A música dos signos:

Da lógica de John Deely à semiose de António Damásio


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Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

"Ela (a música) não nos confiava nem o tempo nem o eterno, mas produzia o movimento; ela não afirmava nem o vivido nem o conceito, mas constituía o acto de razão sensível"

G.Deleuze (ao evocar François Châtelet)[1]

1- Introdução 

J.Deely referiu-se, há alguns anos, à consciência do uso sígnico como um "milagre" que deve ter ocorrido, pela primeira vez, "no momento em que o homem, para além de usar gestos naturais para exprimir fome, raiva ou medo, terá também captado a noção de que este gesto possuía a virtude de significar"(1995:141). As possibilidades de ilimitada selecção e interpretação de interfaces capazes de ligar conceitos empíricos, dados do recordar, ou objectos do mundo através de sinais, grafos arbitrários, registos inventados ou sintomas naturais estaria assim em marcha. É talvez por essa mesma razão que o autor havia de concluir que aquilo que, de facto, define uma "linguagem não é exactamente o uso de palavras, (ou) o uso de signo convencionais; é (antes) o uso de qualquer signo, qualquer que ele seja, que envolva o conhecimento ou a consciência de significação" (1995:141). Note-se que a significação e a comunicação surgem, nesta análise, envolvidas por um princípio fundacional intimamente ligado à consciência.

            Curiosamente, o cruzamento da leitura desse texto de J.Deely, 'A relação da Lógica com a Semiótica'[2], com as recentes investigações no âmbito das neurociências - acerca da interacção entre os diversos níveis da consciência e dos seus 'sis' -, sobretudo na recente obra de António Damásio, o Sentimento de Si - surgida na sequência de O Erro de Descartes[3], fez-nos pensar numa possível e ulterior reflexão que relevasse a importância da génese profunda do acto de significar e, portanto, da própria semiótica. Quer se queira quer não, a verdade é que a própria ideia de signo, independentemente das múltiplas definições e convulsões a que possa estar sujeita, não resiste ao facto de que é, ela mesma, atravessada por processos mentais de grande complexidade, ainda que aparentemente quasi-instantâneos na ordem do fluxo do acontecer. Nesta medida, como T.Sebeok afirmou, um dos grandes objectivos da semiótica, enquanto parte de uma teoria unificada da cognição humana, seria o de ligar o grande abismo ("the yawning gulf") existente entre a química e a biologia dos neurões com a "maximally viable theory avaible" (1991:5[4]).

            Numa altura dominada pelas novas significações ciberespaciais, pela euforia construtivista, pelos aparelhamentos que sublimam a taumaturgia[5] perdida através da instantaneidade arfetactual e ainda pelo rizoma social, é talvez altura de regressarmos à prospecção de alguns mecanismos fundadores e matriciais que nos possam re-abrir campos de discussão e perspectivas. Até porque o esvaecimento de certas aplicações semióticas europeias, sobretudo da tradição continental, nos aconselham a perseguir novas rotas e horizontes. O cruzamento de saberes pode e deve ser um poderoso tubo de ensaio para uma tal operação. Nessa linha de ideias, é propósito deste ensaio interligar uma metodologia teórica da fundação e modalização da própria semiótica com aquilo que é um consequente quase lógico dessa metodologia: a descrição semiótica do funcionamento da mente e das relações que esta tece com a realidade, tal como surge exposta em O Sentimento de Si de António Damásio. 

2- Predizer e retrodizer a semiótica 

2.1 Heraclito, Hipócrates e J.Deely

Enquanto área do saber, a semiótica pode sempre ser predita ou retrodita. Predizer remete-nos para uma origem - ainda que incerta - a partir da qual é possível aceder a uma premonição. Por outro lado, retrodizer, tal como Borges no-lo ensinou em Kafka y sus precursores[6], remete-nos para a descoberta de uma génese passada e quasi-original que, de qualquer modo, se possa vir a tornar prefiguradora de um facto actual relevante, na presente circunstância o que existe de profusamente semiótico no recente livro de António Damásio, O Sentimento de Si.

No caso da predição, temos sobretudo a tradição profética de marca semítica e grega, centrada no texto[7]; no segundo caso, o da retrodição, temos basicamente o desafio hipocrático, centrado no corpo (e na medicina). Um e outro destes campos, embora aparentemente muito diferentes, correspondem a áreas profundamente semióticas, já que tratam de realidades que estão em vez de outras ausentes, desocultando-as ou não, através de complexos processos de rede onde se joga ou disputa a convenção, a designação, a observação, a conjectura, o querer-dizer, o significado - ou a sua imponderabilidade - e ainda um leque diversificado de inferências acerca do conhecido e do desconhecido.

Até ao limiar da modernidade, depois sobre outras formas, o profético sempre predisse um tempo ainda ausente - ou uma ocorrência a vir - e fê-lo em nome de entidades superiores universais, ou tão-só em nome das circunstâncias imediatas que exigiam rápida interpretação e resposta. O profético foi, pois, tendencialmente escatológico, no caso do mundo semítico, ou rotineiro e circular[8], no caso do mundo grego. No primeiro, a semiose divina fez do significado último uma imaterialidade de que os eventos ou as coisas eram o lado observável. Por isso a convenção era tácita e a peça visível dessa imaterialidade teve quase sempre a forma de livro ou de letra, se se preferir. No segundo, a apodeixis (demonstração) e a pistis (prova/convicção) andaram quase sempre de mãos dadas, o que acabava por reflectir, como P.Tunhas salientou, uma maneira de pensar subjacente que "se define pela aderência natural do conhecimento ao conhecido" (1999:13)[9]. Esta "aderência", ou adaptação terá permitido ao médico hipocrático passar facilmente do visível ao invisível, ou seja, declarar que aquilo que "escapa à visão dos olhos é apanhado pela visão do espírito", ou que aquilo que "é invisível para o olho" é "visível para a razão" (ibid.:44/5). Esta reversibilidade entre o observável (as partes diferenciadas observáveis) e o desconhecido - e vice-versa - parece deixar o jogo semiótico muito mais a nu, muito mais dissecado, até porque nesse jogar-se constitutivo, a suspensão e o espaçamento entre as partes do corpo parecem já, de algum modo, fazer lembrar a J.Derrida a sua futura noção de différance, assim como o seu exercício prático: a desconstrução. 

Neste remoto labirinto da letra e do corpo[10], a semiótica parecia querer começar a esboçar uma silhueta onde a predição e a retrodição se harmonizassem, ou, pelo menos, se adequassem uma à outra. A próxima etapa já iria ser vivida no seio da grande casa da lógica, embora o sistema de oposições e as suposições dogmáticas hipocráticas já a anunciassem.

Sem jamais se referir ao corpo dos médicos hipocráticos e à extensíssima tradição profética, John Deely publicou, há alguns anos, na revista Semiotica[11], o texto de uma conferência realizada em Toronto[12] sob o título: 'A relação da Lógica com a Semiótica'. Esse texto, como o próprio autor referiu, condensa "uma visão sinóptica do desenvolvimento semiótico", estabelecendo um "horizonte conceptual" para o "movimento" e dando a ver como este "realmente integra e alicerça a cultura ocidental" (1995:XVII). Para além dessa evidência, o texto de J. Deely é também, porventura, um dos que melhor retrodiz a história da própria semiótica, enquanto dispersa e silenciosa área do saber que os modernos estatuíram com epíteto absolutamente autónomo. E se o autor retrodiz de facto a semiótica, por outro lado, através das escolhas que faz, parece também, ainda que involuntariamente, querer assinalar e predizer a futura anatomia semiótica de António Damásio.

A análise de J.Deely, aliás como as de U. Eco sobre as continuidades do saber semiótico[13], abre-se a múltiplas tradições e jamais se remete ao autismo que tantas vezes oblitera (e obliterou) o que, à partida, não procede de determinados mundos fechados ou filiações. A diferença entre os dois autores é que o segundo tem privilegiado a noção de signo como peça arqueológica da pesquisa semiótica, enquanto J. Deely optou antes pela lógica (na versão retrospectiva de "actividade interpretativa própria do entendimento, constituída por signos e seus instrumentos"[14]) como objecto principal a perseguir na sua indagação. A escolha tem como ponto de partida principal (ou de "focagem") os Analíticos Anteriores e os Analíticos Posteriores do Organon aristotélico[15], embora devidamente situados numa longa tradição[16], e permite identificar os continuadores de uma muda "teia semiótica" (1995:14) que se projecta num período que vai da Idade Média ao alvor moderno, tendo sempre como base essencial os conteúdos (ou o labirinto de traduções dos conteúdos) dos Analíticos. Por outras palavras: a lógica do século XII e XIII  - e até, por exemplo, o curriculum de estudos da Universidade de Alcalá em meados do século XVII - continuam  a estabelecer uma contínua e persistente ligação entre os Analíticos Anteriores e a lógica chamada 'formal', tratando-se aí da coerência interna do pensamento; e entre os Analíticos Posteriores e a lógica chamada 'material', tratando-se aí da "correspondência entre as formas de pensamento e as formas do mundo real" (ibid.:37). Ao fim e ao cabo, organismo e ligação entre organismo e experiência a concentrarem em si o topic das discussões seculares em torno dos signos, da representação e da comunicação. É este o trajecto proposto por J.Deely; um trajecto que faz da semiótica uma habitante bem comportada da grande casa da lógica, até que um futuro devir de filha pródiga a acabasse por convocar, um dia, para outros desafios e problemas.

2.2 A longas transições de um legado 

Na transição para a Idade Média, J.Deely refere a importância de Porfírio[17], mas, em primeiro lugar, de Boécio (480-524) - "figura que estabelece a ponte entre a tradição lógica grega e o seu desenvolvimento no Ocidente" - por ter sido tradutor para Latim, entre outras obras, do Organon, cuja versão terá sobrevivido pelo menos até meados do século XII. Neste longo período, dito de trevas a Ocidente, saliente-se a importância do Califado Omáiada de Córdova na tradução sistemática dos textos clássicos gregos. Estes só viriam a ser conhecidos e traduzidos (ou re-traduzidos[18]) na Europa latina, também a partir do século XII, na altura em que as universidades ocidentais iam emergindo (algumas seguindo programas e modelos oriundos das grandes madrasas - madáris - do Islão fatimida ou abássida[19]). Santo Agostinho (397-426), quase contemporâneo de Boécio, é uma outra parte da ponte que liga o mundo antigo à Idade Média. O autor empreende uma imensa crítica à Antiguidade (A Cidade de Deus) e deixa no ar, para o futuro, a ideia de que existe um género de signos no seio do qual os signos linguísticos propriamente ditos constituem espécie (abrindo espaço para que esta espécie possa, um dia, vir a ser entendida, em certos meios, como "modelo semiótico por excelência"[20]. Contudo, a reiterada prescrição de uma semiose indexical de natureza divina sobrepôs-se às funções significativas, à divisão dos signos (naturais/convencionais) e à sua própria definição de signo como algo que, "para além da impressão que produz nos sentidos, traz, em consequência, qualquer outra coisa ao pensamento"[21].

Seguindo a tradição estóica, Santo Agostinho inclui nesta definição a mente do próprio intérprete como terceiro correlato da semiose[22], já que o signo surge (como entidade que representa) nos sentidos em vez de algo ausente (objecto), levando a mente a produzir "qualquer outra coisa" (chamemos-lhe, com todo o risco, um pré-interpretante[23]). Para J. Deely, Santo Agostinho propagará até à actualidade o que designa por "alta semiótica" (1995:24), embora um projecto consistentemente semiótico ainda necessitasse, entre outras condições, de agrupar ou complementar "os meios internos de cognição" e "os meios externos de comunicação" numa perspectiva que fosse a de uma "doctrina signorum[24]" (ibid.:29), liberta da indexicalidade divina pelo menos no sentido da abertura interpretativa ao provável, ao impreciso, ao indefinido.

Esta transição estará já a operar-se, num primeiro momento, ao longo da disputa entre os defensores dos universais e os nominalistas. J.Deely chega a referir-se aos partidários do nominalismo, como Guilherme de Ockham[25], mas deixa em branco os partidários dos Universalia sunt in rebus, de que Anselmo de Cantuária é expoente, talvez por ter sido o criador de um turbulento e rígido "quadrado semiótico" que dizia corresponder a modelos de Aristóteles e de Boécio[26] (o trajecto vai-se confirmando). O segundo momento, que é o único relevante para esta transição, segundo J.Deely, ocupa a Secção 5 da sua obra, entitulada "Em direcção à consciência semiótica'. O período definido é delimitado pelas datas de 1350 a 1650 e é considerado pelo autor como "terra incognita", dada a parca investigação que o mesmo tem merecido por parte da historiografia filosófica (e semiótica). É talvez por isso que J.Deely acaba por encontrar em Portugal e em Espanha, no final dos séculos de ouro ibéricos, sobretudo à volta das academias de Coimbra, Salamanca e Alcalá de Henares, um conjunto de marcos fundamentais que, na sua opinião, definem uma atitude fundacional para a semiótica. A discussão acesa e "diária" sobre a natureza dos signos - assim nos é apresentado o ambiente nessas academias - terá então levado um conjunto de autores a justapor à reprodução secular da tradição lógica sumulista[27] uma reflexão propriamente semiótica, com um notável grau de autonomia. Entre esses autores, um é português, Pedro da Fonseca (1528-1599), autor de Institutionum dialecticarum libri octo (1564) e o outro é o luso-borgonhês, Garcez Poinsot (1589-1644), autor do Tractatus de signis[28] (1632) que J.Deely diz ser "espanhol"(1995:74) e que W.Noth diz ser "português" (1990:20-21). Questões filipinas, creio.

            As inovações de Fonseca centram-se na aplicação de uma terminologia completamente "nova e inequívoca" no quadro da escolástica, e na explícita desconfiança em relação à tradicional divisão dos signos formais (em convencionais e naturais) que vinha de Santo Agostinho[29]. Deste modo, o autor prescreve, na sua divisão dos signos, duas grandes linhas, ou seja, por um lado, as formas ou ideias mentais através das quais a experiência é estruturada e, por outro lado, qualquer dado ou objecto da experiência dos sentidos que possa ser tomado como signo. Para além disso, Fonseca tentou ainda definir o papel exacto da representação no âmbito da significação: "(...)significar é nada mais do que representar alguma coisa a uma faculdade cognitiva. Mas uma vez que tudo o que representa alguma coisa é um signo da coisa representada, acontece que tudo o que significa alguma coisa é o seu signo". Para o autor, as noções, portanto, equivalem-se e equiparam-se, mas são devidamente diferenciadas. O longo e penoso caminho para a modernidade passa por esta mesma consciência da diferença no corpo observado. Já o dizia Montaigne no início do seu segundo volume dos Essais: “Nous sommes tous de lopins (pedaços) et d´une contexture si informe et diverse, que chaque pièce, chaque moment fait son jeu. Et se trouve autant de différence de nous à nous-mêmes, que de nous à autrui” (1995:22[30]).

           

2.3 Poinsot e Locke: a chave do aparecer semiótico 

As inovações de Poinsot vão mais além. Partindo da constatação de que os habituais textos de lógica se tornaram "complicados" (J.Deely,1995:75), dada a crescente e meteórica discussão acerca da noção de signo - o que não deixa de ser um motivo interessantíssimo -, o autor acabou por decidir justapor (prefaciar) a um seu texto de lógica, o textus summularum, aquele que viria a ser o Tractatus de signis. Para Poinsot, a própria interpretação lógica era apenas um modo ou uma forma particular de interpretação, enquanto a interpretação "em si mesma" deveria  sobretudo ser "coextensiva com a vida cognitiva[31] dos organismos". Independentemente desse facto de clara autonomização semiótica, Poinsot acrescentava ainda que a lógica, ao "alcançar as suas formas específicas de interpretação", o fazia "inteiramente através de signos"[32]. Esta clara reorientação da tradição interpretativa (baseada - não o esqueçamos - no já histórico legado da lógica sobretudo material) conduz Poinsot a definir signo, não como algo à partida "apreendido", mas como algo que traz "alguma outra coisa além de si mesmo à percepção de um organismo" (...) o que é "exactamente (o modo) como as ideias funcionam dentro da mente" (...), i.e., "trazem à mente algo mais do que elas próprias" (ibid.:77). Na tradução do original do texto (também da autoria de J.Deely, 1985) pode ler-se mais detalhadamente: "Thus 'making cognizant' has wider extension than does 'representing', and 'representing' more than 'signifying". For to make cognizant is said of every cause concurring in the production of knowledge; and so it is said in four ways, namely, effectively, objectively, formally, and instrumentally"[33].

Esta definição liberta o aparecer do signo face a qualquer ideia previamente cristalizada na mente. Aliás, Poinsot, nessa mesma linha, acaba também por superar a divisão entre "ens reale" e "ens rationis"[34] (experiência dependente ou não da mente), já que ambas as ordens partilham inevitavelmente uma mesma dimensão humana (quer isto dizer que 'fumo' pode querer dizer 'fogo', o que é natural para uns, mas o fumo pode também, para outros - e o outro é também já a consciência de uma diferença essencial - significar 'ritualização divina', o que não era natural para os primeiros). Por fim, indo muito para além de Fonseca no seu Tratado, o luso-borgonhês, não apenas delimita o campo da significação e o campo da representação, como os separa irredutivelmente. Defende o autor que um objecto pode representar-se a si mesmo e pode também representar um outro. Contudo, considerar um signo de si mesmo seria pura contradição, razão pela qual um signo só o é se for um signo de alguma outra coisa (só Peirce, mais tarde, entenderá o contrário, ao entrever o pensamento como séries ilimitadas de signos que representam outros signos, no quadro de uma sequência ininterrupta). O raciocínio de Poinsot, no entanto, é dilucidado através de uma tríade, veiculada por uma distante tradição latina de Boécio (o trajecto cumpre-se), segundo a qual existe sempre (1) uma causa ou fundamento (alguma característica de um ente); (2) a relação ela-mesma - independente - que está acima do ente e, por fim, (3) aquilo com que a coisa se relaciona através do seu fundamento (o terminus da relação). Para Poinsot, o signo é, pois, apenas a relação, independentemente dos termos e dos atributos do agente.

Sintetizando: a consciência de que existe uma relação independente do agenciamento e dos processos que conduzem à significação, a convicção de que o signo terá de produzir mentalmente algo mais do que o seu simples aparecer e, finalmente, a recusa de uma realidade prévia ou adquirida à semiose fazem de Poinsot um pré-moderno que acabará por ter, segundo J.Deely, influência em J.Locke.

De facto, na sua conhecida divisão dos saberes, J.Locke separa aparentemente o conhecimento especulativo (coisas da natureza que estão na base do entendimento especulativo - descendência do Ens reale) do conhecimento prático (as coisas tal como são, devido ao pensar e ao agir humanos - descendência do Ens rationis), mas, no fundo, essa divisão conflui no conhecimento geral (no topo do seu diagrama), até porque ambos os conhecimentos particulares se interpenetram na experiência, o que corresponde a uma visão que, como vimos, já havia aparecido inscrita no Tractatus de signis de Poinsot. No lado inferior do diagrama, surge então a semiótica como um novo saber, entendido na acepção de uma mediação que se propõe descrever e elucidar os meios através dos quais "o conhecimento, tanto especulativo como prático, é adquirido, elaborado e partilhado"[35]. Eis como das estruturas de conteúdo dos Analíticos se acaba por chegar, por vias ainda que tortuosas e algo silenciosas, à instituição quasi-moderna de saberes, onde - e tal deve sublinhar-se - já figura autonomamente a própria semiótica. O trajecto parece cumprir-se.

Mas continuemos. A concepção de signo de Locke, baseada na tradição da tríade, contempla 'ideias', 'coisas' e 'palavras'; as primeiras no vértice, e as outras duas na base. Nesta sintaxe, as ideias, na linha de Poinsot, não correspondem jamais a um adquirido[36] (ou a uma reflexo realista da coisa representada), mas antes a uma condensação selectiva de atributos, elaborados a partir da observação das coisas. Por consequência, Locke postula uma ligação arbitrária entre coisas e palavras e, portanto, a estas - e a outros signos - mais não resta do que traduzir as ideias simples e complexas que, por sua vez, se geram umas às outras na mente humana. Neste tipo de descrição sígnica, tudo se torna relacionalmente independente (na linha também de Poinsot) e auto-construtor. Como U. Eco reflectiu em O Signo (1981:116[37]), bastaria "substituir à noção de ideia - de Locke - a de uma unidade semântica, identificada não na mente humana, mas no tecido da cultura que define as próprias unidades de conteúdo" e o campo semiótico estaria prestes a enunciar-se. Poder-se-ia antes dizer, como veremos mais adiante, que a identificação das "unidades semânticas" (ou das formas de conteúdo) resultará mais de uma interacção entre os procedimentos da mente humana e o "tecido da cultura", do que apenas do jogo proporcionado por este último[38].

A dupla Poinsot-Locke (1632 é o ano simbólico do nascimento do segundo e o ano da publicação do Tratado do primeiro) prefigura, em última instância, para J.Deely, o que considera ser o despontar de "uma nova linha na antiga tradição" - e conclui: "a preocupação básica - da semiótica - é com aquilo que é o que é independentemente do homem e, em segundo lugar, com as coisas que são produzidas pelo homem e dele dependem. Na semiótica, a preocupação é com ambos igualmente" (1995:82). Locke é, deste modo, situado na historiografia semiótica como o ponto de chegada de uma longa tradição, cuja herança sigilosa e próxima se chama Poinsot, e deixa de ser o simples pioneiro solitário que redescobriu, um dia, por sortilégios indescortináveis e inefáveis, o étimo da palavra semiótica.

2.4 A modernidade, as invenções e as segmentações 

Com o despontar da era moderna, com vimos em Órbitas da Modernidade[39], vai aparecendo um novo tipo de sujeito autónomo, filtrado por Hume e Kant como um verdadeiro sujeito construtor, imaginativo e capaz de desmontar a velha cápsula no seio da qual os data coincidiriam, como que por magia algo adquirida, com a natureza primeira do mundo. Inicia-se então a montagem; o diagrama tornado em sujeito; a edificação da auto-representação. O “homem” - surgido do colapso da representação clássica, como Foucault salientou - é um ser que agora conhece e redesenha as categorias e, nessa rede complexa, passará a reconfigurar-se. “Como os sucessores de Kant rapidamente observaram, a única maneira pela qual podíamos compreender o eu transcendental era identificá-lo com o eu pensável mas incognoscível que é um agente moral - o eu numenal autónomo” (R.Rorty,1999:214[40]). Esse agente moral que liga sobretudo a vontade à acção, partindo sempre da análise da experiência, define-se a si próprio como único, emergente, subitamente aparecido e auto-reconhecido. Nada melhor do que regressar ao autor das Críticas para o ilustrar: “Ora nós temos somente uma única espécie de ser no mundo, cuja causalidade é dirigida teleologicamente, isto é, para fins”(...)”Esse ser é o homem, mas considerado como númeno; o único ser da natureza, no qual podemos reconhecer, a partir da sua própria constituição, uma faculdade supra-sensível (a liberdade) e até mesmo a lei da causalidade com o objecto da mesma e, que ele pode propor a si mesmo como o fim mais elevado (o bem mais elevado do mundo)” (1998:400[41])

Ao lado do surgimento deste homem moderno - de acordo com a conhecida tese de Foucault em Les Mots et les choses[42] - surge também a linguagem, não já como uma amálgama de signos inseridos numa teo-semiose motivada, mas sobretudo enquanto entidade complexa, autotélica e reflexiva que se tornará, também, em objecto privilegiado do saber. Mais do que referir ou indexicalizar a perfectibilidade metafísica, os signos passam agora a constituir-se como interfaces aparentemente autónomos que retalham o imponderável das expressões e dos conteúdos e disputam os sentidos do ser perdido (tudo isto sob a crença da novíssima 'cultura'). As linguagens (e as metalinguagens) tornar-se-ão, de qualquer maneira, ao longo da modernidade já consumada, num dos objectos mais intrigantes de pesquisa, a tal ponto que acabarão mesmo por se instituir enquanto alvo preferido das grandes perguntas - e dos motivos epistémicos - da actualidade[43].

 Por fim, se a modernidade descobriu o sujeito e as linguagens como alvos narcísicos do novo olhar, também decidiu segmentar e autonomizar irredutivelmente os saberes, do mesmo modo que, ao inventar as outras eras históricas e a própria 'história científica', ela - a modernidade - se descobriu subitamente como moderna (como se sabe, 'moderna' era também o nome da lógica sumulista ou terminista dominante no Renascimento - pura coincidência).

É neste novíssimo quadro que a antiga lógica - já no limiar do século XX - acaba por se autonomizar face à grande casa das casas que sempre foi a filosofia e, nessa aventura, terá perdido para sempre a companhia da metafísica, da ética e, apenas em parte, da própria semiótica. No seu trajecto, a nova lógica descobriu renovados campos de aplicação, ligados sobretudo às matemáticas, ao cálculo e, mais tarde, ao processamento de dados, num devir que inicialmente ligou Boole, Frege, Peano e Russell, mas que também soube repor "novas temáticas em tópicos habitualmente" seus (H.Putman,1988:71[44]). Por outro lado, também no âmbito de afirmação do estudo autónomo das linguagens, a linguística autorrevelou-se e o seu propósito foi o de fazer abstracção da materialidade das manifestações da linguagem "para depreender formas independentemente da substância" (A.Jacob,1984:10[45]). Outras tendências diversificadas, mais ou menos notacionais, perseguiram gramáticas secretas universais e é U.Eco quem ironiza o facto: "(...) é ainda a posição aristotélica, várias vezes proposta, dos Modistas medievais a Port-Royal, de Port-Royal a Estaline, de Estaline a Chomsky e a todos os linguístas empenhados em estabelecer, ao nível fonológico ou gramatical, os universais da linguagem". Também a filosofia, quem sabe se por ter visto a sua grande casa a despovoar-se, decidiu desenvolver esforços em torno de uma nova e segmentada disciplina: a filosofia da linguagem. Esta situar-se-ia em relação estreita com a "ciência da linguagem por excelência, a linguística, e às extensões semióticas que a ultrapassam sempre mais" (A.Jacob,1984:15)

2.5 A dispersa semiótica e o devir interactivo anunciado 

No segundo capítulo de Caleidoscopios - La filosofia occidental en la Segunda mitad del siglo XX[46] (2000:53-59), Ignacio Izuzquiza traça um interessante perfil da filosofia dos últimas décadas e fá-lo preceder por uma descrição das duas heranças a Leste e a Oeste do Atlântico. A herança continental é descrita através da sua orientação "marcadamente historiográfica", baseada num "reconhecimento substantivo" da história e sempre aberta a "respostas positivas" e a teorias que se transformam em verdadeiros "edifícios ou sistemas" teóricos (Descartes, Hegel, por exemplo). Por outro lado, o autor refere a apetência europeia pela generalidade e, portanto, pela abertura à tradição metafísica, o que induz a abordagens tais como a "estrutura da realidade", a "acção moral", o "sujeito", ou ainda "o sentido realidade última". Por seu lado, a herança anglo-saxónica é descrita como permeável ao empirismo (de Locke a Hume) - e também ao pragmatismo no caso norte-americano -, às oposições ao idealismo continental (Moore e Russell, por exemplo) e a uma especial atenção à linguagem "ordinária" e ao positivismo lógico. Para além disso, a tradição Anglo-saxónica "desconfia das pretensões generalistas" e interessa-se mais pela "história de um problema" (numa perspectiva nominalista) do que pela história em geral.

            Esta nítida separação de tendências permitir-nos-á compreender melhor as "canonizações" (Harold Bloom) semióticas que precedem e sucedem o limiar do século XX. Para começar, situemos os dois grandes Canons semióticos - não vamos, agora e aqui, reentrar na clarificação dos termos semiótica/semiologia[47] - que aparecem, respectivamente, nos Estados Unidos e na Suíça, ou seja, C. Peirce (1839-1914) e F. Saussure (1857-1913). Passemos a caracterizar sucintamente o que os diferencia (o que não é pouco para uma síntese tão apertada[48]): 

             a)Saussure centra-se na tradição da palavra e da voz. Entende socialmente a comunicação, mas sempre através dessa instância duplamente psíquica que é a "marca" de um som e um "conceito" (significante e significado). Peirce, um lógico na sua origem, centra-se numa ideia de semiose ilimitada corporizada pelo pensamento e mediada pela comunicação intersubjectiva (entre crença e dúvida).

b)Saussure (e quase toda a tradição que lhe segue; veja-se o caso 'formal' de L. Hjelmslev) nega uma perspectiva pansemiótica, limitando o âmbito da "nova ciência" a "uma parte da psicologia social e, por conseguinte, da psicologia geral" (1995:44[49]), enquanto Peirce recusa todo o psicologismo e defende um campo ilimitado de aplicação para a semiótica.

c)A estrutura diáctica do signo saussureano define uma estratégia mentalista (de que a realidade, ela-mesma, se ausenta) e privilegia matricialmente os signos linguísticos; enquanto Peirce entende o signo como "séries de interpretantes[50]" ad infinitum[51], no quadro de uma sequência ininterrupta de interacções (através da figura do representamen) que se desencadeia entre a realidade (objecto) e os procedimentos mentais (os interpretantes).

d)Saussure estabelece conexões entre actos potenciais e actuais no quadro da instituição da língua (sempre dentro de parâmetros linguísticos e determinadas pela noção de 'dupla articulação'), enquanto Peirce define categorias (Firstness, Secondness e Thidness) de aplicação geral e universal.

e)Saussure, por fim, numa palavra, retoma o legado exegético e metafísico da letra e da voz (veja-se a crítica de J.Derrida em De la Grammatalogie[52]), enquanto Peirce retoma a tradição pragmática da observação continuista do corpo (de que a primeira metáfora semiótica é o próprio "sintoma equívoco" hipocrático, sempre entrevisto na sua relação com o/um contexto). 

            As tradições que se formam até à actualidade, Anglo-saxónica (a) e continental (b), prolongando maleavelmente ambos os Canons, também podem ser resumidas do seguinte modo: 

a) Ao lado de Husserl[53] e Heidegger, Wittgenstein é um dos três grandes marcos do pensamento da primeira metade do século, com incidência especial no mundo anglo-saxónico. De entre as suas duas grandes fases - a do Tratado lógico-filosófico (1921 - centrado no mapping, enquanto relação lógica entre realidade e linguagem) e a dominada pelas Investigações Filosóficas (1953 - centrada nos jogos de linguagem e na ideia de significado como uso realizado no seio da linguagem corrente[54]) - é esta última que influencia a produção teórica inglesa que, por sua vez, dá uma particular atenção à análise da 'linguagem ordinária' (grupo de Oxford; G. Ryle, P.Strawson[55] e J.Austin, autor da famosa 'teoria dos actos de fala'[56]). Nos EUA, C. Morris, já em 1938, tenta estabelecer a semiótica entre as ciências como uma autêntica meta-ciência (atribuindo-lhe três dimensões, a sintáctica, a semântica e a pragmática[57]), mas todo o seu trabalho acaba por reflectir aquilo que com o passar do século se pode considerar o 'paradigma Peirce' (o consenso abrange figuras como A. Whitehead, B. Russell, M.Fisch, ou o criticismo de G.Hartman e, nas últimas décadas, explodiu em associações, congressos e publicações específicas sobre o autor[58]). Embora muito criticada hoje em dia, não deve esquecer-se nesta brevíssima referência, a tradição americana da Behavioral semiotic (C.Ogden[59], I.Richards, J.Watson, B.Russell[60], etc), embora seja, de facto, a aventura da lógica do século XX que melhor define transversalmente a linguagem, o método e os propósitos da semiótica anglo-saxónica (entre muitos outros, R.Carnap[61], W.Quine[62]; a intencionalidade comunicacional  de H. Grice[63] e J.Bennett[64]; ou até a "Convenção[65]" de D.Lewis), assim como o empirismo britânico e a tradição pragmática que vem de William James e Charles Sanders Peirce[66].

Contudo, ao lado da semiótica geral, é sobretudo na sua versão aplicada que a América semiótica tem dado frutos sem equiparação na sua congénere continental, o que, aliás, está de acordo com o anti-generalismo nominalista da (supracitada) análise de I. Izuzquiza. O livro de T.Sebeok, Semiotics in the United States (1991[67]) é disso um óptimo exemplo. Para além do aspecto historiográfico, mesclado com um tom eclético biográfico-romanesco, a obra exemplifica os campos de aplicação da semiótica americana nos últimos anos. Limitar-nos-emos, agora e aqui, a divulgar parte da extensa lista de T.Sebeok que fala por si: "Semiotics of the body artefacts" (ibid:83), semióticas da cultura (ibid:50), da antropologia (ibid:52), da arqueologia (ibid:51); "semiophysics" (R.Thom - ibid:48), "pharmacosemiotics" (ibid:32); semiótica da medicina (H.Shands; E.Baer, M.Blois etc, ibid:33-4), "urbain semiotics" (ibid:33), "legal semiotics" (ibid:43), "notational systems" (ibid:44); semióticas do design (ibid:42), semiótica do turismo (ibid:41), etnometodologias (ibid:40); semióticas visuais variadas e do cinema (ibid:39-42), semiótica da música (ibid:41), semióticas da arte em geral (ibid:42-7), semióticas do texto (ibid:38); estratégias narrativas (ibid: 39), semiótica do teatro e espectáculo (ibid:39), "endosemiotics" (estudo do "neural code", "metabolic code", "immune code" e "genetic code" - ibid:109); "semioimmunology" (ibid:107), quinésica (ibid:111), proxémica (ibid:110), cibersemióticas (ibid:113-122), "biosemiotics" (ibid:109), "microsemiotics" (ibid:110), "zoosemiotics" (ibid:113), "phytosemiotics" (ibid:112), "mycosemiotics"(ibid:112), etc. 

b) No lado continental, refira-se o dinamarquês L. Hjelmslev que desenvolveu a noção de 'continuum' (mening) e dividiu, de forma inovadora, substância e forma em expressão e conteúdo, embora tivesse limitado o agregado estritamente formal à dimensão do signo. Negando a pansemiose e mantendo um grande enfoque linguístico, na tradição saussureana, L.Hjelmslev, a par de um desenvolvimento lógico-glossemático assinalável, haveria de deixar para R. Barthes a hipótese de repensar a sua criativa ideia de "conotação"[68]. R.Barthes fez da conotação os seus mitos[69], o que, para alguns autores, correspondeu a uma refundação semiótica continental. O estudo de R.Barthes provou que as conotações eram programadas socialmente e constituíam uma larga operação de controlo, fosse na linguagem cinematográfica, na culinária, nas reportagens sobre os escritores em férias, ou até na ligeireza automóvel. Foi a fase do "émerveillement" como o próprio R.Barthes definiria em 1974 (1985:12-15[70]). Depois, seguiu-se a fase mais estrutural, onde (se) chegou a acreditar que a "semiologia" podia ser dotada de atributos científicos, até que a terceira fase acabou por se centrar definitivamente no local de eleição passional de R.Barthes: o texto. Aliás, na Lição[71] (inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França - Janeiro de 1977-1997:28/9), o autor reservou para a semiótica (diga-se, para a "semiologia") o papel de rasura ou de bricolage em crise, ao afirmar que a linguística se estava a desconstruir devido à sua crescente formalização (e desvirtuação) e que essa mesma desconstrução era o próprio "nome da semiologia".

Durante os anos 60 e 70, a psicanálise também rondou o corpus privilegiado de eleição continental: o texto (Lacan e não só), enquanto Derrida insistia no caracter descentrado das estruturas ou na denúncia da metafísica do significado e Kristeva repunha o dialogismo, agora sob a forma de intertextualidade. A semiótica vivia na exegese do texto e, muitas vezes, na dissimulação poética das múltiplas análises radicalmente autotélicas. Do outro lado, o grupo de Entrevernes, a Escola de Paris, entre outros, tentavam repor o 'quadrado semiótico' e discorrer ao longo de percursos narrativos e modelos actanciais, para além de terem chegado a definir institucionalmente um dicionário[72]. Há muito poucos anos, o balanço da escola apareceu numa publicação - Lire Greimas[73] -, resultado de uma reunião entre os antigos discípulos de A. Greimas. Na sua comunicação, simbolicamente designada 'Et maintenant ?', J.Geninasca afirmava: - "s´il est vrai que les obstacles qui ont brisé les élans des débuts sont de nature épistemologique, c´est l´épistemologie de la sémiotique qu´il faut changer pour échapper à immobilisme de ces vingt dernières années" (1997:53).

Este imobilismo continental (sobretudo francês e de raíz estrutural) foi um facto. Mas, de qualquer modo, trata-se de um imobilismo que adveio de uma análise holista do texto e que não soube, a tempo - quem sabe ? -, escutar (ou comunicar com) as versões aplicadas e interdisciplinartes tão em voga do outro lado do Atlântico[74]. Seja como for, é possível que as saídas para as semióticas do texto se estejam, hoje em dia, a processar nos cibermundos, no hipertexto e noutras logotecnias, dando talvez cumprimento à profecia de J. Derrida, segundo a qual, à morte do livro, sucederia uma real idade da escrita[75].

Ao contrário de um certo autismo continental dominante, U.Eco e J.Derrida são dois praticantes da semiótica universal que aprenderam, há muito, a jogar nas várias bandas dos oceanos. A desconstrução encontrou aliados noutros mundos e em áreas muito diversas[76] e, por outro lado, os sucessivos livros de U.Eco, após a edição americana de A Theory of Semiotics (1976[77]), passaram a igualmente a constituir material permanentemente disponível para reflexão (T.Sebeok,1991:32). As noções da différance e de desconstrução[78], aplicadas à questão identidade/alteridade, em J. Derrida, e as preocupações perceptivas de U.Eco no seu último grande ensaio[79] (ligando "tipos cognitivos" e "conteúdos nucleares" aos problemas da iconicidade, do esquema kantiano e do mapping do primeiro Wittgenstein) constituem temas candentes da semiótica contemporânea que porventura suplantam a memória de uma auréola imobilista que, ainda hoje, continua a contagiar um certa suspeita face à semiótica, em alguns meios[80].

É evidente que ambas as margens do Atlântico procedem de ambientes diversos e recortam no continuum da reflexão semiótica universos também diferentes. Tal não constitui drama, nem tão pouco é dramática a frase com que T.Sebeok abre o seu Semiotics in the United States: "Semioticians are, at least in regard to this deficiency, in full agreement: that no comprehensive (let alone "complete") treatise - or even a handy compendium - dealing with the history of semiotics as yet exists" (1991:1). Este caracter não-monista, fragmentado, disperso é possivelmente mais enriquecedor, criativo e até estimulante do que qualquer mundo fechado sobre si próprio e hipertrofiado. É talvez por isso que You-Zheng Li tenha afirmado que a semiótica, pelo menos no seu campo de aplicabilidade, "(...) is a pre-scientific or a semantically preparative procedure for the later, genuinely scientific, treatments in a field. In the interaction between semiotics, natural sciences and social sciences today, it seems to be the case that semiotics needs natural sciences and is needed by social sciences while such scientific tasks as positive judgments and logical inferences provided by normal scientific procedures do not need to be included into the field of semiotics" (1996:87)[81].

Este devir interactivo parece estar presente, ou pelo menos é explicitamente apelativo, no último livro de António Damásio, O Sentimento de Si. Sem jamais se assumir como da esfera semiótica, a obra define, no entanto e de modo aberto, um conjunto ordenado de fenómenos neurais que dizem directamente respeito a aspectos constitutivos do signo, da significação e da representação, mas não só. A leitura da obra parece retrodizer e predizer um certo ambiente semiótico de modo: 

a) evidente, tendo em conta o actual incremento da tradição americana, envolvida que está nas áreas endossemióticas e noutras relativas ao estudo da mente;

b) latente, tendo em conta a temática do último grande ensaio de U.Eco que é sempre, enquanto topic, um sinal dos tempos do saber semiótico;

c) necessário, tendo em conta a actual denegação da ideia de representação que os construtivismos estão a levar a cabo, a propósito das novas ficcionalidades e do ciberespaço.

d) remoto, tendo em conta a longa tradição que vem de Aristóteles aos modernos, passando por Poinsot e Locke, entre outros, e que reiterou nas suas temáticas o estudo do organismo e das suas capacidades de raciocínio sempre em relação com a experiência:

e) interessante, no sentido de inquirir se o - admitamo-lo - indeferimento da linguagem verbal e das escritas (na linha do Da Interpretação aristotélita, de Santo Agostinho e de Saussure) não tem afinal homologias com fenómenos mentais determinados;

f) actual, porque pemite aproximarmo-nos de questões dominantes das discussões semióticas dos últimos anos: identidade, descontução, cognição, linguagens, etc (ver quadro estatístico abaixo)

g) fundamental, para que a comunidade científica possa pensar/repensar a própria noção de signo, já que - e independentemente de a semiótica contemporânea a ter posto sucessivamente "em causa[82]" - ela passa inevitável e irredutivelmente por processos mentais que a tradição semiótica nomeou das formas mais díspares (enquanto ligação entre, pelo menos a ...paixão da alma/coisas e factos, Sémainómenon/Tugchánon, Verbum mentis/Res, Intellectus/Res, Conceptus/Res, Nominal essence/Thing, Sinn/Bedeutung, Interpretante/objecto, Significatum/Denotatum[83]).  

Finalmente, para aferirmos de modo mais objectivo acerca dos topic (ou aboutness) que ocupam os semióticos actuais (para melhor aclarar o 'ambiente semiótico' em que vivemos), procedemos a um breve estudo estatístico relativo aos temas das reuniões científicas, realizadas durante dois anos, isto é, entre Abril de 1996 e Abril de 1998. A fonte é o IASS-AIS Bulletin Newsletter (17-1 e 2/1997[84]) e o Semiotics around the World/ IASS-AIS Bulletin (Anual 95 e 96). Das 172 reuniões científicas inventariadas, em segundo e em quarto lugar, abundam as questões relacionadas com o raciocínio ('reasoning') e a mente, assim como com a cognição e as linguagens. A tradição ligada ao texto converte o tema 'língua e literatura' em primeiro lugar, por causa da inevitável dominante continental (18 contra 7 americanas - Canadá e México incluídos). De realçar ainda o papel crescente das reflexões sobre questões da identidade e, por outro lado, sobre os os cibermundos e a internet. Por fim, deve referir-se que o item 'semiótica da cultura' abrange temas demasiado diversificados (antropologia, folclore, local, cultura propriamente dita, pelo que não tem a relevância que o terceiro lugar parece indiciar). Todos estes dados reforçam as nossas alíneas conclusivas, nomeadamente as primeiras três e convidam-nos, desde já, a seguir para a segunda parte deste ensaio em que passamos a analisar a semiose (porventura involuntária) de António Damásio, em O Sentimento de si.

 Quadro estatístico das reuniões científicas de semiótica, entre 4/96 a 4/98

 1- 24 Língua e literatura (18 Europa,7 América,2 resto do mundo)

2- 21 Mente e "reasoning" (10 Europa,9 América,2 resto do mundo)

3- 19 Semióticas da cultura (13 Europa, 6 América)

4- 17 IA, linguagens e cognição (5 Europa,10 América, 2 resto do mundo)

5- 15 Cibermundos e internet (6 Europa,7 América,2 resto do mundo)

6- 10 Identidade/Alteridade (6 Europa,4 América)

7- 9 Semióticas visuais (4 Europa, 4 América, 1 resto do mundo)

8- 9 Semiótica geral (7 Europa, 2 América)

9- 6 Gender (1 Europa, 5 América)

10- 6 Política (4 Europa, 2 América)

3- A semiose de O Sentimento de Si 

3.1 O duplo problema  

A obra de António Damásio é dominada pela questão da consciência e pela demanda de uma quase inevitável ante-câmara ou terra de ninguém que estabelece as suas próprias condições de possibilidade, geração e funcionamento. O problema da ligação entre as cadeias da consciência de si e do mundo envolvente (dos objectos), desenvolvida entre diversos níveis e aferida até à luz de alguns assumidos mistérios, é colocado, de início, sob a forma de duas perguntas que hão-de orientar toda a ulterior pesquisa presente em O Sentimento de si:  

a) Como é que o cérebro humano "engendra" o que, desde logo, se designa como "imagens de um objecto"(2000:28), ou seja, tudo o que possa ser representado, ou "que se dê a conhecer" no desenrolar do processo de consciência" (ibid:39) ?

b) Como é que, por outro lado, o cérebro "produz o sentido de si no acto de conhecer esse objecto"(ibid:29) ? Ou seja, se é verdade que a mente é dominantemente ocupada por imagens que correspondem a "percepções externas", ou a percepções "daquilo que se recorda" (ambas representações de objectos), ela é igualmente ocupada por uma segunda e simultânea presença que significa a própria indexicalidade do sujeito, enquanto "proprietário das coisas imaginadas". 

As duas questões norteadoras do problema da consciência surgem, deste modo, como verdadeiros índices que estabelecem a contiguidade entre algo que designa (os níveis complexos da consciência que determinam que sejam nossos os objectos e a ideia de si) e algo designado (o sentido de pertença do sujeito consciente e, por outro lado, os objectos que nele se apreendem e re-figuram).

Por outro lado, sob o ponto de vista metodológico, o autor coloca este duplo problema da consciência em função de "dois actores principais", a saber, o organismo ("aquele dentro do qual acontece a consciência" - ibid:39) e o objecto", mas também em função de um terceiro que define como sendo a própria "relação mantida por estes actores ao longo das suas interacções naturais" (ibid:39). Este facto é semioticamente relevante pois salvaguarda a autonomia e a independência da própria relação, enquanto entidade específica e não apenas instrumental, em relação aos eventos e mecanismos que possa de algum modo evocar. Esta postura, a nível sígnico, iniciara-se historicamente, de modo tácito, como vimos, com Poinsot e Locke e iria tornar-se em apanágio das descrições contemporâneas dos actos de inferência[85].

            Por fim, para além da definição de objectivos e da clarificação do método, António Damásio caracteriza a situação e o âmbito particular em que O Sentimento de Si emerge, de acordo com aquilo que designa por "cinco pontos de partida" (ibid:37/8), a saber: 

a) que alguns "aspectos dos processos de consciência podem ser relacionados com a operação de regiões e sistemas específicos do cérebro", tornando-se assim possível a desocultação da "arquitectura neural" que suporta a consciência. Este facto irá, cada vez mais, tornar-se fundamental, tendo em vista a dilucidação de conceitos eventualmente adquiridos em áreas do pensamento que careçam de provas fundadas nos procedimentos internos da mente;

b) que a consciência e a vigília, por um lado, e a consciência e a atenção, por outro lado, correspondem a realidades que "podem ser separadas", o que, no segundo caso, estabelece curiosos laços com o expresso no &408 das Investigações Filosóficas do segundo Wittgenstein[86]: "a proposição 'eu tenho a percepção de que...' não diz que eu estou consciente, mas sim que a minha atenção está a ser usada desta e daquela maneira" IF,417;

c) que consciência e emoção são inseparáveis;

d) que a consciência não é "monolítica" (já que, como se verá, coexistem no nosso aparelho construtor do si e do mundo, diversificados tipos de consciência e os correspondentes sis);

e) que a consciência não deve ser explicada tout court a partir de funções cognitivas como a linguagem, memória ou a razão, sobretudo, porque, como o autor defende, as "primeiras formas de consciência" hão-de ter precedido e precedem ainda quaisquer "inferências e interpretações". Quer isto dizer que fazem parte da transição biológica que possibilitou e possibilita as próprias inferências e interpretações. Neste sentido, qualquer teoria da consciência, ao reorientar o seu objecto, deverá explicar "o fenómeno simples e fundamental que ocorre perto da representação não consciente do organismo".

Este desvio de perspectiva é particularmente interessante, já que, no curso do seu desenvolvimento ulterior, decerto que irá contribuir para uma maior elucidação de dados que permitam situar a questão do emergir semiótico e da própria significação (que é, por outras palavras, o emergir de toda a possibilidade inferencial e, portanto, das segmentações das unidades culturais ou de conteúdo numa dada comunidade; do mesmo modo que só existe verdadeiramente consciência, quando já existe representação algures figurada no organismo).

3.2 Componentes semióticos (ou pré-semióticos[87]) 

            Os signos são interfaces que se propagam no acontecer e, portanto, na temporização ética[88] do mundo. Os signos correspondem sempre a uma chamada, a um aviso, a algo que veicula à consciência um conjunto de dados. Como C.Peirce referiu: "it is a vehicle conveying into the mind something from without. That for which it stands is called object; that which it conveys, its meaning; and the idea to which it gives rise, its interpretant. The object of representation can be nothing but a repesentation of which the first representation is the interpretant" (1978,I:338:171[89]). Um signo gera sempre outros signos, no quadro de uma sequência que é simultânea e concomitante ao contacto do intérprete com novos "vehicles" oriundos do mundo exterior ou do recordar.

            No final de O Sentimento de Si, no "Apêndice-Notas Sobre a Mente e Sobre o Cérebro", são minuciosamente descritos os componentes do que podemos descrever como processos semióticos (e substancialmente pré-semióticos), isto é, os elementos separáveis, discretos, que agem, ou através dos quais agem os processos de significação e de comunicação que operam no e através do organismo. Façamos a devida visita guiada:

3.2.1 Representações 

A noção é equiparada à de imagem mental ou de padrão neural. Segundo o autor, trata-se de um uso "convencional e transparente" que significa "padrão consistentemente relacionado com alguma coisa" (ibi.:364). O aparecer pressupõe sempre um ensimesmamento e, por outro lado, uma relação independente e autónoma com um outro ausente, cuja presença não é menos importante para a identidade do que aquele que aparece. Esta teia decorre de uma operação de Janus - a própria representação, na sua evidência e "transparência" - e é por isso que a singularidade de uma presença é sempre uma evocação de múltiplas presenças, ou seja, de algo mais para além dela (era esta outra mais valia de Poinsot, e mais tarde do próprio Peirce, na definição de signo, lembremo-nos).

Para Peirce, "the word representation" significa "the operation of a sign or its relation to the object for the interpreter of the representation. The concret subject that represents I call a sign or a representamen" (1978,I:285/1.540). Se a relação surge aqui um pouco unidireccionada para a presença, diga-se que, logo a seguir, no seu texto, o autor, ao contrapor signo e representação, acaba por abrir a 'evidência' e a necessidade da representação a um conjunto ilimitado de possíveis: "By a sign I mean anything which conveys any definite notion of an object in any way, as such conveyers or thought are familiarly known to us" e "and I define a representamen as being whatever that analysis applies to".(ibid.,I:285/1.540).

Para António Damásio, a representação é sobretudo o surgir de um em vez do outro, independentemente do caracter da sua figuração (imagem, mapa ou padrão neural), numa constante manobra de acessibilidades entre níveis da consciência e a sua ânte-câmara profunda. Nesta medida, o ausente e o presente conformam-se reversivelmente com o próprio estar-em-marcha da consciência, não se constituindo nunca como elementos estáticos que se pudessem anular mutuamente. De qualquer modo, o conhecimento, no despertar da consciência, acaba por sempre por decorrer, como veremos, de uma seriação algo determinista e redutora do previamente conhecido.

Ainda no âmbito desta discussão sobre a representação, o autor de O Sentimento de Si afirma não ser apologista de qualquer "fidelidade", leia-se iconicidade[90], entre a esfera das representações - seja de padrões neurais e das correspondentes imagens mentais - e dos objectos que elas dinamicamente "evocam" (ibid:365). Para além das incertezas inevitáveis que a questão da iconicidade pode postular, o certo é que António Damásio caracteriza o aparecer das figuras como fruto de um processo de permanente interacção. Quer isto dizer que, por exemplo, "os padrões neurais e as correspondentes imagens mentais" são sempre simultaneamente criações mentais e produtos "da realidade externa que desencadeia essa criação" (ibid:366). As figuras criadas nunca são, portanto, uma cópia do objecto real que, "em termos absolutos", nunca chegaremos a conhecer.

Este princípio a-realista, segundo o qual a mente humana já não é mais "o espelho da natureza" (R.Rorty[91]) persegue a pragmática contemporânea e devolve à hibridação sujeito-objecto, descrita em O Sentimento de Si, o quê e o quem das representações. A própria produção de sentidos, enquanto segmentação dos sememas operada num dado e mediato contexto, torna-se, também ela, numa dupla operação entre mundo e sujeito, como aliás considerou, há alguns anos, J.-M.Linkenberg: "le sens provient d´une interaction entre les stimuli et les modèles. Ce qui suppose un mouvement double, qui va du monde au sujet sémiotique et de celui-ci au monde" (1996:101[92]). Transparência relacional, acessibilidades de dados e interacção objecto-organismo, eis como poderíamos sintetizar o procedimento da representação tal como é descrita em O Sentimento de Si.

3.2.2 Imagem 

O semema 'imagem' é muito reiterado ao longo da obra de António Damásio, mas é sempre utilizado na única acepção de "imagem mental" (2000:361) e é entendido também como sinónimo de "padrão mental" (ibid:361). A imagem, nesta medida, é definida como uma representação, consciente na perspectiva da "primeira pessoa", ou não consciente de todo[93], "construída com a moeda corrente de cada uma das modalidades sensoriais: visual, auditiva, olfactiva, gustativa e somatossensorial[94]", referindo-se esta última a "vários sentidos: tacto, muscular, temperatura, dor, visceral e vestibular" (ibid:362). As imagens, geralmente edificadas a partir de correspondências entre re-figurações de objectos e "modos de reacção do organismo"(ibid:366), "ilustram processos e entidades de todos os géneros", abstractos ou concretos, bem como o seu agir e respectivo cronotopo.

A.Damásio conclui que o processo designado por mente - "quando as imagens mentais se tornam nossas devido à consciência" - pode ser considerado como "um fluxo contínuo de imagens, muitas das quais se revelam logicamente interligadas. O fluxo move-se para a frente no tempo, depressa ou devagar, de forma ordeira ou sobressaltada e, algumas vezes, avança não apenas numa sequência mas em várias."(...)"O pensamento é uma palavra aceitável para traduzir um tal fluxo de imagens". (ibid:362/3) Deste modo, a temporalidade da mente e o papel do ininterrupto fluxo surgem associados ao próprio componente discreto que necessariamente o integra e que A.Damásio designa por "símbolo", tal como Husserl no caso das 'representações indirectas': "Qualquer símbolo com que possamos pensar é uma imagem, sendo bem pequeno o resíduo mental que não é constituído por imagens mentais. Até os sentimentos"(...)"são imagens", estas de tipo somatossensorial (ibid:363).

A semiose é aqui implicitamente assumida como um processo de sucessivas actualizações que a consciência nos devolve, a partir das representações geradas e transpostas em imagens sucessivas e indeterminadamente sobrepostas que traduzem, quer os estados originários e não conscientes onde organismo e objecto interagem, quer a nossa própria apropriação desse processo ilimitado em curso.

3.2.3 Padrões neurais 

Ao lado das imagens, propriamente ditas, A. Damásio atribui grande pertinência à cartografia protagonizada pelos padrões neurais. A definição é clara: "Padrões de actividades neurais" são representações, apenas acessíveis na perspectiva da terceira pessoa, que podem ser encontradas, "através dos actuais métodos da neurociência, nos córtices sensoriais quando eles estão activos"(...)"em correspondência" (ibid:361/2) com uma dada percepção (visual, auditiva, ou outra). Estes padrões resultam de "convenções do cérebro" e baseiam-se na selecção momentânea dos neurónios e circuitos utilizados na interacção organismo-objecto".

Os padrões neurais estão na origem das imagens mentais, são o seu alicerce formativo, a sua ante-câmara significativa. O seu aparecer encerra o paradoxo de uma forma de expressão que a experiência da visibilidade não pode descodificar, mas que, por outro lado, é essencial para a arquitectura das imagens, essas sim acessíveis. São figuras que transitam, ao reconfigurar-se sob a forma de futuras imagens. Como o autor refere, "os dispositivos sinalizadores localizados em todas as estruturas do corpo"(...)"ajudam a construir os padrões neurais que cartografam" - a todo o momento - a interacção do organismo com o corpo" (ibid:365).

Os padrões neurais constituem a cartografia omnipresente e primeira, a partir da qual o levantamento selectivo do visível - e portanto, do jogo semiótico - se torna (ou se tornará) possível.

3.2.4 mapas 

Esta noção corresponde a um outro tipo de padrão do mesmo género que o neural, embora com especificidades. Trata-se de um "padrão relacionado com um objecto", originado pelo contacto entre os fotões (partículas de luz) e a retina que, por sua vez, determina a formação, por parte das células nevosas activadas nesse mesmo padrão, de "um mapa neural transitório". A correspondência entre objecto e mapa não é ponto por ponto, daí que a figura não seja "necessariamente fiel" (ibid:366/7). Os mapas constituem, pois, um produto do design interno do cérebro que, de modo algo autotélico, desenvolve e trabalha com modelos próprios.

3.2.5 Realidade e quadro referencial 

Como referimos, na obra de António Damásio, as imagens mentais "surgem de padrões neurais ou de mapas neurais, formados em populações de células nervosas (ou neurónios) que constituem circuitos ou redes".(367) Por outro lado, as imagens mentais representam sempre a re-figuração de interacções previamente verificadas entre o organismo e um objecto e, no constituir-se desse processo, o autor considera que: 

 "o objecto é real, as interacções são reais e as imagens também são".  

Independentemente deste facto referencial assumido, o texto de O Sentimento de Si relembra, logo no passo seguinte e de modo algo concessivo, que "a estrutura e as propriedades da imagem que acabamos por ver são - afinal - construções do cérebro desencadeadas por um objecto"(ibid:366). Neste ponto, António Damásio, embora considere que a mente não é um espelho da realidade e que as iconidades não constituem operações simplesmente miméticas e especulares, acaba, no entanto, por aceitar a explícita realidade-referencial do objecto, das imagens e das interacções, no que, aliás, corresponde à base metodológica triádica inicial da obra (organismo-objecto-relação, enquanto actores principais). Como J. Searle afirmou: "A distinção entre realidade e aparência não pode aplicar-se à genuína existência da consciência, pois, se aparentemente sou consciente, sou consciente"(...)"mas não podemos descobrir que não temos mentes, que elas não contêm estados mentais conscientes, subjectivos..." (1997:120[95]), embora esta subjectividade implícita seja sempre, como acima se viu, um produto de hibridação, mas que, de qualquer modo, não deixa de operar-se na primeira pessoa que a consciência possibilita, segundo uma sintaxe de fluxo contínuo de imagens.

Independentemente da necessária e tácita realidade atribuída ao triângulo objecto-interacção-imagem, convém acrescentar que "os símbolos com que possamos pensar", voltando a citar a passagem mais explicitamente semiótica de António Damásio (ibid:636), não representam nunca um objecto ou um referente. Como U. Eco deixou registado em O Signo, apenas existe acto de referência, "se o código lhe atribuir o mesmo interpretante que atribui a certos objectos considerados como signos ostensivos que significam a classe de objectos a que pertencem (classe que constitui não um objecto mas um significado)"(1981:155/56[96]). Por exemplo: levanto a garrafa - signo ostensivo - e peço mais uma cerveja. O código fornecerá eventualmente (o provável e indefinido define sempre o lugar mais profundo da semiose) o mesmo interpretante - "the idea to which it gives rise, its interpretant "(C.Peirce,1978,I:338:171[97]) - aos agentes que partilham o acto comunicacional, de tal modo que estes acabam, ou não, por associar 'o braço no ar e a pertinência das minha mão segurando a garrafa' a uma mesma classe ou tipo de significado em jogo.

Isto pode também eventualmente passar-se no âmbito das imagens mentais, se o código fornecer ao intérprete da sua própria consciência (é na sede da consciência que as imagens se tornam nossas) um interpretante que coincida com um dado conceito empírico. Cada conceito empírico - ‘ uma árvore’, ‘ um choupo’ - "constitui o produto de uma memória de semelhanças” (J.Gil,1984:80[98]) e “significa uma tematização da percepção de feixes estáveis de aparências”. Ao transformar as semelhanças em identidades, “o conceito torna possível o pensamento, a memorização e a antecipação”; por outro lado, e porque “a percepção de semelhanças forma um dispositivo independente com uma espontaneidade própria (a construção do conceito liberta-a das coisas) emerge daí a possibilidade permanente de uma derrapagem em relação ao sensível” (ibid.:82/3).

            Seja como for, um acto referencial, pelas razões aduzidas, é sempre eventual e sobretudo propenso a "derrapagens" (talvez por isso mesmo, antecipando já uma questão interessantíssima de O Sentimento de Si, o ser humano adore contemplar, ainda que involuntariamente, o seu próprio cérebro como um exemplar e único "contador de histórias"). Realidade e/ou ficção, eis talvez a questão.

 

3.3 Circuitos comunicacionais descritos  

A obra de António Damásio expõe circunstanciadamente o imenso "jogo de relações da consciência" (2000:40) que possibilita às figurações do objecto e do si o seu sucessivo aparecer e comunicação, ao longo do corpo. Neste jogo estão presentes diversas entidades, curiosos tipos de relato das consciências e da sua ante-câmara, não esquecendo ainda o próprio dom das ficcionalidades que o autor entende como o verdadeiro cerne de uma antiga aparência filosófica: a intencionalidade. Sigamos, pois, esta intriga profunda do organismo que é também o diagrama potencial da nossa semiose.

3.3.1 Entidades  

Começamos pelas diversas entidades que protagonizam as operações comunicacionais que se desenrolam a vários níveis, nomeadamente a um primeiro micro-nível, entre organismo/objecto/proto-si; a um segundo nível, entre o 'si nuclear' da consciência dita "nuclear" e as imagens do proto-si e do objecto (traduzidas do nível anterior) e, por fim, a um terceiro nível, o da sequência, ou do "filme-no-cérebro" que pressupõe o eclético 'si-autobiográfico', próprio da consciência "alargada", numa estreita relação com o impacto ininterrupto dos dados provenientes da consciência nuclear, a saber, as sucessivas imagens de interacções entre organismo e objectos, bem como dos próprios sis mutantes. Esta rede comunicacional da consciência e seus 'sis' está na base da própria definição de consciência de António Damásio, expressa em antecipação a futuras possíveis polémicas: "(...)se por consciência de si se pretende significar consciência com um sentido de si, então toda a consciência humana correponde a esse termo" (ibid.:39)

3.3.1.1 Proto-si: a grande antecâmara. 

O proto-si é definido como um "conjunto coerente de padrões neurais" - de que não temos consciência - "que cartografa, a cada instante, o estado da estrutura física do organismo nas suas numerosas dimensões" (ibid.:184). O proto-si representa permanentemente, enquanto conjunto de padrões neurais consistente, o variado estado do organismo, "a múltiplos níveis do cérebro". (ibid.:206); Este Proto-si é porventura, segundo o autor, a base biológica do si, tal como foi expresso em O Erro de Descartes - 1995:242-250).

Esta remota consciência de pertença funciona como um conjunto de radares que vão dando conta das transformações do corpo em contacto com o exterior e é com base nessa mesma rede primária de informações que a consciência irá emergir.

3.3.1.2 Si nuclear 

O si nuclear "é inerente ao relato não verbal de segunda ordem que ocorre sempre que um objecto modifica o proto-si" (2000:206), constituindo a tradução do que se passa nessa prévia ante-câmara. O si nuclear constitui um sentido de pertença, de auto-apropriação que, subitamente, na esfera do agora-aqui, reconhece que algo se está a passar. É o início da representação que o torna possível. A sua característica base é o conhecimento imediato de que o proto-si foi alterado e de que existe, em função disso, uma dada metamorfose na interacção organismo-objecto.

3.3.1.3 Consciência nuclear 

A "consciência nuclear constitui ela própria o conhecimento, directo e sem qualquer verniz inferencial, do nosso organismo individual no acto de conhecer" (ibid.:152) e, por sua vez, esse conhecimento nasce da "re-presentação do proto-si não consciente no processo de ser modificado"(ibid.:202). Este imediatismo[99] ainda não inferencial assiste à transição dos dados, de padrões neurais a imagens, e, porque estas últimas emergem em plena espontaneidade - nesta que é uma consciência do pertinente instantâneo - não podem ainda considerar-se como disputáveis em pleno pelo jogo semiótico.

Para já, seja como for, é possível, pelo menos, delinear uma sintaxe constitutiva da consciência nuclear que é, na sua origem, um produto "estabelecido pelo genoma"(ibid.:232). As etapas dessa sintagmática, descritas por António Damásio, são as seguintes: (ibid.:208/9); "proto-si no momento inaugural; objecto surgindo na representação sensorial; transformação do proto-si inaugural em proto-si modificado pelo objecto".

3.3.1.4 O si autobiográfico 

O si-autobiográfico "baseia-se em arquivos permanentes mas disposicionais das experiências do si-nuclear"(ibid.:206). O alicerce do si autobiográfico é constituído por "aspectos invariantes" da biografia de um indivíduo que se traduzem, por sua vez, na chamada "memória auto-biográfica" (memórias muito diversas dos mais variados exemplos da experiência passada e também do "futuro antecipado" (ibid.:206). Deve dizer-se que, ao longo da utilização que o si faz destes arquivos, eles acabam por modificar-se ainda que "parcialmente" (ibid.:207).

"A base neuroanatómica" do si-autobiográfico é descrita a partir de um modelo que comporta, de um lado, um "espaço imagético" e, do outro lado, um "espaço disposicional" (254/377[100]). No primeiro, ocorrem explicitamente as "imagens de todos os tipos sensoriais. Algumas destas imagens constituem conteúdos mentais manifestos que a consciência nos permite experienciar enquanto algumas imagens permanecem não conscientes"(ibid.:377). No segundo, estão presentes "as disposições que contêm a base do conhecimento e os mecanismos através dos quais as imagens podem ser construídas durante o recordar, através dos quais os movimentos podem ser gerados, e através dos quais o processamento de imagens pode ser facilitado" (377)

O si autobiográfico é a consciência de pertença que age em nós como a montagem do grande filme, podendo inserir-se na corrente sintagmática os paradigmas mais diversos (explícitos, artefactuais, memoriais, instrumentais e  todos os outros que se colam na fita, oriundos do agora-aqui da consciência nuclear). O si-autobiográfico é permeável à rede interpretativa e às inferências que os códigos determinam ou sugerem e, nesse movimento de comunicação e significação, envolve eventualmente as dimensões do outro na sua singularidade.

3.3.1.5 Consciência alargada 

É a consciência ligada directamente ao si-autobiográfico que António Damásio assim traduz: "é a preciosa consequência de duas contribuições que a possibilitam: primeiro, a capacidade de aprender e, consequentemente, de reter miríades de experiências previamente conhecidas através da consciência nuclear. Segundo, a capacidade de reactivar esses registos de tal modo que, enquanto objectos, também eles possam gerar 'um sentido de si' e, consequentemente, ser conhecidos.[101]" (ibid.:228/9)

O funcionamento desta consciência não é muito diverso do da consciência nuclear, já que, em ambas, se processam "múltiplas gerações do si nuclear aplicado não só ao 'objecto-que-está-para-ser-conhecido' como também ao eternamente re-evocado e complexo conjunto de memórias pessoais que constitui o si-auto-biográfico"(ibid.:229)

Por outro lado, o autor confirma o papel da cultura, junto à consciência alargada, no seio da qual o si autobiográfico está necessariamente envolvido num processo concomitante e ininterrupto de inferências semióticas: a consciência alargada "é posta em marcha pelo genoma, mas a cultura pode influenciar o seu desenvolvimento individual de forma significativa"(ibid.:232)

3.3.2 Os relatos 

Cada nível da consciência e/ou dos sis que lhes estão associados est(ão)á ligado(s) a um determinado tipo de enunciação. Esta não significa sempre a produção de uma mensagem corpórea e legível, nem tão pouco nítida, ou sequer verbal. A linguagem dos linguístas surge, neste aparelho conceptual, como algo não necessário para definir os níveis da consciência e, por outro lado, como algo que sucede inevitavelmente as operações primeiras e constitutivas da consciência. Por outras palavras, a linguagem dos linguístas é considerada, aqui, de modo consistente e coerente, como um relato de terceira ordem.

Nessa linha de ideias, pode dizer-se que existe uma perfeita concordância com J.Deely, quando este afirma que "a linguagem, no sentido em que é específica da espécie homo sapiens, nada mais é do que o componente 'irreal' da semiose" (1995:135), sendo este definido como elemento "dependente da cognição", (ibid.:134) em contraste com os elementos ou componentes reais que lhe são independentes.

Passemos, então, à enumeração dos relatos.

3.3.2.1 Relato da primeira ordem 

São relatos não legíveis conscientemente, mas que, ao traduzirem-se, trazem à superfície a figuração permanente do proto-si em estado de metamorfose e também, ao mesmo tempo, o estado das interacções organismo-objecto. Por outras palavras, pode dizer-se que a "cartografia das consequências relacionadas com o objecto surge em mapas neurais de primeira ordem que representam o proto-si e o objecto" (2000:201)

É curioso que o corpo detenha uma escrita não visível, do mesmo modo, passe a alegoria, que, segundo a corrente da filosofia das formas simbólicas, na tradição que vem de E.Cassirer a S.Langer, parece evocar a antiga e inacessível escrita experiencial da humanidade que, por sua vez, só se tornou visível através da tradução do seu material arquetípico para o nível do mito, da arte e da transcendência, - primeiras macro-actividades da consciência universal e, portanto, da consciência de si da espécie.

3.3.2.2 Relato da segunda ordem 

As representações imagéticas de segunda ordem incluem o objecto prestes a modificar o proto-si, em interacção com o organismo, assim como as "modificações subsequentes do proto-si" (ibid.:201). É uma escrita que marca o súbito despontar da consciência nuclear. Este tipo de relato da relação causal entre o objecto e o organismo só pode ser captado em mapas neurais de segunda ordem" (ibid.:201). O mais interessante é que este relato tem como atributo o facto de ser um "relato não verbal" e, por outro lado, como que reflecte "o organismo surpreendido no acto de representar" (ibid.:202). António Damásio chega a utilizar a feliz metáfora do "coro grego" (ibid.:202) para acentuar a ideia de que este relato não verbal de segunda ordem age como "um  explicativo", ou como um "comentário" oriundo do agora-aqui, sendo, desse modo, incorporado no permanente fluxo de imagens e de "símbolos" que constituem o pensamento.

            Este tipo de relato é  "supra-regional" (ibid.:213) e é gerado por diversificadas estruturas cerebrais e não apenas por uma (ibid.:209), constituindo a primeira escrita acessível onde estão grafados os registos do acontecer do corpo e das suas circunstâncias autotélicas de hibridação.

3.3.2.3 Relato da terceira ordem 

            O relato de terceira ordem, ou seja, a capacidade - entre outras - de natureza verbal e todos os seus deferimentos, pode iniciar-se logo que a representação se inicia, ou seja, a partir do emergir dos enunciados de segunda ordem. Conforme a designação escolhida por António Damásio assinala, o relato desta "terceira ordem" constitui uma tradução, no tempo, das figuras que se geram a partir da submersão de dados que ocorrem na consciência nuclear: "No caso dos seres humanos, a narrativa não verbal de segunda ordem pode ser convertida imediatamente em linguagem"(...)"Poder-lhe-íamos chamar a narrativa de terceira ordem".

Por outras palavras ainda: para além da história que "significa o acto de conhecer e o atribui ao recém-forjado si nuclear, o cérebro humano também forja uma versão verbal automática dessa mesma história" (ibid.:217). Um autêntico mise en abîme de enunciações, aparentemente virtuais umas em relações à outras, mas funcionando todas elas através de vasos comunicantes, onde o nível dito comum se poderia chamar: 'tradução'; um rumorejar de signos que mais se poderiam entender como passagens entre dimensões significantes e significativas, mas que nunca se tornam mutuamente estanques. A tradição logotécnica, muito baseada na abertura do De Interpretação de Aristóteles, em Santo Agostinho e em Saussure, encontra neste ecletismo plural de relatos, sobrepostos e desencadeados por movimentos de interface, um sério revés. A linguagem surge assim como uma capacidade, mas não mais como uma condição formante de características matriciais em relação à consciência. Como António Damásio quase conclui: "Os sis auto-biográficos" - permeáveis a todos os relatos - "apenas podem surgir em organismos dotados de uma capacidade substancial de memória e raciocínio, mas, uma vez mais, a linguagem não é essencial" (ibid.:230).

3.3.2.4 - As histórias do cérebro 

Já antes nos referimos ao comentário de António Damásio, segundo o qual o cérebro é um exemplar contador de histórias. Com efeito, no seio desta teia de relatos que mutuamente se ampliam e que - a todo o momento - desencadeiam na consciência fluxos de interpretantes, é natural que os conteúdos latentes e a imaginação conotativa se acabem por tornar reprodutíveis.

É nesta medida que, como refere o autor, "contar histórias precede a linguagem", o que é até, "afinal, uma condição para a (própria) linguagem"(...)"que pode ocorrer não apenas no córtex cerebral, mas noutros locais do cérebro, quer no hemisfério direito, quer no esquerdo" (ibid.:221). Toda a tradição, baseada na filosofia da consciência e que sublinha o importante papel da intencionalidade (Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Lévinas, etc), para além de outras formas de ênfase à intencionalidade, enquanto prática filosófica, são interpretadas por António Damásio como uma consequência desta verificação simples: a capacidade do cérebro em contar histórias. Diz o autor: esse "dizer respeito a", exterior ao cérebro, tem exactamente "como base a tendência natural do cérebro para contar histórias, o que ocorre sempre da "forma mais espontânea possível" (ibid.:221). Aliás, na discussão que as Luzes empreenderam, no século XVIII, em torno do problema da representação (De Hume a Kant), já a imaginação surge como uma entidade autónoma e transformadora das interacções entre o representado e o representante[102]. É até possível que as noções de 'conotação' e de 'semiose ilimitada', desenvolvidas na semiótica moderna, possam também ter como base esta predisposição humana para o narrar-se, do mesmo modo que alguns teóricos conceptuais continuam a insistir em separar uma pretensa 'semiótica da comunicação' de outra pretensa 'semiótica da significação', a partir de um parâmetro chamado precisamente - 'intencionalidade' J.-M. Klinkenberg,1996:71/3[103]).

C.Giannetti também sublinhou de forma interessante o facto biológico e comunicacional que alicerça este fazer-narrativo que se arrasta imparavelmente na mente (proponho que se lhe chame o mito de Shahrazâd[104]): "Enquanto o corpo permanece imóvel a mente pode empreender as mais surpreendentes viagens."(...)"A investigação desta capacidade de abstracção do cérebro humano constitui um dos objectivos fundamentais da neurociência."(...)"Para isso, as células criaram um sistema de comunicação baseado em fibras conectoras (projecções dendríticas e axionais), que estabelecem o nexo de cada neurónio com um número de células vizinhas que pode chegar até dez mil. Estes nós poderiam alcançar a incrível quantidade de mil biliões de conexões interneurais em cada cérebro"[105].

3.4 semiose 

A semiose é a acção sígnica. Por outras palavras, a semiose traduz-se pela reprodução permanente de interpretantes, ou ainda, como referiu Peirce, o criador do termo: "The object of representation can be nothing but a repesentation of which the first representation is the interpretant" (1978,I:338:171[106]). Para o co-fundador da pragmática norte-americana e primeiro patrono da semiótica contemporânea, a vida mental corresponde, como U. Eco afirmou, "a uma imensa cadeia sígnica que vai dos primeiros interpretantes lógicos (conjecturas elementares)" (...) "aos interpretantes lógicos finais. Estes são os hábitos, as disposições para a acção" (1981:145). No quadro do fluxo ininterrupto de imagens - de "símbolos" - que integram o pensamento, um interpretante é sempre considerado como um aditamento cognoscitivo estimulado pelo signo inicial; e este fluxo ou processo incessante de reactivação sígnica que une representamen/ objecto/ interpretantes, reflectindo, na linguagem de António Damásio (salvaguardando a dimensão da sua abordagem que privilegia a ideia de si na definição da consciência) o processo que une a cartografia do(s) objecto(s)/ a cartografia do(s) si(s)/ o fluxo de "símbolos"(imagens), acaba por corresponder à própria designação da acção sígnica, ou seja, da semiose.

Vamos tentar analisar, nas duas alíneas que se seguem, o momento e o modo como a semiose, enquanto processo ilimitado de inferênca e significação no tempo, se inicia. Começamos pelo emergir da consciência e continuaremos, depois, na senda da "emoção" e dos caminhos que a conduzem ao "sentir", já no âmbito da consciência.

3.4.1.Do emergir da consciência 

António Damásio parte do princípio que "a consciência surge quando conhecemos" e que "só podemos conhecer quando também representamos a relação entre objecto e organismo" (ibid.:179 e 191). Por outras palavras, "a consciência emerge quando esta história primordial - a história de um objecto que modifica o estado do corpo de forma causal - pode ser contada usando o vocabulário universal e não verbal dos sinais do corpo" (ibid.:51), i.e., quando é possível representar, num mapa de segunda ordem, o proto-si a ser modificado (como reflexo de uma nova interacção entre objecto e organismo). A lógica seguida aponta para uma equiparação entre o "tornado consciente" e o "conhecido pelo organismo" (ibid.:57), embora no acontecer do processo seja necessário pôr em evidência o objecto que, numa dada fracção desse acontecer (ou agir sígnico), foi codificado por sinais adequados ao nível do proto-si, cartografo no emergir nuclear e, por fim, transposto para (e no) o fluxo do pensamento. Neste sentido, o irromper da consciência dá-se "quando os dispositivos de representação do cérebro geram um relato imagético e não verbal de como o estado do organismo é afectado pelo processamento de um objecto, e quando este processo resulta no realçar da imagem do objecto causativo, colocando-a, de forma saliente, num contexto espacial e temporal" (ibid.:200)

            Como A.McHoul avançou, não é possível imaginar a figura dos signos, em abstracto, de maneira esquemática, fora da acção corrente das representações e da corrente de temporização prática. Cada objecto será processado e realçado através de imagens, mas sem que se possa sequer imaginar que a essa imagem corresponderia um "definitve meaning", ou a uma espécie de telos, ou ainda a uma qualquer desocultação determinável.  É nesse sentido dinâmico, a par da descrição dos procedimentos em fluxo, descritos por António Damásio, que o autor também define semiose: "This is no more and no less than the discovery that the indefiniteness of meaning in principle"(...)"itself means that actual semiosic effets must always be produced in practice."(1996:11[107]). Se a consciência (se) desperta na abrupta surpresa dos relatos de segunda ordem - por via de uma necessária representação -, abrindo campo ao território do conhecido, então é também a partir daí que as primeiras inferências e abduções não verbais se desencadearão. No entanto, é sobretudo no quadro do si-autobiobráfico (sendo que este necessita do ímpeto do si nuclear, como modo de permanente actualização) e no âmbito da montagem implícita aos múltiplos recursos disposicionais e imagéticos da consciência alargada que "os símbolos" com que pensamos iniciam, de facto, a sua aventura significativa.

Fica contudo a pergunta: não existirão linhas de tendência, na segmentação do continuum, que codifiquem as imagens presentes à consciência nuclear e que acabem por influenciar as primeiras inferências e interpretações conscientes ? Em caso afirmativo, ainda que parcialmente, poder-se-ia dizer que, no emergir da própria consciência nuclear, já existem traços de predisposições inferenciais, ainda que latentes.

Nesse caso, o despontar semiótico coincidiria praticamente com o próprio emergir da consciência.

3.4.2 Da "emoção" ao "sentir" na consciência 

A importância que António Damásio atribui à emoção e à 'consciência do sentir' é decisiva. Aliás, esse facto é logo ponderado num dos cinco pontos de partida de O Sentimento de Si e atravessa todo O Erro e Descartes. A causa profunda de tal atitude pode radicar numa dramática tomada de consciência do filogenia humana. Com efeito, do mesmo modo que o autor é incisivo quanto à anterioridade da consciência face à linguagem (verbal), também, não o é menos quanto à anterioridade da emoção face à própria consciência: "Durante o processo evolutivo, a emoção surgiu, provavelmente, antes do despertar da consciência, e aparece em cada um de nós como resultado de indutores que nem sempre reconhecemos conscientemente. Por outro lado, é no teatro da mente consciente que os sentimentos produzem os seus efeitos mais importantes e duradouros" (ibid.:57)

Não apenas a emoção nos surge aqui dotada de um residual aspecto fundador, como, por outro lado, as imagens somatossensoriais que consubstanciam os sentimentos nos surgem como as que mais resistem ao efémero do fluxo imagético (ou da semiose ilimitada), através do qual pensamos. Estabelecida claramente a hierarquia emoção-consciência-linguagem, passemos agora a analisar com é que o processo de transição da emoção ao "sentir" na consciência se opera, tal como é descrito em O Sentimento de Si (ibid.:323/4): 

a) Indutores de emoção e o organismo interagem;

b) A figura do objecto que interferiu num primeiro momento (reconhecida ou não, tornada ou não consciente) é processada, o que acaba por activar regiões neurais que, de modo adequado, logo respondem à "classe particular do indutor" manifestada;

c) As regiões indutoras da emoção desencadeiam, por sua vez, respostas em direcção ao corpo e ao cérebro;

d) Os mapas neurais de primeira ordem representam as modificações em questão: os sentimentos emergem nesta fase:

e)"O padrão de actividade neural", nas regiões de indução de emoção, é agora apenas cartografado em estruturas mentais neurais de segunda ordem. As modificações no proto-si também são cartografadas no mesmo relato de segunda ordem. 

O relato de segunda ordem enuncia, deste modo, uma relação entre duas representações - a de uma 'emoção como objecto' - e a do 'proto-si' afectado -, acabando por adequar-se à sintaxe do fluxo de pensamento que estava e estará sempre em curso (até à morte). As primeiras relações descritas na ante-câmara da consciência apresentam contornos de comunicação sinalética e ainda não propriamente semiótica (sígnica), porque basicamente põem em jogo entidades regidas por códigos rígidos (seriando respostas sempre adequadas para estímulos também determinados) e, por outro lado, porque, em princípio, essas mesmas entidades não têm ainda sequer poder para os discutir. O processamento não é ainda definido pelo indecibilidade do improvável e do impreciso, mas antes regido pela aparente previsibilidade dos programas.

Apenas em e), na figuração já da segunda ordem, tem lugar, como se viu, uma primeria representação ainda não totalmente consciente desse primeiro circuito de ante-câmara. O segundo leque de representações, de facto um conjunto de meta-representações da anterior interacção sinalética, corresponderá então ao emergir da consciência (neste caso sob a forma de reconhecimento de um objecto-emoção e do correspondente cartografar da afectação do proto-si). Mantém-se, no entanto, a questão: se o "estado de emoção" é "desencadeado e executado de forma não consciente" (ibid.:57), entre indutores e organismo, não existirão traços dessa primordial relação - em grande parte de natureza sinalética - que se projectem, de seguida, no modo como o aqui-agora da consciência nuclear estrutura as suas figuras ? Este facto é de grande importância, na medida em que a semiótica se institui e se inicia no espaço interpretativo (e não no espaço do programa, no seio do qual as partes agem de modo cego) que está em pleno a operar-se na transição de dados da consciência nuclear para a consciência alargada, ficando portanto em aberto - conforme o tom afirmativo ou não da resposta - se o signo se assume como passagem (entre níveis, sem grandes fronteiras entre os seus componentes), ou se se assume antes como ruptura entre o que aparece e o que é irrevogavelmente vestígio mudo desse aparecer significante.

            Seja como for, a primeira hipótese, a da passagem, parece-nos mais conjecturalmente próxima da realidade descrita por António Damásio e mais próxima também da teorização contemporânea da semiótica. Diga-se que o autor de O Sentimento de Si, prefere amiúde, ao registo denotativo do cientista, a amplitude da metáfora, provavelmente para traduzir o intraduzível e para responder ao irrespondível; ouçamo-lo a este respeito: "O comportamento que observamos num organismo" resulta de uma "concomitância de linhas melódicas em cada unidade de tempo escolhida para observação". Alguns componentes estão sempre presentes, enquanto "outros estão apenas presentes durante determinados períodos de actuação". De qualquer maneira, e apesar da pluralidade, "o produto comportamental de cada momento é um todo integrado, uma fusão de contribuições comparável à fusão polifónica duma actuação orquestral" (ibid.:111). É esta ideia de intregração indicível - e não de sistema fechado e determinado - que nos leva a crer que a primeira semiose criada no organismo é já uma inscrição reprodutível de signos (e de interpretantes), cuja essência é a passagem ao fluxo de figuras do que estas evocam (e retêm), sem que uma abismado fosso entre elas se materialize.

            Nesta medida, a semiose deve afirmar-se como uma história em curso, como uma acção de concomitância de muitos trânsitos e não como uma geografia irreal e estática dos signos onde os seus componentes, de modo autofágico, se apagassem ou anulassem mutuamente. Tal como A. McHoul acançou: "For traditional linear history"(...)"the present is no more than a gap between the origin and the fulfillment of its purpose: the end (the future)"(...)"But this gap is not nullity, it is the "historically discontinuous space in which we find ourselves: constituted by the yet-to-be, the undecidable, the unforeseeable, the unpannable, the aleatory. And it is precisely this dimension of history"(...)"that no semiotics has yet embraced" (1996:10[108])

A acção, por si só, o uso inferencial da acção, torna-se, deste modo, na própria significação. Ou seja, no produto corrente de toda a semiose.

4- Conclusões

Vimos que as grandes temáticas da semiótica se iniciaram em torno dos sortilégios da visibilidade da letra e do corpo, acabando por prodigalizar-se na ante-câmara da lógica, durante muitos séculos, ao debater-se com duas ideias-chave: a discussão da questão da coerência interna do pensamento (e, portanto, dos processos mentais inerentes) e a questão da correspondência entre as formas de pensamento e as formas do mundo real (ou seja, entre organismo e objecto). Este topic duplo evoluiu lentamente sob o manto da lógica formal e material e, já em Locke, através da definição das ciências práticas e especulativas, acabou por abraçar uma mediação inicial e explícita da espistemologia semiótica. Interessante, na análise de J.Deely, é o trânsito ibérico e português desse longo trajecto semiótico que se haveria de projectar, mais tarde, sobretudo no mundo anglo-saxónico, numa área muito influenciada pela lógica e pelo corpo (na perspectiva comportamental e cognitiva, evoluindo, mais recentemente, para a interdisciplinaridade com áreas científicas de ponta) e, no mundo continental, através da recuperação da tradição da letra (em procedimentos dominantes que parecem ter-se esgotado, há uns anos, na era do pós-estruturalismo e da emergência desconstrutiva).

Os recentes cruzamentos entre ambas as margens do Atlântico, o neo-pragmatismo, as influências de Derrida e de Eco, as diversas vagas de fadiga da modernidade, as vagas modistas ligadas às ciências comunicacionais, assim como todo o novíssimo 'universo das áreas de quase imediação[109]', a partir do qual os recentes construtivismos insistem em provocar a tradição da representação, através da apologia do homem-novo-virtual, vieram criar condições para novas reflexões e sobretudo perspectivas. Para um tal auto-cumprimento epistémico, parece-nos fundamental definir, nos tempos que correm, uma referência mínima, a partir da qual, de modo até errante, se possa discutir - pelo menos na área semiótica - acerca do rizoma actual de manifestações. Esse modelo ou referência mínima, como prefiro designá-lo, pode bem ser encontrado(a), numa parte decisiva, nas actuais investigações das neurociências, cujo objecto é a própria "arquitectura neural que suporta a consciência", e de que é exemplo-exemplar (passe o pleonasmo intencional) O Sentimento de Si de António Damásio. Esta necessidade vital pode ser justificada por dois motivos fundamentais:  

a)      Ter em consideração que qualquer noção de signo é sempre transversal aos procedimentos da mente e não há nada que possa abstrair-nos desse facto, sobretudo porque o agenciamento comunicacional, neste planeta, continua a ser o humano e não outro;

b)      Demover as tendências que estão a deslocar para os artefactos construídos à imagem do cérebro humano (e/ou à imagem da expansão utópica do cérebro humano) os novos modelos de avaliação dos mundos possíveis (a questão já havia sido abordada por C.Metz[110], há muitos anos, a propósito da montagem soviética, mas, hoje em dia, repõe-se já numa dimensão outra, até porque os aparelhamentos e o devir instantanista estão a criar uma euforia construtivista radical, incapaz de entender que todo o seu enunciar é também e unicamente um produto do emergir da consciência humana).    

Tendo com base este primeiro apontamento conclusivo, passamos agora em revista alguns aspectos relevantes e também conclusivos que atravessam a ligação interdisciplinar que desejamos ver acentuada, a breve trecho, entre a semiótica e as neurociências.

4.1 Mistérios, abduções , sobrevivência 

É curioso o modo como o conhecido se deixa permeabilizar pelo conhecimento, em O Sentimento de Si. Por um lado, as propostas encaixam-se e vão-se equilibrando com toda a lógica que advém da prévia experimentação laboratorial, mas, por outro lado, a uma abundância de potenciais abduções que sucedessem induções normais e exploratórias, parece antes corresponder uma caldeada enunciação de mistérios, isto é, de questões que permanecem ainda sem resposta (a questão já havia sido explicitada no Postsrciptum de O Erro de Descartes[111]). O próprio novo mundo proposto em torno do Proto-si, com todo o encantamento, enigma e atracção que o mesmo pressupõe para os leigos - e para além de toda sistematização já avançada - ainda parece estar envolto numa espécie de aura misteriosa, própria do expressionismo cinematográfico alemão: o "Fugidio sentido de si" (ibid.:42); "as raízes profundas do si" (ibid.:43); o mundo anterior à primeira "prestidigitação" da consciência (ibid.:199), etc.

Para além deste metaforizar do encanto da descoberta e da sistematização do 'totalmente-desconhecido' (ibid.:263), António Damásio deixa sobretudo bem assinalado, ao longo da sua obra, as questões ainda irrespondíveis como integrantes do próprio processo de relação entre o conhecimento e o conhecido, a saber: 

a)      O modo ainda desconhecido de como as imagens emergem a partir dos padrões neurais (ibi.:367). Será que o chamado "factor intraorganísmico C" (J.Deely,1995:172), entendido como "factor que nos torna conscientes de algo que ele mesmo não é" (ibid.:173), poderá abrir alguma luz ao enigma ?

b)      O "binding problem" (ibid.:379), ou a questão - ainda também não desvendada - de como é que a "organização anatómica" das "zonas de convergência" pode servir de base para o tipo de imagens integradas e unificadas de que temos conhecimento nas nossas mentes" ?

c)      Finalmente, a própria hipótese que leva António Damásio a fundar o proto-si (ibid.:184 e seguintes) centra-se no facto de o organismo, ao ser representado no cérebro, ter em atenção o que designa por "sobrevivência" ou "manutenção da vida" (ibid.:42/3- tema do capítulo V). O facto de constituir "proposta" (ibid.:185) e não tese[112], mantém a questão ainda no limiar do conhecido, o que, de qualquer modo, não deixa de nos conduzir a uma inevitável associação com uma das ideias filosóficas mais centrais do século XX: a 'sorge' (a cura) que surge no Ser e Tempo[113] de Heidegger como sendo, ela mesma, a constituição ontológica do ser humano[114]

Seria interessante levar a cabo uma sistematização dos desconhecidos e verificar, em termos semióticos, como é que eles contribuem para a tradução dos 'sentidos da verdade' laboratorial em texto. Constituirão eles um pano de fundo de perfectibilidade, ou um painel de controlo remoto de poder, contra o qual a ciência desejaria erigir - o que António Damásio designa, em O Erro de Descartes, como sendo - "o plano" de "grande escala" do "cérebro produtor de mente", i.e., o plano que conseguisse envolver, porventura numa tentação holista, as "descrições tanto do nível microestrutural" como do "nível macroestrutural" do cérebro ? (1995:264)

4.2 Representação inevitável e a intersubjectividade 

A representação surge, em O Sentimento de Si, como uma instância necessária e fundamental na comunicação e na significação que ocorre no/e através do organismo. É na representação que se inicia a consciência, o reconhecimento[115] e o significado e é também no seio da representação que é possível repor-se, a cada momento, uma ideia de sujeito (e de auto-apropriação subjectiva) que não se dilui no objecto, embora com ele interaja em processo de aberta e permanente hibridação.

            O actual construtivismo, como J. Bragança de Miranda sublinhou, joga com a crítica da aparência e sobretudo da representação como "verdadeira bête noire" (1998:193[116]). A "ontologia construtivista" critica a representação e a imagem como "reflexos parciais e incompletos, senão mesmo errados, do mundo e da natureza"(...)"como se o humano não resultasse de um 'salto' no natural contra o natural" (ibid.:203). A "incompletude" da representação, nesse sentido, seria colmatada através da "criação de um mundo - virtual - interior, construído peça a peça, e alargado segmento a segmento". Esta mistificação que apontaria para a denegação delirante da representação pode ser sintetizada através da relação que S. Schmidt estabelece entre, por um lado, o meio (que define como "oikos" - meio gerado e mantido pelos humanos de forma informacional "através da percepção, a sensomotricidade, a cognição, a memória, a emoção e a acção" comunicativa ou não - 1998:134[117]) e o próprio novo mundo adulado pelos construtivismo - o ciberespaço: "o ciberespaço perfeito não toleraria distinção alguma entre virtualidade e actualidade"; deste modo, "já não permitiria nenhum cruzamento físico entre o mundo interior e o exterior" e, por consegiunte, "não seria mais do que uma duplicação do nosso oikos, carecendo de qualquer interesse".

            Por outras palavras: tal como António Damásio, no seu O Sentimento de Si, interpreta a intencionalidade filosófica ao nível da neutralização husserliana, ou da ficcionalidade potencial pura, como vimos, também o construtivismo actual deveria transpor as suas narrativas, a sua recriação de sujeito e de mundos possíveis no sentido da metanarração, mas cuja matrix inevitavelmente pertence ao único e exemplar contador de histórias do universo: o cérebro. Ou, pelo contrário, será já o cyborg a prefiguração de uma utopia capaz de se tornar no modelo do actual cérebro, cujos neurónios, apesar de tudo, formam "10 triliões de sinapses" e são ligados por circuitos (cabos dos axónios) de "centenas de milhares de quilómetros" (A. Damásio, 1995:262) ? E se tal paradoxalmente ocorresse, acabaria a própria representação ? Ou o cyborg-system deixaria de estar em vez de alguma coisa, ou de nada ?

            Sem qualquer tipo de ambiguidade, a obra de Damásio é, de facto, clara quanto à persistência de uma instância subjectiva, assim como do aparecer nesta de figuras sempre actualizáveis sob a forma "trasparente" de representações: "Quer as pessoas gostem, quer não, todos os conteúdos mentais são subjectivos e a força da ciência provém da capacidade de verificar a consistência de muitas intersubjectividades individuais". Esta máxima epistemológica que liga a necessidade de verificar-representar à intersubjectividade encontra ecos fortíssimos no pragmatismo de Peirce que, como vimos, ajusta a permanente evolução da 'crença' e da 'dúvida' à evolução da comunidade intersubjectiva de saberes, embora essa tradição - que porventura se inicia no limiar moderno em Leibniz[118] - encontre também eco no Husserl das "Conferências de Paris" - "o ser em si primeiro, que antecede e sustenta toda a objectividade mundana, é a intersubjectividade transcendental, o conjunto de mónadas que se reparte em diversas formas de associação" (1992:50[119]) -, em D. Davidson (para quem a intersubjectividade e a interpretação constituem a "base do pensamento"-I.Izuzquiza,2000:103[120]) e em muitos outros. Como E. Levinas diria: não é apenas como indivíduos "de um género que os homens estão juntos" (1982:70[121]).

4.3 O tempo 

Dez para um, no melhor dos casos, e dez mil para um, no pior, eis a escala que separa a realidade comunicacional verificada nos circuitos que ligam os neurónios da realidade da primeira representação correspondente que emerge na consciência nuclear (pondo a nu mutações no proto-si e re-figurando uma dada relação quasi-actual entre organismo e objecto). Ou seja, o desfasamento e o diferimento temporais são, no mínimo, radicais e aparentemente nulos. António Damásio explicita: "Os neurónios são activados e disparam em apenas alguns milionésimos de segundo, enquanto que os acontecimentos de que temos consciência na nossa mente ocorrem na ordem de dezenas, centenas e milhares de milésimos de segundo" ibid.:154).

O atraso da consciência em relação à ocorrência primordial, verificada na sua ante-câmara, é por mais evidente: "Na altura em que a consciência nos 'é entregue' para um determinado objecto, os respectivos mecanismos do nosso cérebro têm estado a trabalhar há uma eternidade, medidade[122] na perspectiva temporal de uma molécula - se as moléculas pensassem, claro. Estamos sempre atrasados para a consciência, mas como todos nós sofremos do mesmo atraso, ninguém repara."(ibid.:154). Dir-se-ia estarmos antes em face de uma espécie de 'princípio stroboscópico' ou de Plateau, aplicado agora, não à conformidade entre a nossa retina e um dado movimento de imagens discretas, mas sim à conformidade sugerida pela aparência das ocorrências em conexão com as suas diferidas re-figurações. Por outras palavras: o actual é sempre um diferimento, enquanto o presente é já - e sempre - um território cindido, nada absoluto, e que traz em si o vestígio de um irrevogável e intangível passado (ainda que recente). Não há, pois, no quadro da semiose, significantes apeados dos seus significados fixos e pré-determinados; a representação existe, é evidente, mas moldada pelo descontínuo e pelo sempre-diferido aparecer das figuras, de que a consciência nos permite a respectiva apropriação.

Passemos, no entanto, a algumas outras quantificações: "A ideia de que a consciência chega atrasada, em relação à entidade que a inicia, é apoiada pelas experiêcnias de Benjamim Libet sobre o tempo que um estímulo demora a tornar-se consciente. O atraso é de cerca de quinhentos milésimos de segundo. Claro que é curioso que possamos posicionar o nosso si mental entre o tempo celular, por um lado, e, por outro, o tempo que a evolução demorou a trazer-nos até onde estamos". De qualquer modo, diga-se em abono dos sentidos plausíveis da verdade, o ser humano vive na medida dos seus próprios limites, nomeadamente nos limites relativos ao tempo ético: "não conseguimos imaginar correctamente quaisquer remotas escalas de tempo". Se, para além de outras formas, o ser humano também recorta do continuum dos conteúdos disponíveis o seu próprio tempo possível - e não aquele que existiria, ou existe ficcionalmente, para além da sua subjectividade e do seu oikos - conformemo-nos com a escala em que a própria semiose ocorre, onde há acomodamentos e "previsibilidades" face ao futuro imediato (ibid.:176), onde a percepção nunca é perfeita porque construtora de "ajustamentos" (ibid.:177) e onde existem naturais "memórias do futuro" (A.Damásio,1995:266). Sobretudo, repetamo-lo: o fluxo do pensamento move-se "para a frente no tempo, depressa ou devagar, de forma ordeira ou sobressaltada e, algumas vezes, avança não apenas numa sequência mas em várias". (ibid.:361).

Poderá ainda vir a existir uma semiótica do tempo, assente em parâmetros laboratoriais das neurociências ? De qualquer modo, apesar dos nexos temporais que nos levaram, ao longo de séculos, a tematizar o fim, o princípio e outros sintomas de coerência forçada ou de consciência de crise, estabeleça-se, pelo menos, o que ainda une a epistemologia semiótica, i.e., a noção de signo, depurada pela leitura de António Damásio e estimulada pela metodologia de John Deely: 

um signo é sempre um correlato, ou um interface, em que intervêm figuras que são segmentações de conteúdo, peças de significação e, por outro lado, experiências sensíveis, corpos significantes, dimensões expressivas que são amalgamado(a)s no curso do tempo diferido da consciência, através de uma relação produtora de sentidos, provocada pelo impacto entre essas figuras e o fluxo de fundo das imagens ou símbolos com que pensamos. O código, nas suas variadas facetas (genoma e cultura), selecciona esses sentidos, separa os sememas e tenta repor a sempre instável ordem que é própria da indecibilidade da mente, cujo sortilégio último é a sobrevivência e a 'sorge'. 

Por fim, cabe-nos perguntar: estaremos ainda a tempo para contratualizar o nosso legado de signo com as neurociências, no que imagino poder vir a ser um desafio interdisciplinar baseado no modelo laboratorial destas e em abduções comuns, tendo como objectivo a sistemática reactualização dos mecanismos com que comunicamos, significamos e estruturamos o mundo ?


[1] Péricles e Verdi-A filosofia de François Châtelet, Estratégias Criativas,Vila Nova de Gaia,1997:27.

[2] Acerca da obra de J.Deely, ver nota 11 e 12.

[3] O Erro de Descartes-Emoção, razão e cérebro humano, Publicações Europa-América, Lisboa, 1995 e O Sentimento de Si- O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, Lisboa, 2000.

[4] Semiotic in the United States, Indiana University Press, Indianapolis and Bloomington,1991

[5] Referência à aspiração salvífica a mundos perfeitos que caracterizou as fases norteadas por grandes códigos, fossem escatologias de natureza divina, fossem neo-escatologias de natureza racional . Este é o tema de Anjos e Meteoros (L.Carmelo, Ed.Notícias, 1999) e, em parte, de Órbitas da Modernidade (L.Carmelo, Ed.Notícias, no prelo) e de La Représentation du réel dans des textes prophétiques de la littérature aljamiado-morisque (L.Carmelo, Universiteit Utrecht, Utrecht).

[6] 'Otras Inquisiciones' (1952) in Prosa completa, Narradores de Hoy/Bruguera, Barcelona,1980:226-228.

[7] Em La représentation du réel dans des textes prophétiques de la littérature aljamiado-morisque (L.Carmelo,1995:32-85) tentámos determinar um quadro global de permanências do profético semítico-ocidental, durante as suas grandes fases. Qualquer delimitação rigorosa de fases históricas é sempre problemática, embora, no caso concreto, o nosso propósito de categorização tivesse como fundamento pôr em evidência tão-só a permeabilidade das características do profético bem como a sua evolução. A nossa abordagem permitiu-nos entrever o género profético como um largo rio que, ao longo do tempo, soube manter as suas correspondências entre os sinais visíveis do mundo (ocorrências, factos, desafios de temporalização, etc) e uma instância superior e anterior, não manifestável e ausente, mas garante da ideia de significado e de futura perfectibilidade e salvação. Por outras palavras, um sistema de controlo da significação e, portanto, do aparecer (o que é válido objectivamente para toda a tradição metafísica).

Neste âmbito, a codificação escatológica - ao regular diversa mas univocamente a doutrina dos fins últimos da humanidade - é particularmente importante para a legibilidade do próprio acto profético, até porque este se realiza na transgressão da narrativa, isto é, no futuro. Em termos gerais, e numa perspectiva modalizadora das tradições textuais proféticas, podemos afirmar que o código escatológico se manifesta tenuemente num período profético inicial (pelo menos até ao Exílio), aperfeiçoa-se durante a fase dos Apocalipses (a partir do séc.II a.C. até ao séc.II d.C.); é revolucionado com a revelação cristã - com a entrada da escatologia na história - e acaba por sofrer uma reedificação inovadora com a revelação islâmica. Para além da legibilidade do futuro que se prende com o elemento escatológico, o acto profético consistiu também, e sobretudo, num diálogo entre o homem e a divindade. Neste drama, a relação entre ambos os actantes começa por ser a de uma aparente simultaneidade na comunicação directa e na premonição. Após o Exílio, a consciência de negligência humana face à intenção divina materializada pelos profetas torna-se num dado decisivo; gera-se então uma intensificação do drama, enquanto significativamente se recopila em escrita toda a mensagem profética oralmente acumulada. O “período apocalíptico” é, com efeito, um resultado do aprofundamento deste drama: agora, o homem precisa de ver Deus e de apreender o além, no seu aqui-agora. Entramos, deste modo, num período caracterizado pela ficcionalidade da observação, i.e., pela tangibilidade do significado sempre, no entanto, intangível e indescritível. Contudo, o drama que consubstancia esta relação entre o agenciamento significante e um agente magistral e significativo parece subitamente dissuadir-se por via da emergência da revelação cristã: Deus aparece subitamente na terra (no lado de cá, onde as formas expressivas são surpreendidas pela revelação do conteúdo tornado visível, manifestado, encarnado) à medida dos próprios homens e, de certa forma, a comunicação homem-Deus e o anúncio tornam-se de novo em algo directo, imediato, como se fosse instantâneo (tal como havia ocorrido durante a simulação narrativa do período profético inicial ou como havia sido reflectido, por exemplo, nas narrações épico-míticas gregas da fase dita pré-filosófica). De qualquer modo, no caso cristão - e no islâmico com algumas homologias parcelares - o drama acabaria por ressurgir nas próprias estruturas que a revelação passa a vaticinar para dar corpo à grande Parúsia, i.e., à promessa do eschatón. É deste modo que o drama da espera entra em cena na significação ocidental, atavés das suas mais variadas codificações (milenária ou chiliástica, entre muitas outras). Esta semiose divina pré-moderna é ainda activa em alguns pioneiros do alvor moderno, como Thomas Hobbes no seu Leviatã e acabará por ser reactivada, sob outros moldes, nos programas modernos das novas escatologias racionais (ideologias e algumas utopias ancoradas na experiência, enquanto mecanismos de controlo do futuro) como tentámos situar em Anjos e Meteoros (1999).

[8] Num conhecido fragmento (o nº93) atribuído a Heraclito por Plutarco (em Dos Oráculos da Pitonisa - 11/604A - in  J.Cavalcante de Souza, Org - Os pensadores Pré-Socráticos, Nova Cultural, S.Paulo -1991:60, e em G.Kirk, J.Raven,M.Schofield - Os filósofos pré-socráticos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa - 1994:217-218), pode ler-se: "O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais". Trata-se de um elogio a Apolo que releva a harmonia entre o sinal e o Logos, numa lógica em que a obscuridade ambígua do estilo délfico parece privilegiar uma concomitância entre aquilo que significa, a coisa que é significada e, por fim, a mediação sibilina que se exerce entre ambas. Por outras palavras, como F.Cornford afirmou: "A afirmação de Heraclito de que era um profeta com uma visão única assenta na convicção de que o Logos, o pensamento que orienta todas as coisas, se encontra dentro dele, bem como na Natureza" . Esta postura denuncia uma sabedoria e uma interpretação reversíveis entre conhecido e desconhecido, visível e invisível, que se deixam guiar por uma circularidade que podia ser comum a todos os homens, desde que estes "tivessem tão-somente almas para a compreender" (1952:243-4)

[9] O autor estabelece um contraste entre "a maneira de pensar da passagem" que "recusa a exterioridade do conhecimento ao conhecido" (ibid.:13), "a maneira de pensar do abismo" que consiste "na determinação de objectos exteriores" e , por fim, "a maneira de pensar do limite" que se define pela intenção de pensar o desconhecido (sem todavia o poder determinar). O pensamento da evidência, o grego na sua maioria, baseia-se na primeira "maneira de pensar", para o qual o verosímil e a verdade supõem "o mesmo habitus" (Hipócrates e a arte da medecina,org.Maria Luísa C. Soares, Colibri/Forum de Ideias, Lisboa,1999)

[10] Refira-se que para certos autores, a importância de Hipócrates na fundação de um prospectar semiótico é imenso, já que, no seu agir, faz-se a passagem do signo mitológico e divino (a correspondência e as permutas entre a presença do homem como visível e os deuses como invisíveis, o que ocorre na épica grega pré-filosófica, por exemplo) para o signo reversível que se abre a um novo tipo de experiência do provável e do obsrvável. Como António Caeiro afirmou, neste último caso, "visível e invisível são aqui a superfície e o interior do corpo,objectos ambos, homogéneos, da mesma experiência cognoscitiva" (1999:128,n.18; obra citada na nota anterior). Esta importância é partilhada por U.Eco: "Hipócrates encontra a noção de indício nos médicos que o antecederam. Alcméon diz que "das coisas invisíveis e das coisas mortais têm os Deuses imediata certeza, mas aos homens cabe proceder por indícios" (1994:26). Nas práticas médias hipocráticas, existe um "código, mas não unívoco. O sintoma fornece instruções para a sua avaliação em contextos diversos."(ibid.:26). Deste modo, o próprio signo particular se converte num uso pragmático que se insere num contexto mais geral e pragmático da vida (AA VV Enciclopédia Einaudi: 31-Signo, in Signo, Imprensa Nacional - Cada da Moeda, Lisboa,1994)

[11] Revista da IASS, Walter de Gruyter & Co., Berlin/Walter de Gruyter, Inc., Hawthorne, Nº 36 - 1/2,1982:193-265.

[12] "The Relation of Logic to Semiotics" no âmbito do primeiro Summer Institute for Semiotic and Structural Studies, realizado no Victoria College da Universidade de Toronto, Junho, 1980. Edição portuguesa do texto (que utilizamos para fins citacionais), Introdução à semiótica-história e doutrina, Fundação Calouste Gulbenkian/Serviço de educação, Lisboa, 1995.

[13] Por exemplo, entre outros, Trattato di semiotica generale, 1975, Bompiani,Milano; AA VV Enciclopédia Einaudi: 31-Signo (ver obra na nota anterior); Lisboa, ou sobretudo, Segno, 1973, IEI, Milano e Sobre os espelhos e outros ensaios, Difel, Lisboa- 1989/Sugli specchi e altri saggi, 1985 Bompiani, Milano.

[14] A definição a que J.Deely recorre é da autoria do luso-borgonhês Garcez Poinsot (formado em Coimbra em 1605), autor que é fundamental - na análise de Deely - para o ponto de viragem que a semiótica estabelece entre a sua existência ainda silenciosa no seio da escolástica e o patamar autónomo moderno. O autor é também o tradutor de Poinsot: John of St.Thomas, Ars Logica (1632), Tractatus de signis: The Semiotic of John Poinsot, Berkeley of California Press, 1985.

[15] Nome bizantino atribuído à compilação dos trabalhos lógicos de Aristóteles e onde se integram As Categorias (termos ou objectos de apreensão), Da Interpretação (ou Periérmeneias - sobre as proposições), Analíticos Anteriores (formas comuns a qualquer processo de raciocínio), Analíticos Posteriores (aplicação do raciocínio e do pensamento à experiência), Tópicos (provas dialétocas e demonstrativas) e Elencos Sofísticos ("que trata do  desmascaramento de argumentos especiosos" - J.Deely18-19; cf. edição portuguesa do Organon,1985 - I/II -,Guimarães Editores, Lisboa e S.Everson, Aristote on Perception,1997,O.U.P.,Oxford/New York).

[16] A larga tradição que inscreve a "teia semiótica" emergente, no seio da grande casa da lógica, baseia-se num diagrama de I. Bochenski onde pontuam duas linhas paralelas que partem de Zenão de Eleia (464/60) e que se reunem com Zenão de Cítio (336/35-246/43). A do lado esquerdo inclui, em via descendente, Sócrates (ob. 399), Platão (428/27-348/47), Aristóteles (348-322) e Teofrasto (287-286); a do lado direito inclui, também em via descendente, Os sofistas antigos, Euclides de Megara (c. 460), Diodoro Crono (ob. 307) e Filon de Megara. De Zenão de Cítio, a linha descendente unifica-se e propaga-se a Crisipo de Soli (281/78-208/05) e daí a três escolas fundamentais: a peripatética, a estóica e a megárica e os subsequentes sincretismos. É no quadro deste diagrama que as obras referidas do Organon aristotélico constituem "ponto de focagem" e de referência fundamental, sobretudo ao longo da Idade Média e no Renascimento.

[17] Referência a Isagoge - Introdução às categorias de Aristóteles de Porfírio, obra escrita no século III d.C. e que constitui uma fragilíssima ponte entre as peças lógicas de Aristóteles e o mundo latino, devido ao facto de ter sido escrita em Grego (Guimarães Editores, Lisboa,1994).

[18] Sobre as relações entre as traduções de Grego para o Árabe e do Árabe para o Latim, ver Daniel, Norman The cultural Barrier - Problems in the Exchange of Ideas, Ed.Un.Press, Edinburgh, 1975.

[19] Madrasah (plural madáris) significa local de estudo em Árabe. Como matriz de universidades europeias, notem-se as influências exercidas pela Universidade fatimida de al-Azhar do Cairo e pela Nizâmiyyah de Bagdad. Sobre o assunto, ver C.Glassé madrasa in Dictionnaire Encyclopédique de l'Islam, Bordas, Paris, 1989.

[20] U.Eco in Enciclopédia Einaudi: 31-Signo, in Signo, Imprensa Nacional - Cada da Moeda, Lisboa,1994:33.

[21] Tradução constante em J.Deely (Livro II de Doctrina Christiana -1995:23/24)

[22] Sobre o assunto, cf. W.Noth, Hanbook of Semiotics, Indiana Un.Press, Bloomington/Indianapolis, 1995:16/7.

[23]Sobre a noção de interpretante, a que nos iremos referir mais tarde, registe-se a sua inserção na definição de signo de C.Peirce: "A sign, or representamen, is something which stands to somebody for something in some respect or capacity. It addresses somebody, that is, creates in the mind of that person an equivalent sign, or perhaps a more developed sign. That sign which it creates I call the interpretant of the first sign. The sign stands for something, its object. It stands for that object, not in all respects, but in reference to a sort of idea, which I have sometimes called ground of the representamen" (1978,II:135/2.228); Charles SandersPeirce, Collected Papers of Charles Sanders Peirce, VolsI/II,III/IV e VIII, The Belknap Press of  Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1978.

[24] Expressão utilizada por Garcez Poinsot para designar "análise semiótica" no seu Tractatus de signis (1632) (J.Deely,1995:79).

[25] Curiosamente, J.Deely, embora para denunciar um preconceito originado por deficiências historiográficas, cita C.Peirce para se referir a Guilherme de Ockham, confirmando a necessidade de libertar a indexicalidade divina absoluta conatural à escolástica: "Com Ockham, que morreu em 1347, pode dizer-se que o escolaticismo atingiu o ponto culminante. Depois dele, a filosofia escolática mostrou tendência para se separar do elemento religioso..." (1995:73).

[26] Sobre o quadrado semiótico de Santo Anselmo, cf., M.Beuchot, 'Le carré de Saint Anselme et le carré de Greimas' in Lire Greimas, Org.E.Landowski, Pulim, Limoges

[27] Entre as três tradições da lógica aristotélica que dominavam na Europa pós 1200, a vetus, a nova e a moderna, foi esta última também chamada sumulista ou terminista, que se tornou no texto-tradição da lógica no período da Renascença. Incluía lógica formal (Analíticos Anteriores) e ainda o estudo de termos (Categorias), proposições (Perhermenias) e raciocínio (Construção de proposições em argumentos - cf. J.Deely,1995:43-67).

[28] John of St.Thomas, Ars Logica (1632), translation J.Deely, Tractatus de signis: The Semiotic of John Poinsot, Berkeley of California Press, 1985 (definição de signo e divisões, pgs. 25-27).

[29] Na linha da tadição, o autor divide os signos em instrumentais - "aqueles que são representados às faculdades cognitivas assim que são reconhecidos por estas e, também, quando conduzem ao reconhecimento de outras coisas, como pegadas de animal, fumo ou rugas na testa" - e em formais que, por sua vez, ainda podem convencionais ou naturais. Estes "são aqueles que significam a mesma coisa para qualquer pessoa, tais como gemidos e risadas. Os signos convencionais são aqueles que significam através de uma intenção humana socialmente estruturada, tais como palavras e as letras e também aqueles que as pessoas usam, tais como a hera e o cipreste". O interessante é a nota de dúvida deixada por Fonseca, no próprio manuscrito, dando a entender que a divisão dos signos formais não reflecte suficiente propriedade" (cit. in J.Deely,1995:66-72)

[30] Montaigne,M., Essais, 1995:II, Folio Gallimard, Paris

[31] Sublinhado nosso.

[32] Cit. in J.Deely,1995:76.

[33]Cit in D.Clarke, Jr, Sources of Semiotic - Readings with Commentary from Antiquity to the Present, Southern Illinois University Press, cardbondale/Edwardsville,1990:35-40.

[34] Na tradição escolástica, o ens (origem da experiência) dividia-se em reale (independentemente da mente - categorias, substâncias e acidentes) e rationis (dependente da mente - conceptual e perceptivo - J.Deely,1995:35-37). Para o conceptualismo, próximo de S. Tomás de Aquino (1225-1274) e de Pedro Abelardo (1079-1142), que foi entendido com uma espécie de síntese entre o nominalismo e o realismo, os universais (as grandes abstracções anteriores à experiência) eram vistos como dependentes da mente humana, embora os conceitos elaborados mentalmente tivesse origem em semelhanças "between things of a common form" (W.Noth, 1990:18).

[35] O diagrama que traduz este despertar autónomo da semiótica, após séculos de uterino convívio na casa da lógica, situa a conhecida divisão das ciências de Locke do seguinte modo: por baixo, a semiótica ("dos meios através dos quais o conhecimento, tanto especulativo como prático, é adquirido, elaborado e partilhado"); ao meio, à esquerda, a área "especulativa" (de coisas que são o que são por natureza);  ainda ao meio, à direita, a área "prática" (das coisas que são o que são devido ao agir e pensamento humano" e, por fim, em cima, o conhecimento. Este losango surge depois disposto, em estrutura profunda, substituindo semiose por conhecimento (ligação entre experiência e as relações sígnicas) e, no lado inferior, a semiótica enquanto conjunto de "reflexões sobre o papel dos signos na estruturação da experiência e na revelação da natureza e da cultura ao nosso conhecimento" (cit. in J.Deely,1995:80-84).

[36] Para o filósofo inglês, as ideias simples derivavam de sensações e reflexões (ou seja, da experiência própria, externa e interna), logo nenhuma abstracção poderia ser-lhes anterior. O uso do cérebro, para Locke, é, pois, nesta linha, o uso, simples ou complexo, de uma escolha permanente e claramente autónoma: “At it is in the motions of the body, so it is in the thoughts of our minds: where anyone is such that we have power to take it up, or lay it by, according to the preference of the mind, there we are at liberty”(...)“And if I can, by a like thought of my mind, preferring one to the other, produce either words or silence, I am at liberty to speak or hold my peace. And as far as this power reaches, of acting or not acting, by the determination of his own thought preferring either so far is a man free”. 'Essay Concerning Human Understanding' in Modern Philosophy - An Anthology of Primary Sources, 1998: 262-270, Hackett Publishing Company,Inc.,Indianapolis/R.Ariew-E.Watkins(org.)/Cambridge.

[37] Segno, Istituto Editoriale Internazionale, Milano, 1973; ed.ut.: O signo, Presença, Lisboa, 1981.

[38]Sobre a relação entre genoma e cultura no seu impacto sobre a consciência nuclear e alargada, ver A. Damásio,2000:232.

[39] Luís Carmelo, Órbitas da Modernidade, Editorial Notícias, 2000: Parte I, Cap.II (no prelo).

[40] Consequências do pragmatismo, 1999,Instituto Piaget, Lisboa

[41] 1790, Crítica da Faculdade do Juízo, 1998,I.N.C.M., Lisboa (& 83/B398/1998:400).

[42] As palavras e as coisas, 1988,Edições 70, Lisboa (Edição original 1966).

[43] O surgimento do homem e das linguagens gera na arte literária o aparecer de um novo tipo de personagens que corresponde aos novos paradigmas da era moderna. O jogo da intersubjectividade social em que estes novos personagens são produzidos centra-se no que U.Eco, em Apocalípticos e integrados (1970,Perspectiva,SãoPaulo), designou, na sequência do Otras Inquisiciones (1952) de J.Borges, como constituindo a “civilização do romance”, contraposta ao estádio pré-moderno, baseado na actualização sempre repetitiva da 'estrutura do mito': “O público (no estádio pré-moderno) não pretendia saber nada de absolutamente novo, mas simplemente ouvir contar, de maneira agradável, um mito, repercorrendo o desenrolar conhecido, no qual se podia comprazer, todas as vezes, de modo mais intenso e mais rico”(...)”Era também assim que funcionavam as narrativas plásticas e pictóricas das catedrais góticas ou das igrejas renascentistas e contra-reformistas. Narrava-se, muitas vezes, de modo dramático e conturbado o já acontecido. A tradição romântica “(...)” oferece-nos, ao contrário, uma narrativa em que o interesse principal do leitor é deslocado para a imprevisibilidade do que acontecerá, e portanto, para a invenção do enredo, que passa para primeiro plano. O acontecimento não ocorreu antes da narrativa: ocorre enquanto se narra, e, convencionalmente, o próprio autor não sabe o que sucederá”. Também no texto ‘De las alegorias a las novelas’, inserido no livro de J.L.Borges Otras Inquisiciones (1952), termina do seguinte modo: “Tratemos de entender, sin embargo, que para los hombres de la Edad Media lo sustantivo no eran los hombres sino la humanidad, no los individuos sino la especie, no las especies sin el género, no los géneros sino Dios. De tales conseptos (cuya más clara manifestación es quizá el cuádruple sistema de Erígena) ha procedido, a mi entender, la literatura alegórica. Esta es fábula de abstracciones, como la novela lo es de individuos. Las abastracciones están personificadas; por eso, en toda alegoría hay algo novelístico.Los individuos que los novelistas proponen aspirán a genéricos (Dupin es la Razón. Don Segundo Sombra es el Gaucho); en las novelas hay un elemento alegórico.El pasage de alegoría, de especies a individuos, de realismo a nominalismo, requirió algunos siglos, pero me atrevo a sugerir una fecha ideal. Aquel día de 1382 en que Geoffrey Chaucer, que tal vez no se creía nominalista, quiso traducir al inglés el verspo de Bocaccio ‘E con gli occulti ferri Tradimenti’ (‘Y con hierros ocultos las Traiciones’), y lo repetió de este modo: ‘ The smyler with the knyf under the cloke (‘El que sonríe, com el cuchillo bajo la capa’). El original está en el séptimo libro de la Teseida; la versión en el Knightes Tale.” (J.Borges, 1952, Otras Inquisiciones in Prosa completa,1980-II:270)

[44] AA VV Enciclopédia Einaudi - 13 Lógica Combinatória in Lógica, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1988,  Lisboa.

[45] Introdução à Filosofia da linguagem, Rés, 1984,Porto.

[46] Alianza Editorial,Madrid,2000

[47] De qualquer maneira, e como também sugeriu A.Fidalgo (Semiótica: a lógica da comunicação,Estudos em Comunicação, UBI-Covilhã, 1998:15), cremos que J.Trabant (Elementos de semiótica, Presença, Lisboa, 1990:13)  responde sinteticamente e bem à questão, independentemente da questão institucional que o próprio saber semiótico pressupõe. Segundo o autor, é a (variada) tradição filosófica e a tradição linguística (e literária, acrescentaríamos) que estão no cerne da divisão entre uma semiologia originalmente saussureana e a expressão mais ambivalente - semiótica -, hoje em dia tácita e geralmente estatuída como designação epstémica.

[48] Sobre esta questão, cf. E.P. Coelho, Os universos da crítica, Ed.70, Lisboa, 1987: 501.

[49] Curso de linguística geral, Publicações D.Quixote, Lisboa,1995.

[50] Obra citada na nota 23 - 1978,II:303/2.292.

[51] "A sign, or representamen, is something which stands to somebody for something in some respect or capacity. It addresses somebody, that is, creates in the mind of that person an equivalent sign, or perhaps a more developed sign. That sign which it creates I call the interpretant of the first sign. The sign stands for something, its object. It stands for that object, not in all respects, but in reference to a sort of idea, which I have sometimes called ground of the representamen". Obra citada na nota 23- 1978,II:135/2.228.

[52] De la Grammatologie, Ed.Minuit, Paris, 1967.

[53] Sobre a semiótica filosófica de Husserl, veja-se a óptima síntese de A.Fidalgo em Semiótica: a lógica da comunicação, Estudos em Comunicação, Universidade da Beira Interior, Covilhã,1998: 31-43.

[54] Tratado Lógico-Filosófico * Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian/Serviço de educação,Lisboa,1985.

[55] Ao contrário do que Russell considerara o significado de um nome a sua própria referência, P.Strawson defendeu que o significado de uma palavra não era "como pretendía Russell, el objeto a que se refiere esa palabra, sino aquello a lo que se refiere el hablante cuando usa esa pabra. Es decir, el significado de una palabra debe encontrarse en el uso que della se hace" (I.Izuzquiza, Caleidoscopios - La filosofia occidental en la Segunda mitad del siglo XX, Alianza Editorial,Madrid,2000).

[56] Quando falamos, segundo Austin, somos contemporâneos de três actos que, no entanto, se desenrolam e significam no tempo: a) Actos locutórios (ao falar, para além do que se comunica, existe uma fonação, a aplicação de normas e, daí, a consecusão - incerta - de um sentido e de uma referência, i.e., o dado ético), b)  perlocutórios (ao falar levamos a cabo um acto de zizer qualquer coisa "in saying", seja informação, resposta, intenção, sentença, crítica ou dscrição, tudo o que se oponha ao acto fónicio de simplesmente afirmar) e b) perlocutórios (ao falar, também geramos efeitos, quer sobre nós quer sobre os nossos interlocutores; - Quand dire c´est faire, Seuil,1971; ed. ing. Original:1962. Para a elaboração da teoria dos 'Actos da fala', há que realçar o empenho de um colega de Austin, H.Grice, partidário de que comunicação e significado são consanguíneos porque se processam no tempo, e também o norte-americano J. Searle.

[57] Foudations of the Unity os Science. Toward an International Encyclopedia of Unified Science,1938,CUP,Chicago.

[58] "(...) in short: the Peircean paradigm is now firmly regnant" (T.Sebeok, Semiotic in the United States, Indiana University Press, Indianapolis and Bloomington, 1991).

[59] "The effects upon the organism due to any sign, which may be any stimulus from without, or any process taking place within, depend upon the past history of the organism, both generally and in a more precise fashion. In a sense, no doubt, the whole past history is relevant: but there will be some among the past events in that history which more directly determine the nature of the present agitation than others. Thus when we strike a match, the movements we make and the sound of the scrape are present stimuli. But the excitation which results is different from what it would be had we never struck matches before." (C.Ogden and I.Richards, The meaning of meaning, Harcourt and Brace, N.York, 1923:139-40; cit. in D.Clarke, Jr. Sources of Semiotics Southern IllinoisUniversity Press, Carbondale (1990:85)

[60] "Generally, when you hear na object-word you understand, your behaviour is, up to a point, that which the object istelf would have caused. This may occur without any 'mental' intermediary, by the ordinary rules of conditioned reflexes, since the word has become associated with the object. In the morning you may be told 'breakfast is ready', or you may smell the bacon. Either may have the same effect upon your actions. The associations between the smell and the bacon is 'natural',that is to say it is not a result of any human behaviour. But the associations between the word 'breakfast' and breakfast is a social matter, which exists only for English-speaking people. This, however, is only relevant when we are thinking of the community as a whole." (An Inquiry into Meaning and truth, Allen and Unwin, London,1940:67; cit. in D.Clarke, Jr. Sources of Semiotics Southern IllinoisUniversity Press, Carbondale (1990:88)

[61] "The technical term 'intension', which I use here instead of the ambiguous word 'meaning', is meant to apply only to the cognitive or designative meaning component. I shall not try to define this component. It was mentioned earlier that determination of truth presupposes knowledge of meaning (in addition to knowledge of facts); now, cognitive meaning may be roughly characterized as that meaning component which is relevant for determination of truth. The non-cognitive meaning components, although irrelevant for questions of truth and logic, may still be very important for psychological effect of a sentence on a listener, e.g., by emphasis, emotional associations, motivational effects." (´Meaning na d Synonymy' in Natural Languages, Apendix D of Meaning and Necessity, University of Chicago Press, Chicago, 1947:235; cit. in D.Clarke, Jr. Sources of Semiotics Southern IllinoisUniversity Press, Carbondale (1990:103).

[62] "Uma forma básica para as frases da ciência pode ser representada como "Fa" em que "a" está no lugar de um termo singular referindo-se a algum objecto, de entre aqueles que existem segundo a teoria científica em questão, e "F" está no lugar de um termo geral ou predicado. A frase "Fa" é verdadeira se e somente se o objecto satisfazer o predicado. Não se deve ler o tempo do verbo na predicação "Fa"; qualquer datação relevante deve antes ser integrada nos termos representados por "F" ou "a". (Filosofia e Linguagem, Asa, Lisboa,1995 :31).

[63] "Explicitly formulated linguistic (or quasi-linguistic) intentions are no doubt comparatively rare. In their absence we would seem to rely on very much the same kinds of criteria as we do in the case of nonlinguistic intentions where there is a general usage."(...)"context is the criterion in settling the question of why a man who has just put a cigarette in his mouth has put his hand in his pocket; relevance to na obvious end is a criterion in settling why a man is running away from a bull" (H.Grice, 'Meaning' in Philosophical Review 66 (1957:377-388 cit. in D.Clarke, Jr. Sources of Semiotics Southern IllinoisUniversity Press, Carbondale (1990:172).

[64] "I prefer to reserve the terms 'meanings' and 'language' to communications-systems which manifest individual intentions to communicate. Intentional behaviour is attuned to the particular circumstances as wired-in displays frequently fail to be: displays often occur in the absence of observers, or the absence of suitable observers, or more often than they are needed, and so on. The relatively blind and mechanical look of most display behaviour puts a great behavioural gulf between it and the employment of a communication-system which reflects individuals´intentions to communicate" (Linguistic Behavior, Cambridge University Press, Cambridge,1976:138).

[65] Noção de convenção: "A regurality R in the behavior of members of a population P when they are agents in a recurrent situation S is a convention if and only if, in any instance of  S among members of P - (1)everyone conforms R; (2) everyone expects everyone else to conform to R; (3) everyone prefers to conform to R on condition that the others do, since S is a coordination problem and uniform conformity to R is a coordination equilibrium in S" (D.Lewis,Convention, Cambridge UniversityPress,Cambridge,1969:36-37).

[66] Sobre a origem e desenvolvimento do pragmatismo norte-americano, ver O Pragmatismo. De Peirce a Davidson, Asa, Lisboa, 1993.

[67] Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis.

[68] Conotação, ou forma de conteúdo de um signo, cuja forma expressiva deriva de um outro signo: em minha frente 'o rosto de Maria Calas'/ 'o espanto e a dor'/ 'aquela ária do Puccini' ...e assim por diante (Prolègomenes à une théorie du langage, Les Editions du Minuit, Paris, 1968:144-157)

[69]Mythologies,1957,Seuil, Paris.

[70] Publicado no texto de abertura de L´aventure sémiologique - que contém os Éléments - Ed. du Seuil, Paris,1985:7-14.

[71] Edições 70, Lisboa,1997.

[72] A.Greimas/J. Courtés, Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, Classiques Hachette, Paris, 1979.

[73] Lire Greimas, Org.E.Landoeski, 1997, Pulim, Limoges

[74] Não é por acaso que T. Sebeok afirmou já no início da década de noventa: "American semioticians tend to be skeptics - in the moderate sense, like Hume, of suspending the claim of Knowledge, not, at least not often, in the radical sense of suspending belief. There remain, to be sure, plenty of dogmatics - for instance, the Paris School semioticians, engaged in a pursuit they habitually refer to as "le projet sémiotique", and their epigones in the Western Hemisphere - but they constitute but a sporadic rear guard, hacking away a minor tradition" (1991:117; obra citada na nota 4)

[75]Em De la Grammatologie (Ed.Minuit, Paris, 1967) J. Derrida invocava a cibernética, as teorias matemáticas e a teoria da informação para referir que a escrita é virtual e não fenomenal, conseguindo ser mais original do que as formas (fenomenais) para que supostamente evoca. 

[76] T.Sebeok fala em "avalanche of explicity or implicity semiotic works" ligados ao "poststruturalism ('deconstruction, grammatology",etc). Quanto a outras áreas, veja-se o caso de E.Laclau (no âmbito político), por exemplo (1991:31-34; obra citada na nota 4)

[77] Original:Tratatto di Semiotica generale, Bompiani, Milano, 1975.

[78] A noção de différance é introduzida em Margens da filosofia, Rés, Porto,s/d (original 1972)

[79]Kant e l´ ornitorinco, Bompiani, Milano, 1997.

[80] Bom exemplo dessa suspeita, geralmente proveniente do desconhecimento da "aventura semiótica" como fenómeno integrado, ou integrável, reflecte-se na polémica entre R. Scruton e U.Eco, a quel originou um texto essencial sobre a própria continuidade semiótica ('Signos, peixes e botões - notas sobre semiótica, filosofia e ciências humans' in Sobre os Espelhos e outros ensaios, Difel, Lisboa,1989 (Sugli specchi e altri saggi,1985, Bompiani, Milano)

[81] Sublinhado (neste caso, Itálico) nosso.

[82]Disse U.Eco que a semiótica contemporânea "pôs em causa a noção de signo" (1989:344 - obra citada na nota anterior). Talvez tenha antes posto o eclético legado da noção de signo em jogo e, nesse jogo, ou decidiu privilegiar a noção puramente significante; ou acedeu à transparência entre este e o seu correlato significativo; ou decidiu não aceitar que uma figura presente pudesse remeter para uma outra ausente; ou foi até capaz de submeter a regras e modelos rígidos o universo do(s) sentido(s); ou decidiu ainda que qualquer uso podia ser um signo, remetendo para si próprio e simultaneamente para o espaço dito não-sígnico. Mas sobretudo, e é esse o espaço sígnico que parece querer impor-se sobre a névoa das vanguardas algo cansadas, o signo passou a ser definitivamente definido "como tudo o que pode ser interpretado" (ibid.:362) e seja tomado pelo intérprete enquanto tal. Ou não era já nesta linha de ideias que Peirce disse o homem era um signo ?

[83] De realçar que, apesar de estas designações serem homológicas, elas são apenas isso, pois o grau de semelhança entre cada par diferenciado é amiúde reduzido. De qualquer maneira, existe uma mesma realidade ou preocupação que estes diagramas todos perseguem: a significação como produto mental, como um momento activo ou passivo da consciência (nuclear ou alargada). Respectivamente, Aristóteles, Estóicos, Santo Agostinho, Abelardo, Ockham, Locke, Frege, Peirce e Morris. Saussure e Hjelmslev fariam corresponder significado e conteúdo com estruturas vazias,porque, nesses autores, a correspondência é intrasígnica, i.e., apenas se traça com com o significante e a expressão, respectivamente. As substâncias não recortadas formalmente pelos signos não são contempladas no seu corpo específico.

[84] IASS-AIS Bulletin Newsletter (17-1 e 2/1997) e Semiotics around the World/ IASS-AIS Bulletin,Annual,1995/1996, ISSS, Vienna.

[85] "...o signo é sempre semioticamente autónomo em relação aos objectos a que pode ser referido" (U.Eco, Segno, Istituto Editoriale Internazionale, Milano, 1973; O signo, Presença, Lisboa, 1981:150.

[86] Obra citada na nota 54.

[87] A designação "Pré-semióticos" abrange os processos ligados, directa ou indirectamente, às modalidades pré-inferenciais descritas no aparelho conceptual de O Sentimento de Si.

[88] O tempo pode ser considerado "como aquilo que conduz ao homem”, ou, ao invés, considera-se o “homem como o criador do tempo” (I.Prigogine, O Nascimento do tempo, Ediçõs 70, Lisboa, 1999:21), constituindo o primeiro o tempo émico e o segundo o tempo ético.

[89] Obra citada na nota 23.

[90] A definição de ícone poderá, portanto, assumir duas interpertações: uma cognitiva, vista na sua natureza pura, primária, como potencialidade de “likeness” e uma, relativa ao ser, que C.Peirce traduziu como sendo a disponibilidade, também potencial, de qualquer coisa a “incastrasi” noutra coisa. Quando falamos de capacidade anterior, falamos de tudo o que nos povoa sem que, no momento, esteja activo ou seja actual; por outras palavras, ao referirmo-nos a capacidade anterior, referimo-nos, claramente e tão só, a tudo o que é potencial em nós, seres humanos. Este conjunto de potenciais corresponde ao que C.Peirce designa por “firstness”, do mesmo modo que tudo o que é actual e está agora, neste momento, a ocorrer, corresponde ao que o autor designa por “secondness” (U.Eco,1987:84 - obra citada na nota 78)

[91] Referência ao livro de 1979, Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton,N.J.:Princeton University Press.

[92]Précis de sémiotique générale, De Boeck Université (Essais-points), Paris,1999

[93] Acrescenta A. Damásio que "existe uma enorme desproporção entre o grande número de imagens que são constantemente geradas e que competem umas com as outras, e a janela, relativamente pequena, através da qual as imagens se tornam conscientes - a janela através da qual as imagens são acompanhadas pela sensação, imagética também, de que estamos a apreendê-las e de que lhe estamos a prestar a devida atenção" (2000:364). A este propósito consltar também a secção "Jogar às escondidas"(ibid.:49).

[94] "É uma cobinação de subsistemas, cada um dos quais transmite para o cérebro sinais acerca do estado de diversos aspectos do corpo". Apesar de diversificados, "trabalham em paralelo e em excelente cooperação a fim de produzirem em cada momento, a múltiplos níveis do sistema bervoso central"(...)"mapas incontáveis de várias dimensões do estado do corpo"(A.Damásio,2000:179/80).

[95] Mente, cérebro e ciência, edições 70, Lisboa,1997.

[96] Obra citada na nota 23.

[97] Obra citada na nota 23.

[98] Gil, Fernando, Mimésis e negação, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1984.

[99] Contudo na secção, 'Imagens do conhecimento', o autor contrasta esse imediatismo, caracterizado pela ausência de "verniz inferencial" com um poder inferencial activo, embora, claro, não-verbal, "complementado" pela memória e pelo raciocínio:  "Além de proporcionarem o sentimento de conhecer e o realce do objecto, as imagens do conhecer, complementadas pela memória e pelo raciocínio formam a base das inferências não verbais que reforçam o processo da consciência nuclear"(ibid.:215). O que significa que o poder inferencial da consciência nuclear, mais do que imediato e puro é porventura fruto de uma mediação quasi-instantanista. Fica a dúvida.

[100] Trata-se do mesmo modelo que o A.Damásio já utilizara "para reflectir sobre a relação entre as imagens menatis e o cérebro" (ibid.:253).

[101] Por outras palavras:"A consciência alargada surge a partir de dois truques. O primeiro requer a formação  gradual de memórias de muitos exemplos, de uma classe de objectos: os objectos da biografia do organismo e da nossa própria vida, tal como se desenrolaram no passado pessoal, iluminados pela consciência nuclear" (ibid.229)

[102] Veja-se em Órbitas da Modernidade: "A representação, para Foucault, deixa, portanto, de ser “um lugar de origem” inquestionável para passar a ser um mero “efeito” (ibid,:352). A produção desse efeito, ou melhor, dessa construção, é produto do século XVIII e pode ser ilustrado num jogo dialógico que une, entre outros, Hume a Kant. O primeiro dos autores contém duas inovações que, para António Marques, permitem antever o palco vivo da própria modernidade, a saber: a ausência de “referência externa na avaliação da objectividade” (1988:233) e 'uma certa ideia de necessidade dos produtos ficcionais'" (L.Carmelo, Ed.Notícias,no prelo)

[103] Obra citada na nota 91.

[104] Nome em Árabe da narradora insaciável que, no limite entre a vida e a morte, melhor ilustrou este narrar-se de nós próprios em 'Alf laylah wa laylah' (Mil e uma noites), recolha de contos orientais, de origem indiana em grande parte (a partir dos contos jâtaka) que viajaram para a Pérsia por volta do século III/IX, durante o apogeu do Califao Abássida de Bagdad, o que haveria de possibilitar um trânsito imenso entre Oriente e Ocidente da aliciante narrativa.

[105] 'Trespassar a pele: o teletrânsito' in Ars telemática, Relógio d´água,Lisboa(1998:120/1)

[106] Obra citada na nota 23.

[107]A.McHoul, Semiotic Investigations - Towards na Effective Semiotics 1996,University of Nebraska Press, Nebraska

[108] Obra citada na nota anterior.

[109]"O que basicamente domina esta nova época é o que designamos por ‘áreas de quase imediação’ e que incluem: (1) a ficcionalidade da experiência corporizada pelos média; (2) a área de propagação ciberespacial; (3) o agir livre do sujeito impelido por um desejo instantanista; (4) a compulsão interactiva circundante face ao sujeito e, por fim, (5) a propriocepção, ou seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito tecnológico"; (L.Carmelo, Órbitas da Modernidade, Ed.Notícias,Lisboa - no prelo).

[110] O texto referido corresponde a uma entrevista de F.Hoveyda e de J.Rivette a C. Metz, publicada em Cahiers du Cinema, nº 94, 04/1959 e aborda criticamente a 'montagem rei', a partir da contraposição língua/ linguagem e da segmentação proveniente das "atracções" eisensteinianas. Contudo, a questão de fundo equacionada por Metz, a dos modelos do real, põe o problema do artefacto, entendido na medida de uma matriz do próprio real-perceptivo enquanto inequívoca inversão falaciosa de termos. O texto encontra-se igualmente publicado sob o título A significação no cinema, Editora Perspectiva, São Paulo,1972: 45 e seguintes)

[111] Mais concretamente na secção "Uma nota sobre os limites actuais da neurobiologia"(1995:262-265).

[112]O autor chega mesmo a referir: "A questão do que poderá dar ao cérebro um meio natural para gerar a referência singular e estável a que chamaos si permanece sem resposta" (ibid.:162)

[113] Ser  e Tempo (I/II-1997,Vozes,Petrópolis), aparecido em 1927

[114] "Esta lógica é retomada do seguinte modo, no final do Ser e Tempo (1997,2-II:235): “Os agora passam e os agora que passaram constituem o passado. Os agora advêm e os agora que advirão delimitam o futuro”. Ou seja, na temporalidade irreparavelmente humana, convertida num sentido ontológico do “sorge” (cuidar de), o futuro tornar-se-á sempre no pilar fundamental, já que é a única instância que se antecipa à morte, sendo, portanto, capaz de enquadrar e ratificar a finitude." (L.Carmelo, Anjos e Meteoros,Ed.Notícias, Lisboa,1999:114/5)

[115] Para U.Eco, em Kant e l´ Ornitorinco, o reconhecimento através da representação desdobra-se entre o 'Tipo Cognitivo' (baseado no conceito empírico e influenciado pela cultura) e o 'Conteúdo Nuclear' (conjunto de interpretantes): "Da un lato stiamo parlando di un fenomeno di semiosi perceptiva (TC) e dall´altro di un fenomeno di accordo comunicativo (CN). Il TC - che non si vede e non si tocca - è soltanto postulabile in base ai fenomeni del riconoscimento, dell´identificazione e del riferimento felice: il CN invece rappresenta il modo in cui intersoggettivamente cerchiamo di chiarire quali tratti compongano un TC. Il CN, che riconosciamo sotto forma d´interpretañti, si vede e si toca - e questa non è soltanto una metafora, dato che tra gli interpretanti del termine cavallo stanno anche tanti cavalli scolpiti in bronzo o in pietra" (U.Eco,1997:116)

[116] Da interactividade. Crítica da nova 'Mimesis' tecnológica in Ars Telemática - Telecomunicação e Ciberespaço (Org. C.Gianetti), Relógio d´Agua, Lisboa,1998:179-236.

[117] Ciber como Oikos ? Ou: Jogos sérios in Ars Telemática - Telecomunicação e Ciberespaço (Org. C.Gianetti), Relógio d´Agua, Lisboa,1998:129-162.

[118] A busca ou a necessidade de uma prática de intersubjectividade foi um passo necessário para a emergência do que pode caracterizar-se como um sujeito que abrisse as portas à modernidade. O perspectivismo de Leibniz, entre outras contribuições, porá em andamento essa empresa, segundo a qual, os pontos de vista se ordenam de acordo com um desígnio de perfeição global. Quer isto dizer que, vivendo a humanidade no melhor dos mundos, toda a expressão emanada, seja por que acto for, acabará sempre por contribuir para o “jogo de argumentos e contra-argumentos” (A.Cardoso, 'Leibniz e o racionalismo moderno' in Descartes, Leibniz e a modernidade, 1998: 311- 342, Colibri, Lisboa), transformando-se a verdade “em sistema” (ibid.:341) e, sobretudo, convocando-se para o centro da racionalidade um dialogismo que estende o domínio de cada sujeito a um outro. Esta abertura tornar-se-á fulcral para próprio devir da modernidade: “...each substance expresses the whole series of the universe according to the point of view or relation proper to it. From which it happens that they agree perfectly; and when we say that one acts upon another, we mean that the distinct expression of the one acted upon is diminished, and that of the one acting is augmented, in conformity with the series of thoughts involved in the notion. For although every substance expresses everything, in common usage we correctly attribute to it only the most evident expressions in accordance to its relation to us.”(...)”All these things are consequences of the notion of an individual substance, which contains all its phenomena in such a way that nothing can happen to a substance that does not come from its depths, though in conformity to what happens to another, despite the fact that the one acts freely and the other without choice". ('Letters to Arnauld' -1686 - in Modern Philosophy - An Anthology of Primary Sources 1998 b : 208 - 225, Hackett Publishing Company, Inc. , Indianapolis / R.Ariew - E. Watkins (org.)/ Cambridge.

[119] Conferências de Paris, Edições 70, Lisboa, 1992.

[120] Obra citada na nota 46.

[121] Ética e infinito, Edições 70, 1982, Lisboa.

[122] Presumivelmente devido a gralha, "medidade" (colocado por nós em itálico) deve ser lido como "medida".