O sujeito global: regresso ao presente e imersão nos
fluxos
Luís
Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa
Abril
de 2000
No final do ensaio Anjos e meteoros[1]
(1999) e em Órbitas da Modernidade
(2000), explicitámos os novos moldes a que a ideia de instantaneidade se tem
vindo a sujeitar na actualidade. Nomeadamente, partimos do princípio de que a
instauração do futuro (ou do ‘ainda não’, do ‘horizonte do devir’, do ‘estar
para vir’) sempre constituiu, no âmbito ocidental e semítico, uma visão de
inevitável fractura face à instância do presente, persistentemente gerida por
um ‘grande código’ totalizante. Desde a fase profética propriamente dita à
apocalíptica judaicas; desde as escatologias cristã ou islâmica à cristalização
utópica de pós-seiscentos; desde o alvor neo-escatológico das ideologias ao
ponto ómega de T.Chardin, sempre um ‘grande código’ monopolizou a interpretação
de conquista de um futuro distante e
perfectível. Esta longa e pesada tradição - às vezes ainda invisível, por isso
mesmo - sempre coabitou, no entanto, com a exigência latente, e às vezes
presente, do cumprimento instantâneo desse futuro anunciado na esfera imediata
do ‘agora-aqui’. Entre este tipo de manifestações activas, poderemos colocar,
em pé de igualdade, o horizonte de cumprimento premonitório dos tempos do
primeiro Isaías, as visões directas de Deus na literatura apocalíptica, os
movimentos milenaristas e montanistas do alvor do Cristianismo, a urgência da
conquista do Dar-al-Islâm após a
revelação de Maomé, as revoltas utópicas europeias no despontar da modernidade
e, por fim, o deslumbramento inicial das revoluções socialistas do século XX.
Estas manifestações de
exigência e evocação activas do cumprimento instantâneo do futuro - tal como um
adequado grande código o anunciava - foram geralmente enunciadas como
fascinantes inícios de ciclos que, após algum tempo, sempre se esgotaram na
continuidade homogénea e vazia do tempo que, por sua vez, transformava o
presente, de novo, no árido terreiro de uma longa espera. A fé, a crença, a convicção,
a esperança - para o caso é o mesmo - tornar-se-iam subsequentemente numa
espécie de compulsão, capaz de superar a negatividade da própria espera e de
instaurar austeras ou severas ordens, caracterizadas, ou pela graça divina, ou
pela libertação do homem, ou ainda pela construção do homem novo. Na
modernidade, a construção de todos os macro-sujeitos assentam, directa ou
indirectamente, neste mesmo alicerce original. Com efeito, devido ao que
H.Rowley designou pela ‘teoria das duas idades’ (1964:73), ou seja, devido a
esta perene descontinuidade entre os níveis do presente e do futuro, a história
da instantaneidade - semítica e ocidental – tornou-se na história comum de
augúrios indiferidos, de desejos
incumpridos e, já na modernidade ocidental, sobretudo de autoflagelação
instituída e de verdadeiras miragens, muitas vezes sujeitas a uma ética de
imposição radical.
Esta situação de disputa
auto-punitiva do instantanismo acabaria por alterar-se, gradual mas
substancialmente, nas últimas duas décadas, no momento em que a silhueta de uma
nova época (ainda) moderna pareceu, a pouco e pouco, emergir. Para tal,
contribuiu a articulação entre dois factos, a saber, a falência dos grandes
códigos totalizantes, enquanto factor mobilizador das sociedades, e, por outro
lado, a culminante entrada em cena de novos modos de interacção tecnológicos,
de uma novíssima antropologia do ciberespaço, da aceleração da (i)mediação
telecrática, assim como da sobreposição do acentrado sobre o centrado, nas
relações entre auditórios e emissores, quer nas linguagens, quer também nas
regras que as significam. O que basicamente domina esta nova época é o que
designamos por ‘áreas de quase imediação’ e que incluem: (1) a ficcionalidade
da experiência corporizada pelos média; (2) a área de propagação ciberespacial;
(3) o agir livre do sujeito impelido por um desejo instantanista; (4) a
compulsão interactiva circundante face ao sujeito e, por fim, (5) a
propriocepção, ou seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito
tecnológico.
A instantaneidade, neste
novo quadro, deixa efectivamente de ser o móbil através do qual se
reivindicaria um horizonte salvífico, para passar a ser o elemento central de
um sistema de vida que recoloca na
arena do presente uma espécie de consecução plena do agir humano, ou seja, do
preenchimento do seu próprio ser. Do mesmo modo, a instantaneidade deixa de ser
escrava da fractura entre presente e futuro longínquo e passa a refluir em
direcção ao presente, arrastando consigo a imaginação exilada desse mesmo futuro.
Desta confluência entre as estruturas dos horizontes de salvação
regressados ao presente - devido ao apagamento dos grandes códigos que os
situavam em coordenadas sempre distantes - e o próprio refluir da
instantaneidade também em direcção ao presente se constitui a nova época ‘das
quase imediações’. Diga-se que esta época, onde ainda convergem as tarefas da
modernidade, cedo viria a ser designada de modo muito variado, devido
fundamentalmente à tentação de se pretender encontrar, por ratio difficilis, um quadro de novas notações para as novas
realidades emergentes (o que, curiosamente aliás, acontecera, no limiar do
século XX, no esotérico campo da ‘lógica sentencial moderna’ de Frege e Peano).
É dentro deste quadro notacional que, para além do lexemas associados ao
‘pós-moderno’ (fruto e motivo de muita polémica, às vezes, excrescente), surge o lemexa globalização.
O termo globalização,
irradiação metafórica de estreitamento espacial, contém em si o implícito
semema de uma instantaneidade corrente, ao longo de uma área de propagação que
é comum a todos e que é, por outro lado, contígua ao tabuleiro onde tudo, a
todo o momento, se joga: o globo. Mais do que um quadro, ou do que uma
categoria, o termo globalização designa antes uma situação que inevitavelmente
gera uma súmula de condições de possibilidade de manifestações permanentes de
instantaneidade. O global é, portanto, neste quadro, o atributo de cada
situação particular de instantaneidade que as condições da própria globalização
tornaram possíveis, numa dada fracção de espaço e de tempo. Se o globo se
tornou subitamente enformado pelas realidades da nova era, é normal - dentro
dos limites operatórios em que temos vindo a considerar a noção de sujeito -
que o agir livre e o seu objecto se tenham também alterado. É neste sentido, e
apenas neste sentido, que temos vindo a
considerar a noção de sujeito global, nos nossos ensaios, ou seja, por outras
palavras, enquanto entidade que age sobre a instantaneidade tecnológica,
subitamente transformada no objecto, ou sistema
de vida, que recolocou na arena do presente uma espécie de consecução plena
da acção humana, ou seja, do preenchimento do seu próprio ser.
Da expansão do sujeito
global
Há dias, lemos e ouvimos o
slogan publicitário de uma rede de telemóveis que enunciava, com o impacto
viciado e vazio de toda a publicidade, a seguinte frase: “voamos onde os outros
navegam”. Se a navegação (espacial, leia-se) se tornou num verbo metaforizado
pela instantaneidade dos ciber-sujeitos imateriais, o acto de voar surge aqui
como um poderoso concorrente semiótico, já que inscreve, ao nível da ‘forma de
conteúdo’, uma clara contraposição entre a navegação (nos oceanos, leia-se) e a
total evasão aérea, onde os sememas da velocidade parecem exceder todos os outros.
No fundo, a concorrência estabelecida entre produtos, subjacente a este slogan
dos telefones celulares, aponta mais para valores que têm a ver com a
reivindicação de velocidade/instantanismo, do que propriamente para imaginários
ou materialidades do aparelho publicitado. Anos antes, em meados da década de
oitenta, P.Virilio iniciava um dos capítulos de Guerre et Cinema-logistique de la perception (1984) com o sugestivo
título: “Le cinéma ce n´est pas je vois, c´est je vole”, retirado de uma
paráfrase de N. June Paik (1991:15). Com efeito, a própria auto-invenção do
cinema durante o seu período formativo, sobretudo no que respeita à ubiquidade,
às atracções progressivas da montagem
e à emergência de uma cadeia de sucessividades imaginárias que se sobrepõem à
clássica impressão perceptiva de realidade -
já pronunciava esta inevitável transfiguração, ou expansão do sujeito
moderno. Uma tal dilatação do sujeito pertence, assim, a um desígnio inicial da modernidade e
alarga-se-se dramaticamente, na nova era actual, com um fulgor nunca antes
visto. D. kerckhove disse a propósito deste movimento imparável:
“Como carregamos uma imagem de nós próprios baseada nos princípios letrados da Renascença, não conseguimos reconhecer que as tecnologias electrónicas, do telefone à realidade virtual, estendem o nosso ser físico muito para além da pele. A questão da propriocepção, o nosso sentido dos limites corporais, será o assunto psicológico chave com que em breve se virão a deparar as novas gerações atentas à tecnologia” (1997:265)
É caso para dizer que, se
transpuséssemos a harmonia da teoria de Espinosa para a actual globalização,
poderíamos concluir que a actual expansão do sujeito global se tem vindo a
converter, porventura, num dos “modos” principais com que a substância
universal opera no quadro do seu desígnio instantanista. A própria imaginação
humana, inscrita no mesmo sintoma de expansão, parece ter-se tornado numa
espécie de realidade ou idealidade paralela que “acontece do lado de fora da
mente” como também já adiantou D. de Kerckove.
Do Duplo e da sua ficção
face ao sujeito global
No quadro do instantanismo,
o mundo surge, no seu todo, como um imenso duplo e este, ao realizar-se quase
miraculosamente, como que deixou de perseguir o sujeito e conferiu-lhe mesmo a
tentação ilusória de abolir a mediação (tarefa, aliás, arduamente construída no
limiar da modernidade, sobretudo por Hume e Kant, para traduzir o fim da
representação clássica). No entanto, quando este imediatismo, sobretudo se
patrocinado pelos média, se torna compulsivo, deixa de existir qualquer
possibilidade de distancianção. A imediação parece então entrar em casa no auge
de uma projecção-identificação que já não é apanágio de um média, mas antes de um sistema
de vida.
Quando o ritmo dos acontecimentos se acelera surge a situação ideal dos media. Os media podem agora, em lugar de se precipitar sobre o acontecimento, em lugar de criá-lo, de empolá-lo, imprimir-lhe a sua incrível dinâmica, a sua capacidade singular de distribuir alucinantes massas de informação. Mais do que nunca, a história oferece a aparência de estar em vias de se escrever”(...)”ninguém pode contestar esse fantástico poder das imagens imediatas”(...)”já não se trata verdadeiramente de uma teatralização da vida quotidiana: o recuo, a distância, tornaram-se impossíveis” (H.-P.-Jeudy,1995:113-4).
Essa ficção em que a
história - quebrada já no seu organicismo, de acordo com os vaticínios de
Nietzsche - também regressa ao coração do presente-actual e é recomposta
através de filões de real sempre diferentes, mas sempre conhecidos (Timor, o
acidente em directo, o olhar de Clinton, o som do Windows 97, o zapping do
terramoto, ou as pedras de Marte), tornou-se na história que ocupa - sem recuo
- o espírito do sujeito global, possuído que se sente pela magna ilusão de ser
austronauta, herói ou salvador. A sua propriocepção, não apenas física,
condu-lo a não reconhecer limites exteriores de expansão e de imediatismo,
enquanto a inscrição da sua identidade
deixou de ter “um lado de dentro” fixo para se registar.
Do Logos e do sujeito global
Logos é, não apenas aquilo
que funda o ser do homem[2],
como também o que antecede e gera, de modo autonomizado, a linguagem e a razão
humanas. No quadro da chamada ´logotecnia´, o logos não deve ser entrevisto
apenas como o enunciado que inscreve e possibilita a manietação de uma nova
“co-determinação do saber” (isto é, da técnica - M.Heidegger,1995:22). O logos
deve ser entendido basicamente como encontro, ou “reunião”, entre os algoritmos
imateriais em que o homem se revê, ao pensar e ao pensar-se - e os algoritmos
da atomística artefactual em que o homem se crê, desde sempre, revisto e
pensado. O logos, assim entendido, volta a ser “reunião” original entre o construir-se do homem e aquilo que o
constrói electronicamente e que, até certo ponto, o poderá determinar. Logos
será, pois, o espaço informe onde a razão e a linguagem se fundem na ilusão de que o sujeito passou a nomear
o mundo, repondo “o ente que se abre no seu Ser”, para utilizar as palavras com
que M.Heidegger caracterizou a noção originária de Logos (1997:189). No limite,
esse sujeito é o cyborg mítico que se transformou num novo Fausto perpétuo.
Para já, esse sujeito que volta a nomear o mundo e que, portanto, volta a
reabri-lo a uma nova dimensão, instantânea e aparentemente quase sem mediação,
é o sujeito a quem podemos chamar global.
Dos fluxos e do
sujeito
Fluxos são preenchimentos,
mais automatizados do que autonomizados, no seio dos quais a liberdade é quase
anulada por uma vontade prévia que é objectivada pelo instantanismo. Os fluxos
podem ser relativos a diversos tipos de agir, de onde especificaria, entre os
mais importantes, o fluxo de ter, de ver e
de viajar, entre outros que desenvolvo no meu ensaio Órbitas da modernidade. Comecemos pelo
primeiro e continuemos até ao devir da viagem.
É preciso ter, receber,
adquirir, consumir. Pouco interesa o quê, mas sempre, sem quebra de
continuidade. Não interessa se cumpre efeitos práticos ou outros, mas há que comprar, que utilizar, que transportar,
que trazer até si. Esta subserviência face ao consumo ocorre, já não no quadro
do que foram as práticas de uma ‘sociedade de consumo’, mas antes no que é,
hoje em dia, uma ‘sociedade de tráfico de imaginários’. Quer isto dizer que já
não se apela ao objecto-produto, mas antes para o objecto- imaginado que está
em vez dele, mas apenas na ordem de um desejo imponderável. Ao fim e ao cabo, o
fluxo de ter traduz-se através do encanto do fetiche, da posse permanente da imaterialidade (a aura remanescente) que
acompanha a mercadoria; do design do status
em vez da matéria-prima do artefacto consumido.
O que se consome é, afinal,
o próprio fluxo. É necessário preservar vitalmente este ‘fluxo de ter’, porque,
justamente, ele traduz a forma ideal de assegurar a estabilidade da ‘era
pós-ética’[3]
que, por sua vez, é socialmente sucedânea do ‘dever-ser’ que a modernidade
elaborou no seu alvor (para substituir outros deveres face à justiça divina pré-moderna).
Quando ao fluxo de ver,
diga-se, à partida, que o acto de ver há muito se tornou na maior obsessão, sem
concessões, da nova era. Se, para os expressionistas do cinema alemão, ver
significava “ter visões” (H.Angel,1957:59), para o novo sujeito global há um
globo inteiro por revelar-se e não apenas o perímetro de um ecrã. Da
luminosidade do aparecer projectado, e da revelação romântica que fazia com que
a natureza fosse um mistério total por decifrar, passa-se agora à arena global
onde natureza, cultura, objecto e sujeito se unificaram numa única cadeia de permanências
- o fluxo. Nesta medida, ver significará sobretudo rever, mas de acordo com
próteses do globo a que o sujeito se moldou de tal forma que dificilmente
encontra folga, distância, diferença identitária. O globo é o sujeito e o que
ele vê, vê-o através da ubiquidade com que foi, na actualidade, revestido o
globo. No fundo, a nova era traduz-se num back
to the pansemiotics, onde o protagonista surge hipnotizado pelo
revestimento electrónico-imagético do universo; se tudo era dantes discurso de
Deus, hoje tudo é discurso do fluxo, a nova entidade salvífica. A telecracia
global e a trama política, entre muitas outras revelações, constituem momentos,
ou exemplos, dessa intermitência mágica em que se desenrola o fluxo e, no seio
da sua cápsula dourada, o próprio
sujeito.
No fluxo de viajar, o
sujeito deixa de ser uma pessoa que pode olhar nos olhos de outra; no fluxo de
viajar, o sujeito torna-se na physis
do próprio fluxo e age em relação aos outros tal como, na ficção, os
extra-terestres e os duplos virtuais se destroem por fatalidade insuperável
(embora com contornos próprios, o filme
Crash é uma épica dessa gesta auto-flageladora da actualidade). Esta total
virtualização do sujeito global que viaja e se
viaja conduz inevitavelmente ao que designaríamos por desmaravilhamento do mundo. Isto significa que nada o impressiona
ou contenta, para além da vertigem instantanista de estar em todo o lado em todos os momentos: seu objectivo surpremo.
Esta deificação ubíqua, cujos anjos simbólicos são motards e sujeitos-veículos,
e cujos céus de devoção são as cidades, as Ips e as auto-estradas, é o novo
reino de uma salvação simulada que só o presente instantanista pode absorver.
Como comentou P.Zumthor, um autor curiosamente preocupado com a tradição oral,
- “Já ninguém se maravilha sequer com os vaivéns e os satélites que continuamos
a disparar para o espaço: dispersão dos interesses, confusão das retóricas,
cansaço...” (1998:221).
Confessemos que a emulação
da era actual já não é a do proto-moderno homem
novo, mas sim a do sujeito global que se estende até aos limites (mais do
que elásticos) dos fluxos a que se entrega, por razões que se prendem com o seu
desejo de instantanismo, mas também de partilha com os imaginários que lhe
definem o que é, simbolicamente, o próprio globo. Para ele, o globo é o espaço
imaginário onde se jogam os limites que sugerem o excesso do possível (desporto
radical, volta ao mundo em www, fitness e corpo absoluto; trânsito como fim e
não como meio, cadeia de consumo, zapping
e fragmento, golos repetidos na TV e erotismo electrónico). O fluxo é tudo
isso, mas muito mais: o fluxo é hipertexto; o fluxo é rave party permanente e ontem já foi música house; o fluxo é praia pela praia, em Agosto; o fluxo é comunicação
celular intermitente; o fluxo são os calmantes, ou o regresso ao narcisismo
perene do corpo, ou ainda a noite
enquanto actividade reprodutiva. O fluxo é, afinal, toda a involuntariedade
repetitiva que está em vez do ‘dever ser’ social da ética que, entre outros
padrões da modernidade, também entrou, progressivamente, em colapso nos idos de
oitenta.
Da indiferença do sujeito
global
O
sujeito global partilha inevitavelmente de uma dinâmica que o opõe e o atrai à
indiferença mais radical. É da sua própria identidade ter que desenvolver esse
jogo, ou esse destino viável de Janus
que o reconduz a diferentes níveis de realidade. Até porque, na nova era das
‘quase imediações’, deixaram de existir níveis fixos e ‘pesados’ de realidade;
o ‘cúmulo’ de um desses níveis é sempre reversivelmente o ‘vale depressionário’
do outro nível, seja no campo dos fluxos, seja nos possíveis momentos de
auto-deliberada liberdade, que designei por casual, nas Órbitas da modernidade. O novo tempo da actualidade é, pois, um
tempo de realidades paralelas; é um tempo de ‘mapas’ e ‘terrenos’ (artefactos e
realidades) confeccionados a partir da mesma matéria. O globo do novo sujeito
é, também ele, duplificável. Esfera e anti-esfera dentro da mesma esfera, como
se fosse uma caixa de surpresas infindável e maravilhada; imagem que, de modo visionário, exemplificámos, através da
metáfora do ‘globário’, em Anjos e meteoros[4].
O existir do sujeito global depende, em última análise, do fluxo maravilhado
onde dorme e efabula, bem como do refluxo casual em que, por suspensão, livremente
pode admitir pensar e agir autonomamente. O devir do sujeito global é como o
devir de um simbólico vaivém espacial que gira à volta de si, e do seu próprio
espectro, durante 24 horas por dia. Sempre.
Nota final para este
sujeito global
A inefável e
inexprimível expansão do sujeito global, no seu plasmar-se com os objectos e
com as imagens do mundo; esta metamorfose crónica do sujeito global no sentido
de uma fuga para o centro perpétuo e actual do presente onde se preenche; esta
navegação de múltiplas identidades onde coabitam, agora, as máscaras da
tradição moderna feitas de sujeitos e anti-sujeitos; esta quase euforia
subjectiva em que o sujeito e o duplo se encontraram na mais perfeita
imaterialidade da electrónica - consubstanciam o traçado de uma viagem. Mas de
que viagem ?
Órbitas, apenas
órbitas. Órbitas em torno do globo azul que já não é o labirinto de Borges, mas
sim o interface ilimitado do nosso imaginar transfigurado. Se “os gregos
inventaram o teatro para recuperar a identidade que tinha sido estilhaçada pelo
alfabeto”[5],
o sujeito global de hoje inventou o acoplamento entre a instantaneidade e a
salvação para recuperar a identidade que tinha sido estilhaçada, no momento em
que a modernidade, ainda jovem, se desdobrou em rupturas, clivagens e
horizontes, porventura fictícios, de
realização colectiva.
O sujeito global é a
própria órbita. Entre o fluxo e o caso. Entre a transfiguração e o nicho. Entre o globo e a visão perpétua
e desordenada de si mesmo.
Augé, M.
1998,Bertrand,Lisboa
Baudrillard,J.
1981,RelógioD´Água,Lisboa
-
1996,Relógio D´Água,Lisboa
Carmelo, L.
La représentation du réel dans des textes prophétiques de la littérature aljamiado-morisque
1995,Universiteit Utrecht, Utrecht
-
Sob o rosto da Europa
1998,Pendor, Évora.
-
Anjos e Meteoros
1999, Editorial Notícias,Lisboa
2000, Editorial Notícias, Lisboa
Deleuze,G.
1983,Éditions de Minuit,Paris
Heideger, M.
Ser e Tempo (I/II),
1997,Vozes,Petrópolis
Jeudi, H.-P.
Comunicação em abismo in Revista de comunicação e linguagens
1993:25-29,Cosmos,Lisboa
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A sociedade transbordante
1995,Século XXI, Lisboa
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1997,Relógio D´Água,Lisboa
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A Expo e os princípios @ (Entrevista) in Indy/O Independente
1998:13-17,Independente,Lisboa,18-09-1998..
Lipovetsky,G.
1983,Relógio D´Água,Lisboa
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1994,D.Quixote,Lisboa
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The Open Heaven - A
Study of Apocalyptic Judaism and Early Christianity
1982,SPCK - Holy Trinity Church, London
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The Revelance of
Apocalyptic. A Study of Jewish and Christian Apocalyptic from Daniel to the
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Lutterworth, New York, 1964.
Virilio, P.
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Zumthor,P.
1998,Bizâncio,Lisboa
[1] Luís Carmelo, Anjos e meteoros, Ed.Notícias, Lisboa, 1999:86-91.
[2] “(...)o fundamento que fundamenta o Ser do homem”, ou seja, : “Que a linguagem seja Logos, seja (re)união, não é de modo algum uma evidência. No entanto, entendemos esta interpretação da linguagem a partir do início da existência histórica dos Gregos, a partir da orientação fundamental em que o Ser sequer se lhes revelou e em que eles o levaram à consciênciad o ente.
A partir do ímpeto directo do vigor imponente, a palavra, o nomear, repõe o ente que se abre no seu Ser e mantém-no nessa abertura, delimitação e consistência. Não é o nomear que posteriormente confere a um ente já aberto uma designação e um signo característico (Merkzeichen), a que se chama palavra; é o contrário que acontece: a palavra desce das alturas da sua originária imponência como abertura do Ser, transformando-se num simples signo, de modo a este próprio se antepor então ao ente. É no dizer originário que se abre o Ser do ente na com-juntura da sua unidade de (re)união. Esta abertura é (re)união no segundo sentido, de acordo com o qual a palavra conserva o originariamente (re)unido, assim exercendo e gerindo (verwalten) o vigor imperante. O homem, enquanto aquele que está e age no Logos, na (re)união, é: o que (re)une, o colector (sammler)” (M.Heidegger, 1997:189)
[3] Sobre o tema: G.Lipovetsky,Le Crépuscule du devoir, l´éthique indolore es noveaux temps démocratiques,Paris, NRF Gallimard, Essays,1992.
[4]A metáfora surge no termo do penúltimo capítulo do ensaio: “Curiosamente, o homem do ano 1000 olhava também, de dentro, para um edifício fechado e tão transparente como o alegórico oceanário da Expo 98. Esse seu globário invísivel, representado simbolicamente na figura da grande catedral, configuraria a ideia de uma rede simbólica geral onde cada símbolo particular repousava e partilhava os seus próprios dons. A globalização do homem do ano 1000 confundia-se com a magnitude que se pressentia em Deus, e sobretudo com o anúncio de uma respeitada e desejada salvação final. Esta estrutura, semelhante (apenas enquanto estrutura fechada e algo inomeável) à da globalização pós-moderna, é, no entanto, diversa, no que respeita à evidência do devir, e não tanto ao optimismo humano.
A diferença situa-se no facto de o homem do ano 1000 crer, sem margem qualquer onde se pudesse inscrever uma dúvida que fosse. O homem do ano 1000 é, com efeito, um homem que crê no concerto global da criação original e da salvação final, reservando a vida para uma lenta e repetitiva aprendizagem que acata e aceita, do mesmo modo que aceita que os raios solares se espalhem sobre o pico de uma montanha. Para o homem que cruza o próximo milénio, convoca-se, por constraste, não o optimismo de há um século atrás, por exemplo, mas antes a instabilidade, talvez criativa, assente nos suportes telemáticos e ciber-tecnológicos da grande máquina da actual globalização.
Por outras palavras, talvez soçobre em tudo isto um certo paralelismo acutilante, mas sempre silencioso, ou seja, - o globário em que vivemos é tão potente e está de tal forma em expansão que apenas o sentimos na razão directa da sua própria invisibilidade. Como o Deus do ano 1000, também o globário do ano 2000 é invisível e omnipresente. O que nos faltará, para além da crença e da dúvida metódica ou hiperbólica, é, porventura, distinguir os limites e as configurações exteriores deste nosso globário, do mesmo modo que protagonista do recente filme, The Truman Show - A vida em directo de Peter Weir (1998), o desvendou, depois de muita e persistente pesquisa” (1999:73).
[5] D.de Kerckhove, entrevista a O
Independente, in Indy,(18-09),1998:13.