Sob o Rosto da Europa

 

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

    

  

                Um signo ou, se se preferir, uma actividade ou manifestação que é comunicável no quotidiano, é sempre significada através do seu uso (conforme as circunstâncias, a informação adquirida e as codificações da comunidade).  A interpretação de signos é, pois, não uma panaceia para estudiosos, mas sim uma prática do dia a dia; uma prática de cada momento da vida. Diante de alguém que me olha, eu sei que esse olhar não é apenas esse olhar; ou seja, eu sei (ainda que ambiguamente) que esse olhar significa algo, porque está ali, naquele momento preciso, em vez de qualquer outra coisa (que pode ser uma ameaça, uma interrogação, uma atitude de expectativa ou de sedução, etc.). É por isso que tudo pode ser encarado como signo, desde que o intérprete (cada um de nós) o tome como tal, mesmo se de modo não consciente (o que normalmente  acontece quase sempre).

            A semiótica é a área do saber que estuda os signos. Embora a sua história se perca nos confins da Antiguidade, a verdade é que foi, mais ou menos, há apenas um século, que, nos Estados Unidos (com C.S.Peirce) e na Suiça (com F.de Saussure), este novo saber se instituiu autonomamente como tal. A sua evolução até aos dias de hoje é complexa e variada, tendo-se cruzado episodicamente com outras ciências (desde a filosofia à lógica; desde a linguística à cibernética), mas, apesar das diversas tendências que tem percorrido, tornou-se na contemporaneidade numa peça essencial para entender este nosso mundo da informação, do excesso de oferta, da permuta de imaginários, numa palavra: da comunicação “transbordante” (para utilizar a feliz expressão de H.-P. Jeudy).

            Geralmente, os estudos semióticos analisam linguagens particulares, sejam de ordem estética (pintura, arquitectura, literatura, cinema ou dança), sejam de ordem lógica (modelos matemáticos, informáticos, códigos de estrada ou alfabetos), sejam de ordem social (comunicação gestual, ritos, modas ou publicidade). Cada uma destas múltiplas linguagens, compostas por signos determináveis que se actualizam (expressões e conteúdos associados a cores, movimentos de corpo, números, pensamentos, palavras, emblemas, imagens, etc), produzem mensagens que quotidianamente trocamos ou comunicamos. É, no entanto, o facto de - a cada momento - interiorizarmos ou dominarmos os mais diversos códigos (ou seja, corpos de regras de valor mais ou menos definido que nos são conferidos pela nossa “comunidade” (A. Mchoul) e, também, em termos mais vastos, pela nossa “cultura” (U.Eco)) que nos permite interpretar as inúmeras mensagens que - também a cada momento - nos chegam (e que, quase instantaneamente, descodificamos).

            É um sub-título do presente ensaio que me obriga a tecer estas breves considerações muito generalistas, pois, ainda hoje em dia, o termo “Semiótica” continua a suscitar questões, querelas, desconfianças. Nada melhor, portanto, do que desmistificar, tentando esclarecer, mesmo se de forma sucinta. Mais estranho pode ainda parecer  a perífrase que estabalece o referido sub-título, na sua totalidade: “Semiótica da cultura”. Digamos que, em semiótica, apesar da existência de diferentes acepções, a cultura é entendida como um sistema particular de unidades semânticas que, de uma determinada forma, segmenta todo o possível universo perceptível, pensável e imaginário da espécie humana. Isto quer dizer que cada cultura organiza os conteúdos que comunica através de pertinências que, apesar da globalização nascente, as diferenciam de outras (e tal reflecte-se nas linguagens que utiliza, nas semantizações que privilegia, no tipo de mensagens que transaciona e até, de certo modo, nos média com que as ditas mensagens se produzem e, sobretudo, se veiculam).

            Neste contexto, a “Semiótica da cultura” deverá ser entendida como um estudo polifórmico que avança por tentativas e conjecturas, na medida em que selecciona signos particulares por abdução (inferência realizada a partir de hipóteses não aleatórias e, portanto, sujeitas a condições). Como C.S.Peirce referiu, a abdução é a único método capaz “de apresentar uma ideia nova, pois a indução nada faz além de determinar um valor, e a dedução meramente desenvolve as consequências necessárias de uma hipótese pura” (1990:220). Os signos particulares com que (por abdução) tabalharemos no nosso ensaio provêm, assim, das mais variadas linguagens (literatura, ritos, paisagem, história, arquitectura, mito, música, artesanato, etc), embora se concentrem todos numa dado cronotopo, isto é, são oriundos de um determinado espaço e tempo  (vistos, não como o locus de uma grande narrativa - ou história - que liga a origem a um propósito qualquer situado no futuro, mas antes como um conjunto de continuidades ou isotopias que pretendemos sublinhar). Como J.-L.Nancy referiu : “History (...) does not belong primarily to time, nor to succession, nor to causalty, but to community, or to being-in-common”. É esta ideia de ser-em-comum, mais do que uma equívova ideia de região ou de história, que melhor define a amplitude dos conteúdos que analisaremos e que, como corpus do nosso ensaio, corresponde às topografias do sul de Portugal (Lezírias, Região de Lisboa, Alentejo e Algarve).

A semiótica da cultura - enquanto entendimento de mecanismos de comunicação e significação reguladores de uma auto-imagem colectiva - terá, provavelmente, uma das suas origens nas descrições de Heraclito dos oráculos de Delfos: “the lord, who has the oracle in Delphi, neither discloses nor hides his thought, but reveals it through signs” (Plutarco, cit. in M.Herzfeld,1982:169). Para os gregos, com efeito, não consultar antecipadamente o oráculo profético era tido como causa para futuros desastres. Aliás não se conhecem narrativas que descrevam uma negligência do oráculo em si; pelo contrário é sempre nos mortais - e jamais nos Deuses - que recaía a responsabilidade do que, na vida, eventualmente não corresse bem. Como M.Herzfeld referiu, “presumption of oracular wisdom is thus a fixed feature (..), a self-fulfilling prophecy in its own right” (ibid:172). Esta ideia, segundo a qual um propósito transcendente anima o próprio curso do tempo (e da história - muitas das colónias gregas foram fundadas de acordo com um comando oracular), prolongando o presente de acordo com um sopro das origens, encontramo-la também no profetismo judaico. De facto, a grande recompilação textual-profética que se dá no período pós-exílico (após 560 A.C.) é entendido como reparador de negligências anteriores face à palavra profeticamente revelada (L.Carmelo,1995). Também aqui a história adquire um sentido, no seio do qual o homem se debate com a “self-fulfilling prophecy” que M.Herzfeld caracteriza como um problema crucial “for the semiotics of  culture” (ibid.: 172).

Num caso e noutro, toda a cultura no seu todo, bem como as comunidades particulares nos seus micro-cosmos, dependiam, ou melhor, conviviam com um saber interpretativo de cariz eminentemente semiótico. O presente ensaio deixa ver que, nas sociedades actuais, o grau das manifestações, por um lado, e o das suas significações profundas, por outro (inseridos numa respiração ainda comum nos casos acima descritos), se terão aparentemente afastado - ou até fracturado  - o que reforça a necessidade de uma análise transversal e abdutiva (e não exaustivamente histórica, como vimos) do “being-in-common” concreto que nos propomos observar.

            Entendemos, deste modo, que a semiótica pode também explorar, no seu conjunto, esse grande organigrama criador de significações que é uma cultura. Entendemos igualmente não dever fechar ou limitar o nível de continuidades que formos concluindo, mas antes deixar em aberto o espaço interpretativo que um campo de estudo tão vasto naturalmente sugere. Privilegiaremos ainda uma lógica de exploração metonímica (por contiguidade) das realidades sígnicas que fomos observando, não deixando que, com isso, o texto do nosso ensaio desvirtue características de natureza conotativa e, portanto, poéticas - normais numa abordagem que se quer transversal, ou seja, capaz de atravessar a espessura do ser-em-comum acima descrito, aproximando as manifestações aos seus eixos significativos profundos (mas sem jamais criar matrizes ou ordenações lógicas que, de algum modo, os orientassem). 

            Por fim, resta-nos uma palavra para o título e último dos sub-títulos. O título retoma a famosa metáfora pessoana de Portugal enquanto “rosto da Europa”. Estranhamente pouco utilizada nos tempos que correm (agora que a Europa se transformou no culminar da própria história, senão já na sua suspensão), a dita metáfora é sobretudo a figuração feliz de um perfil saliente, através do qual a Europa (e porque não a Eurásia ?) se despediria do mundo, ou seja, do mar e das lendas que ele prolonga (Atlântida e outras). Este olhar inebriado para o gravitas do fim do mundo - esse outro vestido de águas em toda a linha do horizonte (território tão camoniano e, mais uma vez, pessoano) - é, justamente, um dos pontos nevrálgicos focados neste ensaio.

“Sob o rosto do Europa”, enquanto título, define, portanto, o cronotopo meridional português que este ensaio analisa. Por sob o rosto, ou, se se quiser, na parte de baixo desse rosto, nesse lugar onde a boca (a voz) se torna num dos seus elementos de ouro. O sub-título “Antologia de textos sobre o sul”, por seu turno, refere, como um mero índice, a existência de uma série de textos escolhidos criteriosamente e que, no seu todo, legitimam a abordagem, o método e as conclusões sempre provisórias a que fomos chegando ao longo deste breve ensaio.

            Esperemos, pois, que “Sob o rosto do mundo” constitua um novo ponto de partida para discussões posteriores sobre o sul, a silhueta de uma semiótica da cultura, a ideia de ser-em-comum, ou ainda sobre toda a antropologia sobretudo literária que lhe é adjacente.

 

                                                Bibiografia

A.A. V.V.

Ecai´96 workshop on abductive and inductive reasoning

in Semiotics around the world, IASS-AIS Bulletin, Wien,1996

 

Carmelo, Luís

La représentation du réel...

Un.Utrecht, Utrecht,1995.

 

Eco, Umberto

O signo

Presença, Lisboa,1981

 

Herzfeld, Michael

Divining the past in

Semiotica, N.38,1982:169-172.

 

Jeudy, Henry-Pierre

A sociedade transbordante

Séc.XXI, Lisboa, 1995.

 

McHoul, Alec

Semiotic Investigations

U.Nebrasca Press,1996.

 

Nancy, Jean-Luc

Finite History in

The States of History, Indiana U.P.,1993:149-172.

 

Peirce, Charles Sanders

Semiótica

Perspectiva, S.Paulo, 1990.