Semiose visual. Reflexão sobre iconicidade

Na abertura da cadeira de semiótica da imagem (1997-1998)

 

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

 

1. Apresentação da questão desenvolvida por U.Eco em Kant e l´ornitorinco, Bompiani, Milano, 1997,)

 

“Não é possível falar em imagem, sem entender que a imagem é uma coisa e que o seu fundamento - legitimador e anterior - é uma outra coisa bem diferente. Vamos por partes e utilizemos, para já, a leitura que U.Eco faz da vastíssima obra de C.Peirce, o fundador da semiótica, no seu último livro, aliás ainda não traduzido em Português, Kant e l´ornitorinco (1997). Para C.Peirce, retoma U.Eco na sua interpretação, o ícone é um fenómeno que funda em nós a capacidade de nos apercebermos da existência de semelhanças. Esta capacidade anterior que nos possibilita a apreensão do que é semelhante pode subdividir-se, por sua vez, em diagramas (relações entre elementos, através do reconhecimento proporcional das partes); em metáforas (relações entre elementos, através do reconhecimento de similaridades entre constituintes essenciais das partes) e, por último, em imagens (relação entre elementos, criada pela duplicata das aparências do real, através de modelos). Isto quer dizer que o reconhecimento de um gráfico ou de alguns traços rupestres (diagrama), do verso de Camões - “Amor é fogo que arde sem se ver” (metáfora) e, por fim, da imagem fotográfica ou mental de um pinguim só se tornam possíveis porque, enquanto seres humanos, estaremos munidos de uma capacidade designada  por icónica que é anterior.

A definição de ícone poderá, portanto, assumir duas interpertações: uma cognitiva, vista na sua natureza pura, primária, como potencialidade de “likeness” e uma, relativa ao ser, que C.Peirce traduziu como sendo a disponibilidade, também potencial, de qualquer coisa a “incastrasi” noutra coisa. Quando falamos de capacidade anterior, falamos de tudo o que nos povoa sem que, no momento, esteja activo ou seja actual; por outras palavras, ao referirmo-nos a capacidade anterior, referimo-nos, claramente e tão só, a tudo o que é potencial em nós, seres humanos. Este conjunto de potenciais corresponde ao que C.Peirce designa por “firstness”, do mesmo modo que tudo o que é actual e está agora, neste momento, a ocorrer, corresponde ao que o autor designa por “secondness”.

No entanto, à medida que a espécie humana acumulou experiência e conhecimento da natureza e de si própria, verificou que as ocorrências actuais se repetem e podem até, naturalmente, tornar-se previsíveis. Esta capacidade de prever eventos - a maior parte das vezes de modo involuntário - atavés do reconhecimento de modelos, designa C. Peirce por “thirdness”. Deste modo, podemos dizer que o ícone é uma modalidade potencial - portanto, da “firstness” - que nos permite reconhecer a semelhança, enquanto que, por outro lado, a imagem só poderá existir na medida em que é actual e presente, na nossa consciência perceptiva, ou seja, quando corresponde à “secondness”.

Por outras palavras, tentando sintetizar, uma imagem apenas existe quando está diante de nós, na sua actualidade existencial e, por outro lado, na medida em que comporte elementos reconhecíveis - devedores de modelos anteriores já experimentados - através de uma complexa duplicata das aparências do real. Por exemplo, se olho para uma pessoa, ou se vejo, num filme, árvores, céu e estrelas, enquadrados em linhas e planos adquiridos (codificados), sei reconhecer o que vejo - ainda que não ponha intelectualmente essa questão - justamente porque existem modelos culturais que o possibilitam. Na obra de U.Eco do passado Outono, o autor chega a provar o modo como Montezuma percepcionou um cavalo, pela primeira vez, ou como é que os ocidentais, em 1799, encararam, também pela primeira vez, um ornitorinco; pela descrição, minuciosa e apurada, verifica-se, de facto, que, face à inexistência de prévios modelos de experiência que os enquadrassem imageticamente, quer o cavalo para os índios, quer o ornitorinco para os ingleses acabariam por ser descritos, através da sua inscrição noutros modelos contíguos existentes e possíveis. Curioso é o facto de esta interiorização perceptiva de objectos, até então desconhecidos, por via da convocação de modelos tidos como os mais ajustados e próximos, acabar por ser consequência de um inevitável estabelecimento de semelhanças que percorre o homem; ou melhor ainda: que é característica essencial do homem.

De facto, antes de os protótipos da experiência acumulada e da categorização actuarem, ou seja, antes de se dizer que o sol é um astro, ou um planeta do género tal e tal; ou um corpo imaterial que gira em torno da terra ou da lua ou de si próprio, - já lhe pré-existia a percepção de um mero e simples corpo luminoso, de forma circular, que se move no céu, constituindo-se como objecto familiar, antes mesmo de se converter em objecto liguística e retoricamente designado. Esta evidência é, ao fim e ao cabo, a mãe do momento icónico, isto é, - o reconhecimento autêntico, anterior, verdadeiro, íntimo, não baseado ainda em fundamentos adquiridos, e identificando-se com algo que está ali como é -, mas indescritível ainda no discurso humano.

Conclusão: a imagem pode ser pensada, de início, como uma forma de reconhecimento actual, baseada quer na aptidão potencial, anterior e icónica de estabelecer semelhanças, quer nos modelos com que a reprodução aparente do real é interpretada. Extrapolações paralelas poderíamos estabelecer para o caso do diagrama e da metáfora - igualmente sub-divisões dos ícones, segundo C.Peirce - mas não é esse o objecto com que, hoje e aqui, nos ocupamos

 

2. Reflexões a partir do mesma fonte, para discussão subsequente:

 

a). O ícone peirceano é o fenómeno que funda cada possível juízo de semelhança.

 

O ícone não é o mesmo que uma imagem mental (que reproduz um objecto), pois, no caso da imagem, ter-se-ia já de abstrair, entre muitas imagens particulares, uma geral (como de muitos pássaros particulares se abstrai a ideia geral de pássaro). A imagem mental funda-se no iconismo e é icónica porque se baseia na semelhança, mas opera sempre a partir de modelos, a partir das quais reproduz (secondness/thirdness). Por seu lado, o iconismo é sempre uma qualidade da firstness.

 

b)A definição de ícone pode ter duas interpertações: uma cognitiva, vista na sua natureza pura, primária, como “likeness” e uma, relativa ao ser, que Peirce traduziu como a disponibilidade natural de qualquer coisa a “incastrasi” noutra coisa. Há na firstness esta capacidade de iconismo primário, segundo a qual transportamos em nós, avant la lettre, a metáfora do decalque, ou da “impressão química”, como forma pura de reconhecimento do mundo. É isso que subjaz a todas as formas específicas de ícones, sejam diagramas, metáforas ou, claro está, imagens.

 

c) Para Kant (Crítica da Razão Pura), o “schema” não é uma imagem, porque a imagem é um produto da imaginação reprodutiva (secondness/thirdness). É, sim, uma figuração de conceitos sensíveis - também de figuras no espaço -, produto da capacidade pura a priori de imaginar. Tal como o “bild” wittgensteiniano que se entende como uma proposição que detém a mesma forma do facto que representa, no sentido em que se fala de relação icónica no caso de uma fórmula algébrica. Isto quer dizer que, tal como no iconismo peirceano, já kant criara estruturas  fundadoras de similitude (a imaginação de algo que é símil de ouro algo).

 

d) Em Hjelmslev, postula-se a segmentação de um continuum que se segmenta, a nível dos conteúdos e de expressões, nas diversas comunidades e experiências culturais respectivas. Mas antes de os protótipos da experiência acumulada e da categorização actuarem, ou seja, antes de se dizer que o sol é um astro, ou um planeta do género tal e tal; ou um corpo imaterial que gira em torno da terra ou da lua ou de si próprio, - já lhe pré-existia a percepção de um corpo luminoso de forma circular que se move no céu, constitundo-se como objecto familiar antes de objecto designado. Esta evidência é mãe do momento icónico: reconhecimento autêntico, não baseado ainda em fundamentos anteiores, base de que algo está ali como é -, mas indescritível ainda no discurso humano.

 

e) O momento icónico estabelece que tudo parte de uma evidência pura, da qual se necessita dar conta. Esta evidência é qualisígnica e, de algum modo, emana do objecto. O iconismo, para Peirce, vchega mesmo a constiutir-se como uma prova realística da existência de um objecto. Mas, ao supor que qualquer coisa existe, enquanto tal, na secondness, é preciso já entender que ela surge envolvida numa actualidade onde há sintaxe, relação com outras coisas, “ground” a afectá-la (construindo-a como selecção de características...), embora, haja ainda em si, uma memória do seu iconismo primário (enquanto essência do reconhecimento).

 

f) “Virei a cara e dei ocasionalmente com qualquer coisa na minha frente; sem intenção, continuei a mover a cabeça e reparei que observava uma camisa de seda amarela ao lado de uma manta de linho verde. Quando, sem dar por isso, estabeleci o contraste entre ambas, concluí que me estava de facto a concentrar”. Saltei, deste modo, do iconismo primário até me integrar num juízo perceptivo; como se entre a firstness e a secondness existisse um vago mundo de sensações. Mas, de qualquer modo, sensações visuais.

 

g)A imagem, mesmo a mental, é, pois, dada no quadro de um juízo perceptivo que se baseia sempre num iconismo primário.