O sujeito global: regresso ao presente e imersão nos fluxos

 

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

 

Abril de 2000

 

No final do ensaio Anjos e meteoros[1] (1999) e em Órbitas da Modernidade (2000), explicitámos os novos moldes a que a ideia de instantaneidade se tem vindo a sujeitar na actualidade. Nomeadamente, partimos do princípio de que a instauração do futuro (ou do ‘ainda não’, do ‘horizonte do devir’, do ‘estar para vir’) sempre constituiu, no âmbito ocidental e semítico, uma visão de inevitável fractura face à instância do presente, persistentemente gerida por um ‘grande código’ totalizante. Desde a fase profética propriamente dita à apocalíptica judaicas; desde as escatologias cristã ou islâmica à cristalização utópica de pós-seiscentos; desde o alvor neo-escatológico das ideologias ao ponto ómega de T.Chardin, sempre um ‘grande código’ monopolizou a interpretação de conquista de um futuro distante e perfectível. Esta longa e pesada tradição - às vezes ainda invisível, por isso mesmo - sempre coabitou, no entanto, com a exigência latente, e às vezes presente, do cumprimento instantâneo desse futuro anunciado na esfera imediata do ‘agora-aqui’. Entre este tipo de manifestações activas, poderemos colocar, em pé de igualdade, o horizonte de cumprimento premonitório dos tempos do primeiro Isaías, as visões directas de Deus na literatura apocalíptica, os movimentos milenaristas e montanistas do alvor do Cristianismo, a urgência da conquista do Dar-al-Islâm após a revelação de Maomé, as revoltas utópicas europeias no despontar da modernidade e, por fim, o deslumbramento inicial das revoluções socialistas do século XX.

Estas manifestações de exigência e evocação activas do cumprimento instantâneo do futuro - tal como um adequado grande código o anunciava - foram geralmente enunciadas como fascinantes inícios de ciclos que, após algum tempo, sempre se esgotaram na continuidade homogénea e vazia do tempo que, por sua vez, transformava o presente, de novo, no árido terreiro de uma longa espera. A fé, a crença, a convicção, a esperança - para o caso é o mesmo - tornar-se-iam subsequentemente numa espécie de compulsão, capaz de superar a negatividade da própria espera e de instaurar austeras ou severas ordens, caracterizadas, ou pela graça divina, ou pela libertação do homem, ou ainda pela construção do homem novo. Na modernidade, a construção de todos os macro-sujeitos assentam, directa ou indirectamente, neste mesmo alicerce original. Com efeito, devido ao que H.Rowley designou pela ‘teoria das duas idades’ (1964:73), ou seja, devido a esta perene descontinuidade entre os níveis do presente e do futuro, a história da instantaneidade - semítica e ocidental – tornou-se na história comum de augúrios indiferidos, de desejos incumpridos e, já na modernidade ocidental, sobretudo de autoflagelação instituída e de verdadeiras miragens, muitas vezes sujeitas a uma ética de imposição radical.

Esta situação de disputa auto-punitiva do instantanismo acabaria por alterar-se, gradual mas substancialmente, nas últimas duas décadas, no momento em que a silhueta de uma nova época (ainda) moderna pareceu, a pouco e pouco, emergir. Para tal, contribuiu a articulação entre dois factos, a saber, a falência dos grandes códigos totalizantes, enquanto factor mobilizador das sociedades, e, por outro lado, a culminante entrada em cena de novos modos de interacção tecnológicos, de uma novíssima antropologia do ciberespaço, da aceleração da (i)mediação telecrática, assim como da sobreposição do acentrado sobre o centrado, nas relações entre auditórios e emissores, quer nas linguagens, quer também nas regras que as significam. O que basicamente domina esta nova época é o que designamos por ‘áreas de quase imediação’ e que incluem: (1) a ficcionalidade da experiência corporizada pelos média; (2) a área de propagação ciberespacial; (3) o agir livre do sujeito impelido por um desejo instantanista; (4) a compulsão interactiva circundante face ao sujeito e, por fim, (5) a propriocepção, ou seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito tecnológico.

A instantaneidade, neste novo quadro, deixa efectivamente de ser o móbil através do qual se reivindicaria um horizonte salvífico, para passar a ser o elemento central de um sistema de vida que recoloca na arena do presente uma espécie de consecução plena do agir humano, ou seja, do preenchimento do seu próprio ser. Do mesmo modo, a instantaneidade deixa de ser escrava da fractura entre presente e futuro longínquo e passa a refluir em direcção ao presente, arrastando consigo a imaginação exilada desse mesmo futuro.

Desta confluência entre as estruturas dos horizontes de salvação regressados ao presente - devido ao apagamento dos grandes códigos que os situavam em coordenadas sempre distantes - e o próprio refluir da instantaneidade também em direcção ao presente se constitui a nova época ‘das quase imediações’. Diga-se que esta época, onde ainda convergem as tarefas da modernidade, cedo viria a ser designada de modo muito variado, devido fundamentalmente à tentação de se pretender encontrar, por ratio difficilis, um quadro de novas notações para as novas realidades emergentes (o que, curiosamente aliás, acontecera, no limiar do século XX, no esotérico campo da ‘lógica sentencial moderna’ de Frege e Peano). É dentro deste quadro notacional que, para além do lexemas associados ao ‘pós-moderno’ (fruto e motivo de muita polémica, às vezes, excrescente), surge o lemexa globalização.

O termo globalização, irradiação metafórica de estreitamento espacial, contém em si o implícito semema de uma instantaneidade corrente, ao longo de uma área de propagação que é comum a todos e que é, por outro lado, contígua ao tabuleiro onde tudo, a todo o momento, se joga: o globo. Mais do que um quadro, ou do que uma categoria, o termo globalização designa antes uma situação que inevitavelmente gera uma súmula de condições de possibilidade de manifestações permanentes de instantaneidade. O global é, portanto, neste quadro, o atributo de cada situação particular de instantaneidade que as condições da própria globalização tornaram possíveis, numa dada fracção de espaço e de tempo. Se o globo se tornou subitamente enformado pelas realidades da nova era, é normal - dentro dos limites operatórios em que temos vindo a considerar a noção de sujeito - que o agir livre e o seu objecto se tenham também alterado. É neste sentido, e apenas neste sentido, que temos vindo  a considerar a noção de sujeito global, nos nossos ensaios, ou seja, por outras palavras, enquanto entidade que age sobre a instantaneidade tecnológica, subitamente transformada no objecto, ou sistema de vida, que recolocou na arena do presente uma espécie de consecução plena da acção humana, ou seja, do preenchimento do seu próprio ser.

 

Da expansão do sujeito global

 

Há dias, lemos e ouvimos o slogan publicitário de uma rede de telemóveis que enunciava, com o impacto viciado e vazio de toda a publicidade, a seguinte frase: “voamos onde os outros navegam”. Se a navegação (espacial, leia-se) se tornou num verbo metaforizado pela instantaneidade dos ciber-sujeitos imateriais, o acto de voar surge aqui como um poderoso concorrente semiótico, já que inscreve, ao nível da ‘forma de conteúdo’, uma clara contraposição entre a navegação (nos oceanos, leia-se) e a total evasão aérea, onde os sememas da velocidade parecem exceder todos os outros. No fundo, a concorrência estabelecida entre produtos, subjacente a este slogan dos telefones celulares, aponta mais para valores que têm a ver com a reivindicação de velocidade/instantanismo, do que propriamente para imaginários ou materialidades do aparelho publicitado. Anos antes, em meados da década de oitenta, P.Virilio iniciava um dos capítulos de Guerre et Cinema-logistique de la perception (1984) com o sugestivo título: “Le cinéma ce n´est pas je vois, c´est je vole”, retirado de uma paráfrase de N. June Paik (1991:15). Com efeito, a própria auto-invenção do cinema durante o seu período formativo, sobretudo no que respeita à ubiquidade, às atracções progressivas da montagem e à emergência de uma cadeia de sucessividades imaginárias que se sobrepõem à clássica impressão perceptiva de realidade -  já pronunciava esta inevitável transfiguração, ou expansão do sujeito moderno. Uma tal dilatação do sujeito pertence, assim, a  um desígnio inicial da modernidade e alarga-se-se dramaticamente, na nova era actual, com um fulgor nunca antes visto. D. kerckhove disse a propósito deste movimento imparável:

 

“Como carregamos uma imagem de nós próprios baseada nos princípios letrados da Renascença, não conseguimos reconhecer que as tecnologias electrónicas, do telefone à realidade virtual, estendem o nosso ser físico muito para além da pele. A questão da propriocepção, o nosso sentido dos limites corporais, será o assunto psicológico chave com que em breve se virão a deparar as novas gerações atentas à tecnologia” (1997:265)

 

É caso para dizer que, se transpuséssemos a harmonia da teoria de Espinosa para a actual globalização, poderíamos concluir que a actual expansão do sujeito global se tem vindo a converter, porventura, num dos “modos” principais com que a substância universal opera no quadro do seu desígnio instantanista. A própria imaginação humana, inscrita no mesmo sintoma de expansão, parece ter-se tornado numa espécie de realidade ou idealidade paralela que “acontece do lado de fora da mente” como também já adiantou D. de Kerckove.

 

Do Duplo e da sua ficção face ao sujeito global

 

No quadro do instantanismo, o mundo surge, no seu todo, como um imenso duplo e este, ao realizar-se quase miraculosamente, como que deixou de perseguir o sujeito e conferiu-lhe mesmo a tentação ilusória de abolir a mediação (tarefa, aliás, arduamente construída no limiar da modernidade, sobretudo por Hume e Kant, para traduzir o fim da representação clássica). No entanto, quando este imediatismo, sobretudo se patrocinado pelos média, se torna compulsivo, deixa de existir qualquer possibilidade de distancianção. A imediação parece então entrar em casa no auge de uma projecção-identificação que já não é apanágio de um média, mas antes de um sistema de vida.

 

Quando o ritmo dos acontecimentos se acelera surge a situação ideal dos media. Os media podem agora, em lugar de se precipitar sobre o acontecimento, em lugar de criá-lo, de empolá-lo, imprimir-lhe a sua incrível dinâmica, a sua capacidade singular de distribuir alucinantes massas de informação. Mais do que nunca, a história oferece a aparência de estar em vias de se escrever”(...)”ninguém pode contestar esse fantástico poder das imagens imediatas”(...)”já não se trata verdadeiramente de uma teatralização da vida quotidiana: o recuo, a distância, tornaram-se impossíveis” (H.-P.-Jeudy,1995:113-4).

 

Essa ficção em que a história - quebrada já no seu organicismo, de acordo com os vaticínios de Nietzsche - também regressa ao coração do presente-actual e é recomposta através de filões de real sempre diferentes, mas sempre conhecidos (Timor, o acidente em directo, o olhar de Clinton, o som do Windows 97, o zapping do terramoto, ou as pedras de Marte), tornou-se na história que ocupa - sem recuo - o espírito do sujeito global, possuído que se sente pela magna ilusão de ser austronauta, herói ou salvador. A sua propriocepção, não apenas física, condu-lo a não reconhecer limites exteriores de expansão e de imediatismo, enquanto a  inscrição da sua identidade deixou de ter “um lado de dentro” fixo para se registar.  

 

Do Logos e do sujeito global

 

Logos é, não apenas aquilo que funda o ser do homem[2], como também o que antecede e gera, de modo autonomizado, a linguagem e a razão humanas. No quadro da chamada ´logotecnia´, o logos não deve ser entrevisto apenas como o enunciado que inscreve e possibilita a manietação de uma nova “co-determinação do saber” (isto é, da técnica - M.Heidegger,1995:22). O logos deve ser entendido basicamente como encontro, ou “reunião”, entre os algoritmos imateriais em que o homem se revê, ao pensar e ao pensar-se - e os algoritmos da atomística artefactual em que o homem se crê, desde sempre, revisto e pensado. O logos, assim entendido, volta a ser “reunião” original entre o construir-se do homem e aquilo que o constrói electronicamente e que, até certo ponto, o poderá determinar. Logos será, pois, o espaço informe onde a razão e a linguagem se fundem na ilusão de que o sujeito passou a nomear o mundo, repondo “o ente que se abre no seu Ser”, para utilizar as palavras com que M.Heidegger caracterizou a noção originária de Logos (1997:189). No limite, esse sujeito é o cyborg mítico que se transformou num novo Fausto perpétuo. Para já, esse sujeito que volta a nomear o mundo e que, portanto, volta a reabri-lo a uma nova dimensão, instantânea e aparentemente quase sem mediação, é o sujeito a quem podemos chamar global.

 

Dos fluxos e do sujeito

 

Fluxos são preenchimentos, mais automatizados do que autonomizados, no seio dos quais a liberdade é quase anulada por uma vontade prévia que é objectivada pelo instantanismo. Os fluxos podem ser relativos a diversos tipos de agir, de onde especificaria, entre os mais importantes, o fluxo de ter, de ver e  de viajar, entre outros que desenvolvo no meu ensaio Órbitas da modernidade. Comecemos pelo primeiro e continuemos até ao devir da viagem.

É preciso ter, receber, adquirir, consumir. Pouco interesa o quê, mas sempre, sem quebra de continuidade. Não interessa se cumpre efeitos práticos ou outros, mas  há que comprar, que utilizar, que transportar, que trazer até si. Esta subserviência face ao consumo ocorre, já não no quadro do que foram as práticas de uma ‘sociedade de consumo’, mas antes no que é, hoje em dia, uma ‘sociedade de tráfico de imaginários’. Quer isto dizer que já não se apela ao objecto-produto, mas antes para o objecto- imaginado que está em vez dele, mas apenas na ordem de um desejo imponderável. Ao fim e ao cabo, o fluxo de ter traduz-se através do encanto do fetiche, da posse permanente da imaterialidade (a aura remanescente) que acompanha a mercadoria; do design do status em vez da matéria-prima do artefacto consumido.

O que se consome é, afinal, o próprio fluxo. É necessário preservar vitalmente este ‘fluxo de ter’, porque, justamente, ele traduz a forma ideal de assegurar a estabilidade da ‘era pós-ética’[3] que, por sua vez, é socialmente sucedânea do ‘dever-ser’ que a modernidade elaborou no seu alvor (para substituir outros deveres face à justiça divina pré-moderna).

Quando ao fluxo de ver, diga-se, à partida, que o acto de ver há muito se tornou na maior obsessão, sem concessões, da nova era. Se, para os expressionistas do cinema alemão, ver significava “ter visões” (H.Angel,1957:59), para o novo sujeito global há um globo inteiro por revelar-se e não apenas o perímetro de um ecrã. Da luminosidade do aparecer projectado, e da revelação romântica que fazia com que a natureza fosse um mistério total por decifrar, passa-se agora à arena global onde natureza, cultura, objecto e sujeito se unificaram numa única cadeia de permanências - o fluxo. Nesta medida, ver significará sobretudo rever, mas de acordo com próteses do globo a que o sujeito se moldou de tal forma que dificilmente encontra folga, distância, diferença identitária. O globo é o sujeito e o que ele vê, vê-o através da ubiquidade com que foi, na actualidade, revestido o globo. No fundo, a nova era traduz-se num back to the pansemiotics, onde o protagonista surge hipnotizado pelo revestimento electrónico-imagético do universo; se tudo era dantes discurso de Deus, hoje tudo é discurso do fluxo, a nova entidade salvífica. A telecracia global e a trama política, entre muitas outras revelações, constituem momentos, ou exemplos, dessa intermitência mágica em que se desenrola o fluxo e, no seio da sua cápsula dourada, o próprio sujeito.

No fluxo de viajar, o sujeito deixa de ser uma pessoa que pode olhar nos olhos de outra; no fluxo de viajar, o sujeito torna-se na physis do próprio fluxo e age em relação aos outros tal como, na ficção, os extra-terestres e os duplos virtuais se destroem por fatalidade insuperável (embora com contornos próprios, o filme Crash é uma épica dessa gesta auto-flageladora da actualidade). Esta total virtualização do sujeito global que viaja e se viaja conduz inevitavelmente ao que designaríamos por desmaravilhamento do mundo. Isto significa que nada o impressiona ou contenta, para além da vertigem instantanista de estar em todo o lado em todos os momentos: seu objectivo surpremo. Esta deificação ubíqua, cujos anjos simbólicos são motards e sujeitos-veículos, e cujos céus de devoção são as cidades, as Ips e as auto-estradas, é o novo reino de uma salvação simulada que só o presente instantanista pode absorver. Como comentou P.Zumthor, um autor curiosamente preocupado com a tradição oral, - “Já ninguém se maravilha sequer com os vaivéns e os satélites que continuamos a disparar para o espaço: dispersão dos interesses, confusão das retóricas, cansaço...” (1998:221).

Confessemos que a emulação da era actual já não é a do proto-moderno homem novo, mas sim a do sujeito global que se estende até aos limites (mais do que elásticos) dos fluxos a que se entrega, por razões que se prendem com o seu desejo de instantanismo, mas também de partilha com os imaginários que lhe definem o que é, simbolicamente, o próprio globo. Para ele, o globo é o espaço imaginário onde se jogam os limites que sugerem o excesso do possível (desporto radical, volta ao mundo em www, fitness e corpo absoluto; trânsito como fim e não como meio, cadeia de consumo, zapping e fragmento, golos repetidos na TV e erotismo electrónico). O fluxo é tudo isso, mas muito mais: o fluxo é hipertexto; o fluxo é rave party permanente e ontem já foi música house; o fluxo é praia pela praia, em Agosto; o fluxo é comunicação celular intermitente; o fluxo são os calmantes, ou o regresso ao narcisismo perene do corpo, ou ainda a noite enquanto actividade reprodutiva. O fluxo é, afinal, toda a involuntariedade repetitiva que está em vez do ‘dever ser’ social da ética que, entre outros padrões da modernidade, também entrou, progressivamente, em colapso nos idos de oitenta.

 

Da indiferença do sujeito global

 

            O sujeito global partilha inevitavelmente de uma dinâmica que o opõe e o atrai à indiferença mais radical. É da sua própria identidade ter que desenvolver esse jogo, ou esse destino viável de Janus que o reconduz a diferentes níveis de realidade. Até porque, na nova era das ‘quase imediações’, deixaram de existir níveis fixos e ‘pesados’ de realidade; o ‘cúmulo’ de um desses níveis é sempre reversivelmente o ‘vale depressionário’ do outro nível, seja no campo dos fluxos, seja nos possíveis momentos de auto-deliberada liberdade, que designei por casual, nas Órbitas da modernidade. O novo tempo da actualidade é, pois, um tempo de realidades paralelas; é um tempo de ‘mapas’ e ‘terrenos’ (artefactos e realidades) confeccionados a partir da mesma matéria. O globo do novo sujeito é, também ele, duplificável. Esfera e anti-esfera dentro da mesma esfera, como se fosse uma caixa de surpresas infindável e maravilhada; imagem que, de modo visionário, exemplificámos, através da metáfora do ‘globário’, em Anjos e meteoros[4]. O existir do sujeito global depende, em última análise, do fluxo maravilhado onde dorme e efabula, bem como do refluxo casual em que, por suspensão, livremente pode admitir pensar e agir autonomamente. O devir do sujeito global é como o devir de um simbólico vaivém espacial que gira à volta de si, e do seu próprio espectro, durante 24 horas por dia. Sempre.

 

Nota final para este sujeito global

 

A inefável e inexprimível expansão do sujeito global, no seu plasmar-se com os objectos e com as imagens do mundo; esta metamorfose crónica do sujeito global no sentido de uma fuga para o centro perpétuo e actual do presente onde se preenche; esta navegação de múltiplas identidades onde coabitam, agora, as máscaras da tradição moderna feitas de sujeitos e anti-sujeitos; esta quase euforia subjectiva em que o sujeito e o duplo se encontraram na mais perfeita imaterialidade da electrónica - consubstanciam o traçado de uma viagem. Mas de que viagem ?

Órbitas, apenas órbitas. Órbitas em torno do globo azul que já não é o labirinto de Borges, mas sim o interface ilimitado do nosso imaginar transfigurado. Se “os gregos inventaram o teatro para recuperar a identidade que tinha sido estilhaçada pelo alfabeto”[5], o sujeito global de hoje inventou o acoplamento entre a instantaneidade e a salvação para recuperar a identidade que tinha sido estilhaçada, no momento em que a modernidade, ainda jovem, se desdobrou em rupturas, clivagens e horizontes,  porventura fictícios, de realização colectiva.

O sujeito global é a própria órbita. Entre o fluxo e o caso. Entre a transfiguração e o nicho. Entre o globo e a visão perpétua e desordenada de si mesmo.

 

 

Bibliografia

 

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[1] Luís Carmelo, Anjos e meteoros, Ed.Notícias, Lisboa, 1999:86-91.

[2] “(...)o fundamento que fundamenta o Ser do homem”, ou seja, : “Que a linguagem seja Logos, seja (re)união, não é de modo algum uma evidência. No entanto, entendemos esta interpretação da linguagem a partir do início da existência histórica dos Gregos, a partir da orientação fundamental em que o Ser sequer se lhes revelou e em que eles o levaram à consciênciad o ente.

A partir do ímpeto directo do vigor imponente, a palavra, o nomear, repõe o ente que se abre no seu Ser e mantém-no nessa abertura, delimitação e consistência. Não é o nomear que posteriormente confere a um ente já aberto uma designação e um signo característico (Merkzeichen), a que se chama palavra; é o contrário que acontece: a palavra desce das alturas da sua originária imponência como abertura do Ser, transformando-se num simples signo, de modo a este próprio se antepor então ao ente. É no dizer originário que se abre o Ser do ente na com-juntura da sua unidade de (re)união. Esta abertura é (re)união no segundo sentido, de acordo com o qual a palavra conserva o originariamente (re)unido, assim exercendo e gerindo (verwalten) o vigor imperante. O homem, enquanto aquele que está e age no Logos, na (re)união, é: o que (re)une, o colector (sammler)” (M.Heidegger, 1997:189)

 

[3] Sobre o tema: G.Lipovetsky,Le Crépuscule du devoir, l´éthique indolore es noveaux temps démocratiques,Paris, NRF Gallimard, Essays,1992.

[4]A metáfora surge no termo do penúltimo capítulo do ensaio: “Curiosamente, o homem do ano 1000 olhava também, de dentro, para um edifício fechado e tão transparente como o alegórico oceanário da Expo 98. Esse seu globário invísivel, representado simbolicamente na figura da grande catedral, configuraria a ideia de uma rede simbólica geral onde cada símbolo particular repousava e partilhava os seus próprios dons. A globalização do homem do ano 1000 confundia-se com a magnitude que se pressentia em Deus, e sobretudo com o anúncio de uma respeitada e desejada salvação final. Esta estrutura, semelhante (apenas enquanto estrutura fechada e algo inomeável) à da globalização pós-moderna, é, no entanto, diversa, no que respeita à evidência do devir, e não tanto ao optimismo humano.

A diferença situa-se no facto de o homem do ano 1000 crer, sem margem qualquer onde se pudesse inscrever uma dúvida que fosse. O homem do ano 1000 é, com efeito, um homem que crê no concerto global da criação original e da salvação final, reservando a vida para uma lenta e repetitiva aprendizagem que acata e aceita, do mesmo modo que aceita que os raios solares se espalhem sobre o pico de uma montanha. Para o homem que cruza o próximo milénio, convoca-se, por constraste, não o optimismo de há um século atrás, por exemplo, mas antes a instabilidade, talvez criativa, assente nos suportes telemáticos e ciber-tecnológicos da grande máquina da actual globalização.

Por outras palavras, talvez soçobre em tudo isto um certo paralelismo acutilante, mas sempre silencioso, ou seja, - o globário em que vivemos é tão potente e está de tal forma em expansão que apenas o sentimos na razão directa da sua própria invisibilidade. Como o Deus do ano 1000, também o globário do ano 2000 é invisível e omnipresente. O que nos faltará, para além da crença e da dúvida metódica ou hiperbólica, é, porventura, distinguir os limites e as configurações exteriores deste nosso globário, do mesmo modo que protagonista do recente filme, The Truman Show - A vida em directo de Peter Weir (1998), o desvendou, depois de muita e persistente pesquisa” (1999:73).

 

[5] D.de Kerckhove, entrevista a O Independente, in Indy,(18-09),1998:13.