Média e cidadania na periferia portuguesa

O caso da Beira Interior *

(versão em pdf)

 

José Ricardo Carvalheiro 

 

De que forma uma determinada paisagem mediática interage com as práticas de cidadania e em que medida essa interacção contribui para configurar o exercício da democracia? Partindo de uma premissa teórica que encara o espaço público como esfera de potencial democratização de relações sociais, empreende-se uma análise empírica centrada na Beira Interior, em que se averigua tanto o discurso mediático como a sua apropriação pelos cidadãos e através da qual se procura identificar as articulações concretas entre o uso dos média e os direitos cívicos e políticos. A abordagem do tema envolve várias dimensões relevantes para a apreensão do conjunto de práticas que designo por cidadania mediatizada, nomeadamente: a condição periférica dos cidadãos, a heterogeneidade da estrutura social e o quadro de relações Estado-sociedade. No fim, conclui-se que, neste periferia portuguesa, o espaço público mediático só muito limitadamente funciona como factor de democratização. 

 

1. Existem múltiplas abordagens possíveis para se analisar o papel dos média nas sociedades actuais, tal a sua imbricação com vários níveis da realidade social. Definir o campo conceptual que se vai trabalhar constitui, por isso, um passo primordial para uma observação sociológica do fenómeno mediático.

A perspectiva que adopto parte de um pressuposto geral: o que atribui aos média um lugar central nas sociedades democráticas. Um conjunto de noções enraizadas na cultura das democracias liberais – liberdade de expressão, acesso à informação, poder de escolha, capacidade de decisão – têm implícita essa centralidade. Mas a relação entre os média e a institucionalidade democrática dá-se em quadros sociais muito heterogéneos. Como apreender as características de cada caso concreto?

 

2. Para operacionalizar a análise, elejo o conceito de cidadania. Trata-se de um parâmetro fundamental da democracia, cuja medição num objecto empírico pode revelar o grau de democraticidade de um determinado quadro social (mais ou menos direitos adquiridos, práticas exercidas e grupos sociais abrangidos).

Dentro do conceito de cidadania selecciono, por sua vez, os direitos cívicos e políticos, marcos fundadores da democracia moderna e que, hoje, estão inextricavelmente ligados aos média. Sem os média não é possível ao cidadão de uma sociedade complexa concretizar adequadamente os direitos e liberdades de expressão, associação, reunião e intervenção em assuntos públicos (cidadania cívica), assim como avaliar e eleger os seus representantes ou adquirir, ele próprio, capacidade para ser eleito (cidadania política). Dada a inevitabilidade desta relação, utilizo a expressão cidadania mediatizada para designar o conjunto de práticas pelas quais se articulam o uso dos média e os direitos dos cidadãos (e cuja caracterização constitui uma das finalidades deste trabalho).

 

3. A relação entre os média e as práticas de cidadania é abordada à luz do conceito de articulação, o que lhe confere uma dupla abertura: é uma relação contingente que decorre de circunstâncias históricas (não há uma essência que determine, por exemplo, o modelo de informação televisiva) e é uma relação entre dois factores que se influenciam reciprocamente (o funcionamento dos média não é uma causa linear e unidireccional das práticas de cidadania, nem vice-versa). [i]

Sendo múltiplas as possibilidades, é a escolha de um objecto empírico – a região portuguesa da Beira Interior – que permite investigar de que forma a articulação com a paisagem mediática contribui para configurar as práticas de cidadania e as relações que através delas se estabelecem entre diferentes actores sociais.

 

4. A perspectiva com que abordo a relação entre média e cidadania inspira-se na teoria crítica, pelo que se procura compreender se determinado modelo de cidadania mediatizada funciona como factor de democratização.

Neste sentido, a intensidade democrática tem a ver com uma equilibrada representação dos grupos sociais e com a participação no debate público. Mas também com a exposição, denúncia e combate às várias formas de dominação social (e com as eventuais possibilidades para práticas de emancipação).

É importante introduzir as noções de inclusão e exclusão, fundamentais ao conceito de cidadania, e que constituem instrumentos teóricos capazes de ajudar a perceber como o campo mediático contribui para organizar as relações sociais (questões como saber quem tem voz pública, que temas são levados a debate, que hierarquias se produzem entre os actores sociais).

 

5. O conceito de espaço público, de que os média são hoje um aspecto central, serve de eixo a este núcleo de questões, mas a sua raiz habermasiana é reformulada de modo a concebê-lo como:

a) plano onde se dá um vasto e heterogéneo conjunto de relações entre cidadãos e grupos sociais, e não apenas a comunicação entre Estado e sociedade; b) espaço em que a produção e apropriação de informação e a construção cultural de sentidos vai, por sua vez, (re)definindo a própria matriz de relações sociais.

O conceito também é redefinido de forma a admitir a coexistência de uma multiplicidade (ou fragmentação) de espaços públicos, mediáticos e presenciais.

 

6. A abordagem do tema recolhe contributos de várias correntes teóricas, além da perspectiva democratizante que decorre da teoria crítica e que fundamenta todo o quadro.

Servem de referência, nomeadamente:

a) a corrente liberal, através da ideia, nada menosprezável, de que a participação cívica e o ideal de livre debate são essenciais para o funcionamento de uma sociedade democrática. Esta linha teórica permite, ainda, compreender, por antítese, as limitações de uma ideologia dominante (transformada em senso comum) que postula: média = relato objectivo da realidade; jornalismo = escrutínio do poder político; cidadão = consumidor de informação.

b) a corrente marxista, cuja reflexão alerta para a existência de relações sociais de dominação que se encontram naturalizadas e que uma perspectiva democratizante deve identificar e desocultar [ii]. As reflexões de base marxista permitem, ainda, moderar o peso do ideal liberal de livre debate, uma vez que a existência de vincadas desigualdades sociais e culturais dificulta a operacionalização de um leque de discussão cívica que seja representativo de toda a sociedade (o que significa que a cidadania liberal não assegura a democratização do espaço público, embora contenha essa possibilidade).

c) os teóricos que vêem os média como campo estruturador de relações sociais. Estão neste caso James Curran, para quem a própria estrutura de relações sociais não preexiste ao domínio comunicacional; e a dupla Scott Lash/John Urry, que interpreta as relações sociais de informação/comunicação como determinantes da estrutura de classes. Desde logo, os próprios média devem ser considerados como uma relação social.

 

7. O espaço público mediático desempenha um papel na construção social dos cidadãos, ao difundir modelos culturais e ideológicos que contribuem para definir os alicerces da própria cidadania. Nesta construção da cidadania intervém toda uma gama de produtos culturais e não apenas a informação que tem óbvia relevância para o exercício dos direitos cívicos e políticos.

O sentido cultural que os produtos mediáticos transportam é, no entanto, objecto de reinterpretação no processo da sua apropriação pelos cidadãos. Daí que uma análise do espaço público esteja obrigada a analisar tanto os discursos como as suas apropriações, enquanto momentos complementares da produção de um modelo de cidadania mediatizada. (é o que tento fazer ao proceder a uma análise de conteúdo dos média e a um conjunto de entrevistas ao público)

 

8. Os diversos meios de comunicação não encerram um determinismo tecnológico que predefina o tipo de mensagens ou de relações sociais, mas contêm distintas possibilidades e condicionantes. [iii] O conceito de tecnocultura pretende captar um processo em que se considera haver uma co-construção das tecnologias, dos objectos culturais e dos públicos, sob determinadas condições político-culturais.

O quadro complexifica-se quando o espaço público é atravessado por uma variedade de tecnologias e o conceito de tecnocultura tenta apreender, não o tipo de racionalidade prevalecente em cada um dos média, mas o modelo cultural em que os cidadãos se co-constróem face ao conjunto de tecnologias. (O que é patente na importância adquirida pela capacidade de navegar no universo da informação, de gerir a imensa quantidade de fluxos mediáticos e de dominar várias competências culturais e tecnológicas em simultâneo.)

 

9. O sentimento de pertença a uma comunidade (de raiz territorial, social ou cultural) ou a várias em simultâneo, bem como a negociação de identidades que isso implica, são aspectos centrais da cidadania e alimentam-se, hoje, no campo mediático. Neste contexto, os processos de globalização e localização cultural e a desestabilização do papel do Estado-nação, que constitui a principal matriz da identidade moderna, abrem caminho à redefinição da cidadania.

O processo de globalização no campo da comunicação, da informação e dos produtos culturais ocorre num sistema mundial cujos fluxos circulam numa lógica que configura relações de poder entre centros, periferias e semi-periferias. Para um espaço público mediático não é indiferente a posição no sistema-mundo, como também não o é a estruturação de um sistema nacional (que contém, igualmente, centros e periferias). [iv]

 

10. De todo este enquadramento, decorre que a análise de um modelo concreto de cidadania mediatizada necessita de não perder de vista um conjunto de factores que concorrem para a sua definição. Destaco três dimensões para o caso da Beira Interior:

- A posição social dos cidadãos. Estudos realizados noutros contextos indicam que, designadamente, a pertença de classe, as competências culturais, o sexo e a faixa etária, não são indiferentes para o exercício da cidadania e para a utilização dos média. [v] Na Beira Interior, pretende-se averiguar de que forma estas vertentes da posição social interferem com o modelo de cidadania mediatizada.

- O contexto de semi-periferia no sistema mundial e de periferia no Estado-nação português. Este posicionamento condiciona quer o tipo de produtos informativos e culturais a que se tem acesso quer as práticas de cidadania. Um exemplo de como os dois aspectos surgem estreitamente interligados é a percepção de comunidade, em que se está a passar por uma reconfiguração das noções de local, regional e nacional.

- As características da relação Estado-sociedade. Apesar do espaço público não se reduzir a este binómio, o modelo de relacionamento entre o Estado e a sociedade não deixa de ter um peso decisivo no exercício da cidadania, sobretudo quando ela se concentra num modelo estatizante, que além disso se caracteriza por mecanismos de coerção e discriminação. [vi]

É tendo em conta este conjunto de dimensões que se procura verificar se a actual articulação entre média e cidadania tende, ou não, a promover a democratização na Beira Interior.

 

11. A análise do exercício da cidadania na Beira Interior aponta para a existência de um conjunto de défices democráticos. Além das consequências gerais da actuação selectiva do Estado português, a região sofre prejuízos acrescidos no domínio dos direitos sociais (quer pela desigual penetração estatal no território, quer pela sua ineficácia, quer pelo relacionamento discriminatório para com determinados cidadãos e grupos). No domínio da cidadania política, há uma concentração do poder nas mãos de fracções de classe altamente minoritárias e uma condenação de grupos sociais muito representativos ao exercício de uma cidadania passiva (cujos casos extremos são o campesinato e as mulheres das classes populares).

A estrutura social da Beira Interior apresenta, por sua vez, características que são potencialmente indutoras de um determinado quadro de práticas de cidadania. Nomeadamente: a persistência do princípio da comunidade, rematerializado numa malha de complexas interpenetrações urbano-rural, mas que se manifesta através de uma vigorosa sociedade-providência e de uma densa rede de relações de compromisso; a sobrevivência de representações sociais pré-democráticas que legitimam relações de privilégio e desigualdade; o acentuado predomínio das baixas competências escolares entre a população; a existência, no caso da Covilhã (onde se centra a análise empírica), de uma estrutura de classes fortemente proletarizada.

 

12. A paisagem mediática da Beira Interior tem vindo a sofrer profundas alterações ao longo das duas últimas décadas. De um feixe de fluxos relativamente rarefeito (o que ilustrava o isolamento da periferia portuguesa) e praticamente monopolizado pelos média nacionais (o que caracterizava uma época de absoluta primazia do espaço-tempo nacional e de grande capacidade reguladora do Estado-nação), passou-se para uma paisagem com muito maior densidade e diversidade.

Os média nacionais, sobretudo os canais de televisão, continuam a ser os responsáveis pela larga maioria dos fluxos comunicacionais. Mas com duas ressalvas essenciais: os média nacionais são o principal difusor do modelo cultural hegemónico importado do centro do sistema mundial; os fluxos mediáticos dos órgãos nacionais coexistem, agora, com uma rede razoavelmente densa de comunicação local/regional e com um crescente acesso directo a fluxos transnacionais (canais de televisão internacionais e Internet). Uma das consequências mais visíveis da nova paisagem mediática dá-se ao nível da recomposição de escalas e de identidades. O espaço-tempo nacional perde peso simbólico, enquanto o espaço-tempo local entra num processo de redimensionamento.

Note-se, ainda, que os fluxos informativos e, sobretudo, os objectos culturais oferecidos aos cidadãos da Beira Interior, têm a particularidade de ser, na sua esmagadora maioria, produzidos no exterior da região e sem uma colagem directa à realidade local.

 

13. Para compreender a relação entre média e cidadania é necessário ter em conta que a produção de informação está ligada a um conjunto de factores que condicionam as características das notícias disponibilizadas aos cidadãos. Importa notar, nomeadamente: 1) o enquadramento político e económico dos média (relacionamento entre o poder, as redacções e as administrações dos órgãos de informação; concentração da propriedade dos média e associação de tecnologias; crescente mercadorização do produto noticioso); 2) a lógica organizacional dos produtores de informação (ritmos de produção; relação entre jornalistas e fontes); 3) o modelo de interpretação da realidade usado pela comunidade jornalística (pressuposto da objectividade; persecução dos ideias de verdade e justiça; vulnerabilidade face às perspectivas culturais hegemónicas).

 

14. Uma análise empírica da cidadania mediatizada na Beira Interior deve ter em conta, ainda, alguns factos de carácter geral no que concerne às modalidades de uso dos média pelos cidadãos: a maioria da população portuguesa mostra uma fraca exposição aos média informativos, com particular incidência nos indivíduos pouco escolarizados e no sexo feminino; o acesso às ultimas gerações das tecnologias da comunicação (vídeo, televisão por cabo ou satélite, computador pessoal) está segmentado ao longo do território português, com médias desfavoráveis para as populações das regiões periféricas e dos meios rurais; a navegação num universo mediático saturado com uma imensa oferta de produtos e géneros e em que coexistem meios e tecnologias muito diversos requer um conjunto de competências culturais que ultrapassam a noção clássica de instrução ou alfabetização. [vii]

 

15. A análise do discurso mediático regional é feita a partir de três jornais e duas rádios da Beira Interior [viii] e procura identificar a realidade empírica segundo um conjunto de dimensões: 1) áreas temáticas valorizadas nos média; 2) protagonistas das notícias; 3) actores sociais com discurso directo; 4) ocasiões que dão azo a notícias; 5) valores culturais presentes no discurso jornalístico; 6) escala espacial dos assuntos; 7) características do discurso da sociedade civil.

Os indicadores extraídos da análise de conteúdo aos média locais apontam para a seguinte caracterização deste segmento da paisagem mediática:

a) Predominância da esfera estatal sobre a sociedade civil.

b) Protagonismo do poder político, quer local quer central, enquadrado numa construção da realidade que é maioritariamente agendada pela própria esfera institucional.

c) Prevalência de situações de falso diálogo (várias vozes, mas escassez de debate substantivo) no interior da esfera estatal.

d) Escassez de assuntos em que existe pluralidade de discursos envolvendo simultaneamente actores do Estado e da sociedade civil.

e) Emergência dos cidadãos individuais em situações de carácter dramático.

f) Emergência de organizações da sociedade civil em dois tipos de situação: na sequência de prévias interacções directas com a esfera estatal; ou não envolvendo questões de cidadania.

g) Interpelação do Estado pela sociedade civil praticamente reduzida às cartas dos leitores (boa parte vindas de cidadãos sob anonimato ou não residentes na região).

h) Baixa iniciativa jornalística de escrutínio ao poder democrático e tendência para direccionar questões problemáticas para o poder burocrático do Estado.

i) Formas colectivas de protesto, que tendem a não ser enquadradas por instituições, dão preferência ao contacto directo com o Estado, secundarizando as estratégias de mediatização.

j) Predominância de escalas supra-locais (Beira, região, distrito, interior) no discurso da imprensa.

 

16. Este conjunto de tendências faz com que a paisagem mediática local seja feita de um contraste entre a rotina política (onde a conflitualidade segue apenas a lógica partidária) e as situações de ruptura social (mas com escassa politização das questões), segundo duas esferas que pouco se cruzam. Assim, o espaço público constituído pelos média locais não promove o diálogo entre Estado e sociedade nem entre grupos sociais, acabando por ter como traços marcantes a coexistência de dois monólogos (discurso do poder estatal, através das principais notícias; discurso dos cidadãos não organizados, nas cartas de leitores) e a inexistência de debate mediatizado no interior da sociedade civil. Colocada em lugar subalterno pela construção mediática da realidade, a sociedade civil revela pouca autonomia para utilizar os média como espaço de diálogo consigo mesma.

Como a comunicação mediatizada entre actores sociais não se resume às interacções havidas dentro dos média, desdobrando-se as suas repercussões ao nível das relações entre produtores e consumidores de discursos mediáticos, um tal espaço público deverá contribuir para a construção de determinadas representações sociais e para a afirmação de determinado modelo de cidadania. Perante o cenário descrito, é provável que esse modelo inclua um poder estatal mediaticamente incólume aos problemas sociais, uma relação sociedade-Estado mantida fora do espaço público e um diálogo intra-societal que vai pouco além das redes de sociabilidade imediata.

 

17. As características de um espaço público não dependem só dos discursos mediáticos, mas também da sua apropriação pelos públicos. Através de um conjunto de entrevistas, procura-se apreender algumas das modalidades de utilização dos média numa zona urbana da Beira Interior (a Covilhã) e a sua articulação com as práticas de cidadania, introduzindo como dimensões de análise a classe social (técnicos não gestores e proletários) [ix], o escalão etário (20/30 anos e 45/55 anos) e o sexo.

Numa análise em que se cruzam os níveis local, nacional e global, é possível destacar algumas tendências fundamentais:

a) Existem várias formas de filtragem e selecção da informação, que traduzem cortes bastante nítidos no público segundo as localizações de classe e as qualificações escolares. A informação política constitui uma das divisões mais marcantes, com os técnicos a consumirem-na num fluxo regular e os proletários a rejeitarem-na. Outra tendência consiste na preferência por distintos códigos narrativos conforme se possui altas qualificações escolares (apetência pela racionalidade literária e recurso a uma diversidade de meios de informação) ou baixas qualificações (sedução pela informação segundo os modelos do entretenimento audio-visual e recurso exclusivo à TV).

b) Existe uma incongruência na relação entre o binómio exposição à informação/atitude face à política, por um lado, e o exercício da cidadania fora do espaço mediático, por outro lado. Ou seja, os maiores consumidores de informação/mais crentes no sistema político não são, necessariamente, os cidadãos com práticas de cidadania mais activas. Pelo contrário, os proletários adultos, cépticos face à política e desinteressados da sua informação, constituem a célula social mais empenhada em exercer o direito de voto e, de longe, mais participante na esfera associativa.

c) A apropriação dos média locais como espaço de cidadania tende a limitar-se à vertente passiva (com vários graus de consumo de informação). Mas há diferenças de classe. Mesmo mantendo-se à margem da intervenção, os técnicos mostram disponibilidade para intervir e podem accioná-la caso considerem justificar-se. Os proletários operam uma auto-neutralização política, ao não imaginarem a sua própria intervenção e ao demitirem-se da vigilância dos eleitos através dos média.

d) A reapropriação colectiva da informação dá-se em vários espaços de sociabilidade pós-mediáticos (espaço doméstico, laboral, de lazer), mas de uma forma pouco permeável às fronteiras de classe e, no caso do proletariado, tendencialmente confinadas ao mesmo sexo.

 

18. O cruzamento entre as características da paisagem mediática e as linhas de apropriação dos discursos pelos cidadãos resulta num determinado modelo de espaço público, que contribui para a definição das relações entre Estado e sociedade e entre grupos sociais.

Ressalve-se que a investigação empírica realizada, quer na análise dos média quer nas entrevistas, é de carácter qualitativo, não trabalhando com amostras representativas dos universos em causa. Trata-se, portanto, de extrair indicações e aproximações à realidade, que não devem ser generalizadas.

De entre as conclusões, destaco o seguinte.

Em primeiro lugar, o espaço público mediático, na Beira Interior, está praticamente contido no modelo de difusão, ou seja, a informação circula de um número reduzido de produtores para um universo alargado de consumidores.[x] Essencialmente, a comunicação à escala nacional e global caracteriza-se por se fazer no sentido centro-periferia e, à escala local, por funcionar no sentido descendente Estado-sociedade civil, sem que, em qualquer dos casos, haja diálogo significativo.

Em segundo lugar, as características deste espaço público reforçam um modelo de cidadania estatizante, uma vez que a realidade social é hierarquizada nesse sentido (com particular força nos média locais) e que o plano mediático funciona sobretudo como factor de legitimação do sistema político pelas classes populares (fornecendo-lhes informação mínima para votar, mas excluindo-as do debate). Aquilo que o espaço mediático não faz é funcionar como potenciador das capacidades de envolvimento cívico nem como catalisador das apetências de intervenção (da classe média) ou das tendências de protesto (da classe proletária).

Em terceiro lugar, este espaço público ajusta-se ao modelo de democracia representativa, mas num registo de baixa intensidade. A baixa intensidade democrática está ligada ao fracasso, neste quadro periférico, da concepção clássica de opinião pública, o que deriva 1) da pouca capacidade de escrutínio do poder e de agendamento de assuntos por parte dos média, e 2) da frágil capacidade de discurso e de organização que os cidadãos demonstram em questões colectivas. Este cenário deve-se a uma multiplicidade de factores, em que se incluem a própria lógica dos média e a forma de organização social (muito baseada em redes de compromisso interpessoal). Mas o factor preponderante é a forma de dominação estatal, que, pela sua acção autoritária e clientelar, tende a dissuadir a cidadania activa (a relação mais eficaz com o Estado não é a que se traz à luz) e a produzir o aparente paradoxo que é manter o essencial da política na marginalidade do espaço público.

 

19. O conjunto de dados recolhidos indica que as possibilidades do espaço mediático funcionar como agência de democratização se articulam de forma diversa com os diferentes lugares da estrutura social. Nunca constituem, porém, mais do que um factor de cidadania passiva e limitada ao pilar da redistribuição do consumo.

Neste cenário, o espaço público mediático terá um papel democratizador das relações Estado-sociedade na medida em que souber fomentar o diálogo público da sociedade com o Estado, o que só parece possível pondo a falar o maior círculo de vozes disponíveis para o fazer na sociedade civil.

Mas a plenitude democrática do espaço público apenas sucederá quando também forem quebradas as barreiras de comunicação que existem no interior da própria sociedade, o que se afigura mais viável num modelo que inclua múltiplos espaços de debate e maturação cívica que, primeiro, dêem lugar aos vários grupos de uma sociedade fragmentada e, depois, permitam ultrapassar o carácter restrito das sociabilidades imediatas.

 



* Síntese da tese de mestrado em Sociologia intitulada “Média e cidadania na periferia portuguesa: inclusões e exclusões – O caso da Beira Interior”, defendida na Universidade de Coimbra em Novembro de 2000. Agradecem-se críticas e comentários para zericcar@hotmail.com.

 

[i] É óbvio o potencial impacto, por exemplo, dos noticiários televisivos no exercício do direito de voto, o que varia consoante as modalidades de utilização dos média pelos públicos (frequência e modo de visionamento, esquemas de filtragem do fluxo informativo, formas de interpretação das notícias). Mas existe, desde o início, uma co-construção entre cidadania e criação mediática e as próprias concepções de cidadania detidas por jornalistas, editores e directores de um canal (bem como as do poder político e dos actores públicos) condicionam a escolha de assuntos, o alinhamento noticioso, as formas narrativas, os discursos e os protagonistas dos programas de informação. Abrir um noticiário com propaganda a um programa de entretenimento ou com a questão dos direitos humanos em Timor-Leste constituem formas radicalmente diferentes de construir a realidade, do ponto de vista da cidadania.

[ii] Um dos exemplos correntemente identificáveis nos média é o dos maus tratos a mulheres no espaço familiar. É regra as notícias “explicarem” estes casos com base em patologias individuais do agressor, tais como o alcoolismo, distúrbios psicológicos ou outros comportamentos desviantes potenciados pelas condições sociais envolventes. Mas esta é apenas uma face do problema, que não explica o carácter sistemático da agressão masculina, sem que o contrário ocorra. O fenómeno só pode ser entendido no seio de uma relação social homem-mulher que, de certa forma, legitima o autoritarismo masculino e permite a sua recorrência.

[iii] Um bom exemplo desta contingência histórica está no facto da racionalidade literária, associada à imprensa e caracterizada por um discurso linear baseado em argumentação e contra-argumentação, se encontrar em regressão nos próprios jornais, que adoptam modelos narrativos mais próximos do que se poderia chamar uma racionalidade caleidoscópica (textos curtos, diversidade de assuntos, centralidade da imagem, favorecimento da apreensão rápida da mensagem, primeiras páginas inspiradas no modelo de hipertexto) que se costuma atribuir ao universo da TV. Sendo certo que cada suporte tecnológico contém limites e possibilidades que lhes são próprios, também é verdade que se assiste a um cruzamento cada vez maior de géneros e tecnologias e que será o contexto socio-político, e não um determinismo do meio sobre a mensagem, a ditar os caminhos do futuro.

[iv] Se tem perdido peso a dificuldade de acesso à informação por parte dos cidadãos de territórios periféricos, não deixa de ter impacto que uma paisagem mediática de periferia seja maioriamente constituída por produtos provenientes dos vários centros.

[v] Em “Cidadania Política e Equidade Social em Portugal”, Manuel Villaverde Cabral mostra como a distância ao poder e a exposição informativa são dois recursos fortemente segmentados no nosso país.

[vi] Algumas das características da actuação do poder estatal na Beira Interior são o clientelismo, a privatização de recursos públicos por interesses particulares e a discriminação dos cidadãos de acordo com a sua pertença à sociedade civil íntima ou estranha.

[vii] A Internet veio pôr em evidência a relativa desadequação do conceito clássico de literacia , ao promover a intersecção de géneros e ao requerer a combinação de múltiplas aptidões. Ao assentar na lógica do hipertexto, a Internet não dispensa o controlo da leitura e da escrita, mas também remete para universos como os da TV e da banda desenhada, ao mesmo tempo que implica um certo patamar de competência informática.

[viii] Escolha aleatória de seis edições de cada jornal (Jornal do Fundão, Notícias da Covilhã e Gazeta do Interior) entre Novembro de 1998 e Março de 1999 e de vinte noticiários das rádios (Rádio Jornal do Fundão e Rádio Cova da Beira) emitidos em sete dias seguidos de Dezembro de 1998. Nos jornais privilegiou-se a análise dos artigos com referência na primeira página.

[ix] Os técnicos não gestores são uma localização de classe média que engloba assalariados com altas qualificações escolares mas sem autoridade nas relações de trabalho. Os proletários são assalariados, dos sectores secundário ou terciário, que desempenham funções sem necessidade de qualificações.

[x] Ainda não parece legítimo aplicar a esta periferia portuguesa aquilo a que autores como Mark Poster chamam um novo modo de informação, em que o advento das tecnologias interactivas desfaz o modelo de difusão característico da modernidade, para configurar um universo comunicacional em que deixa de haver uma separação clara entre os papéis de produtor e consumidor, emissor e receptor, governante e governado.