para desmontar factos e mensagens, contextualizá-los e revelar o que nos assuntos públicos é ocultado por conveniência. O que o jornalismo não deve ser é uma galeria onde passeiam os poderosos da terra, a dizer impunemente o que lhes interessa, no momento em que lhes apetece. O compromisso, por excelência, dos jornalistas é com os destinatários da informação. É para capacitá-los enquanto cidadãos que o jornalismo livre é considerado uma condição para a democracia.

Na Beira Interior, os media têm nítidas dificuldades em assumir o papel de afrontar o poder político, quando é caso disso. Primeiro, porque ainda predomina uma tradição respeitosa ou mesmo veneradora do poder; há dificuldade em passar da crítica de café para a crítica objectiva e fundamentada, que pressupõe o chamado jornalismo de investigação. Segundo, porque os media estão na mão de gente ou instituições conservadoras ou ligados a interesses que se cruzam com o meio político. Terceiro, porque boa parte dos media são empresas frágeis com jornalistas em situação de precariedade laboral e salarial, com alguma inexperiência e lacunas na qualificação. Se quanto à qualificação se detecta uma evolução, em relação ao resto subsistem muitas dúvidas; e é fatal que a falta de segurança iniba os jornalistas e os torne vulneráveis aos aliciamentos do poder. Quando isso acontece está dado o passo decisivo para a auto-inibição dos jornalistas.

Convém, porém, dizer que este problema não se põe apenas aqui, numa região periférica de Portugal e com profissionais precarizados. Também existe onde os jornalistas desfrutam de todas as condições de trabalho e são autênticas vedetas. Em França, por exemplo, há, dentro da própria classe, quem não hesite em dizer que os jornalistas não cumprem o seu papel porque há promiscuidade com o poder. Os políticos usam as suas estratégias; chegam a convidar as vedetas dos media para passar férias nas suas casas de campo – e as vedetas vão. Tal é a sedução da proximidade com os poderosos. E a ânsia de se ter acesso privilegiado às mais altas fontes. Só que essas fontes peneiram rigorosamente a informação que lhes interessa passar ao público.

O duplo aspecto do distanciamento dos jornalistas e das condições para fazer cabalmente o seu trabalho parece-me vital, seja em França, seja na Beira Interior. Porque o controlo e a responsabilização do poder nos media ou parte dos jornalistas ou não existe. São os jornalistas que sentem – ou devem sentir – como seu dever o exercício dessa fiscalização em nome do público. Os detentores das empresas de comunicação têm, em primeiro lugar, um objectivo comercial – nem que seja o da simples sobrevivência – e só quando este está assegurado se podem dar ao luxo de afrontar aqueles de quem dependem. O peso da publicidade institucional numa região economicamente pouco desenvolvida como é esta, é outro elemento a considerar neste contexto .

Mas, há um sector crescente da opinião pública que encara mal os media que não questionam o poder. Há quem critique um jornal por este "não dizer mal" de uma Câmara Municipal. Por isso, talvez os media venham a ser obrigados a ser mais agressivos para melhorar comercialmente. Ou então, a optar pelo sensacionalismo em outras áreas, tornando-se media de informação-espectáculo. Nada impede, de resto, que as duas estratégias coexistam.

O que maioritariamente se passa é que a própria agenda informativa dos órgãos regionais está muito dependente do poder político. A prioridade é ir atrás dos secretários de Estado que visitam a região ou não faltar às conferências de imprensa dos partidos. Depois, até pela magreza das redacções, não sobra muita capacidade para prestar atenção a outros fenómenos e outros sectores da realidade regional que um pouco mais de imaginação poderia ‘descobrir’. A verdade é que, quando um órgão falta à ‘chamada’ dos partidos, as reclamações não se fazem esperar. E quanto mais fraco, em número e qualificação, é um corpo redactorial mais fácil é ao poder pressioná-lo e influenciá-lo, desde logo porque há menor disponibilidade para proceder à comprovação dos dados e para ouvir todas as partes envolvidas. Portanto, se a independência ideológica dos órgãos e dos jornalistas não parece, hoje, difícil de assegurar, o mesmo não se pode dizer de outras dependências que os protagonistas políticos conseguem fomentar.

A opinião pública

Não se sabe, realmente, qual é a importância que os media da região têm na definição do eleitorado. Os baixos índices de leitura (e a qualidade dessa leitura) podem levar a questionar, por exemplo, o peso real dos jornais locais no fabrico de opiniões. Em termos puramente eleitorais, a decisão dos eleitores talvez seja mais ditada pelos chamados ‘influentes locais’, a começar pelos presidentes de junta de freguesia, e pelas chamadas ‘redes de voto’, alimentadas pela malhas de sociabilidade e pelas afinidades socio-profissionais.

Todavia, julgo que não deixa de haver ideias que têm sido formadas ou fortalecidas gradualmente a partir dos media regionais. A maior é, porventura, a de que o interior do país é marginalizado e de que os governos não lhe ligam nenhuma. Esta capacidade está longe, porém, da que gera opiniões sobre os "golos obtidos em nítida posição de fora de jogo".

Cabe aqui, aliás, um parêntesis para dizer que me parece conhecer-se a região bastante mal a si própria. E aqui entra o papel das instituições produtoras de saber, que também constituem um tipo de poder, especialmente as instituições de ensino superior. Há uma grande opacidade dos conhecimentos apurados nas sedes de ciência, habitualmente mantidos fora do alcance do público. Talvez uma forma de ultrapassar isto seja introduzir uma maior relação entre os media e os produtores de conhecimento científico. A região só teria a ganhar, mesmo sabendo-se que a passagem de dados científicos para linguagem de jornal é delicada e exige um rigor acrescido por parte dos jornalistas.

A fragilidade da opinião pública – na sua concepção tradicional – na Beira Interior é outro factor que limita a capacidade dos media se constituírem como contra-poder. A força dos media em condicionar os actos do poder está na mesma proporção da pressão da opinião pública para com esse poder, que nem sempre é muita.

O controlo feito pelos media sobre o poder só tem resultados quando, depois de divulgadas as falhas, há condenação pela opinião pública. Mas, às vezes, nem a divulgação dos mais aberrantes abusos de poder é suficiente para a condenação pública. Há mesmo exemplos de uma benevolência espantosa, apesar da divulgação feita pela comunicação social.

É o caso do antigo presidente do Instituto Politécnico da Guarda e ex-dirigente partidário, condenado a três anos de prisão e, mais tarde, absolvido pelo Supremo Tribunal, que declarou ilícito o processo de obtenção de provas pela acusação. O facto é que, numa fase em que as instâncias judiciais haviam considerado provado que o arguido tinha o objectivo de ofender corporalmente indivíduos que lhe eram incómodos (uma ‘lista negra’ que incluía um juiz), contratando, para isso, um ‘homem de mão’ para executar o trabalho, tal condenação não evitou que, logo à saída do tribunal, o arguido fosse saudado por um grupo de alunos e que, meia dúzia de meses depois, encontrando-se em liberdade condicional por ter pago uma elevada caução, fosse eleito por unanimidade presidente de uma associação de beneficência. As explicações para um fenómeno como este levar-nos-iam muito além das questões mediáticas.

No entanto, alguma coisa os media hão de poder, a julgar pela preocupação que os políticos têm de fazer passar a mensagem e a imagem. E uma forma de fortalecer a opinião pública regional pode ser, de facto, através dos media.

Por enquanto, o poder pode, em muitos casos, fazer ouvidos moucos ao que os media dizem. Quando lhe interessa difundir uma informação, apressa-se a contactar o jornalista mais próximo ou a convocar uma conferência de imprensa. Quando não lhe interessa o assunto encara o jornalista como um chato que vem fazer perguntas incómodas. Isto não acontece apenas porque os políticos consideram uma boa informação aquela que lhes pode prestar um bom serviço. Também acontece porque ainda há na região uma classe política que não incorporou na sua actuação a obrigação de esclarecer o público nem de prestar contas do que faz e do que não faz. Uma mentalidade que está alicerçada numa certa tradição de exercício do poder.

Alguns políticos ainda não perceberam que o que tem importância não são eles próprios, mas os cargos que ocupam. Que quando são entrevistados ou quando se sentam em lugar de honra numa sessão solene é porque representam a população, que não cabe toda nos salões nobres. Que a solenidade acrescida e o tratamento mais respeitoso só fazem sentido porque o autarca está ali no lugar do resto dos munícipes e não por se tratar de fulano ou sicrano.

Os media têm um papel importante na dessacralização do poder. Só quando é natural e recorrente questionar e pôr em causa a actuação dos detentores de cargos públicos – desde que fundamentadamente, é claro –, os cidadãos comuns deixarão de rodar o chapéu na mão enquanto falam a medo. Só assim é que o cidadão chega a perceber que é o presidente da Câmara que lhe deve satisfações e tem de prestar-lhe contas e não é ele, cidadão, que deve vénias e temor face ao autarca todo-poderoso. Tem sorte esta espécie de caciques, porque muitos dos seus munícipes também ainda não compreenderam isso. Talvez nem toda a comunicação social o tenha percebido também. Pior é quando o autarca é mesmo quase-todo-poderoso, através das redes clientelares, mas essa é uma análise que não cabe aqui.

O reverso desta medalha é a suspeição permanente. Porque o cidadão comum respeita o político pela frente, mas por trás atira-lhe com toda a sorte de acusações, muitas vezes o mais levianamente possível. Esta é outra razão pela qual é fundamental que os media reforcem a transparência da coisa pública e para que se pautem pelo rigor para consigo próprios.

A única forma possível de desenvolvimento é o desenvolvimento participado e ele só pode ser participado se não houver um permanente clima de suspeição dos cidadãos em relação aos titulares do poder. Doutra forma, o efeito é o de uma sociedade dividida em duas barricadas: os políticos de um lado e tudo o resto do outro. Todas as responsabilidades são atiradas para cima dos políticos e a crítica escuda-se na não intervenção. O que em nada favorece a democracia como afirmação dos cidadãos.

Não me parece, por outro lado, que o papel dos media na intermediação dos processos de controlo do poder pelos cidadãos signifique apontar os focos aos bastidores partidários, como tendem a fazer alguns órgãos de informação nacionais e que se resume a dar protagonismo aos carreiristas da política. Eles agradecem a publicidade.

Para os media locais há outras dificuldades em controlar o poder político. Quem é que fornece ao jornalista informações sobre irregularidades dos políticos? Na maioria das vezes são outros políticos. Num meio pequeno chega a haver um autêntico trabalho de malabarista, com o jornalista à procura de delicados equilíbrios em que seja possível não hostilizar as fontes – sob pena destas ‘secarem’ – sem deixar de noticiar os factos.

Os políticos jogam com a disputa dos media pelas notícias. Porque, se há um forte corporativismo entre os jornalistas, também é verdade que é grande a concorrência entre eles e é, mesmo, o sentimento de competição que prevalece entre colegas. Diz Mário Mesquita que há hoje "um reforço dos critérios de mercado em detrimento das preocupações deontológicas". A ânsia de dar uma notícia antes do colega de profissão é, até, mais forte, do que a defesa do direito à informação. Não há coesão entre jornalistas e isso fragiliza os órgãos de informação perante os apetites da classe política. A receita para combater isto passa, certamente, por mais concertação, mais formação e mais estabilidade dentro da classe jornalística

Abordando brevemente outros centros de poder, diria que da parte da administração central há alguma displicência para com a comunicação social da província, mas também um trato que, em geral, é mais correcto do que o da administração local. Imagina-se – se não for complexo de inferioridade provinciano – uma bonomia irónica quando um director-geral atende o telefone a um jornalista de um órgão regional remoto e desconhecido. É um pouco o que se passa com a generalidade das coisas da província. Cabe a culpa à província, é preciso dizê-lo, que não tem sabido impor-se pela positiva – tem perdido mais tempo a lamentar-se a murmurar queixas.

Aqui, pode haver, da parte dos media regionais, o perigo de se resvalar para uma lógica subliminar de comodidade no posicionamento face ao poder político. É muito mais fácil criticar o poder central longínquo, de onde geralmente não vem qualquer eco, do que responsabilizar e acusar os políticos locais que arriscamos encontrar nos cafés. Esta proximidade é outra das dificuldades conhecidas dos media locais. Mas é preciso dizer que alguns media ditos nacionais não passam, na verdade, de órgãos de comunicação regional – de Lisboa e do Porto.

Outros poderes

As relações com o poder económico estão, muitas vezes, mais em bruto. Basta lembrar um caso de um empresário que surgiu na redacção de um órgão de informação regional, sem que nada estivesse combinado, a dizer que vinha dar uma entrevista. E foi preciso algum tempo e muita paciência para explicar-lhe que não era assim que as coisas funcionavam. Foi visivelmente agastado que o empresário acabou por retirar, já que o momento era estratégico para a promoção dos seus empreendimentos.

O mesmo empresário reincidiu passado algum tempo. Telefonou para a redacção de um órgão informativo a perguntar se lá não tinham reparado numa referência que uma publicação nacional lhe tinha feito. Quando o jornalista replicou que já se tinha feito uma alusão ao caso, o empresário replicou que "isso não teve impacto nenhum, vejam lá se dão destaque a isso".

O facto de alguns agentes económicos alimentarem os órgãos de informação com receitas publicitárias leva-os a concluir que podem influenciar o que se publica a seu respeito. E é preciso dizer que as redacções não são imunes a estas pressões.

Quanto aos poderes corporativos, há vinte anos poucos se atreveriam a acusar publicamente um médico de negligência ou uma administração hospitalar de incompetência. Hoje, não só os jornalistas se sentem na obrigação de denunciar os casos, como os próprios cidadãos que se consideram lesados defendem os seus direitos. É verdade que a saúde é uma área especial no domínio da interiorização de direitos pelos cidadãos, mas a tendência é para a diminuição da passividade face à violação de direitos. O jornalismo segue a tendência.

Importante, para este aspecto, são as páginas em que os jornais dão voz aos cidadãos. Perguntar publicamente para que serve o Hospital do Fundão pode incomodar algumas pessoas, mas também é contribuir para o desenvolvimento regional. Porque responsabiliza os responsáveis perante a opinião pública e, muitas vezes, obriga-os a agir.

Finalmente, uma palavra em relação à Europa. Face à União Europeia, que em Portugal é uma noção nebulosa com uma fonte de dinheiro num dos pratos da balança e a debilitação da indústria e da agricultura no outro prato, há um difuso receio de perda de soberania nacional. Numa altura em que nos países do centro da Europa discute seriamente da reforma das instituições e do que vai ser o futuro da EU, os media da Beira Interior estão, ainda mais do que os nacionais, alheados da questão, que representa uma reconfiguração do poder á escala continental, reflexo de que a região não tem a mínima palavra a dizer em tal matéria.

A pergunta final é: o que é que isto tem a ver com desenvolvimento regional?

Tem tudo a ver, porque só com media independentes do poder se pode formar uma opinião pública que reforce a democracia. E só com media que controlem o poder e o tornem o mais possível transparente e responsável perante os cidadãos eleitores pode haver um processo de desenvolvimento que envolva o conjunto da sociedade regional. Sem isso, não há verdadeira dinâmica de desenvolvimento regional. É necessária uma opinião pública (ou, talvez melhor, várias opiniões) a nível regional, porque ela está na base da intervenção cívica, da força do associativismo, da existência de movimentos que não se limitem ao seguidismo partidário. Será fatal se a região deixar a política, no sentido lato da palavra, entregue àquilo que Roberto Carneiro definiu como a "asfixiante esfera dos aparelhos". Para isso, são precisos media que respirem a totalidade da vida regional, sem o viés que o poder lhes quer imprimir.
 

Covilhã,

Novembro de 1996

* Jornalista do Jornal do Fundão, licenciado em Sociologia