José M. Rodrigues ou a apurada cristalização da aura

 

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

 

Viveu na mesma casa do Eça, em Évora. Adora o flamenco, conhece como ninguém a luz de Vermeer e fascina-o a palavra ‘perdição’. Não conhece grandes diferenças entre ele, a luz e a natureza. O retrato, as curvas de Gaudi, os sabores da vida, as viagens e os imensos blocos de granito do Alentejo são provas da sua fidelidade ao sonho. Ganhou o Prémio Pessoa, com o mesmo mérito com que, bem antes, fotografara as águas do Amstel ou o Oceano de São Tomé e Príncipe. Este esmero do olhar, filtrado pelo crivo simples, livre e espontâneo de um destino singular, confunde-se com o trajecto de toda uma vida. É o José M. Rodrigues, fotógrafo galardoado, guardador de imagens e de augúrios. Mestre em cristais, auras e outros ofícios.

 

            É evidente que a fotografia não depende apenas do determinismo da luz com que, por breves instantes, terá convivido. Por razões que se prendem com a nossa própria capacidade de estabelecer semelhanças, a fotografia também nos arrasta para um abismo de associações, duplos e fantasmas que devoramos e sobretudo imaginamos. Nesse plasmar de nós próprios, no seio do qual a fotografia dita as suas secretas leis, a imagem continua, apesar de tudo, a resistir a explicações, a condicionamentos e acaba até por manter um grau de magia e uma aura revelatória quase insuperáveis. O antiquíssimo tratamento da luz que se ocupou, ao longo do tempo, de mil cosmogonias, da caverna platónica, da iniciação apocalíptica ou ainda dos inventos ópticos de seiscentos, haveria de encontar, nos primeiros decénios do século XIX, este inesperado gene da fotografia como vocação surprema de um profundo encantamento humano. Talvez resida aqui o segredo de uma velha história de que José M. Rodrigues, entre outros grandes fotógrafos do século XX, é actor por excelência.

É, com efeito, o tratamento subtil e, em parte, manual da luz, realizado entre o pulsar livre e intuitivo do olhar e o longo trabalho alquímico da câmara escura, que consubstancia, em última análise, o milagre fotográfico. Milagre ou arte - adivinhada, ao longo da modernidade, como transfiguração, estanhamento ou desnudar do ser das coisas -, a fotografia haveria de impor-se, progressivamente, no último século e meio, como um dos raros discursos que associa a espiritualidade (ou a metafísica) de um tempo e espaço irreais ao testemunho objectivado e substancializado do agir humano. A recente atribuição do Prémio Fernando Pessoa a José M. Rodrigues, em parceria com Manuel Alegre, vem não apenas sublinhar a importância desta arte fotográfica entre nós, no termo do século, como vem sobretudo reconhecer a importância de um trabalho filigrânico, porventura pouco conhecido, mas muito persistente e sagaz de um grande fotógrafo. É grande o mérito do júri, de facto, pois teria sido mais fácil premiar quem geralmente se ostenta ou vangloria constantemente no nosso pequeno reino de avidez, em vez de dar a atenção merecida ao labor, às vezes incógnito e difícil, de quem, por visceral amor à arte, criou a sua própria vida e imaginação ao sabor de uma utopia que é fotográfica. 

Por sortilégios do destino, tenho o privilégio de ter acompanhado (e de continuar a acompanhar) com profunda amizade grande parte da vida do José M. Rodrigues. Não apenas porque comungámos as mesmas origens, como, durante anos, nos reencontrámos em Amesterdão, em viagens, em desafios comuns e ainda... porque regressámos a Portugal em altura idêntica e para o mesmo lugar. Neste artigo, mais do que acompanhar e traduzir ensaisticamente a sua arte, tarefa que me foi recorrente ao longo de anos, desejo sobretudo evocar alguns passos essenciais da nossa convivência artística que, com toda a certeza, contribuirão para um melhor conhecimento do homem e do fotógrafo agora justamente galardoado com o Prémio Pessoa 1999.

            Quando, em inícios de Maio de 1972, aportei em Amesterdão, dirigi-me para a única morada que tinha comigo. Ao fim dessa tarde chuvosa, acabei por descobrir o exíguo local a que, sem saber, me destinava. Tratava-se de um belo barco, ancorado nas águas do Prinsengracht (Canal dos Príncipes), em frente do número 756. De dentro da nave, depois de abrir uma das vigias com ar admirado, ressurgiu o José M. Rodrigues com longos cabelos à Frank Zappa, repondo uma imagem bem diversa da que tinha presente dos tempos uterinos de Évora. Por ele, havia, entretanto, já passado o caudal do Maio de 1968, os desvarios cinematográficos parisienses e as várias adaptações a um tempo europeu que era, na altura, de voragem, mudança e inquietação. Tudo isso lhe ocupava então o rosto, o olhar e a secreta fúria. Contudo, quando me conduziu a uma das casas abandonadas da época (a pousada onde, aliás, fiquei alojado), verifiquei que, no último piso, uma recôndita câmara escura propagava já a sua insistente procura da pedra filosofal. Nesse recanto de canais, à beira da Utrechtstraat, várias fotografias do José M. Rodrigues descreveriam, à época, cenas exaltantes e eufóricas, entre o êxtase, o delírio e o mergulho a nu nas águas gélidas dos Países Baixos, ainda de sabor à contra-cultura dos Provos.

            Foi, no entanto, após o interregno revolucionário português, sobretudo durante toda a década de 80, que mantivémos um contacto estreito e duradouro. Fomos vizinhos, colegas de atelier, de performance, de edição, de conferências, para além de testemunhas das andanças e diatribes de uma Amesterdão que parecia reacordar, após a relativa sonolência dos anos 70. As margens do Rio Amstel foram as auspiciosas anfitriãs deste período. O registo fotográfico do José M. Rodrigues ilustra os lugares por excelência desta topografia que oscilava entre a Academia de Arquitectura, na confluência do rio com a rede urbana de canais, o café Ijsbreker (Quebra-gelos) - local ligado à música, mas também a exposições e tertúlias artísticas de Amesterdão - e o número 18, em frente ao café, onde o fotógrafo teve o seu penúltimo e grande atelier, antes de regressar a Portugal, em 1993. No início dos anos oitenta, os passeios de bicicleta para o lado Sul do rio Amstel, saindo da cidade até à famosa estátua de Rembrandt, eram sempre motivo de digressão sobre o papel da fotografia. Sobretudo quando, de uma camioneta turística, saía um endiabrado bando de japoneses para fotografar tudo o que se movesse no espaço. De regresso, sempre em luta feérica contra o tempo, tantas vezes numa audácia algo angustiada, o José M. Rodrigues entrava a correr na câmara escura e desdobrava o espírito até à détente total. Durante muitas horas, entre cerveja negra e muito fumo, comunguei dessa segunda vida do revelador-fotógrafo que é a vida na câmara-escura, local onde o ruído breve dos banhos, a luz avermelhada e as pinças que suspendiam as provas em papel configuravam uma verdadeira cenografia deslumbrada. Era nesse ambiente de iconostase e aparição que coisas fundamentais da vida de então eram decididas. Até mesmo... o planeamento de uma simples fotografia.

            Numa manhã de Outono, talvez de 1983, o José M. Rodrigues partiu comigo e com um pintor amigo, o João Serrano, em direcção à costa do Mar do Norte. A máquina foi colocada sobre o velho tripé, alvoraçou os pássaros e apontou para o limiar de uma das dunas. Em face, de modo ingénuo, uma nuvem abraçava o horizonte e o dique, por trás, escalando pelo areal, cobria a superfície agitada do mar. Quando o sol se elevou na primeira madrugada, o fotógrafo orientou a objectiva e pediu apenas a um de nós que premisse o botão. Como se quisesse chegar ao céu ou tocar no súbito azul da esfera, o José M. Rodrigues correu a voar diante desse súbito clic mágico e assim acabaria por se imobilizar, a si mesmo, numa das suas mais emblemáticas fotografias.

Por essa altura, a galeria Perspektief e a revista homónima protagonizavam uma autêntica revolução fotográfica na Holanda. Roterdão era o epicentro da nova vanguarda e o José M. Rodrigues um dos seus entusiastas fundadores. Na exposição que aí realizou em 1982, aquando da apresentação do premiado projecto ‘Ik en de tijd’ (Eu e o tempo), a fotografia de José M. Rodrigues expandir-se-ia através de novos suportes e, durante a vernissage, a aventura conceptual acabaria mesmo por se fundir com a performance. A operação haveria de relacionar rituais do corpo com o peso da tradição calvinista, experiência que, durante o ciclo performativo Holos, realizado sazonalmente na galeria Makkon de Amesterdão, entre 1984 e 1985, José M. Rodrigues desenvolveu. Lembro-me de um desses actings em que o artista desceu por uma corda, de alto a baixo, percorrendo toda a fachada do edifício arte nova da galeria (no clássico Harlemedijk) e, depois de deitado no passeio, inerte, acabou por partilhar o espaço com um imenso cardume de enguias; noutra dessas performances, também do ciclo Holos, José M. Rodrigues trocou o banho revelatório por um duche (que saiu de água fria por engano meu) em plena galeria de arte, tendo alguns elementos ligados à arte do voo (asas e penas) completado a natureza do acto. Pode dizer-se que a disputa do tempo, o gradativo percurso conceptual e, por fim, a objectualização do corpo definiriam, em muito, esta etapa de meados dos anos oitenta do trabalho José M. Rodrigues.

Talvez a obsessão pela liquidez, enquanto metáfora profunda da criação, possa corresponder a uma síntese mais adequada de toda esta fase. De facto, o projecto ‘Eu e o tempo’ tinha já sido uma autêntica hidráulica imaginária, do mesmo modo que o mito do holandês voador do Mar do Norte e as variadas performances e retratos sempre se confrontaram com as mesmas formas liquefeitas e liquescidas. Em 1985, partimos para Paris (acompanhados pelo pintor Joaquim Tavares) com o intuito de realizarmos uma exposição colectiva na Galeria Diagonale. Aí, José M. Rodrigues reutilizou o seu graal de tansparências que colocou diante de alguns dos retratos expostos, mas em vez de o encher com água, decidiu antes preenchê-lo com a cor púrpura do vinho (‘O nadador revelado’, 1982). O gesto era irónico e associava-se ao país do vinho e - também - do prazer. No dia seguinte, ainda em Paris (no Trou Noire), e, mais tarde, durante algumas repetições em Amesterdão, estreámos o espectáculo ‘Lui, il tremble’. Tratava-se de uma recriação plástica de textos de Lorca, Paul van Ostaaien, Pessoa, Virginia Woolf e Proust. Enquanto os actores avançavam e recuavam, ao longo da sala, ou ascediam até aos emaranhados da cena, José M. Rodrigues descobria um suporte projectivo que punha em movimento as suas próprias imagens, no que terá sido uma prefiguração engenhosa da arte tecnológica e multimédia dos nossos dias.

Contudo, o fazer artístico do José M. Rodrigues sempre se misturou com a vida, pura e lúdica. Nunca o fotógrafo foi um Artaud auto-flagelado ou um poeta doentio e crispado no contacto com os materiais e a boca de cena do mundo. Pelo contrário, José M. Rodrigues sempre sorriu com a insistente máquina na mão e sempre soube perceber, desde os tempos originais da Comenda de Évora, que a luz e os elementos depurados da natureza são a chave primeira deste olhar construído e alquímico que é a fotografia. A poética vegetal (ou a antropormmização delicada da natureza), o retrato (com apego especial na pessoa dos amigos), as cenas de “porta entreaberta” e brilho (na já aludida tradição de Vermeer) e, mais tarde, já no final dos anos oitenta, a redescoberta soberba do Alentejo (por exemplo, nas minas de S.Domingos) constituem figurinos vivos deste saborear intrínseco de uma liberdade natural e anterior que é um dos dotes de José M. Rodrigues. Quando, em 1985, entrevistei José M. Rodrigues para a Staadtelevisie de Amesterdão (filme/ reportagem de António Rosa Mansinho, ‘Nite zo maar een Kikge’), o fotógrafo referir-se-ia à domesticação da natureza como uma banalidade das sociedades urbanas e, desse modo, almejava já, de algum modo, a avassaladora nostalgia e também paixão que o viria a transfigurar, em breve, na direcção de Portugal. A participação nos Encontros de fotografia de Coimbra, as imagens das suas sombras sobre os túmulos de Conímbrica e os sons da Páscoa de Monsaraz de 1986 por ele gravados foram, ao fim e ao cabo, sinais fortes da nova demanda.

No final dos anos oitenta, entre viagens a Portugal e uma certa inquietação nos horizontes que a vida adivinhava, José M. Rodrigues passeia-se com uma máquina de filmar, aliás bastante artefactual, pelas áleas do Oosterpark (Parque Oriental de Amesterdão). São tempos de reinvenção que partilha com um curso que tira na NOS (televisão estatal holandesa). No primeiro semestre de 1989, escreve-me uma carta em que proclama que, a partir dali, passaria a dar tanta atenção à fotografia como ao cinema na sua própria obra. A montagem parecia agora voltar a ter sentido no corredor móvel das imagens, aliás como já havia ocorrido nos idos de 60, durante a nova vaga parisiense do próprio José M. Rodrigues. No entanto, o rodopiar, o movimento, a vertigem era outra. A urgência que motivava o fotógrafo haveria antes de vir a desaguar num autêntico sorvedouro criativo, mas sempre centrado na fotografia e, em primeiro lugar, no desvelar da sua topografia original. José M. Rodrigues fotografa então Évora, Monsaraz, Grândola, Castro Verde, Sobral da Adiça; reinventa as trovoadas, as rochas, os cemitérios erguidos em ermos longínquos da planície; participa num levantamento sistemático da realidade meridional portuguesa em jornais, revistas, encomendas e, embora sem grandes recompensas materiais e outras, continua, perdura e insiste. São os inícios dos anos noventa; é a despedida da Holanda e é, por fim, o imenso inconformismo transfigurado no sangue taurino com que parece revelar as suas novas e corrosivas imagens.

Subitamente, José M. Rodrigues já não é apenas um fotógrafo de estúdio, de metamorfose natural, de arte conceptual ou performativa, agente de paródia face a géneros e percursos; agora, José M. Rodrigues é também um antropólogo artista, um desvirgador de rebanhos que dionisiacamente guarda, um reporter da imaginação ocultada que antevê, em sigilo total, as grandes viagens além-mar que esta nova procura do seu graal mais profundo suscita e implica. Apesar deste fulgor criativo, a ponte entre finais de oitenta e a cristalização de 1992-3 é difícil e, às vezes, mesmo penosa para José M. Rodrigues. Só a partir de 1994, as encomendas mais visíveis e menos locais aparecem com renovada força: são ainda os Encontros de fotografia de Coimbra, o projecto do Chiado de Álvaro Siza (na continuidade do seu trabalho na Academia de Arquitectura de Amesterdão) e, já em 1995, os trabalhos na Alfândega Nova do Porto, para além de exposições na Europa; de facto, desde 1984 que José M. Rodrigues não aparecia com tanto fôlego e amplitude fora do resguardo avermelhado da câmara-escura. É também a partir de 1994 que a crítica nacional parece sistematicamente descobrir a real valia da arte deste fotógrafo que, entre altos e baixos, discórdias e acertos, nunca abandona um dos seus fetiches essenciais: a reprodução da fotografia de Manuel Alvarez Bravo onde desliza o corpo jovem e nu de uma mulher-menina, atado com algumas ligaduras e rodeado pela luz de cactos de mescalina.

Na segunda metade da década de noventa, José M. Rodrigues constrói o seu monte alentejano, em forma de zigurate assírio, e equipa-o com uma câmara escura refinada. No entanto, para além do microcosmos edificado, viaja, cruza continentes, redescobre o sentido da alteridade e do reecontro. S.Tomé e Príncipe e Cabo Verde constituem antologias maravilhadas (e der perdição) do que havia sido, no início da década, a emergente fotogenia da luz e das faces várias do Alentejo. A par de novos livros e de uma nova e merecida difusão da sua obra (Centro de arte de S. João da Madeira, 1987; O prazer das coisas, Ether/Oeiras,1988; etc), José M. Rodrigues jamais dividirá esquematicamente a sua obra em gavetas estanques; pelo contrário, o sincretismo entre especialidades parece adensar-se e, por paradoxo, até especializar-se na sua múltipla complexidade. É o trabalho antropológico (As tabernas, Câmara Municipal de Grândola, 1998); é o trabalho conceptual e simbólico (Do tamanho do Mundo, Ataegina, Évora,1998); é a obra compósita de postais (Câmara Municipal de Montemor-o-Novo,1997); é a produção de recorte arquitectónico (Igreja de Santa Maria de Siza Vieira, Marco, 1996); são os retratos, a efabulação da paisagem, a abstracção metafísica, a lucubração da viagem. A grande retrospectiva da sua obra acabaria por surgir apenas em Janeiro de 1999, em Lisboa, na Culturgest, e teve como comissário Jorge Calado que, através de um trabalho notável de selecção e apuramento temático, acabaria por sublinhar, na abertura, este raro poder de síntese e, simultaneamente, de domínio das mais diversas modalidades e tradições fotográficas.

Escapando à ordem mundana e temporal, ao mundo narrativo dos episódios contáveis e dos seus desenganos, às  hipocrisias e unanimismos súbitos, a verdade é que José M.Rodrigues sempre foi, por trás da sua luminosa arte, um homem sobretudo hedonista e livre no curso que sempre deu ao desejo intrínseco de fotografar e viver. Tal como Luc Ferry ou Michel Onfray - filósofos próximos da chamada ‘Pensée 98’ - que afirmam ser essencial saber, ao fim e ao cabo, o que é uma vida boa, “réussie”, preenchida... e como lhe corresponder, também a pessoa mais profunda de José M. Rodrigues sempre perseguiu essa mesma inquieta meta de uma felicidade que sempre augurou. Por isso mesmo, há momentos de rara amizade que, neste momento evocativo, me parecem mais vitais do que a própria história plástico-formal do singular construtor de imagens. Refiro-me aos encontros nos jardins do Museu de Arte Moderna de Amesterdão (o Stedelijk), às audições da Paixão de Mateus no Concertgebouw e às viagens à Frísia e a Haia (onde, de vez em quando, o José M. Rodrigues parava o carro para fotografar um imprevisto e deslumbrado alinhamento de árvores); refiro-me aos serões em que recebia amigos dos quatro cantos do mundo, apenas para redistribuir o prazer do convívio, a gastronomia cromática, um filme escolhido a dedo, ou o som de um violoncelo, o Jazz.    

No meu antepenúltimo romance (Sempre Noiva, 1996) parti da silhueta concreta de dois amigos meus para criar outros tantos personagens. Foi a única vez que o fiz até hoje e, como seria de esperar, o José M. Rodrigues foi um desses amigos. O personagem em causa, um circunspecto fotógrafo de regresso a Portugal, recebeu o nome de Felício, por escolha aliás do próprio José M. Rodrigues, devido à ideia de luz que se lhe associa. Para terminar, deixo aqui um brevíssimo extracto do romance, onde, talvez por empatia, se pressente reflectido o ambiente de ante-câmara solitária que, ao longo dos anos, acabou por ser o lugar mais duradouro, interiorizado e quase monástico do José M. Rodrigues:

“...Dois relógios entretêm a cadência de toda esta operação, para que Felício nunca se esqueça de regularmente agitar as tinas. Só assim, a prata há-de receber em todos os pontos do papel algum do revelador ainda vivo e fresco. Por trás desta pausada ablução, ouve-se o constante correr de águas, qual fonte a meio de um desejo demorado. E porque qualquer liturgia tem sempre um fim, o papel salta agora para o banho de paragem e, um minuto depois, para o fixador onde a prata é finalmente absorvida. É nesta última tina, após três minutos de ansiedade, que se consumará a alquimia da imagem. Claro que o nosso fotógrafo, após a derradeira lavagem e secagem - de corda em corda, ao longo da sala -, anda se irá sentar à janela para tantar iludir a mestria dos retoques de Disderi”(...)”Sentas-te no sofá e deixas a janela aberta. Fumarás o último cigarro da noite. E descobres finalmente que hás-de regressar. À cidade misteriosa e branca. Nem que seja para repetir essa mesma fotografia”.